1 FILOSOFIA - 3ª SÉRIE ENSINO MÉDIO TERCEIRO TRIMESTRE DE 2015 ALGUNS ASPECTOS DA FILOSOFIA DE IMMANUEL KANT (1724-1804) 1 “Duas coisas enchem minha alma de assombro e reverência cada vez maiores, quanto mais frequente e mais intensamente a reflexão nelas se detém: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim”. 1 - Introdução Texto extraído e adaptado dos livros: Convite à Filosofia, de Marilena Chauí, ed. Ática, 2000 e O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, ed. Cia. das Letras, 1996. 1 JBRFRAGA –OUTUBRO/2015 2 Este texto introdutório tem a finalidade de reapresentar conceitos já vistos, por ocasião da apresentação da proposta do racionalismo (Descartes) e do empirismo (empiristas britânicos). A retomada desses conceitos torna-se importante, pois será com base neles, ou a partir deles, que Kant proporá nova visão a respeito da teoria do conhecimento. 1.1 - A razão: inata ou adquirida? Inatismo ou empirismo? De onde veio a capacidade para a intuição (razão intuitiva) e para o raciocínio (razão discursiva)? Nascemos com eles? Ou nos seriam dados pela educação e pelo costume? Seriam algo próprio dos seres humanos, constituindo a natureza deles, ou seriam adquiridos através da experiência? Durante séculos, a Filosofia ofereceu duas respostas a essas perguntas. A primeira ficou conhecida como inatismo e a segunda, como empirismo. O inatismo afirma que nascemos trazendo em nossa inteligência não só os princípios racionais (princípios da identidade, da não contradição, do terceiro-excluído e da causalidade), mas também algumas ideias verdadeiras, que, por isso, são ideias inatas. O empirismo, ao contrário, afirma que a razão, com seus princípios, seus procedimentos e suas ideias, é adquirida por nós através da experiência. Em grego, experiência se diz: empeiria – donde, empirismo, conhecimento empírico, isto é, conhecimento adquirido por meio da experiência. 1.2 - Inatismo cartesiano Descartes discute a teoria das ideias inatas em várias de suas obras, mas as exposições mais conhecidas encontram-se em duas delas: no Discurso do método e nas Meditações metafísicas. Nelas, Descartes mostra que nosso espírito possui três tipos de ideias que se diferenciam segundo sua origem e qualidade: ideias adventícias (ideias que vêm de fora, que se originam de nossas sensações), ideias fictícias (ideias que criamos em nossa imaginação e fantasia) e ideias inatas. Para os objetivos deste texto, trataremos somente destas últimas. Ideias inatas são aquelas que não poderiam vir de nossa experiência sensorial porque não há objetos sensoriais ou sensíveis para elas, nem poderiam vir de nossa fantasia, pois não tivemos experiência sensorial para compô-las a partir de nossa memória. As ideias inatas são inteiramente racionais e só podem existir porque já nascemos com elas. Por exemplo, a ideia do infinito (pois não temos qualquer experiência do infinito), as ideias matemáticas (a matemática pode trabalhar com a JBRFRAGA –OUTUBRO/2015 3 ideia de uma figura de mil lados, o quiliógono, e, no entanto, jamais tivemos e jamais teremos a percepção de uma figura de mil lados). Essas ideias, diz Descartes, são “a assinatura do Criador” no espírito das criaturas racionais, e a razão é a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade. Como as ideias inatas são colocadas em nosso espírito por Deus, serão sempre verdadeiras, isto é, sempre corresponderão integralmente às coisas a que se referem, e, graças a elas, podemos julgar quando uma ideia adventícia é verdadeira ou falsa e saber que as ideias fictícias são sempre falsas (não correspondem a nada fora de nós). Ainda segundo Descartes, as ideias inatas são as mais simples que possuímos (simples não quer dizer “fáceis”, e sim não compostas de outras ideias). A mais famosa das ideias inatas cartesianas é o “Penso, logo existo”. A tese central dos inatistas é a seguinte: se não possuirmos em nosso espírito a razão e a verdade, nunca teremos como saber se um conhecimento é verdadeiro ou falso, isto é, nunca saberemos se uma ideia corresponde ou não à realidade a que ela se refere. Não teremos um critério seguro para avaliar nossos conhecimentos. 1.3 - O empirismo Contrariamente aos defensores do inatismo, os defensores do empirismo afirmam que a razão, a verdade e as ideias racionais são adquiridas por nós através da experiência. Antes da experiência, dizem eles, nossa razão é como uma “folha em branco”, onde nada foi escrito; uma “tábula rasa”, onde nada foi gravado. Somos como uma cera sem forma e sem nada impresso nela, até que a experiência venha escrever na folha, gravar na tábula, dar forma à cera. 1.4 - Os empiristas ingleses No decorrer da história da Filosofia muitos filósofos defenderam a tese empirista, mas os mais famosos e conhecidos são os filósofos ingleses dos séculos XVI ao XVIII, chamados, por isso, de empiristas ingleses: Francis Bacon, John Locke, George Berkeley e David Hume. Na verdade, o empirismo é uma característica muito marcante da filosofia inglesa. Na Idade Média, por exemplo, filósofos importantes como Roger Bacon e Guilherme de Ockham eram empiristas; em nossos dias, Bertrand Russell foi um empirista. JBRFRAGA –OUTUBRO/2015 4 Que dizem os empiristas? Nossos conhecimentos começam com a experiência dos sentidos, isto é, com as sensações. Os objetos exteriores excitam nossos órgãos dos sentidos e vemos cores, sentimos sabores e odores, ouvimos sons, sentimos a diferença entre o áspero e o liso, o quente e o frio, etc. As sensações se reúnem e formam uma percepção; ou seja, percebemos uma única coisa ou um único objeto que nos chegou por meio de várias e diferentes sensações. Assim, vejo uma cor vermelha e uma forma arredondada, aspiro um perfume adocicado, sinto a maciez e digo: “Percebo uma rosa”. A “rosa” é o resultado da reunião de várias sensações diferentes num único objeto de percepção. As percepções, por sua vez, se combinam ou se associam. A associação pode darse por três motivos: por semelhança, por proximidade ou contiguidade espacial e por sucessão temporal. A causa da associação das percepções é a repetição. Ou seja, de tanto algumas sensações se repetirem por semelhança, ou de tanto se repetirem no mesmo espaço ou próximas umas das outras, ou, enfim, de tanto se repetirem sucessivamente no tempo, criamos o hábito de associá-las. Essas associações são as ideias. As ideias, trazidas pela experiência, isto é, pela sensação, pela percepção e pelo hábito, são levadas à memória e, de lá, a razão as apanha para formar os pensamentos. A experiência escreve e grava em nosso espírito as ideias, e a razão irá associálas, combiná-las ou separá-las, formando todos os nossos pensamentos. Por isso, David Hume dirá que a razão é o hábito de associar ideias, seja por semelhança, seja por diferença. O exemplo mais importante (por causa das consequências futuras) oferecido por Hume para mostrar como formamos hábitos racionais é o da origem do princípio da causalidade. A experiência me mostra, todos os dias, que, se eu puser um líquido num recipiente e levar ao fogo, esse líquido ferverá, saindo do recipiente sob a forma de vapor. Se o recipiente estiver totalmente fechado e eu o destampar, receberei um bafo de vapor, como se o recipiente tivesse ficado pequeno para conter o líquido. A experiência também me mostra, todo o tempo, que se eu puser um objeto sólido (um pedaço de vela, um pedaço de ferro) no calor do fogo, não só ele se derreterá, mas também passará a ocupar um espaço muito maior no interior do recipiente. A experiência também repete constantemente para mim a possibilidade que tenho de retirar um objeto preso dentro de um outro, se eu aquecer este último, pois, aquecido, ele solta o que estava preso no seu interior, parecendo alargar-se e aumentar de tamanho. Experiências desse tipo, à medida que vão se repetindo sempre da mesma maneira, vão criando em mim o hábito de associar o calor com certos fatos. Adquiro o hábito de perceber o calor e, em seguida, um fato igual ou semelhante a outros que já percebi inúmeras vezes. E isso me leva a dizer: “O calor é a causa desses fatos”. Como os fatos são de aumento do volume ou da dimensão dos corpos submetidos ao calor, acabo concluindo: “O calor é a causa da dilatação dos corpos” e também “A dilatação JBRFRAGA –OUTUBRO/2015 5 dos corpos é o efeito do calor”. É assim, diz Hume, que nascem as ciências. São elas, portanto, hábito de associar ideias, em consequência das repetições da experiência. Ora, ao mostrar como se forma o princípio da causalidade, Hume está dizendo que as ideias da razão se originam da experiência. Entretanto, sabemos que razão pretende alcançar a realidade em seus aspectos universais e necessários. Em outras palavras, pretende conhecer a realidade tal como é em si mesma, considerando que o que conhece vale como verdade para todos os tempos e lugares (universalidade) e indica como as coisas são e como não poderiam, de modo algum, ser de outra maneira (necessidade). Ora, Hume torna impossível tanto a universalidade quanto a necessidade pretendidas pela razão. O universal é apenas um nome ou uma palavra geral que usamos para nos referirmos à repetição de semelhanças percebidas e associadas. O necessário é apenas o nome ou uma palavra geral que usamos para nos referirmos à repetição das percepções sucessivas no tempo. O universal, o necessário, a causalidade são meros hábitos psíquicos. 1.5 - Resumindo… Do lado do inatismo, o problema pode ser formulado da seguinte maneira: como são inatos, as ideias e os princípios da razão são verdades intemporais que nenhuma experiência nova poderá modificar. Ora, a História (social, política, científica e filosófica) mostra que ideias tidas como verdadeiras e universais não possuíam essa validade e foram substituídas por outras. Mas, por definição, uma ideia inata é sempre verdadeira e não pode ser substituída por outra. Se for substituída, então não era uma ideia verdadeira e, não sendo uma ideia verdadeira, não era inata. Do lado do empirismo, o problema pode ser formulado da seguinte maneira: a racionalidade ocidental só foi possível porque a Filosofia e as ciências demonstraram que a razão é capaz de alcançar a universalidade e a necessidade que governam a própria realidade, isto é, as leis racionais que governam a Natureza, a sociedade, a moral, a política. Ora, a marca própria da experiência é a de ser sempre individual, particular e subjetiva. Se o conhecimento racional for apenas a generalização e a repetição para todos os seres humanos de seus estados psicológicos, derivados de suas experiências, então o que chamamos de Filosofia, de ciência, de ética etc. são nomes gerais para hábitos psíquicos e não um conhecimento racional verdadeiro de toda a realidade, tanto a realidade natural quanto a humana. JBRFRAGA –OUTUBRO/2015 6 Problemas dessa natureza, frequentes na história da Filosofia, suscitam, periodicamente, o aparecimento de uma corrente filosófica conhecida como ceticismo, para o qual a razão humana é incapaz de conhecer a realidade e por isso deve renunciar à verdade. O cético sempre manifesta explicitamente dúvidas toda vez que a razão tenha pretensão ao conhecimento verdadeiro do real. 2 – Immanuel Kant - Introdução Immanuel Kant nasceu em 1724, em Königsberg (hoje Kaliningrado), cidade no leste da Prússia. Lá ele viveu praticamente toda a vida. Kant vinha de uma família luterana bastante devota, e suas próprias convicções religiosas formaram uma importante base para sua filosofia. A exemplo de Berkeley, ele sentia que era essencial preservar as fundações da fé cristã. Em 1770, Kant se tornou professor de lógica e metafísica na Universidade de Königsberg, onde ensinou durante a maior parte da vida. Ele também tinha um grande interesse pela ciência, tendo publicado obras sobre astronomia e geofísica. As três obras mais significativas de Kant foram publicadas tarde na vida. A Crítica da razão pura foi publicada em 1781, seguida por Crítica da razão prática, em 1788, e a Crítica do juízo, em 1790. A Crítica da razão pura é uma das obras mais importantes de toda a filosofia. Lamentavelmente, é também uma das mais difíceis de ler – Kant mesmo a qualificou de árida e obscura. Kant era de modo geral um homem sociável e cordial, mas, perto do final da vida, suas faculdades mentais e sua visão se deterioraram muito. Quando morreu, aos 80 anos de idade, era uma sombra do homem que fora. Uma de suas citações mais conhecidas está gravada na lápide de seu túmulo em Königsberg: “Duas coisas enchem minha alma de assombro e reverência cada vez maiores, quanto mais frequente e mais intensamente a reflexão nelas se detém: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim”. Há dois tipos de filósofo. Um é aquele que procura as próprias respostas para as indagações filosóficas. O outro é o conhecedor da história da filosofia, mas que não constrói, necessariamente, uma filosofia própria. Kant foi os dois. Um professor brilhante, versado no pensamento racionalista de Descartes e Spinoza e no pensamento empírico de Locke, Berkeley e Hume. Além disso, ele mesmo elaborou uma nova filosofia a partir das melhores partes dessas duas tradições. JBRFRAGA –OUTUBRO/2015 7 3 - A síntese kantiana A resposta aos problemas do inatismo e do empirismo oferecida pelo filósofo alemão do século XVIII, Immanuel Kant, é conhecida com o nome de “revolução copernicana” em Filosofia. Por quê? Qual a relação entre Kant e o que fizera Copérnico, quase dois séculos antes do kantismo? Vejamos, muito brevemente, o que foi a revolução copernicana em astronomia para, depois, vermos o que foi ela em Filosofia. A tradição antiga e medieval considerava que o mundo possuía limites (ou seja, o mundo era finito), sendo formado por um conjunto de sete esferas concêntricas, em cujo centro estava a Terra, imóvel. À volta da Terra, giravam as esferas nas quais estavam presos os planetas (o Sol e a Lua eram considerados planetas). Em grego, Terra se diz Gaia ou Geia. Como ela se encontrava no centro, o sistema astronômico era chamado de geocêntrico e o mundo era explicado pelo geocentrismo. A revolução copernicana demonstrou que o sistema geocêntrico era falso e que: 1. o mundo não é finito, mas é um Universo infinito; 2. os astros não estão presos em esferas, mas fazem um movimento (como demonstrará Kepler, depois de Copérnico), cuja forma é a de uma elipse; 3. o centro do Universo não é a Terra; 4. o Sol (como já fora demonstrado por outros astrônomos) não é um planeta, mas uma estrela, e a Terra, como os outros planetas, gira ao redor dele; 5. o próprio Sol também se move, mas não em volta da Terra. Em grego, Sol se diz Hélios e por isso o sistema de Copérnico é chamado de heliocêntrico, e sua explicação, de heliocentrismo, pois o Sol está no centro do nosso sistema planetário e tudo se move ao seu redor. Voltemos agora a Kant e observemos o que ele diz. Inatistas e empiristas, isto é, todos os filósofos, parecem ser como astrônomos geocêntricos, buscando um centro que não é verdadeiro. Parecem, diz Kant, como alguém que, querendo assar um frango, fizesse o forno girar em torno dele e não o frango em torno do fogo. Qual o engano dos filósofos? Em lugar de, primeiro e antes de tudo, estudar o que é a própria razão e indagar o que ela pode e o que não pode conhecer, o que é a experiência e o que ela pode ou não pode conhecer; JBRFRAGA –OUTUBRO/2015 8 em vez, enfim, de procurar saber o que é a verdade, qual é o verdadeiro valor dos nossos conhecimentos e o que é conhecimento, os filósofos preferiram começar dizendo o que a realidade é, afirmando que ela é racional e que, por isso, pode ser inteiramente conhecida pelas ideias da razão. Colocaram a realidade exterior ou os objetos do conhecimento no centro e fizeram a razão, ou o sujeito do conhecimento (isto é, aquele que conhece, ou sujeito cognoscente), girar em torno deles. Façamos, pois, uma revolução copernicana em Filosofia: em vez de colocar no centro a realidade objetiva ou os objetos do conhecimento, dizendo que são racionais e que podem ser conhecidos tais como são em si mesmos, comecemos colocando no centro a própria razão. Não é a razão a Luz Natural? Não é ela o Sol que ilumina todas as coisas e em torno do qual tudo gira? Comecemos, portanto, pela Luz Natural no centro do conhecimento e indaguemos: O que é ela? O que ela pode conhecer? Quais são as condições para que haja conhecimento verdadeiro? Quais são os limites que o conhecimento humano não pode transpor? Como a razão e a experiência se relacionam? Comecemos, então, pelo sujeito do conhecimento. E comecemos mostrando que este sujeito é a razão universal e não uma subjetividade pessoal e psicológica, que ele é o sujeito conhecedor e não Pedro, Paulo, Maria ou Isabel, esta ou aquela pessoa, este ou aquele indivíduo. O que é a razão? A razão é uma estrutura vazia, uma forma pura sem conteúdos. Essa estrutura (e não os conteúdos) é que é universal, a mesma para todos os seres humanos, em todos os tempos e lugares. Essa estrutura é inata, isto é, não é adquirida através da experiência. Por ser inata e não depender da experiência para existir, a razão é, do ponto de vista do conhecimento, anterior à experiência. Ou, como escreve Kant, a estrutura da razão é a priori (vem antes da experiência e não depende dela). Porém, os conteúdos que a razão conhece e nos quais ela pensa, esses sim, dependem da experiência. Sem ela, a razão seria sempre vazia, inoperante, nada conhecendo. Assim, a experiência fornece a matéria (os conteúdos) do conhecimento para a razão e esta, por sua vez, fornece a forma (universal e necessária) do conhecimento. A matéria do conhecimento, por ser fornecida pela experiência, vem depois desta e por isso é, no dizer de Kant, a posteriori. Qual o engano dos inatistas? Supor que os conteúdos ou a matéria do conhecimento são inatos. JBRFRAGA –OUTUBRO/2015 9 Qual o engano dos empiristas? Supor que a estrutura da razão é adquirida por experiência ou causada pela experiência. Na verdade, a experiência não é causa das ideias, mas é a ocasião para que a razão, recebendo a matéria ou o conteúdo, formule as ideias. Não existem ideias inatas. Dessa maneira, a estrutura da razão é inata e universal, enquanto os conteúdos são empíricos e podem variar no tempo e no espaço, podendo transformar-se com novas experiências e mesmo revelarem-se falsos, graças a experiências novas. O que é o conhecimento racional, sem o qual não há Filosofia nem ciência? É a síntese que a razão realiza entre uma forma universal inata e um conteúdo particular oferecido pela experiência. Qual é a estrutura da razão? A razão é constituída por três estruturas a priori: 1. a estrutura ou forma da sensibilidade, isto é, a estrutura ou forma da percepção sensível ou sensorial; 2. a estrutura ou forma do entendimento, isto é, do intelecto ou inteligência; 3. a estrutura ou forma da razão propriamente dita, quando esta não se relaciona nem com os conteúdos da sensibilidade, nem com os conteúdos do entendimento, mas apenas consigo mesma. Como, para Kant, só há conhecimento quando a experiência oferece conteúdos à sensibilidade e ao entendimento, a razão, separada da sensibilidade e do entendimento, não conhece coisa alguma e não é sua função conhecer. Sua função é a de regular e controlar a sensibilidade e o entendimento. Do ponto de vista do conhecimento, portanto, a razão é a função reguladora da atividade do sujeito do conhecimento. A forma da sensibilidade é o que nos permite ter percepções, isto é, a forma é aquilo sem o que não pode haver percepção, sem o que a percepção seria impossível. Percebemos todas as coisas como dotadas de figura, dimensões (altura, largura, comprimento), grandeza: ou seja, nós as percebemos como realidades espaciais. Não interessa se cada um de nós vê cores de uma certa maneira, gosta mais de uma cor ou de outra, ouve sons de uma certa maneira, gosta mais de certos sons do que de outros etc. O que importa é que nada pode ser percebido por nós se não possuir propriedades espaciais; por isso, o espaço não é algo percebido, mas é o que permite haver percepção (percebemos lugares, posições, situações, mas não percebemos o próprio espaço). Assim, o espaço é a forma a priori da sensibilidade e existe em nossa razão antes e sem a experiência. Também só podemos perceber as coisas como simultâneas ou sucessivas: percebemos as coisas como se dando num só instante ou em instantes sucessivos. Ou JBRFRAGA –OUTUBRO/2015 10 seja, percebemos as coisas como realidades temporais. Não percebemos o tempo (temos a experiência do passado, do presente e do futuro, porém não temos percepção do próprio tempo), mas ele é a condição de possibilidade da percepção das coisas e é a outra forma a priori da sensibilidade que existe em nossa razão antes da experiência e sem a experiência. A percepção recebe conteúdos da experiência e a sensibilidade organiza racionalmente segundo a forma do espaço e do tempo. Essa organização espaço temporal dos objetos do conhecimento é que é inata, universal e necessária. O entendimento, por sua vez, organiza os conteúdos que lhe são enviados pela sensibilidade, isto é, organiza as percepções. Novamente o conteúdo é oferecido pela experiência sob a forma do espaço e do tempo, e a razão, através do entendimento, organiza tais conteúdos empíricos. Essa organização transforma as percepções em conhecimentos intelectuais ou em conceitos. Para tanto, o entendimento possui a priori (isto é, antes da experiência e independente dela) um conjunto de elementos que organizam os conteúdos empíricos. Esses elementos são chamados de categorias e sem elas não pode haver conhecimento intelectual, pois são as condições para tal conhecimento. Com as categorias a priori, o sujeito do conhecimento formula os conceitos. As categorias organizam os dados da experiência segundo a qualidade, a quantidade, a causalidade, a finalidade, a verdade, a falsidade, a universalidade, a particularidade. Assim, longe de a causalidade, a qualidade e a quantidade serem resultados de hábitos psicológicos associativos, eles são os instrumentos racionais com os quais o sujeito do conhecimento organiza a realidade e a conhece. As categorias, estruturas vazias, são as mesmas em toda época e em todo lugar, para todos os seres racionais. Graças à universalidade e à necessidade das categorias, as ciências são possíveis e válidas; o empirismo, portanto, está equivocado. Em instante algum Kant admite que a realidade, em si mesma, é espacial, temporal, qualitativa, quantitativa, causal, etc. Isso seria regredir ao forno girando em torno do frango. O que Kant afirma é que a razão e o sujeito do conhecimento possuem essas estruturas para poder conhecer e que, por serem elas universais e necessárias, o conhecimento é racional e verdadeiro para os seres humanos. É isso que a razão pode. O que ela não pode (e nisso inatistas e empiristas se enganaram) é supor que com suas estruturas passe a conhecer a realidade tal como esta é em si mesma. A razão conhece os objetos do conhecimento. O objeto do conhecimento é aquele conteúdo empírico que recebeu as formas e as categorias do sujeito do conhecimento. A razão não está nas coisas, mas em nós. JBRFRAGA –OUTUBRO/2015 11 A razão é sempre razão subjetiva e não pode pretender conhecer a realidade tal como ela seria em si mesma. Podemos saber apenas como o mundo é “para mim” e, portanto, para todas as pessoas. A diferença que Kant estabelece entre as “coisas em si” e as “coisas para nós” é a sua mais importante contribuição para a filosofia. Nunca seremos capazes de saber com toda certeza como as coisas são “em si”. Sabemos apenas como as coisas “aparecem” ou como elas “se mostram” para nós. Por outro lado, antes de qualquer experiência em particular, podemos dizer como as coisas poderão ser percebidas pela mente humana. Exemplo: Antes de sair de manhã, você não sabe o que vai ver ou experimentar durante o dia. Mas você pode saber que o que verá e experimentará será percebido como um acontecimento no tempo e no espaço. Além disso, você pode estar certo de que a lei da causa e do efeito terá validade e irá se aplicar, simplesmente porque você a carrega consigo, como parte de sua consciência. O erro dos inatistas e empiristas foi o de supor que nossa razão alcança a realidade em si. Para um inatista como Descartes, a realidade em si é espacial, temporal, qualitativa, quantitativa, causal. Para um empirista como Hume, a realidade em si pode ou não repetir fatos sucessivos no tempo, pode ou não repetir fatos contíguos no espaço, pode ou não repetir as mesmas sequências de acontecimentos. Para Kant, jamais poderemos saber se a realidade em si é espacial, temporal, causal, qualitativa, quantitativa. Mas sabemos que nossa razão possui uma estrutura universal, necessária e a priori que organiza necessariamente a realidade em termos das formas da sensibilidade e dos conceitos e categorias do entendimento. Como razão subjetiva, nossa razão pode garantir a verdade da Filosofia e da ciência. Resumindo... A filosofia kantiana negou, então, que inatistas e empiristas estivessem certos. Negou que pudéssemos conhecer a realidade em si das coisas, negou que a razão possuísse conteúdos inatos, mostrando que os conteúdos dependem da experiência; mas negou também que a experiência fosse a causa da razão, ou que esta fosse adquirida, pois possui formas e estruturas inatas. Kant deu prioridade ao sujeito do conhecimento, enquanto empiristas e inatistas davam prioridade ao objeto do conhecimento. Assim, na perspectiva de Kant, os racionalistas e os empiristas estavam certos em parte. Os racionalistas quase se esqueceram da importância da experiência, e os empiristas fecharam os olhos a como nossa mente influencia o modo de vermos o mundo. O pensamento kantiano é conhecido como IDEALISMO TRANSCENDENTAL. A expressão transcendental significa aquilo que é anterior a toda experiência: "Chamo transcendental todo conhecimento que não se relaciona com objetos, mas sim com nosso modo de conhecer os objetos, enquanto possível a priori.” 4 – A Ética Kantiana ou a Ética do dever JBRFRAGA –OUTUBRO/2015 12 Kant sempre achou que a distinção entre certo e errado seria uma questão da razão humana, e não do sentimento. Nisso ele concordava com os racionalistas, que disseram que a capacidade de distinguir entre certo e errado seria inerente à razão humana. Todas as pessoas sabem o que é certo e errado, não porque o aprenderam, mas porque é inerente à nossa razão. De acordo com Kant, todas as pessoas têm ‘razão prática', ou seja, a inteligência que nos dá capacidade de discernir entre o certo e o errado em cada caso. A capacidade de distinguir entre certo e errado seria tão inata quanto todas as outras propriedades da razão. Assim, como somos todos seres inteligentes, por exemplo, que percebemos em tudo uma relação de causa e efeito, todos teríamos, também, acesso a uma mesma lei moral universal. Esta lei moral tem a mesma validade absoluta que as leis físicas da natureza. Isso é tão fundamental para a nossa vida moral como é fundamental para a nossa vida racional que tudo tenha uma causa, ou que sete mais cinco sejam doze. Essa lei moral é "formal ou estrutural", uma vez que existe em nossa razão independentemente de qualquer experiência. Significa que não está relacionada com possibilidades morais de escolha determinadas vindas da experiência. A lei moral não pode consistir em ordenar determinadas coisas, por mais nobres e elevadas que sejam. Isto significa que a lei moral não depende do conteúdo. Segundo Kant, quando se subordina a lei moral ao conteúdo, se cai no empirismo e no utilitarismo, porque, nesse caso, a vontade é determinada pelos conteúdos, conforme agradem ou não. Essa lei é válida para todos os homens em todas as sociedades e em todos os tempos. Logo, não diz que temos de fazer isto ou aquilo nesta ou naquela situação. Assim, essa lei moral diz exatamente como devemos nos comportar em todas as situações. Kant formula a lei moral como um imperativo categórico. Por isto, ele entende que a lei moral é "categórica", quer dizer, é válida em todas as situações. Além disso, é um "imperativo" e consequentemente uma "ordem" e absolutamente inevitável. O imperativo categórico não diz “se quiseres... deves”, mas sim “deves porque deves”, ou “deves e pronto”. Para Kant, a lei da moral seria tão absoluta e universal quanto à lei da causalidade. Ele formulou esse “imperativo categórico” de várias maneiras: Primeiro dizendo: JBRFRAGA –OUTUBRO/2015 13 “Aja apenas de acordo com aquela máxima por meio da qual você possa, ao mesmo tempo, desejar que se transforme em lei universal”. Desse modo, quando fizer alguma coisa certifique-se de que quer que outras pessoas façam o mesmo se estiverem na mesma situação. Outra maneira de Kant formular o “imperativo categórico” foi a seguinte: “Aja de tal modo a sempre tratar a humanidade, seja em sua pessoa seja na pessoa de outrem, jamais simplesmente como um meio para se chegar a alguma coisa, mas sempre ao mesmo tempo como um fim”. Se, às vezes, você é gentil e prestativo com os outros, apenas para se tornar querido pelas pessoas, então você não estará agindo de acordo com a lei moral. Talvez você esteja agindo apenas superficialmente de acordo com ela, o que já é alguma coisa, mas aquilo que se pode chamar de ação moral tem de ser o resultado do esforço de superar-se a si mesmo. Só quando se faz algo por puro dever é que se pode falar em ação moral. Por isso, a ética de Kant é às vezes chamada de ética do dever. JBRFRAGA –OUTUBRO/2015