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FILOSOFIA - 3ª SÉRIE ENSINO MÉDIO
TERCEIRO TRIMESTRE DE 2015
ALGUNS ASPECTOS DA FILOSOFIA DE
IMMANUEL KANT (1724-1804) 1
“Duas
coisas
enchem
minha
alma
de
assombro e reverência cada vez maiores,
quanto mais frequente e mais intensamente a
reflexão nelas se detém: o céu estrelado
acima de mim e a lei moral dentro de mim”.
1 - Introdução
Texto extraído e adaptado dos livros: Convite à Filosofia, de Marilena Chauí, ed. Ática, 2000 e O mundo de Sofia, de Jostein
Gaarder, ed. Cia. das Letras, 1996.
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Este texto introdutório tem a finalidade de reapresentar conceitos já vistos, por
ocasião da apresentação da proposta do racionalismo (Descartes) e do empirismo
(empiristas britânicos).
A retomada desses conceitos torna-se importante, pois será com base neles, ou a
partir deles, que Kant proporá nova visão a respeito da teoria do conhecimento.
1.1 - A razão: inata ou adquirida? Inatismo ou empirismo?
De onde veio a capacidade para a intuição (razão intuitiva) e para o raciocínio
(razão discursiva)? Nascemos com eles? Ou nos seriam dados pela educação e pelo
costume? Seriam algo próprio dos seres humanos, constituindo a natureza deles, ou
seriam adquiridos através da experiência? Durante séculos, a Filosofia ofereceu duas
respostas a essas perguntas. A primeira ficou conhecida como inatismo e a segunda,
como empirismo.
O inatismo afirma que nascemos trazendo em nossa inteligência não só os
princípios racionais (princípios da identidade, da não contradição, do terceiro-excluído
e da causalidade), mas também algumas ideias verdadeiras, que, por isso, são ideias
inatas. O empirismo, ao contrário, afirma que a razão, com seus princípios, seus
procedimentos e suas ideias, é adquirida por nós através da experiência. Em grego,
experiência se diz: empeiria – donde, empirismo, conhecimento empírico, isto é,
conhecimento adquirido por meio da experiência.
1.2 - Inatismo cartesiano
Descartes discute a teoria das ideias inatas em várias de suas obras, mas as
exposições mais conhecidas encontram-se em duas delas: no Discurso do método e nas
Meditações metafísicas.
Nelas, Descartes mostra que nosso espírito possui três tipos de ideias que se
diferenciam segundo sua origem e qualidade: ideias adventícias (ideias que vêm de
fora, que se originam de nossas sensações), ideias fictícias (ideias que criamos em
nossa imaginação e fantasia) e ideias inatas. Para os objetivos deste texto, trataremos
somente destas últimas.
Ideias inatas são aquelas que não poderiam vir de nossa experiência sensorial
porque não há objetos sensoriais ou sensíveis para elas, nem poderiam vir de nossa
fantasia, pois não tivemos experiência sensorial para compô-las a partir de nossa
memória. As ideias inatas são inteiramente racionais e só podem existir porque já
nascemos com elas. Por exemplo, a ideia do infinito (pois não temos qualquer
experiência do infinito), as ideias matemáticas (a matemática pode trabalhar com a
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ideia de uma figura de mil lados, o quiliógono, e, no entanto, jamais tivemos e jamais
teremos a percepção de uma figura de mil lados). Essas ideias, diz Descartes, são “a
assinatura do Criador” no espírito das criaturas racionais, e a razão é a luz natural
inata que nos permite conhecer a verdade.
Como as ideias inatas são colocadas em nosso espírito por Deus, serão sempre
verdadeiras, isto é, sempre corresponderão integralmente às coisas a que se referem, e,
graças a elas, podemos julgar quando uma ideia adventícia é verdadeira ou falsa e
saber que as ideias fictícias são sempre falsas (não correspondem a nada fora de nós).
Ainda segundo Descartes, as ideias inatas são as mais simples que possuímos
(simples não quer dizer “fáceis”, e sim não compostas de outras ideias). A mais famosa
das ideias inatas cartesianas é o “Penso, logo existo”.
A tese central dos inatistas é a seguinte: se não possuirmos em nosso espírito a razão e a verdade,
nunca teremos como saber se um conhecimento é verdadeiro ou falso, isto é, nunca saberemos se
uma ideia corresponde ou não à realidade a que ela se refere. Não teremos um critério seguro
para avaliar nossos conhecimentos.
1.3 - O empirismo
Contrariamente aos defensores do inatismo, os defensores do empirismo
afirmam que a razão, a verdade e as ideias racionais são adquiridas por nós através da
experiência. Antes da experiência, dizem eles, nossa razão é como uma “folha em
branco”, onde nada foi escrito; uma “tábula rasa”, onde nada foi gravado. Somos como
uma cera sem forma e sem nada impresso nela, até que a experiência venha escrever
na folha, gravar na tábula, dar forma à cera.
1.4 - Os empiristas ingleses
No decorrer da história da Filosofia muitos filósofos defenderam a tese
empirista, mas os mais famosos e conhecidos são os filósofos ingleses dos séculos XVI
ao XVIII, chamados, por isso, de empiristas ingleses: Francis Bacon, John Locke,
George Berkeley e David Hume.
Na verdade, o empirismo é uma característica muito marcante da filosofia
inglesa. Na Idade Média, por exemplo, filósofos importantes como Roger Bacon e
Guilherme de Ockham eram empiristas; em nossos dias, Bertrand Russell foi um
empirista.
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Que dizem os empiristas?
Nossos conhecimentos começam com a experiência dos sentidos, isto é, com as sensações. Os
objetos exteriores excitam nossos órgãos dos sentidos e vemos cores, sentimos sabores e odores,
ouvimos sons, sentimos a diferença entre o áspero e o liso, o quente e o frio, etc.
As sensações se reúnem e formam uma percepção; ou seja, percebemos uma
única coisa ou um único objeto que nos chegou por meio de várias e diferentes
sensações. Assim, vejo uma cor vermelha e uma forma arredondada, aspiro um
perfume adocicado, sinto a maciez e digo: “Percebo uma rosa”. A “rosa” é o resultado da
reunião de várias sensações diferentes num único objeto de percepção.
As percepções, por sua vez, se combinam ou se associam. A associação pode darse por três motivos: por semelhança, por proximidade ou contiguidade espacial e por
sucessão temporal. A causa da associação das percepções é a repetição. Ou seja, de
tanto algumas sensações se repetirem por semelhança, ou de tanto se repetirem no
mesmo espaço ou próximas umas das outras, ou, enfim, de tanto se repetirem
sucessivamente no tempo, criamos o hábito de associá-las. Essas associações são as
ideias. As ideias, trazidas pela experiência, isto é, pela sensação, pela percepção e pelo
hábito, são levadas à memória e, de lá, a razão as apanha para formar os
pensamentos.
A experiência escreve e grava em nosso espírito as ideias, e a razão irá associálas, combiná-las ou separá-las, formando todos os nossos pensamentos. Por isso, David
Hume dirá que a razão é o hábito de associar ideias, seja por semelhança, seja por
diferença.
O exemplo mais importante (por causa das consequências futuras) oferecido por
Hume para mostrar como formamos hábitos racionais é o da origem do princípio da
causalidade.
A experiência me mostra, todos os dias, que, se eu puser um líquido num recipiente e levar ao fogo, esse
líquido ferverá, saindo do recipiente sob a forma de vapor. Se o recipiente estiver totalmente fechado e
eu o destampar, receberei um bafo de vapor, como se o recipiente tivesse ficado pequeno para conter o
líquido. A experiência também me mostra, todo o tempo, que se eu puser um objeto sólido (um pedaço de
vela, um pedaço de ferro) no calor do fogo, não só ele se derreterá, mas também passará a ocupar um
espaço muito maior no interior do recipiente. A experiência também repete constantemente para mim a
possibilidade que tenho de retirar um objeto preso dentro de um outro, se eu aquecer este último, pois,
aquecido, ele solta o que estava preso no seu interior, parecendo alargar-se e aumentar de tamanho.
Experiências desse tipo, à medida que vão se repetindo sempre da mesma
maneira, vão criando em mim o hábito de associar o calor com certos fatos. Adquiro o
hábito de perceber o calor e, em seguida, um fato igual ou semelhante a outros que já
percebi inúmeras vezes. E isso me leva a dizer: “O calor é a causa desses fatos”. Como
os fatos são de aumento do volume ou da dimensão dos corpos submetidos ao calor,
acabo concluindo: “O calor é a causa da dilatação dos corpos” e também “A dilatação
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dos corpos é o efeito do calor”. É assim, diz Hume, que nascem as ciências. São elas,
portanto, hábito de associar ideias, em consequência das repetições da experiência.
Ora, ao mostrar como se forma o princípio da causalidade, Hume está dizendo que as
ideias da razão se originam da experiência.
Entretanto, sabemos que razão pretende alcançar a realidade em seus aspectos
universais e necessários. Em outras palavras, pretende conhecer a realidade tal como
é em si mesma, considerando que o que conhece vale como verdade para todos os
tempos e lugares (universalidade) e indica como as coisas são e como não poderiam, de
modo algum, ser de outra maneira (necessidade).
Ora, Hume torna impossível tanto a universalidade quanto a necessidade
pretendidas pela razão. O universal é apenas um nome ou uma palavra geral que
usamos para nos referirmos à repetição de semelhanças percebidas e associadas. O
necessário é apenas o nome ou uma palavra geral que usamos para nos referirmos à
repetição das percepções sucessivas no tempo. O universal, o necessário, a causalidade
são meros hábitos psíquicos.
1.5 - Resumindo…
Do lado do inatismo, o problema pode ser formulado da seguinte maneira: como
são inatos, as ideias e os princípios da razão são verdades intemporais que nenhuma
experiência nova poderá modificar.
Ora, a História (social, política, científica e filosófica) mostra que ideias tidas
como verdadeiras e universais não possuíam essa validade e foram substituídas por
outras. Mas, por definição, uma ideia inata é sempre verdadeira e não pode ser
substituída por outra. Se for substituída, então não era uma ideia verdadeira e, não
sendo uma ideia verdadeira, não era inata.
Do lado do empirismo, o problema pode ser formulado da seguinte maneira: a
racionalidade ocidental só foi possível porque a Filosofia e as ciências demonstraram
que a razão é capaz de alcançar a universalidade e a necessidade que governam a
própria realidade, isto é, as leis racionais que governam a Natureza, a sociedade, a
moral, a política.
Ora, a marca própria da experiência é a de ser sempre individual, particular e
subjetiva. Se o conhecimento racional for apenas a generalização e a repetição para
todos os seres humanos de seus estados psicológicos, derivados de suas experiências,
então o que chamamos de Filosofia, de ciência, de ética etc. são nomes gerais para
hábitos psíquicos e não um conhecimento racional verdadeiro de toda a realidade,
tanto a realidade natural quanto a humana.
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Problemas dessa natureza, frequentes na história da Filosofia, suscitam,
periodicamente, o aparecimento de uma corrente filosófica conhecida como ceticismo,
para o qual a razão humana é incapaz de conhecer a realidade e por isso deve
renunciar à verdade. O cético sempre manifesta explicitamente dúvidas toda vez que a
razão tenha pretensão ao conhecimento verdadeiro do real.
2 – Immanuel Kant - Introdução
Immanuel Kant nasceu em 1724, em Königsberg (hoje Kaliningrado), cidade no
leste da Prússia. Lá ele viveu praticamente toda a vida. Kant vinha de uma família
luterana bastante devota, e suas próprias convicções religiosas formaram uma
importante base para sua filosofia. A exemplo de Berkeley, ele sentia que era essencial
preservar as fundações da fé cristã.
Em 1770, Kant se tornou professor de lógica e metafísica na Universidade de
Königsberg, onde ensinou durante a maior parte da vida. Ele também tinha um
grande interesse pela ciência, tendo publicado obras sobre astronomia e geofísica.
As três obras mais significativas de Kant foram publicadas tarde na vida. A
Crítica da razão pura foi publicada em 1781, seguida por Crítica da razão prática, em
1788, e a Crítica do juízo, em 1790. A Crítica da razão pura é uma das obras mais
importantes de toda a filosofia. Lamentavelmente, é também uma das mais difíceis de
ler – Kant mesmo a qualificou de árida e obscura.
Kant era de modo geral um homem sociável e cordial, mas, perto do final da
vida, suas faculdades mentais e sua visão se deterioraram muito. Quando morreu, aos
80 anos de idade, era uma sombra do homem que fora. Uma de suas citações mais
conhecidas está gravada na lápide de seu túmulo em Königsberg: “Duas coisas enchem
minha alma de assombro e reverência cada vez maiores, quanto mais frequente e mais
intensamente a reflexão nelas se detém: o céu estrelado acima de mim e a lei moral
dentro de mim”.
Há dois tipos de filósofo. Um é aquele que procura as próprias respostas para as
indagações filosóficas. O outro é o conhecedor da história da filosofia, mas que não
constrói, necessariamente, uma filosofia própria. Kant foi os dois. Um professor
brilhante, versado no pensamento racionalista de Descartes e Spinoza e no
pensamento empírico de Locke, Berkeley e Hume. Além disso, ele mesmo elaborou
uma nova filosofia a partir das melhores partes dessas duas tradições.
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3 - A síntese kantiana
A resposta aos problemas do inatismo e do empirismo oferecida pelo filósofo
alemão do século XVIII, Immanuel Kant, é conhecida com o nome de “revolução
copernicana” em Filosofia. Por quê? Qual a relação entre Kant e o que fizera
Copérnico, quase dois séculos antes do kantismo?
Vejamos, muito brevemente, o que foi a revolução copernicana em astronomia
para, depois, vermos o que foi ela em Filosofia.
A tradição antiga e medieval considerava que o mundo possuía limites (ou seja,
o mundo era finito), sendo formado por um conjunto de sete esferas concêntricas, em
cujo centro estava a Terra, imóvel. À volta da Terra, giravam as esferas nas quais
estavam presos os planetas (o Sol e a Lua eram considerados planetas). Em grego,
Terra se diz Gaia ou Geia. Como ela se encontrava no centro, o sistema astronômico
era chamado de geocêntrico e o mundo era explicado pelo geocentrismo.
A revolução copernicana demonstrou que o sistema geocêntrico era falso e que:
1. o mundo não é finito, mas é um Universo infinito;
2. os astros não estão presos em esferas, mas fazem um movimento (como demonstrará Kepler, depois
de Copérnico), cuja forma é a de uma elipse;
3. o centro do Universo não é a Terra;
4. o Sol (como já fora demonstrado por outros astrônomos) não é um planeta, mas uma estrela, e a
Terra, como os outros planetas, gira ao redor dele;
5. o próprio Sol também se move, mas não em volta da Terra.
Em grego, Sol se diz Hélios e por isso o sistema de Copérnico é chamado de
heliocêntrico, e sua explicação, de heliocentrismo, pois o Sol está no centro do nosso
sistema planetário e tudo se move ao seu redor.
Voltemos agora a Kant e observemos o que ele diz.
Inatistas e empiristas, isto é, todos os filósofos, parecem ser como astrônomos
geocêntricos, buscando um centro que não é verdadeiro. Parecem, diz Kant, como
alguém que, querendo assar um frango, fizesse o forno girar em torno dele e não o
frango em torno do fogo.
Qual o engano dos filósofos?
Em lugar de, primeiro e antes de tudo, estudar o que é a própria razão e indagar
o que ela pode e o que não pode conhecer, o que é a experiência e o que ela pode ou não
pode conhecer;
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em vez, enfim, de procurar saber o que é a verdade, qual é o verdadeiro valor dos nossos conhecimentos e o
que é conhecimento,
os filósofos preferiram começar dizendo o que a realidade é, afirmando que ela é
racional e que, por isso, pode ser inteiramente conhecida pelas ideias da razão.
Colocaram a realidade exterior ou os objetos do conhecimento no centro e
fizeram a razão, ou o sujeito do conhecimento (isto é, aquele que conhece, ou sujeito
cognoscente), girar em torno deles.
Façamos, pois, uma revolução copernicana em Filosofia: em vez de colocar no
centro a realidade objetiva ou os objetos do conhecimento, dizendo que são racionais e
que podem ser conhecidos tais como são em si mesmos, comecemos colocando no centro
a própria razão.
Não é a razão a Luz Natural? Não é ela o Sol que ilumina todas as coisas e em torno do qual tudo
gira? Comecemos, portanto, pela Luz Natural no centro do conhecimento e indaguemos: O que é
ela? O que ela pode conhecer? Quais são as condições para que haja conhecimento verdadeiro?
Quais são os limites que o conhecimento humano não pode transpor? Como a razão e a
experiência se relacionam?
Comecemos, então, pelo sujeito do conhecimento. E comecemos mostrando que
este sujeito é a razão universal e não uma subjetividade pessoal e psicológica, que ele é
o sujeito conhecedor e não Pedro, Paulo, Maria ou Isabel, esta ou aquela pessoa, este
ou aquele indivíduo.
O que é a razão?
A razão é uma estrutura vazia, uma forma pura sem conteúdos. Essa estrutura
(e não os conteúdos) é que é universal, a mesma para todos os seres humanos, em
todos os tempos e lugares. Essa estrutura é inata, isto é, não é adquirida através da
experiência. Por ser inata e não depender da experiência para existir, a razão é, do
ponto de vista do conhecimento, anterior à experiência. Ou, como escreve Kant, a
estrutura da razão é a priori (vem antes da experiência e não depende dela).
Porém, os conteúdos que a razão conhece e nos quais ela pensa, esses sim,
dependem da experiência. Sem ela, a razão seria sempre vazia, inoperante, nada
conhecendo. Assim, a experiência fornece a matéria (os conteúdos) do conhecimento
para a razão e esta, por sua vez, fornece a forma (universal e necessária) do
conhecimento. A matéria do conhecimento, por ser fornecida pela experiência, vem
depois desta e por isso é, no dizer de Kant, a posteriori.
Qual o engano dos inatistas? Supor que os conteúdos ou a matéria do conhecimento são
inatos.
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Qual o engano dos empiristas? Supor que a estrutura da razão é adquirida por experiência ou
causada pela experiência.
Na verdade, a experiência não é causa das ideias, mas é a ocasião para que a
razão, recebendo a matéria ou o conteúdo, formule as ideias. Não existem ideias
inatas.
Dessa maneira, a estrutura da razão é inata e universal, enquanto os conteúdos
são empíricos e podem variar no tempo e no espaço, podendo transformar-se com novas
experiências e mesmo revelarem-se falsos, graças a experiências novas.
O que é o conhecimento racional, sem o qual não há Filosofia nem ciência?
É a síntese que a razão realiza entre uma forma universal inata e um conteúdo particular
oferecido pela experiência.
Qual é a estrutura da razão?
A razão é constituída por três estruturas a priori:
1. a estrutura ou forma da sensibilidade, isto é, a estrutura ou forma da percepção sensível ou
sensorial;
2. a estrutura ou forma do entendimento, isto é, do intelecto ou inteligência;
3. a estrutura ou forma da razão propriamente dita, quando esta não se relaciona nem com os
conteúdos da sensibilidade, nem com os conteúdos do entendimento, mas apenas consigo
mesma.
Como, para Kant, só há conhecimento quando a experiência oferece conteúdos à
sensibilidade e ao entendimento, a razão, separada da sensibilidade e do
entendimento, não conhece coisa alguma e não é sua função conhecer. Sua função é a
de regular e controlar a sensibilidade e o entendimento. Do ponto de vista do
conhecimento, portanto, a razão é a função reguladora da atividade do sujeito do
conhecimento.
A forma da sensibilidade é o que nos permite ter percepções, isto é, a forma é
aquilo sem o que não pode haver percepção, sem o que a percepção seria impossível.
Percebemos todas as coisas como dotadas de figura, dimensões (altura, largura,
comprimento), grandeza: ou seja, nós as percebemos como realidades espaciais.
Não interessa se cada um de nós vê cores de uma certa maneira, gosta mais de
uma cor ou de outra, ouve sons de uma certa maneira, gosta mais de certos sons do
que de outros etc. O que importa é que nada pode ser percebido por nós se não possuir
propriedades espaciais; por isso, o espaço não é algo percebido, mas é o que permite
haver percepção (percebemos lugares, posições, situações, mas não percebemos o
próprio espaço). Assim, o espaço é a forma a priori da sensibilidade e existe em nossa
razão antes e sem a experiência.
Também só podemos perceber as coisas como simultâneas ou sucessivas:
percebemos as coisas como se dando num só instante ou em instantes sucessivos. Ou
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seja, percebemos as coisas como realidades temporais. Não percebemos o tempo (temos
a experiência do passado, do presente e do futuro, porém não temos percepção do
próprio tempo), mas ele é a condição de possibilidade da percepção das coisas e é a
outra forma a priori da sensibilidade que existe em nossa razão antes da experiência e
sem a experiência.
A percepção recebe conteúdos da experiência e a sensibilidade organiza
racionalmente segundo a forma do espaço e do tempo. Essa organização espaço
temporal dos objetos do conhecimento é que é inata, universal e necessária.
O entendimento, por sua vez, organiza os conteúdos que lhe são enviados pela
sensibilidade, isto é, organiza as percepções. Novamente o conteúdo é oferecido pela
experiência sob a forma do espaço e do tempo, e a razão, através do entendimento,
organiza tais conteúdos empíricos.
Essa organização transforma as percepções em conhecimentos intelectuais ou
em conceitos. Para tanto, o entendimento possui a priori (isto é, antes da experiência e
independente dela) um conjunto de elementos que organizam os conteúdos empíricos.
Esses elementos são chamados de categorias e sem elas não pode haver conhecimento
intelectual, pois são as condições para tal conhecimento.
Com as categorias a priori, o sujeito do conhecimento formula os conceitos. As
categorias organizam os dados da experiência segundo a qualidade, a quantidade, a
causalidade, a finalidade, a verdade, a falsidade, a universalidade, a particularidade.
Assim, longe de a causalidade, a qualidade e a quantidade serem resultados de hábitos
psicológicos associativos, eles são os instrumentos racionais com os quais o sujeito do
conhecimento organiza a realidade e a conhece. As categorias, estruturas vazias, são
as mesmas em toda época e em todo lugar, para todos os seres racionais.
Graças à universalidade e à necessidade das categorias, as ciências são possíveis e válidas; o
empirismo, portanto, está equivocado.
Em instante algum Kant admite que a realidade, em si mesma, é espacial,
temporal, qualitativa, quantitativa, causal, etc. Isso seria regredir ao forno girando em
torno do frango. O que Kant afirma é que a razão e o sujeito do conhecimento possuem
essas estruturas para poder conhecer e que, por serem elas universais e necessárias, o
conhecimento é racional e verdadeiro para os seres humanos.
É isso que a razão pode. O que ela não pode (e nisso inatistas e empiristas se
enganaram) é supor que com suas estruturas passe a conhecer a realidade tal como
esta é em si mesma. A razão conhece os objetos do conhecimento. O objeto do
conhecimento é aquele conteúdo empírico que recebeu as formas e as categorias do
sujeito do conhecimento. A razão não está nas coisas, mas em nós.
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A razão é sempre razão subjetiva e não pode pretender conhecer a realidade tal
como ela seria em si mesma. Podemos saber apenas como o mundo é “para mim” e,
portanto, para todas as pessoas. A diferença que Kant estabelece entre as “coisas em
si” e as “coisas para nós” é a sua mais importante contribuição para a filosofia.
Nunca seremos capazes de saber com toda certeza como as coisas são “em si”.
Sabemos apenas como as coisas “aparecem” ou como elas “se mostram” para nós. Por
outro lado, antes de qualquer experiência em particular, podemos dizer como as coisas
poderão ser percebidas pela mente humana.
Exemplo: Antes de sair de manhã, você não sabe o que vai ver ou experimentar durante o dia.
Mas você pode saber que o que verá e experimentará será percebido como um acontecimento no
tempo e no espaço. Além disso, você pode estar certo de que a lei da causa e do efeito terá
validade e irá se aplicar, simplesmente porque você a carrega consigo, como parte de sua
consciência.
O erro dos inatistas e empiristas foi o de supor que nossa razão alcança a
realidade em si. Para um inatista como Descartes, a realidade em si é espacial,
temporal, qualitativa, quantitativa, causal. Para um empirista como Hume, a
realidade em si pode ou não repetir fatos sucessivos no tempo, pode ou não repetir
fatos contíguos no espaço, pode ou não repetir as mesmas sequências de
acontecimentos.
Para Kant, jamais poderemos saber se a realidade em si é espacial, temporal,
causal, qualitativa, quantitativa. Mas sabemos que nossa razão possui uma estrutura
universal, necessária e a priori que organiza necessariamente a realidade em termos
das formas da sensibilidade e dos conceitos e categorias do entendimento. Como razão
subjetiva, nossa razão pode garantir a verdade da Filosofia e da ciência.
Resumindo...
A filosofia kantiana negou, então, que inatistas e empiristas estivessem certos. Negou que
pudéssemos conhecer a realidade em si das coisas, negou que a razão possuísse conteúdos
inatos, mostrando que os conteúdos dependem da experiência; mas negou também que a
experiência fosse a causa da razão, ou que esta fosse adquirida, pois possui formas e estruturas
inatas. Kant deu prioridade ao sujeito do conhecimento, enquanto empiristas e inatistas davam
prioridade ao objeto do conhecimento.
Assim, na perspectiva de Kant, os racionalistas e os empiristas estavam certos em parte. Os
racionalistas quase se esqueceram da importância da experiência, e os empiristas fecharam os
olhos a como nossa mente influencia o modo de vermos o mundo. O pensamento kantiano é
conhecido como IDEALISMO TRANSCENDENTAL. A expressão transcendental significa aquilo
que é anterior a toda experiência:
"Chamo transcendental todo conhecimento que não se relaciona com objetos, mas sim com nosso
modo de conhecer os objetos, enquanto possível a priori.”
4 – A Ética Kantiana ou a Ética do dever
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Kant sempre achou que a distinção entre certo e errado seria uma questão da
razão humana, e não do sentimento. Nisso ele concordava com os racionalistas, que
disseram que a capacidade de distinguir entre certo e errado seria inerente à razão
humana. Todas as pessoas sabem o que é certo e errado, não porque o aprenderam,
mas porque é inerente à nossa razão. De acordo com Kant, todas as pessoas têm ‘razão
prática', ou seja, a inteligência que nos dá capacidade de discernir entre o certo e o
errado em cada caso.
A capacidade de distinguir entre certo e errado seria tão inata quanto todas as outras
propriedades da razão.
Assim, como somos todos seres inteligentes, por exemplo, que percebemos em
tudo uma relação de causa e efeito, todos teríamos, também, acesso a uma mesma lei
moral universal. Esta lei moral tem a mesma validade absoluta que as leis físicas da
natureza. Isso é tão fundamental para a nossa vida moral como é fundamental para a
nossa vida racional que tudo tenha uma causa, ou que sete mais cinco sejam doze.
Essa lei moral é "formal ou estrutural", uma vez que existe em nossa razão
independentemente de qualquer experiência. Significa que não está relacionada com
possibilidades morais de escolha determinadas vindas da experiência. A lei moral não
pode consistir em ordenar determinadas coisas, por mais nobres e elevadas que sejam.
Isto significa que a lei moral não depende do conteúdo. Segundo Kant, quando se
subordina a lei moral ao conteúdo, se cai no empirismo e no utilitarismo, porque, nesse
caso, a vontade é determinada pelos conteúdos, conforme agradem ou não. Essa lei é
válida para todos os homens em todas as sociedades e em todos os tempos. Logo, não
diz que temos de fazer isto ou aquilo nesta ou naquela situação.
Assim, essa lei moral diz exatamente como devemos nos comportar em todas as
situações.
Kant formula a lei moral como um imperativo categórico. Por isto, ele entende
que a lei moral é "categórica", quer dizer, é válida em todas as situações. Além disso, é
um "imperativo" e consequentemente uma "ordem" e absolutamente inevitável. O
imperativo categórico não diz “se quiseres... deves”, mas sim “deves porque deves”, ou
“deves e pronto”. Para Kant, a lei da moral seria tão absoluta e universal quanto à lei
da causalidade.
Ele formulou esse “imperativo categórico” de várias maneiras:
Primeiro dizendo:
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“Aja apenas de acordo com aquela máxima por meio da qual você possa, ao mesmo tempo, desejar
que se transforme em lei universal”. Desse modo, quando fizer alguma coisa certifique-se de que
quer que outras pessoas façam o mesmo se estiverem na mesma situação.
Outra maneira de Kant formular o “imperativo categórico” foi a seguinte:
“Aja de tal modo a sempre tratar a humanidade, seja em sua pessoa seja na pessoa de outrem,
jamais simplesmente como um meio para se chegar a alguma coisa, mas sempre ao mesmo tempo
como um fim”.
Se, às vezes, você é gentil e prestativo com os outros, apenas para se tornar
querido pelas pessoas, então você não estará agindo de acordo com a lei moral. Talvez
você esteja agindo apenas superficialmente de acordo com ela, o que já é alguma coisa,
mas aquilo que se pode chamar de ação moral tem de ser o resultado do esforço de
superar-se a si mesmo. Só quando se faz algo por puro dever é que se pode falar em
ação moral. Por isso, a ética de Kant é às vezes chamada de ética do dever.
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A Filosofia de Kant