IDENTIDADE PERDIDA: O INTELECTUAL DENTRO DA MODERNIDADE
Valmir Luis Saldanha da SILVA 1
RESUMO: Ao longo do século XX, o homem viu sua realidade tornar-se fragmentária
e escapar da captação, representação e análise científica e objetiva, típica do século
XIX. O homem encontra-se diante do problema identitário da perda da individualidade,
da exacerbação da “aparência” em relação à “essência” e de um mosaico de “negativas”
que o definem e que influenciam a atividade romanesca do período. Neste artigo
analisamos a representação do intelectual e buscamos iluminar a representação do
literato dentro da tradição narrativa italiana do século XX a partir da obra de Luigi
Pirandello. Partimos, antes, no entanto, para a definição de intelectual dada por Umberto
Eco em seu livro A passo di gambero (A passo de caranguejo) e, deste arcabouço,
pudemos nos reportar com maior precisão à noção de intelectualidade em nossa época. 2
PALAVRAS-CHAVE: identidade; intelectual; anti-herói; narrativa italiana; século
XX.
ABSTRACT: Throughout the XX century, the man saw his reality becomes fragmented
and escape capture, representation and scientific analysis and objective, typical of the
XIX century. The man finds himself facing an identity problem of individuality loss, of
the “appearance” exacerbation related to the “essence” and to “negative” mosaics
that defines him and influences the narrative activity from the period. In this article we
analyze the intellectual representation and we search to illuminate the work of literate
inside the Italian narrative tradition from the XX century from Luigi Pirandello’s work.
We start, before, however, with the definition of the intellectual given by Umberto Eco
in his book A passo di gambero (Turning back the clock, McEwen: Alastair, 2007) and,
1
Graduado em Letras (Português e Italiano) pela Universidade Estadual Paulista – UNESP – Faculdade
de Ciências e Letras de Araraquara; Rodovia Araraquara – Jaú, Km 1, CEP: 14800-901 Araraquara-SP.
[email protected]
2
Artigo derivado do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) A representação do intelectual como antiherói na narrativa italiana do século XX, do Departamento de Letras Modernas da UNESP – FCL
Araraquara. Orientação do Prof. Dr. Sérgio Mauro.
from this frame, we could report ourselves with larger precision to the notion of
intellectuality in our time.
KEYWORDS: identity; intellectual; anti-hero; Italian narrative; creativity.
Introdução
A busca de identidade parece vir consumindo todas as forças da sociedade
contemporânea. O sujeito, permanentemente construído ao longo da história, foi
desterritorializado e houve uma gradação entre indivíduos úteis e inúteis para a
sociedade utilitarista. Dentro desse quadro um ponto chama bastante atenção: quem
desejar enunciar algo deverá fazê-lo a partir dos regimes reguladores de nossa época.
Por estarmos em um momento ímpar de nossa civilização, o século XXI, no qual
se contrapõe a ideia, ventilada por alguns, da “era do conhecimento” (a partir da qual só
se poderá alcançar sucesso aquele que possuir um bom conhecimento – teórico e prático
– do mundo que o cerca) com a ideia do “elogio da futilidade” (em que se enquadram as
ditas “celebridades” advindas de programas televisivos, como os reality shows ou
semelhantes que se encaixam perfeitamente no circo midiático), parece-nos necessária
a análise de quem é e o que representa o intelectual em nossos tempos. Será que pode
ele encabeçar grandes mudanças sociais ainda ou, talvez, não seja mais essa a sua
função?
No artigo “Norberto Bobbio: La missione del Dotto rivisitata”, inserido no livro
A passo di gambero (2009), o crítico literário e semiótico italiano Umberto Eco
construiu as visões que, segundo ele, são as mais sensatas definições de “lavoro
intellettuale” (trabalho intelectual), “funzione intellettuale” (função intelectual) e
“creatività” (criatividade). Após as discussões acerca da pertinência do que expôs Eco
e análise atenta desses conceitos, partimos para a utilização aplicada deles em nossos
textos e buscamos determinar, à luz dessa teoria e por meio da análise de romances
italianos escritos no século XX consagrados pela crítica, como se foi sedimentando a
ideia de que o intelectual (o homem dotado de uma cultura dita “superior” em relação
ao homem comum – “médio”) é um ser que se tornou marginalizado na sociedade, isto
é, como de herói ele passou a anti-herói desse mesmo meio social.
Identidade Líquida?
Parece ser ponto pacífico o fato de que a identidade é um processo que se
desenvolve e se transforma com a História, modificando-se em consonância com as
transformações da noção de sujeito. Tanto por isso, o conceito de identidade é
complexo, podendo ser pensado por vieses distintos e servindo de objeto para reflexões
em diversas áreas do saber, tal qual a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia etc. O
intelectual, que se construiu por meio de uma identidade dita “elevada”, de “alto nível”,
como um dos importantes propulsores sociais, viu-se relacionado aos marginais e, ao
longo do século XX, perdeu seu lugar de destaque e teve de enfrentar e dar respostas a
uma crescente crise de identidade. Nas palavras de Zygmunt Bauman (1925 – ),
sociólogo polonês:
A identidade é um problema genuíno: vezes sem conta temos de nos
defrontar com a tarefa da auto-identificação, sabendo que tem pouca
chance de ser concluída com sucesso e de modo plenamente
satisfatório. Na era da multiculturalidade, o grande problema é “como
conviver com a diferença” e “construir uma identidade”. (BAUMAN,
2005, p. 105).
Entretanto, antes da “era da multiculturalidade”, convém perceber como as
concepções de sujeito foram sendo modificadas nas sociedades ocidentais.
Maria do Rosário Gregolin, em seu artigo “Identidade: objeto ainda não
identificado?”, que consta da tese de livre-docência Análise do Discurso: história,
epistemologia, exercícios analíticos (2008), estudando as concepções de sujeito
apontadas pelo jamaicano e teórico de estudos culturais Stuart Hall (1932 – ) em A
identidade cultural na pós-modernidade (2002), as sintetiza em três pontos:
a) o sujeito do Iluminismo: era pensado como totalmente centrado,
unificado, dotado de razão, consciência e ação; seu centro
essencial era a identidade de uma pessoa [...];
b) o sujeito da Modernidade: a partir do século XIX, desenvolve-se
uma concepção interativa da identidade e do eu, baseada na
complexidade do mundo moderno. A partir de então, o núcleo
interior do sujeito não é autônomo e auto-suficiente, mas formado
na relação com outras pessoas, que realizam a mediação dos
valores, sentidos e símbolos (a cultura) do mundo em que ele
habita [...];
c) o sujeito da Pós-Modernidade: a partir da segunda metade do
século XX, o sujeito passa a ser pensado como fragmentado [...].
As identidades estão em colapso devido a mudanças estruturais e
institucionais: o próprio processo de identificação, através do
qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se
mais provisório, variável e problemático
GREGOLIN, 2008. p. 82; grifo do autor).
(HALL
apud
Nossa reflexão aborda esse sujeito da Modernidade que, como não poderia
deixar de ser, está imbricado tanto no antecessor iluminista quanto no pós-moderno e
que foi representado no teatro, nos contos e nos romances de Luigi Pirandello (1867 –
1936) – autor de enorme prestígio, cuja obra foi laureada com o prêmio Nobel de
Literatura em 1934. O italiano tenta compreender o homem do século XX por meio da
criação do conceito de humorismo, que pode ser definido por essa passagem metafórica
que ora transcreve-se:
Vedo una vecchia signora, coi capelli ritinti, tutti unti non si sa quale
orribile manteca, e poi tutta goffamente imbellettata e parata d`abiti
giovanili. Mi metto a ridere. Avverto che quella vecchia signora è il
contrario di ciò che una vecchia rispettabile signora dovrebbe essere.
Posso così, a prima giunta e superficialmente, arrestarmi a questa
impressione comica. Il comico è appunto un avvertimento del
contrario. Ma se ora interviene in me la riflessione, e mi suggerisce
che quella vecchia signora non prova forse nessun piacere a pararsi
così come un pappagallo, ma che forse ne soffre e lo fa soltanto
perché pietosamente s’inganna che, parata così, nascondendo così le
rughe e la canizie, riesca a trattenere a sé l’amore del marito molto
più giovane di lei, ecco che io non posso più riderne come prima,
perché appunto la riflessione, lavorando in me, mi ha fatto andar
oltre a quel primo avvertimento, o piuttosto, più addentro: da quel
primo avvertimento del contrario mi ha fatto passare a questo
sentimento del contrario. Ed è tutta qui la differenza tra il comico e
l’umoristico. (PIRANDELLO, 1993b, p. 127). 3
O humorista, como se percebe no caso da velha senhora transcrito acima, será
aquele que fará uma crítica de si mesmo 4 e de toda a sociedade na qual ele está inserido.
O caso é limite, pois demonstra essa perda da identidade e da individualidade do
homem da modernidade. Se o interior do sujeito é formado na relação com outras
pessoas – como bem depreendemos da lição de Stuart Hall – essa velha senhora força-se
3
“Vejo uma velha senhora, com os cabelos retintos, untados de não se sabe qual pomada horrível, e
depois toda ela torpemente pintada e vestida de roupas juvenis. Ponho-me a rir. Advirto que aquela velha
senhora é o contrário do que uma velha respeitável senhora deveria ser. Assim posso, à primeira vista e
superficialmente, deter-me nessa impressão cômica. O cômico é precisamente um advertimento [uma
advertência] do contrário. Mas se agora em mim intervém a reflexão e me sugere que aquela velha
senhora não sente talvez nenhum prazer em vestir-se como um papagaio, mas que talvez sofra por isso e o
faz somente porque se engana piamente e pensa que, assim vestida, escondendo assim as rugas e as cãs,
consegue reter o amor do marido, muito mais moço do que ela, eis que já não posso mais rir disso como
antes, porque precisamente a reflexão, trabalhando dentro de mim, me leva a ultrapassar aquela primeira
advertência, ou antes, a entrar mais em seu interior: daquele primeiro advertimento do contrário ela me
faz passar a esse sentimento do contrário. E aqui está toda a diferença entre o cômico e o humorístico”
(PIRANDELLO, 1999, p. 147; grifo nosso seguindo o original) (Tradução de J. Guinsburg).
4
MACCHIA, G. Pirandello o la stanza della tortura. Milão. Arnoldo Mondadori Editore. 2008, p. 34.
a admitir uma situação pouco confortável, com o intuito único de manter os “amores”
do marido, de construir-se aos moldes do que o outro deseja.
A situação, talvez cômica, do homem multifacetado da modernidade será
avaliada pelas lentes do humorismo de Luigi Pirandello. E é sob essa mesma ótica
humorista que veremos construído o intelectual de nossos tempos, buscando um alicerce
após o Iluminismo.
Quem é o intelectual?
Ser intelectual, no contexto ao qual estamos relacionados, passa necessariamente
por adquirir uma visão crítica das coisas do mundo, ou seja, o intelectual é aquele que
interpreta o mundo a partir de uma visão racional e ponderada, tira conclusões empíricas
e/ou teóricas sem se deixar levar por conceitos ou pré-conceitos, mas desenvolvendo
uma avaliação qualitativa e um juízo criterioso acerca de tudo o que é humano. Ainda
assim, corre-se o risco de se criar uma imagem subjetiva demais do fato discutido.
Desse modo, não pode haver visão crítica sem que, antes, haja uma autocrítica de
métodos, de ideias, de teorias e de tudo o que individualiza as experiências e seus
respectivos resultados. Tendo isso em vista, faremos uma pequena discussão de como
essas questões são levantadas no artigo “Norberto Bobbio: La missione del Dotto
rivisitata”, inserido no livro A passo di gambero (A passo de caranguejo, Rio: Record:
2009 – no prelo).
Uma definição de intelectual necessita de conceitos bem apurados para ser
válida. Neste ponto, Umberto Eco propõe o termo lavoro intellettuale (trabalho
intelectual) para definir a atividade de quem trabalha mais com a mente que com as
mãos, e, também, para distingui-lo do conceito de funzione intelletuale (função
intelectual). Para ele, a função intelectual é a que faz com que se aumente o saber de
todos os cidadãos e se define quando (não necessariamente sempre – pondera o autor)
qualquer pessoa esteja “trabalhando com a mente e pensando com as mãos” e esse
trabalho contribua de modo criativo ao saber comum e ao bem coletivo. Assim,
qualquer pessoa que faça/invente algo novo, inédito (desde que seja para um bem
coletivo), pratica uma função intelectual (mesmo que uma só vez em toda a vida).
Nenhum desses pontos, entretanto, dá conta da totalidade do conceito. A partir
disso, Eco propõe entender a atividade do intelectual como criativa e, portanto, o
próprio intelectual como aquele que produz algo inédito e que seus feitos sejam
reconhecidos como patrimônio coletivo de uma comunidade. Sendo tal, a criatividade
que pressupõe o intelectual deve se substanciar de crítica e autocrítica (como já supunha
Luigi Pirandello), ou seja, entremeada por essa criatividade, a função intelectual se
reconhece na inovação que instaura.
Baseado em Norberto Bobbio (1909 – 2004), filósofo e historiador político
italiano, Eco aponta que o intelectual desenvolve a própria função quando sabe falar
contra a sua própria parte, sendo seu dever colocar em dúvida, primeiramente, os que
com ele estão.
A morte e a morte do indivíduo
Iniciamos nossa incursão na literatura italiana por um livro definitivo na carreira
literária de Luigi Pirandello (Agrigento, 28 de Junho 1867 — Roma, 10 de Dezembro
1936). Il fu Mattia Pascal, publicado em 1904, foi o primeiro grande sucesso do escritor
siciliano junto ao público e veio num momento de grave crise financeira e pessoal do
referido escritor. 5 O livro marca uma virada na escritura pirandelliana e traz consigo
algumas peculiaridades; entre elas, a de haver nele duas premissas, isto é, duas
proposições.
Na primeira, Mattia se apresenta e diz que seu caso é muito estranho. Estanca
um pouco nessa estranheza para falar da Biblioteca que um vaidoso monsignor
Boccamazza deixou a seus concidadãos. A degradante condição dessa biblioteca mostra,
de modo irônico e divertido, a ignorância das pessoas de Miragno (local em que se
encontra a família de Mattia Pascal) e, ao mesmo tempo, dá certo ar de “riso” ante a
velha cultura, pois, já de início, não se vê nenhum viés de importância ao local, talvez,
mais sagrado dos intelectuais.
De outra maneira, na verdade, a supracitada biblioteca serve para dar o senso de
inutilidade da vida de Mattia que, ainda que fosse o responsável por aquele patrimônio,
revela seu encolhimento diante da situação que não lhe agradava e que, por isso, lhe
arrefecia ainda mais a alma sem que ele pudesse saber “se fora mais caçador de ratos ou
guardião de livros”. 6
5
GUGLIELMINO, Salvatore, GROSSER, Hermann. Il sistema letterario 2000. Milano, Principato,
2002. Vol. Storia 3, p. 273-274.
6
“se più cacciatore di topi o guardiano di libri.” (PIRANDELLO, 1994, p. 186).
Na segunda premissa, em conversa travada com Don Eligio Pellegrinotto (que
era o atual responsável pela biblioteca de Miragno) Mattia afirma que não se é mais
tempo de escrever livros, nem por brincadeira, única e justamente pela descoberta
heliocêntrica de Copérnico – é nesse ponto que o narrador enuncia a famosa expressão
Maledetto sia Copernico! (Maldito seja Copérnico!), como se vê: “[...] In
considerazione anche della letteratura, come per tutto Il resto, io debbo ripetere il mio
solito ritornello: Maledetto sia Copernico!”.(PIRANDELLO, 1994, p. 187) 7
Se uma das características do romance é a constatação de casos que são
inacreditáveis, mas que podem ser verificados ou provados, outra, mais profunda,
coloca-se na condição real do homem moderno, na sua solidão, incertezas e
contradições. O homem encontra-se deserdado, não é mais rei de um universo que
girava em torno dele para honrá-lo, mas reduzido a um grão de areia que gira sem saber
por quê; é esta a consequência da descoberta de Copérnico: temos que nos adaptar “à
nova concepção de nossa infinita pequenez e considerarmo-nos menores que qualquer
coisa do/no universo”. 8
Ora, já nas premissas tem-se a pista para a tentativa do enquadramento da
personagem Mattia nas definições de lavoro e/ou funzione intelletuale. De início, Mattia
Pascal parece exercer função intelectual à medida que lida com livros e, quando do
diálogo com o reverendo Don Eligio Pellegrinotto, demonstra conhecimento “científicofilosófico”, mas, define-se antes “matador de ratos” que “bibliotecário”. No entanto, são
as condições econômicas e familiares que não permitem que o protagonista exerça a sua
função intelectual logo no início da narrativa. A personagem é capaz de raciocinar,
entretanto, não se dá ao trabalho disso. E por não raciocinar, por não ter consciência do
mundo ou mesmo de seu lugar ou importância no mundo, a personagem aceita a tudo
sem se rebelar. Não questiona nada, portanto.
A aventura de Mattia é que dá a ele a oportunidade de viver a função intelectual.
Após a vivência de tão peculiar situação – de morte e morte – é que se pode afirmar que
7
No que diz respeito à literatura, como a tudo o mais, devo repetir meu habitual estribilho: “Maldito seja
Copérnico!”. (PIRANDELLO, 2002, p. 13)
8
Marilena Chauí, assim nos coloca a ideologia de Copérnico em contraposição ao sistema de
predominância anterior: A tradição antiga e medieval considerava que o mundo era formado por sete
esferas concêntricas em cujo centro estava, imóvel, a Terra. Em grego, Terra se diz Gaia ou Geia. Como
ela se encontrava no centro, o sistema astronômico era chamado de geocêntrico e o mundo era explicado
pelo geocentrismo. [...] Em grego, Sol se diz helios e por isso o sistema de Copérnico é chamado de
heliocentrismo, pois o Sol está no centro do nosso sistema planetário e tudo se move ao seu redor.
(CHAUI, 2009, p. 90)
o protagonista passará a exercer uma função intelectual, sempre, porém,
marginalizando-se e afastando-se da sociedade.
Mattia Pascal, no momento mais crítico de sua vida, vivendo acossado por
credores, casado com Romilda e morando com uma sogra insuportável (Marianna
Dondi, a “vedova Pescatore”), após a morte da mãe e do próprio filho, foge de casa e
um golpe do acaso muda a sua vida. Ele ganha uma pequena fortuna num cassino e, ao
mesmo tempo é tido como morto, pois o confundem com um cadáver achado em sua
cidade natal (essa é sua primeira “morte”). Aproveita a chance e, como falecido, decide
assumir uma nova identidade e parte em viagem pela Europa de modo aventureiro. Essa
busca por uma nova identidade encontra suporte na análise de Zygmunt Bauman, para
quem o problema da identidade só vem quando ela (a identidade) perde o alicerce social
que a fazia parecer natural e inegociável. (BAUMAN apud GREGOLIN, 2008. p. 84)
Aportando em Roma, cidade que por ser muito grande é ideal para que ele possa
viver liberto de todas as pressões sociais, hospeda-se em um quarto na casa de Anselmo
Paleari, já com o novo nome: Adriano Meis. Apaixona-se por Adriana, a bela e doce
filha de Anselmo, mas sua condição fictícia o impede de casar-se com ela, como
também impede a denúncia do furto que sofrera de Terenzio Papiano. Após contínuos
contratempos, ele decide suicidar-se como Adriano: deixando um bilhete, uma bengala
e um chapéu à beira da ponte do rio Tevere (sua segunda “morte”) e volta para Miragno
onde decide colocar por escrito sua experiência e deixá-la na biblioteca local, e como já
se soube na “premissa” que abre o livro, com a instrução de que o manuscrito só poderia
ser aberto passados cinquenta anos da terceira, última e definitiva morte de Mattia
Pascal.
Como aquele que pratica uma funzione intelletuale, Mattia crê
[...] que jamais teria começado a escrever, como o faço agora, se,
como disse, não considerasse meu caso realmente estranho e capaz de
servir de ensinamento a algum leitor curioso que, por acaso,
tornando-se finalmente realidade a antiga esperança de monsenhor
Boccamazza, viesse a esta biblioteca, à qual deixo meu manuscrito
[...] (PIRANDELLO, 2002, p. 10; grifo nosso).
Sua aventura parte do acaso, de um fato não programado, mas, ainda assim, é
ponto crucial para a aquisição da consciência pelo protagonista. Mattia Pascal é
dominado pela ilusão sem ter consciência de que vive uma ilusão. O “fantoche” de que
se vale enquanto ainda se encontra morto para todo o resto da sociedade, Adriano Meis,
seu alter ego, não nasce de verdade, fica apenas no plano da imaginação e é esta
imaginação que sustenta, mal e mal, o próprio Mattia.
A ilusão “romântica” de viver fora das regras da sociedade e a sua não
concretização faz com que ele se depare com a possibilidade de ser nessuno. Em outros
termos, a inviabilização de sua fantasia mostra-lhe que há sempre o risco da anulação do
ser, dá-lhe a consciência materialista de que somos matéria, de que somos “átomos
infinitesimais” e de que já não é o homem tão importante assim, o que talvez faça crer
nas hipóteses de Copérnico, por certo.
Mattia era um escravo de si mesmo, da sociedade, de sua inércia, no entanto,
quando se sente liberto do cotidiano opressor e da família, ainda assim está escravizado.
Desse modo, parece-nos que exercer a função intelectual pela personagem só é possível
a partir da tomada de consciência do que, de fato, é a humanidade e de que, enfim,
talvez não haja muitas possibilidades além de se escolher uma escravidão para viver.
O intelectual – o ser dotado de grande cultura, o ser que “pensa” dentro da
sociedade –, dentro desse matiz filosófico-existencialista vê-se marginalizado. Tendo
entendido o funcionamento da “máquina do mundo” após seu caso surpreendente,
Mattia Pascal passa a ter uma visão crítica de todas as coisas. Esse anti-herói vê-se ante
uma configuração de mundo que ele deve contestar por meio do semear dúvidas. Ou
seja, tendo o conhecimento e a consciência, esse anti-herói intelectual não deve dar
certezas a quem quer que seja, deve antes inundar de dúvidas a todos, como bem
queriam Bobbio e Eco.
[...] Ogni qual volta qualcuno de’ miei amici o conoscenti dimostrava
d’ aver perduto il senno fino al punto di venire da me per qualche
consiglio o suggerimento [...] gli rispondevo:
- Io mi chiamo Mattia Pascal.
- Grazie, caro. Questo lo so.
- E ti par poco?
Non pareva molto, per dir la verità, neanche a me. Ma ignoravo
allora che cosa volesse dire Il non sapere neppur questo, il non poter
più rispondere, cioè, come prima, all’occorrenza:
- Io mi chiamo Mattia Pascal. 9 (PIRANDELLO, 1994, p. 186)
9
Todas as vezes que algum dos meus amigos ou conhecidos demonstrava haver perdido o juízo, a ponto
de vir me procurar, em busca de conselhos ou opiniões [...] respondia:
- Eu me chamo Mattia Pascal.
- Obrigado, meu caro. Eu já sei.
- E acha pouco? Para ser sincero, eu também não achava muito. Porém, naquela época, ignorava o que
significa não saber sequer isso, ou seja, não poder mais responder, em caso de necessidade, como
antigamente:
- Eu me chamo Mattia Pascal. (PIRANDELLO, 2002, p. 9)
Assim, está claro que saber o nome é a única certeza que pode ser transmitida
por esse “herói”, pelo intelectual, tendo em vista que ele deve primar pela apresentação
de dúvidas; desse modo, fica-se cada vez mais à margem de toda a sociedade, mais
isolado e mais sem saber o que fazer com o conhecimento que fora adquirido, isto é, por
mais que nosso protagonista seja um intelectual, ele pouco pode fazer com esse
predicado, o que nos força a pensá-lo pouco como herói e muito como anti-herói: o
nosso literato, o nosso intelectual, o nosso homem de cultura começa a tomar
consciência da perda de um lugar que desde a Grécia antiga sempre lhe fora assegurado.
“Afasta de mim esse cálice”
O livro Quaderni di Serafino Gubbio operatore, de Luigi Pirandello, veio a
público primeiro em forma de folhetim pela revista Nuova Antologia, entre junho e
agosto de 1915, sob o título Si gira..., mas o autor já vinha maturando essa ideia desde a
publicação de Il fu Mattia Pascal (1904), quando endereçou algumas cartas ao Corriere
della sera, indicando que já preparava a obra para publicação posterior 10. No entanto,
apenas em 1925 é que ele toma a forma definitiva e é publicado como os Quaderni...
Assim, parece-nos que a problemática pirandelliana (e da literatura dell’ novecento) da
marginalização foi sendo apurada ao longo dos anos e das obras, mas esteve na
formação de base de nosso escritor, como se consegue depreender de um escrito do
próprio Pirandello, Nota autobiografica per um profilo critico, de 1912:
Io penso che la vita è una molto triste buffoneria, poiché abbiamo in
noi, senza poter sapere nè come nè perchè nè da chi, la necessita di
ingannare di continuo noi stessi com la spontanea creazione di una
realtà (una per ciascuno e non mai la stessa per tutti) la quale di
tratto in tratto si scopre vana e illusoria.
Chi ha capito il giuoco, non riesce più a ingannarsi; ma chi non
riesce più a ingannarsi non può più prendere nè gusto nè piacere
alla vita. Cosi è. (PIRANDELLO apud MACIERA, 2008, p. 36; grifo
do autor) 11
10
MACIERA, 2008, p. 32.
Eu acho que a vida é uma palhaçada muito triste, pois temos em nós, sem sermos capazes de saber
como ou porquê ou por quem, a necessidade de enganar-nos constantemente com a criação espontânea de
uma realidade (uma para cada um e nunca a mesma para todos), que é descoberta, de tempos a tempos,
ilusória e vã.
Qualquer um que entende o jogo, não é capaz de enganar-se; mas quem não pode mais se enganar não
pode tomar nem gosto, nem prazer na vida. É isso. (tradução nossa)
11
De tal reflexão, só podemos retirar a ideia de que “compreender o jogo” – na
posição de intelectual – não soluciona a problemática da vida, já que impossibilita o
olhar iludido, o autoengano de Mattia Pascal e seu fantoche Adriano Meis, por exemplo.
Pelo contrário, essa compreensão traz consigo a impassibilidade ou o simples tédio da
existência, que assolam e perturbam nosso Gubbio.
Quaderni di Serafino Gubbio operatore, como o próprio nome já diz, é uma
espécie de relato, com uma cronologia cambiante, cujo narrador é um operador de
câmera em uma companhia cinematográfica, a Kosmograph, devido à sua função de
girar a manivela para que a câmera capte as ações desenvolvidas diante dela, não temos
sua própria história sendo contada, mas sim, um documentário do ser humano que se
desumaniza diante do advento da máquina. É através dessa visão, também cambiante,
que nos são apresentadas as personagens Varia Nestoroff, a russa que é a atriz principal
da companhia Kosmograph de cinema, uma espécie de femme fatale que desempenha
papel fundamental na narrativa; Carlo Ferro, atual namorado de Varia Nestoroff;
Simone Pau, que oferece abrigo a Gubbio e é uma espécie de aporte filosófico da
história (outra personagem que parece ter “entendido o jogo”); Cocò Polacco, que
oferece o emprego de operatore à Serafino Gubbio; Aldo Nutti, homem de maneiras
superficiais que busca se vingar daquela que “destruiu sua vida”, Varia Nestoroff; além
de Fabrizio Cavalena, Luisetta, Ducella e Giorgio Mirelli, pintor que se apaixona pela
Nestoroff e se suicida em decorrência da traição que sofrera de Varia com Aldo Nutti.
Serafino chega a Roma e procura um lugar onde ficar. Em um ventilar do
destino, acaba reencontrando Simone Pau, que lhe indica o Ospizio di mendicità
(albergue para mendigos), onde “morava”, como o lugar que lhe abrigará. Do narrador
mesmo pouco sabemos, apenas que fez um curso universitário fora da Itália e que antes
de ser una mano che gira la manovella, fora um intelectual e um humanista. E aqui
podemos nos reportar ao ideal deste trabalho novamente. Nosso narrador é visto como
um intelectual, pratica um lavoro intelletuale, pois tendo contato com os mais diversos
tipos de seres humanos e servindo, muitas vezes, de ombro (impassível sempre) para
eles, Gubbio os estuda e transporta seu conhecimento para os cadernos que ora lemos.
Seria esse o papel do intelectual: observar, praticamente, e sem intromissão, a vida
corrente e reportá-la a quem quer que seja? Denunciar a vida distanciando-se dela?
Nosso anti-herói aproveita-se de sua condição maquinal, de sua “profissão” de
operador de manivela, e passa a analisar por dentro os filmes produzidos pela
Kosmograph, melhor dizendo, passa a analisar as máscaras que cada um dos atores,
diretores etc., vestem no convívio com seus pares:
Studio la gente nelle sue più ordinarie occupazioni, se mi riesca di
scoprire negli altri quello que manca a me per ogni cosa ch’io faccia:
la certezza che capiscano ciò che fanno. [...]
Taluni anzi si smarriscono in una perplessità così inquieta, che se per
poco io seguitassi a scrutarli, m’ingiurierebbero o m’agredirebbero.
[...]
Mi basta questo: sapere, signori, che non è chiaro né certo neanche a
vuoi neppur quel poco che vi viene a mano a mano determinato dalle
consuetissime condizioni in cui vivete. C’è un oltre in tutto. Voi non
volete o non sapete vederlo. Ma appena appena quest’oltre baleni
negli occhi d’un ozioso come me, che si metta a osservarvi, ecco, vi
smarrite, vi turbate o irritate. (PIRANDELLO, 2011, p. 37). 12
Com essas palavras de abertura, o romance nos lança a ideologia que pretende
transmitir: de chofre, o narrador anuncia que não olha para as pessoas, não as vê
simplesmente, mas as estuda. Seu senso de análise tem um valor intelectual de
entendimento filosófico das particularidades e generalizações que definem o ser
humano. Por certo, a principal delas é a necessidade de inventar algo que não faz parte
de si e sofrer com a impossibilidade dessa realidade inventada, “ilusória e vã”. A
identidade que se constrói depende necessariamente do outro, mas pode ser inventada,
trasladada, transmutada. A certeza seguida da incerteza sobre o que é certo, sobre o que
nos define.
Na cena capital do romance, a espetacular filmagem do salvamento de Varia
Nestoroff diante de um tigre, em que Aldo Nutti pretende levar a cabo seu desejo de
vingança, Serafino Gubbio percebendo que Nutti aponta sua espingarda para a Nestoroff
e não para o tigre (mas nada faz para impedi-lo), permanece gravando a cena e vê o
espetáculo de horror se consumar com o assassinato de Varia Nestoroff e o ataque do
tigre a Aldo Nutti.
12
Observo as pessoas nas suas ocupações mais comuns, a ver se sou capaz de descobrir nos outros o que
falta em mim por tudo o que faço: a certeza de que eles entendem o que eles fazem. [...]
Alguns se perdem em uma perplexidade tão inquieta, que se eu continuasse a investigá-los, far-me-iam
ofensas ou agredir-me-iam. [...]
A mim, me basta isto: saber, senhores, que não está claro para vocês o pouco que lhes é gradualmente
determinado pelas condições em que vivem. Existe um “outro lado” de tudo. Vocês não querem ou não
sabem vê-lo. Mas assim que este “outro” vem aos olhos de um ocioso como eu, que os observa, eis que
vocês se perdem, ou chateiam-se ou irritam-se. (tradução nossa)
Mesmo escandalizado, a única ação de Serafino consiste na internalização do
grito que lhe quisera sair e fora abafado para sempre. Sua impassibilidade chegara ao
ponto máximo. A “voz” que exala do texto e parece responder quem é o intelectual de
nossos tempos aponta que a intelectualidade sugerida nos Quaderni nada pode fazer
dentro de um mundo mecanizado e grotesco como o nosso. O intelectual foi desprovido
da voz que tinha e agora olha, “sozinho, mudo e impassível”, a vida que lhe corre diante
dos olhos.
Como bem nos diz Sérgio Mauro, em ensaio publicado pela revista Travessia,
Na verdade, a personagem é tragada por esse mundo [doentio e
alienado em que se encontra] e não opõe grande resistência, como se
nada houvesse a fazer. No final, se salva com a sua consciência, mas
também com o dinheiro que lhe permitirá “comprar” uma forma
provisória e instável de liberdade. (MAURO, p. 734)
e isso nos traz o intelectual como o anti-herói que se marginaliza com seu
conhecimento, que se afasta da sociedade por não poder e não querer ajudá-la
(metaforizado pela perda da voz e pela indenização conseguida por Serafino Gubbio ao
fim do romance), mas que, de um modo ou de outro, acaba ajudando a si mesmo numa
atitude de conhecedor do jogo que se mostra pouco útil à sociedade, ainda que se liberte
dela por meio do dinheiro.
Gubbio compreende o jogo, mas “satisfaz-se escrevendo”. Ele não busca dar
respostas aos homens. Busca, na verdade, manter-se impassível e mostrar o sofrimento e
as mentiras que se colocam ao lado daqueles que ainda enganam-se com a vida. O
intelectual, nesse caso, marginaliza-se por não poder se inserir nesse mundo de “triste
palhaçada”. Ele está nos bastidores sem assumir nenhuma posição de guia ou condutor,
sem um papel a desempenhar “diante das câmeras”. Mesmo quando parece ser chamado
a tomar um posicionamento, a desempenhar a função de herói, ele não se ilude, não se
engana e não demonstra ter prazer em agir, respondendo calmamente: “[...] No, grazie.
Grazie a tutti. Ora basta. Voglio restare cosi. Il tempo è questo; la vita è questa; e nel
senso che do alla mia professione, voglio seguitare cosi – solo, muto e impassibile – a
far l’operatore [...]” (PIRANDELLO, 2011, p. 185; grifo nosso). 13
13
Não, obrigado. Obrigado a todos. Já é suficiente. Eu quero continuar assim. A hora é esta; a vida é isso;
e no sentido que dou à minha profissão, eu quero continuar assim – sozinho, mudo e impassível – sendo
o operador. (tradução nossa)
Construção e implosão
Publicado a puntate em 1925, Uno, nessuno e centomila (“Um, nenhum e cem
mil”) narra a claustrofóbica história de Vitangelo Moscarda que, segundo Alfredo Bosi,
no livro Literatura e resistência, é “jovem rico e ocioso [que] intui, a partir de certo
momento, a verdade lancinante da coexistência social” (BOSI, 2008, p. 138). Logo no
início do romance, o protagonista descobre a força que o olhar do outro tem sobre nós
quando sua mulher, Dida, faz um comentário sarcástico sobre um defeito em seu nariz:
– Che fai? – mia moglie mi domandò (...)
– Niente, – le risposi, (...)
Mia moglie sorrise e disse:
– Credevo ti gauardassi da che parte ti pende.
Mi voltai come um cane a cui qualcuno avesse pestato la coda:
– Mi pende? A me? Il naso?
E mia moglie, placidamente:
– Ma sì, caro. Guàrdatelo bene: ti pende verso destra.
(PIRANDELLO, 2011, p. 195) 14
Este é o momento da revelação, quase epifânica, de que “somos para os outros
tão-somente aquilo que parecemos” (BOSI, 2008, p. 139). Daqui por diante, teremos
Moscarda caindo em uma agonia desesperada por não ser quem ele imaginava ser, mas
também recusando-se a encampar a imagem que os “cem mil” lhe conferem. Sua
complexidade paira no fato de não encontrar mais uma identidade para si nem dentro de
si mesmo nem diante da sociedade, o que, fatalmente, lhe relega o vácuo da identidade
perdida, de ser nessuno, de preambular o homem Pós-moderno apontado por Hall
(2002).
O debate que se instaura a partir dessa trama é um diálogo interno. Vitangelo
observa-se e “conversa” com a própria imagem refletida no espelho (numa luta interior
que supera o caso de Mattia Pascal, que se havia descoberto “um” e “dois”), revelando o
que Sergio Campailla, no estudo que faz à abertura do romance que ora lemos, parece
esclarecer-nos de maneira decisiva:
14
– O que você está fazendo? – minha mulher me perguntou (...)
– Nada, – lhe respondi (...)
Minha mulher sorriu e disse:
– Pensei que estive olhando para que lado ele pende.
Voltei-me como um cão a que tivessem puxado o rabo.
– Pende? De mim? O nariz?
E minha mulher, calmamente:
– Sim, meu querido. Veja-o bem: ele pende um pouco para a direita. (tradução nossa)
Ma soprattutto, il sosia pirandelliano non è esterno, ma interno, e
prolifera in maniera allarmante: sono presto tanti sosia, che
convivono come estranei, e anzi stranieiri. La rissa è interna, tanto
che tra l’uno e l’altro si manifestano addirittura gelosia e furto. E il
dialogo è un monologo ininterrotto, che però è un delirio. Un
lucidissimo delirio. (PIRANDELLO, 2011, p. 191) 15
Iniciamos nossa incursão literária com um intelectual/anti-herói que termina
entre ratos e uma cultura decadente, e que ao fim da vida afirmava não haver coisa mais
importante para se fazer do que afirmar-se diante da sociedade, dizer o próprio nome e
ter uma identidade. Chegamos ao fim de nossa análise com um intelectual que também
coloca sua história em livro, que também se volta para a própria vivência para transmitir
um conhecimento “criativo”, mas que naufraga na própria impotência. Serafino Gubbio
entende o jogo e melhora economicamente; Moscarda, rico e único herdeiro do banco
Paesetto, resolve liquidar o patrimônio, fundar um ospizio di mendicità e colocar-se
dentro dele como um mendigo qualquer. Mulher, amigos e acionistas do banco
consideram-no louco, mas ele está vivendo o próprio delírio, um lucidissmo delirio.
O intelectual de nossos tempos parece ter perdido o lugar, parece ter
compreendido as situações sociais, mas ter ficado inutilizado à margem da sociedade.
Moscarda representa o intelectual, aquele ser “estranho” que busca encaixar-se nos
parâmetros convencionais, mas que encontra como resposta recorrente à sua agonia o
isolamento e o mais denso exílio.
Apesar da tristeza existencial em que se vê metido, nosso intelectual, como um
projeto de obra aberta, não desiste. Mattia Pascal acreditava nos nomes; Vitangelo
parece deixar-nos a crença na continuação, Non è altro che questo, epigrafe funeraria,
un nome. Conviene ai morti. A chi hà concluso. Io sono vivo e non concludo. La vita
non conclude. E non sa di nome, la vita (PIRANDELLO, 2011, p. 311). 16 A consciência
parece ser o maior ganho de Moscarda. Não a consciência de saber os nomes, de
usufruir comercialmente do sistema, de calar o grito da garganta, mas a consciência da
15
Mas, acima de tudo, o duplo em Pirandello não é externo, mas interno, e se prolifera de modo
alarmante: são muitos duplos, vivendo como estranhos, e até mesmo estrangeiros. A briga é interna, de
modo que entre um e outro se manifestam até mesmo inveja e roubo. E o diálogo é, na verdade,
monólogo ininterrupto, porém ilusão. Um delírio lucidíssimo. (tradução nossa)
16
Um nome não é mais do que isto: epígrafe funerária. Convém aos mortos. Àqueles que já concluíram.
Eu estou vivo e não concluo. A vida não conclui. Nem conhece nomes. (tradução in: BOSI, 2008, p. 142)
impotência de uma ação isolada. Vitangelo Moscarda mostra que o intelectual não pode
e não deve se isolar em busca de uma desintegração de si mesmo; o eu lírico, narrador,
personagem, anti-herói tem de se integrar à natureza.
Conclusão
Inundá-los de dúvidas, abalar suas crenças e instaurar a análise crítica. Este é o
papel de nosso anti-herói, esta é a representação do papel do intelectual no século XX e,
por que não dizê-lo, também a representação e função do intelectual do século XXI. É
por este prisma que os romances de Luigi Pirandello conseguem identificar medos e
crenças do homem moderno e lançar mão de importantes provocações para os ditos
intelectuais.
Tais representações parecem nos deixar claro que o intelectual é, quase
necessariamente, um marginalizado, embora não o seja sempre da mesma forma. Por
conceber o mundo de uma maneira menos linear que a maioria, por não fazer parte de
uma “linha de montagem”, seu lugar vai sendo cada vez mais deslocado do centro. É no
centro que fica o caos do homem moderno e é à margem que talvez esteja a salvação e
que se consiga vislumbrar a criação de uma consciência do caos.
Para não ficar preso em ideologias pouco produtivas e massificadoras, ou para
não se enclausurar em uma época, o nosso herói passou a anti-herói, e para não se
perder dentro dela, saiu do centro e foi à margem da civilização. Para os que duvidam
da capacidade de volta ao cerne da civilização, é Pirandello quem resolve deslindar essa
possibilidade intitulando o desfecho de Uno, nessuno e centomila, com a proverbial
sentença: “Não conclui”.
Referências
BAUMAN, Z. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. bras. Carlos Alberto
Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
BOSI, A. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
CHAUI, M. Filosofia. Série novo ensino médio. São Paulo: Editora Ática, 2 ed, 2009.
ECO, U. A passo di gambero (A passo de caranguejo. Rio: Record. No prelo).
GREGOLIN, M. R. V. Identidade: objeto ainda não identificado? Estudos da
Língua(gem): imagens de discursos. Vitória da Conquista: Edições UESB, vol. 6, n. 1,
p. 81-97, 2008.
HALL, S. Identidade e pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
MACCHIA, G. Pirandello o la stanza della tortura. Milão: Arnoldo Mondadori
Editore, 2008.
PIRANDELLO, L. Uno, nessuno e centomila; Quaderni di Serafino Gubbio operatore.
In: Pirandello. Org. Sergio Campailla. Roma. Ed. Grandi Tascabili Economici Newton:
5 ed, 2011.
______. O falecido Mattia Pascal; Seis personagens à procura de um autor.
Tradução de Fernando Correa Fonseca. São Paulo: Ed. Nova Cultural Ltda., 2002.
_______. Esta Noite se Representa de Improviso In: GUINSBURG, J. Pirandello: do
teatro no teatro. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1999.
_______. O humorismo In: GUINSBURG, J. Pirandello: do teatro no teatro. Trad. J.
Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1999.
______. Il fu Mattia Pascal. In: Tutti i Romanzi. Org. Borzi, I. e Argenziano, M.
Roma. Ed. Grandi Tascabili Economici Newton, 1994.
______. Uno, nessuno e centomila; Quaderni di Serafino Gubbio operatore. In:
Pirandello. Org. Borzi, I. e Argenziano, M. Roma. Ed. Grandi Tascabili Economici
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_______. I Meglio dei racconti. Milão: Oscar Mondadori, 1993b.
Referências Eletrônicas
MACIERA, Aislan Camargo. Quaderni di Serafino Gubbio operatore: o mundo
mecanizado e o cinema em Pirandello. 2008. Dissertação (Mestrado em Língua e
Literatura Italiana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade
de
São
Paulo.
São
Paulo,
2008.
Disponível
em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8148/tde-30112009-151344/>. Acesso em:
20 Jan. 2013.
MAURO,
Sérgio.
Unioeste.
Revista
Travessias.
Disponível
em:
<http://www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/revistas/travessias/ed_009/ensaios/Serg
io%20mauro.pdf>. Acesso em: 06 Dez. 2012.
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