IDENTIDADE PERDIDA: O INTELECTUAL DENTRO DA MODERNIDADE Valmir Luis Saldanha da SILVA 1 RESUMO: Ao longo do século XX, o homem viu sua realidade tornar-se fragmentária e escapar da captação, representação e análise científica e objetiva, típica do século XIX. O homem encontra-se diante do problema identitário da perda da individualidade, da exacerbação da “aparência” em relação à “essência” e de um mosaico de “negativas” que o definem e que influenciam a atividade romanesca do período. Neste artigo analisamos a representação do intelectual e buscamos iluminar a representação do literato dentro da tradição narrativa italiana do século XX a partir da obra de Luigi Pirandello. Partimos, antes, no entanto, para a definição de intelectual dada por Umberto Eco em seu livro A passo di gambero (A passo de caranguejo) e, deste arcabouço, pudemos nos reportar com maior precisão à noção de intelectualidade em nossa época. 2 PALAVRAS-CHAVE: identidade; intelectual; anti-herói; narrativa italiana; século XX. ABSTRACT: Throughout the XX century, the man saw his reality becomes fragmented and escape capture, representation and scientific analysis and objective, typical of the XIX century. The man finds himself facing an identity problem of individuality loss, of the “appearance” exacerbation related to the “essence” and to “negative” mosaics that defines him and influences the narrative activity from the period. In this article we analyze the intellectual representation and we search to illuminate the work of literate inside the Italian narrative tradition from the XX century from Luigi Pirandello’s work. We start, before, however, with the definition of the intellectual given by Umberto Eco in his book A passo di gambero (Turning back the clock, McEwen: Alastair, 2007) and, 1 Graduado em Letras (Português e Italiano) pela Universidade Estadual Paulista – UNESP – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara; Rodovia Araraquara – Jaú, Km 1, CEP: 14800-901 Araraquara-SP. [email protected] 2 Artigo derivado do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) A representação do intelectual como antiherói na narrativa italiana do século XX, do Departamento de Letras Modernas da UNESP – FCL Araraquara. Orientação do Prof. Dr. Sérgio Mauro. from this frame, we could report ourselves with larger precision to the notion of intellectuality in our time. KEYWORDS: identity; intellectual; anti-hero; Italian narrative; creativity. Introdução A busca de identidade parece vir consumindo todas as forças da sociedade contemporânea. O sujeito, permanentemente construído ao longo da história, foi desterritorializado e houve uma gradação entre indivíduos úteis e inúteis para a sociedade utilitarista. Dentro desse quadro um ponto chama bastante atenção: quem desejar enunciar algo deverá fazê-lo a partir dos regimes reguladores de nossa época. Por estarmos em um momento ímpar de nossa civilização, o século XXI, no qual se contrapõe a ideia, ventilada por alguns, da “era do conhecimento” (a partir da qual só se poderá alcançar sucesso aquele que possuir um bom conhecimento – teórico e prático – do mundo que o cerca) com a ideia do “elogio da futilidade” (em que se enquadram as ditas “celebridades” advindas de programas televisivos, como os reality shows ou semelhantes que se encaixam perfeitamente no circo midiático), parece-nos necessária a análise de quem é e o que representa o intelectual em nossos tempos. Será que pode ele encabeçar grandes mudanças sociais ainda ou, talvez, não seja mais essa a sua função? No artigo “Norberto Bobbio: La missione del Dotto rivisitata”, inserido no livro A passo di gambero (2009), o crítico literário e semiótico italiano Umberto Eco construiu as visões que, segundo ele, são as mais sensatas definições de “lavoro intellettuale” (trabalho intelectual), “funzione intellettuale” (função intelectual) e “creatività” (criatividade). Após as discussões acerca da pertinência do que expôs Eco e análise atenta desses conceitos, partimos para a utilização aplicada deles em nossos textos e buscamos determinar, à luz dessa teoria e por meio da análise de romances italianos escritos no século XX consagrados pela crítica, como se foi sedimentando a ideia de que o intelectual (o homem dotado de uma cultura dita “superior” em relação ao homem comum – “médio”) é um ser que se tornou marginalizado na sociedade, isto é, como de herói ele passou a anti-herói desse mesmo meio social. Identidade Líquida? Parece ser ponto pacífico o fato de que a identidade é um processo que se desenvolve e se transforma com a História, modificando-se em consonância com as transformações da noção de sujeito. Tanto por isso, o conceito de identidade é complexo, podendo ser pensado por vieses distintos e servindo de objeto para reflexões em diversas áreas do saber, tal qual a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia etc. O intelectual, que se construiu por meio de uma identidade dita “elevada”, de “alto nível”, como um dos importantes propulsores sociais, viu-se relacionado aos marginais e, ao longo do século XX, perdeu seu lugar de destaque e teve de enfrentar e dar respostas a uma crescente crise de identidade. Nas palavras de Zygmunt Bauman (1925 – ), sociólogo polonês: A identidade é um problema genuíno: vezes sem conta temos de nos defrontar com a tarefa da auto-identificação, sabendo que tem pouca chance de ser concluída com sucesso e de modo plenamente satisfatório. Na era da multiculturalidade, o grande problema é “como conviver com a diferença” e “construir uma identidade”. (BAUMAN, 2005, p. 105). Entretanto, antes da “era da multiculturalidade”, convém perceber como as concepções de sujeito foram sendo modificadas nas sociedades ocidentais. Maria do Rosário Gregolin, em seu artigo “Identidade: objeto ainda não identificado?”, que consta da tese de livre-docência Análise do Discurso: história, epistemologia, exercícios analíticos (2008), estudando as concepções de sujeito apontadas pelo jamaicano e teórico de estudos culturais Stuart Hall (1932 – ) em A identidade cultural na pós-modernidade (2002), as sintetiza em três pontos: a) o sujeito do Iluminismo: era pensado como totalmente centrado, unificado, dotado de razão, consciência e ação; seu centro essencial era a identidade de uma pessoa [...]; b) o sujeito da Modernidade: a partir do século XIX, desenvolve-se uma concepção interativa da identidade e do eu, baseada na complexidade do mundo moderno. A partir de então, o núcleo interior do sujeito não é autônomo e auto-suficiente, mas formado na relação com outras pessoas, que realizam a mediação dos valores, sentidos e símbolos (a cultura) do mundo em que ele habita [...]; c) o sujeito da Pós-Modernidade: a partir da segunda metade do século XX, o sujeito passa a ser pensado como fragmentado [...]. As identidades estão em colapso devido a mudanças estruturais e institucionais: o próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático GREGOLIN, 2008. p. 82; grifo do autor). (HALL apud Nossa reflexão aborda esse sujeito da Modernidade que, como não poderia deixar de ser, está imbricado tanto no antecessor iluminista quanto no pós-moderno e que foi representado no teatro, nos contos e nos romances de Luigi Pirandello (1867 – 1936) – autor de enorme prestígio, cuja obra foi laureada com o prêmio Nobel de Literatura em 1934. O italiano tenta compreender o homem do século XX por meio da criação do conceito de humorismo, que pode ser definido por essa passagem metafórica que ora transcreve-se: Vedo una vecchia signora, coi capelli ritinti, tutti unti non si sa quale orribile manteca, e poi tutta goffamente imbellettata e parata d`abiti giovanili. Mi metto a ridere. Avverto che quella vecchia signora è il contrario di ciò che una vecchia rispettabile signora dovrebbe essere. Posso così, a prima giunta e superficialmente, arrestarmi a questa impressione comica. Il comico è appunto un avvertimento del contrario. Ma se ora interviene in me la riflessione, e mi suggerisce che quella vecchia signora non prova forse nessun piacere a pararsi così come un pappagallo, ma che forse ne soffre e lo fa soltanto perché pietosamente s’inganna che, parata così, nascondendo così le rughe e la canizie, riesca a trattenere a sé l’amore del marito molto più giovane di lei, ecco che io non posso più riderne come prima, perché appunto la riflessione, lavorando in me, mi ha fatto andar oltre a quel primo avvertimento, o piuttosto, più addentro: da quel primo avvertimento del contrario mi ha fatto passare a questo sentimento del contrario. Ed è tutta qui la differenza tra il comico e l’umoristico. (PIRANDELLO, 1993b, p. 127). 3 O humorista, como se percebe no caso da velha senhora transcrito acima, será aquele que fará uma crítica de si mesmo 4 e de toda a sociedade na qual ele está inserido. O caso é limite, pois demonstra essa perda da identidade e da individualidade do homem da modernidade. Se o interior do sujeito é formado na relação com outras pessoas – como bem depreendemos da lição de Stuart Hall – essa velha senhora força-se 3 “Vejo uma velha senhora, com os cabelos retintos, untados de não se sabe qual pomada horrível, e depois toda ela torpemente pintada e vestida de roupas juvenis. Ponho-me a rir. Advirto que aquela velha senhora é o contrário do que uma velha respeitável senhora deveria ser. Assim posso, à primeira vista e superficialmente, deter-me nessa impressão cômica. O cômico é precisamente um advertimento [uma advertência] do contrário. Mas se agora em mim intervém a reflexão e me sugere que aquela velha senhora não sente talvez nenhum prazer em vestir-se como um papagaio, mas que talvez sofra por isso e o faz somente porque se engana piamente e pensa que, assim vestida, escondendo assim as rugas e as cãs, consegue reter o amor do marido, muito mais moço do que ela, eis que já não posso mais rir disso como antes, porque precisamente a reflexão, trabalhando dentro de mim, me leva a ultrapassar aquela primeira advertência, ou antes, a entrar mais em seu interior: daquele primeiro advertimento do contrário ela me faz passar a esse sentimento do contrário. E aqui está toda a diferença entre o cômico e o humorístico” (PIRANDELLO, 1999, p. 147; grifo nosso seguindo o original) (Tradução de J. Guinsburg). 4 MACCHIA, G. Pirandello o la stanza della tortura. Milão. Arnoldo Mondadori Editore. 2008, p. 34. a admitir uma situação pouco confortável, com o intuito único de manter os “amores” do marido, de construir-se aos moldes do que o outro deseja. A situação, talvez cômica, do homem multifacetado da modernidade será avaliada pelas lentes do humorismo de Luigi Pirandello. E é sob essa mesma ótica humorista que veremos construído o intelectual de nossos tempos, buscando um alicerce após o Iluminismo. Quem é o intelectual? Ser intelectual, no contexto ao qual estamos relacionados, passa necessariamente por adquirir uma visão crítica das coisas do mundo, ou seja, o intelectual é aquele que interpreta o mundo a partir de uma visão racional e ponderada, tira conclusões empíricas e/ou teóricas sem se deixar levar por conceitos ou pré-conceitos, mas desenvolvendo uma avaliação qualitativa e um juízo criterioso acerca de tudo o que é humano. Ainda assim, corre-se o risco de se criar uma imagem subjetiva demais do fato discutido. Desse modo, não pode haver visão crítica sem que, antes, haja uma autocrítica de métodos, de ideias, de teorias e de tudo o que individualiza as experiências e seus respectivos resultados. Tendo isso em vista, faremos uma pequena discussão de como essas questões são levantadas no artigo “Norberto Bobbio: La missione del Dotto rivisitata”, inserido no livro A passo di gambero (A passo de caranguejo, Rio: Record: 2009 – no prelo). Uma definição de intelectual necessita de conceitos bem apurados para ser válida. Neste ponto, Umberto Eco propõe o termo lavoro intellettuale (trabalho intelectual) para definir a atividade de quem trabalha mais com a mente que com as mãos, e, também, para distingui-lo do conceito de funzione intelletuale (função intelectual). Para ele, a função intelectual é a que faz com que se aumente o saber de todos os cidadãos e se define quando (não necessariamente sempre – pondera o autor) qualquer pessoa esteja “trabalhando com a mente e pensando com as mãos” e esse trabalho contribua de modo criativo ao saber comum e ao bem coletivo. Assim, qualquer pessoa que faça/invente algo novo, inédito (desde que seja para um bem coletivo), pratica uma função intelectual (mesmo que uma só vez em toda a vida). Nenhum desses pontos, entretanto, dá conta da totalidade do conceito. A partir disso, Eco propõe entender a atividade do intelectual como criativa e, portanto, o próprio intelectual como aquele que produz algo inédito e que seus feitos sejam reconhecidos como patrimônio coletivo de uma comunidade. Sendo tal, a criatividade que pressupõe o intelectual deve se substanciar de crítica e autocrítica (como já supunha Luigi Pirandello), ou seja, entremeada por essa criatividade, a função intelectual se reconhece na inovação que instaura. Baseado em Norberto Bobbio (1909 – 2004), filósofo e historiador político italiano, Eco aponta que o intelectual desenvolve a própria função quando sabe falar contra a sua própria parte, sendo seu dever colocar em dúvida, primeiramente, os que com ele estão. A morte e a morte do indivíduo Iniciamos nossa incursão na literatura italiana por um livro definitivo na carreira literária de Luigi Pirandello (Agrigento, 28 de Junho 1867 — Roma, 10 de Dezembro 1936). Il fu Mattia Pascal, publicado em 1904, foi o primeiro grande sucesso do escritor siciliano junto ao público e veio num momento de grave crise financeira e pessoal do referido escritor. 5 O livro marca uma virada na escritura pirandelliana e traz consigo algumas peculiaridades; entre elas, a de haver nele duas premissas, isto é, duas proposições. Na primeira, Mattia se apresenta e diz que seu caso é muito estranho. Estanca um pouco nessa estranheza para falar da Biblioteca que um vaidoso monsignor Boccamazza deixou a seus concidadãos. A degradante condição dessa biblioteca mostra, de modo irônico e divertido, a ignorância das pessoas de Miragno (local em que se encontra a família de Mattia Pascal) e, ao mesmo tempo, dá certo ar de “riso” ante a velha cultura, pois, já de início, não se vê nenhum viés de importância ao local, talvez, mais sagrado dos intelectuais. De outra maneira, na verdade, a supracitada biblioteca serve para dar o senso de inutilidade da vida de Mattia que, ainda que fosse o responsável por aquele patrimônio, revela seu encolhimento diante da situação que não lhe agradava e que, por isso, lhe arrefecia ainda mais a alma sem que ele pudesse saber “se fora mais caçador de ratos ou guardião de livros”. 6 5 GUGLIELMINO, Salvatore, GROSSER, Hermann. Il sistema letterario 2000. Milano, Principato, 2002. Vol. Storia 3, p. 273-274. 6 “se più cacciatore di topi o guardiano di libri.” (PIRANDELLO, 1994, p. 186). Na segunda premissa, em conversa travada com Don Eligio Pellegrinotto (que era o atual responsável pela biblioteca de Miragno) Mattia afirma que não se é mais tempo de escrever livros, nem por brincadeira, única e justamente pela descoberta heliocêntrica de Copérnico – é nesse ponto que o narrador enuncia a famosa expressão Maledetto sia Copernico! (Maldito seja Copérnico!), como se vê: “[...] In considerazione anche della letteratura, come per tutto Il resto, io debbo ripetere il mio solito ritornello: Maledetto sia Copernico!”.(PIRANDELLO, 1994, p. 187) 7 Se uma das características do romance é a constatação de casos que são inacreditáveis, mas que podem ser verificados ou provados, outra, mais profunda, coloca-se na condição real do homem moderno, na sua solidão, incertezas e contradições. O homem encontra-se deserdado, não é mais rei de um universo que girava em torno dele para honrá-lo, mas reduzido a um grão de areia que gira sem saber por quê; é esta a consequência da descoberta de Copérnico: temos que nos adaptar “à nova concepção de nossa infinita pequenez e considerarmo-nos menores que qualquer coisa do/no universo”. 8 Ora, já nas premissas tem-se a pista para a tentativa do enquadramento da personagem Mattia nas definições de lavoro e/ou funzione intelletuale. De início, Mattia Pascal parece exercer função intelectual à medida que lida com livros e, quando do diálogo com o reverendo Don Eligio Pellegrinotto, demonstra conhecimento “científicofilosófico”, mas, define-se antes “matador de ratos” que “bibliotecário”. No entanto, são as condições econômicas e familiares que não permitem que o protagonista exerça a sua função intelectual logo no início da narrativa. A personagem é capaz de raciocinar, entretanto, não se dá ao trabalho disso. E por não raciocinar, por não ter consciência do mundo ou mesmo de seu lugar ou importância no mundo, a personagem aceita a tudo sem se rebelar. Não questiona nada, portanto. A aventura de Mattia é que dá a ele a oportunidade de viver a função intelectual. Após a vivência de tão peculiar situação – de morte e morte – é que se pode afirmar que 7 No que diz respeito à literatura, como a tudo o mais, devo repetir meu habitual estribilho: “Maldito seja Copérnico!”. (PIRANDELLO, 2002, p. 13) 8 Marilena Chauí, assim nos coloca a ideologia de Copérnico em contraposição ao sistema de predominância anterior: A tradição antiga e medieval considerava que o mundo era formado por sete esferas concêntricas em cujo centro estava, imóvel, a Terra. Em grego, Terra se diz Gaia ou Geia. Como ela se encontrava no centro, o sistema astronômico era chamado de geocêntrico e o mundo era explicado pelo geocentrismo. [...] Em grego, Sol se diz helios e por isso o sistema de Copérnico é chamado de heliocentrismo, pois o Sol está no centro do nosso sistema planetário e tudo se move ao seu redor. (CHAUI, 2009, p. 90) o protagonista passará a exercer uma função intelectual, sempre, porém, marginalizando-se e afastando-se da sociedade. Mattia Pascal, no momento mais crítico de sua vida, vivendo acossado por credores, casado com Romilda e morando com uma sogra insuportável (Marianna Dondi, a “vedova Pescatore”), após a morte da mãe e do próprio filho, foge de casa e um golpe do acaso muda a sua vida. Ele ganha uma pequena fortuna num cassino e, ao mesmo tempo é tido como morto, pois o confundem com um cadáver achado em sua cidade natal (essa é sua primeira “morte”). Aproveita a chance e, como falecido, decide assumir uma nova identidade e parte em viagem pela Europa de modo aventureiro. Essa busca por uma nova identidade encontra suporte na análise de Zygmunt Bauman, para quem o problema da identidade só vem quando ela (a identidade) perde o alicerce social que a fazia parecer natural e inegociável. (BAUMAN apud GREGOLIN, 2008. p. 84) Aportando em Roma, cidade que por ser muito grande é ideal para que ele possa viver liberto de todas as pressões sociais, hospeda-se em um quarto na casa de Anselmo Paleari, já com o novo nome: Adriano Meis. Apaixona-se por Adriana, a bela e doce filha de Anselmo, mas sua condição fictícia o impede de casar-se com ela, como também impede a denúncia do furto que sofrera de Terenzio Papiano. Após contínuos contratempos, ele decide suicidar-se como Adriano: deixando um bilhete, uma bengala e um chapéu à beira da ponte do rio Tevere (sua segunda “morte”) e volta para Miragno onde decide colocar por escrito sua experiência e deixá-la na biblioteca local, e como já se soube na “premissa” que abre o livro, com a instrução de que o manuscrito só poderia ser aberto passados cinquenta anos da terceira, última e definitiva morte de Mattia Pascal. Como aquele que pratica uma funzione intelletuale, Mattia crê [...] que jamais teria começado a escrever, como o faço agora, se, como disse, não considerasse meu caso realmente estranho e capaz de servir de ensinamento a algum leitor curioso que, por acaso, tornando-se finalmente realidade a antiga esperança de monsenhor Boccamazza, viesse a esta biblioteca, à qual deixo meu manuscrito [...] (PIRANDELLO, 2002, p. 10; grifo nosso). Sua aventura parte do acaso, de um fato não programado, mas, ainda assim, é ponto crucial para a aquisição da consciência pelo protagonista. Mattia Pascal é dominado pela ilusão sem ter consciência de que vive uma ilusão. O “fantoche” de que se vale enquanto ainda se encontra morto para todo o resto da sociedade, Adriano Meis, seu alter ego, não nasce de verdade, fica apenas no plano da imaginação e é esta imaginação que sustenta, mal e mal, o próprio Mattia. A ilusão “romântica” de viver fora das regras da sociedade e a sua não concretização faz com que ele se depare com a possibilidade de ser nessuno. Em outros termos, a inviabilização de sua fantasia mostra-lhe que há sempre o risco da anulação do ser, dá-lhe a consciência materialista de que somos matéria, de que somos “átomos infinitesimais” e de que já não é o homem tão importante assim, o que talvez faça crer nas hipóteses de Copérnico, por certo. Mattia era um escravo de si mesmo, da sociedade, de sua inércia, no entanto, quando se sente liberto do cotidiano opressor e da família, ainda assim está escravizado. Desse modo, parece-nos que exercer a função intelectual pela personagem só é possível a partir da tomada de consciência do que, de fato, é a humanidade e de que, enfim, talvez não haja muitas possibilidades além de se escolher uma escravidão para viver. O intelectual – o ser dotado de grande cultura, o ser que “pensa” dentro da sociedade –, dentro desse matiz filosófico-existencialista vê-se marginalizado. Tendo entendido o funcionamento da “máquina do mundo” após seu caso surpreendente, Mattia Pascal passa a ter uma visão crítica de todas as coisas. Esse anti-herói vê-se ante uma configuração de mundo que ele deve contestar por meio do semear dúvidas. Ou seja, tendo o conhecimento e a consciência, esse anti-herói intelectual não deve dar certezas a quem quer que seja, deve antes inundar de dúvidas a todos, como bem queriam Bobbio e Eco. [...] Ogni qual volta qualcuno de’ miei amici o conoscenti dimostrava d’ aver perduto il senno fino al punto di venire da me per qualche consiglio o suggerimento [...] gli rispondevo: - Io mi chiamo Mattia Pascal. - Grazie, caro. Questo lo so. - E ti par poco? Non pareva molto, per dir la verità, neanche a me. Ma ignoravo allora che cosa volesse dire Il non sapere neppur questo, il non poter più rispondere, cioè, come prima, all’occorrenza: - Io mi chiamo Mattia Pascal. 9 (PIRANDELLO, 1994, p. 186) 9 Todas as vezes que algum dos meus amigos ou conhecidos demonstrava haver perdido o juízo, a ponto de vir me procurar, em busca de conselhos ou opiniões [...] respondia: - Eu me chamo Mattia Pascal. - Obrigado, meu caro. Eu já sei. - E acha pouco? Para ser sincero, eu também não achava muito. Porém, naquela época, ignorava o que significa não saber sequer isso, ou seja, não poder mais responder, em caso de necessidade, como antigamente: - Eu me chamo Mattia Pascal. (PIRANDELLO, 2002, p. 9) Assim, está claro que saber o nome é a única certeza que pode ser transmitida por esse “herói”, pelo intelectual, tendo em vista que ele deve primar pela apresentação de dúvidas; desse modo, fica-se cada vez mais à margem de toda a sociedade, mais isolado e mais sem saber o que fazer com o conhecimento que fora adquirido, isto é, por mais que nosso protagonista seja um intelectual, ele pouco pode fazer com esse predicado, o que nos força a pensá-lo pouco como herói e muito como anti-herói: o nosso literato, o nosso intelectual, o nosso homem de cultura começa a tomar consciência da perda de um lugar que desde a Grécia antiga sempre lhe fora assegurado. “Afasta de mim esse cálice” O livro Quaderni di Serafino Gubbio operatore, de Luigi Pirandello, veio a público primeiro em forma de folhetim pela revista Nuova Antologia, entre junho e agosto de 1915, sob o título Si gira..., mas o autor já vinha maturando essa ideia desde a publicação de Il fu Mattia Pascal (1904), quando endereçou algumas cartas ao Corriere della sera, indicando que já preparava a obra para publicação posterior 10. No entanto, apenas em 1925 é que ele toma a forma definitiva e é publicado como os Quaderni... Assim, parece-nos que a problemática pirandelliana (e da literatura dell’ novecento) da marginalização foi sendo apurada ao longo dos anos e das obras, mas esteve na formação de base de nosso escritor, como se consegue depreender de um escrito do próprio Pirandello, Nota autobiografica per um profilo critico, de 1912: Io penso che la vita è una molto triste buffoneria, poiché abbiamo in noi, senza poter sapere nè come nè perchè nè da chi, la necessita di ingannare di continuo noi stessi com la spontanea creazione di una realtà (una per ciascuno e non mai la stessa per tutti) la quale di tratto in tratto si scopre vana e illusoria. Chi ha capito il giuoco, non riesce più a ingannarsi; ma chi non riesce più a ingannarsi non può più prendere nè gusto nè piacere alla vita. Cosi è. (PIRANDELLO apud MACIERA, 2008, p. 36; grifo do autor) 11 10 MACIERA, 2008, p. 32. Eu acho que a vida é uma palhaçada muito triste, pois temos em nós, sem sermos capazes de saber como ou porquê ou por quem, a necessidade de enganar-nos constantemente com a criação espontânea de uma realidade (uma para cada um e nunca a mesma para todos), que é descoberta, de tempos a tempos, ilusória e vã. Qualquer um que entende o jogo, não é capaz de enganar-se; mas quem não pode mais se enganar não pode tomar nem gosto, nem prazer na vida. É isso. (tradução nossa) 11 De tal reflexão, só podemos retirar a ideia de que “compreender o jogo” – na posição de intelectual – não soluciona a problemática da vida, já que impossibilita o olhar iludido, o autoengano de Mattia Pascal e seu fantoche Adriano Meis, por exemplo. Pelo contrário, essa compreensão traz consigo a impassibilidade ou o simples tédio da existência, que assolam e perturbam nosso Gubbio. Quaderni di Serafino Gubbio operatore, como o próprio nome já diz, é uma espécie de relato, com uma cronologia cambiante, cujo narrador é um operador de câmera em uma companhia cinematográfica, a Kosmograph, devido à sua função de girar a manivela para que a câmera capte as ações desenvolvidas diante dela, não temos sua própria história sendo contada, mas sim, um documentário do ser humano que se desumaniza diante do advento da máquina. É através dessa visão, também cambiante, que nos são apresentadas as personagens Varia Nestoroff, a russa que é a atriz principal da companhia Kosmograph de cinema, uma espécie de femme fatale que desempenha papel fundamental na narrativa; Carlo Ferro, atual namorado de Varia Nestoroff; Simone Pau, que oferece abrigo a Gubbio e é uma espécie de aporte filosófico da história (outra personagem que parece ter “entendido o jogo”); Cocò Polacco, que oferece o emprego de operatore à Serafino Gubbio; Aldo Nutti, homem de maneiras superficiais que busca se vingar daquela que “destruiu sua vida”, Varia Nestoroff; além de Fabrizio Cavalena, Luisetta, Ducella e Giorgio Mirelli, pintor que se apaixona pela Nestoroff e se suicida em decorrência da traição que sofrera de Varia com Aldo Nutti. Serafino chega a Roma e procura um lugar onde ficar. Em um ventilar do destino, acaba reencontrando Simone Pau, que lhe indica o Ospizio di mendicità (albergue para mendigos), onde “morava”, como o lugar que lhe abrigará. Do narrador mesmo pouco sabemos, apenas que fez um curso universitário fora da Itália e que antes de ser una mano che gira la manovella, fora um intelectual e um humanista. E aqui podemos nos reportar ao ideal deste trabalho novamente. Nosso narrador é visto como um intelectual, pratica um lavoro intelletuale, pois tendo contato com os mais diversos tipos de seres humanos e servindo, muitas vezes, de ombro (impassível sempre) para eles, Gubbio os estuda e transporta seu conhecimento para os cadernos que ora lemos. Seria esse o papel do intelectual: observar, praticamente, e sem intromissão, a vida corrente e reportá-la a quem quer que seja? Denunciar a vida distanciando-se dela? Nosso anti-herói aproveita-se de sua condição maquinal, de sua “profissão” de operador de manivela, e passa a analisar por dentro os filmes produzidos pela Kosmograph, melhor dizendo, passa a analisar as máscaras que cada um dos atores, diretores etc., vestem no convívio com seus pares: Studio la gente nelle sue più ordinarie occupazioni, se mi riesca di scoprire negli altri quello que manca a me per ogni cosa ch’io faccia: la certezza che capiscano ciò che fanno. [...] Taluni anzi si smarriscono in una perplessità così inquieta, che se per poco io seguitassi a scrutarli, m’ingiurierebbero o m’agredirebbero. [...] Mi basta questo: sapere, signori, che non è chiaro né certo neanche a vuoi neppur quel poco che vi viene a mano a mano determinato dalle consuetissime condizioni in cui vivete. C’è un oltre in tutto. Voi non volete o non sapete vederlo. Ma appena appena quest’oltre baleni negli occhi d’un ozioso come me, che si metta a osservarvi, ecco, vi smarrite, vi turbate o irritate. (PIRANDELLO, 2011, p. 37). 12 Com essas palavras de abertura, o romance nos lança a ideologia que pretende transmitir: de chofre, o narrador anuncia que não olha para as pessoas, não as vê simplesmente, mas as estuda. Seu senso de análise tem um valor intelectual de entendimento filosófico das particularidades e generalizações que definem o ser humano. Por certo, a principal delas é a necessidade de inventar algo que não faz parte de si e sofrer com a impossibilidade dessa realidade inventada, “ilusória e vã”. A identidade que se constrói depende necessariamente do outro, mas pode ser inventada, trasladada, transmutada. A certeza seguida da incerteza sobre o que é certo, sobre o que nos define. Na cena capital do romance, a espetacular filmagem do salvamento de Varia Nestoroff diante de um tigre, em que Aldo Nutti pretende levar a cabo seu desejo de vingança, Serafino Gubbio percebendo que Nutti aponta sua espingarda para a Nestoroff e não para o tigre (mas nada faz para impedi-lo), permanece gravando a cena e vê o espetáculo de horror se consumar com o assassinato de Varia Nestoroff e o ataque do tigre a Aldo Nutti. 12 Observo as pessoas nas suas ocupações mais comuns, a ver se sou capaz de descobrir nos outros o que falta em mim por tudo o que faço: a certeza de que eles entendem o que eles fazem. [...] Alguns se perdem em uma perplexidade tão inquieta, que se eu continuasse a investigá-los, far-me-iam ofensas ou agredir-me-iam. [...] A mim, me basta isto: saber, senhores, que não está claro para vocês o pouco que lhes é gradualmente determinado pelas condições em que vivem. Existe um “outro lado” de tudo. Vocês não querem ou não sabem vê-lo. Mas assim que este “outro” vem aos olhos de um ocioso como eu, que os observa, eis que vocês se perdem, ou chateiam-se ou irritam-se. (tradução nossa) Mesmo escandalizado, a única ação de Serafino consiste na internalização do grito que lhe quisera sair e fora abafado para sempre. Sua impassibilidade chegara ao ponto máximo. A “voz” que exala do texto e parece responder quem é o intelectual de nossos tempos aponta que a intelectualidade sugerida nos Quaderni nada pode fazer dentro de um mundo mecanizado e grotesco como o nosso. O intelectual foi desprovido da voz que tinha e agora olha, “sozinho, mudo e impassível”, a vida que lhe corre diante dos olhos. Como bem nos diz Sérgio Mauro, em ensaio publicado pela revista Travessia, Na verdade, a personagem é tragada por esse mundo [doentio e alienado em que se encontra] e não opõe grande resistência, como se nada houvesse a fazer. No final, se salva com a sua consciência, mas também com o dinheiro que lhe permitirá “comprar” uma forma provisória e instável de liberdade. (MAURO, p. 734) e isso nos traz o intelectual como o anti-herói que se marginaliza com seu conhecimento, que se afasta da sociedade por não poder e não querer ajudá-la (metaforizado pela perda da voz e pela indenização conseguida por Serafino Gubbio ao fim do romance), mas que, de um modo ou de outro, acaba ajudando a si mesmo numa atitude de conhecedor do jogo que se mostra pouco útil à sociedade, ainda que se liberte dela por meio do dinheiro. Gubbio compreende o jogo, mas “satisfaz-se escrevendo”. Ele não busca dar respostas aos homens. Busca, na verdade, manter-se impassível e mostrar o sofrimento e as mentiras que se colocam ao lado daqueles que ainda enganam-se com a vida. O intelectual, nesse caso, marginaliza-se por não poder se inserir nesse mundo de “triste palhaçada”. Ele está nos bastidores sem assumir nenhuma posição de guia ou condutor, sem um papel a desempenhar “diante das câmeras”. Mesmo quando parece ser chamado a tomar um posicionamento, a desempenhar a função de herói, ele não se ilude, não se engana e não demonstra ter prazer em agir, respondendo calmamente: “[...] No, grazie. Grazie a tutti. Ora basta. Voglio restare cosi. Il tempo è questo; la vita è questa; e nel senso che do alla mia professione, voglio seguitare cosi – solo, muto e impassibile – a far l’operatore [...]” (PIRANDELLO, 2011, p. 185; grifo nosso). 13 13 Não, obrigado. Obrigado a todos. Já é suficiente. Eu quero continuar assim. A hora é esta; a vida é isso; e no sentido que dou à minha profissão, eu quero continuar assim – sozinho, mudo e impassível – sendo o operador. (tradução nossa) Construção e implosão Publicado a puntate em 1925, Uno, nessuno e centomila (“Um, nenhum e cem mil”) narra a claustrofóbica história de Vitangelo Moscarda que, segundo Alfredo Bosi, no livro Literatura e resistência, é “jovem rico e ocioso [que] intui, a partir de certo momento, a verdade lancinante da coexistência social” (BOSI, 2008, p. 138). Logo no início do romance, o protagonista descobre a força que o olhar do outro tem sobre nós quando sua mulher, Dida, faz um comentário sarcástico sobre um defeito em seu nariz: – Che fai? – mia moglie mi domandò (...) – Niente, – le risposi, (...) Mia moglie sorrise e disse: – Credevo ti gauardassi da che parte ti pende. Mi voltai come um cane a cui qualcuno avesse pestato la coda: – Mi pende? A me? Il naso? E mia moglie, placidamente: – Ma sì, caro. Guàrdatelo bene: ti pende verso destra. (PIRANDELLO, 2011, p. 195) 14 Este é o momento da revelação, quase epifânica, de que “somos para os outros tão-somente aquilo que parecemos” (BOSI, 2008, p. 139). Daqui por diante, teremos Moscarda caindo em uma agonia desesperada por não ser quem ele imaginava ser, mas também recusando-se a encampar a imagem que os “cem mil” lhe conferem. Sua complexidade paira no fato de não encontrar mais uma identidade para si nem dentro de si mesmo nem diante da sociedade, o que, fatalmente, lhe relega o vácuo da identidade perdida, de ser nessuno, de preambular o homem Pós-moderno apontado por Hall (2002). O debate que se instaura a partir dessa trama é um diálogo interno. Vitangelo observa-se e “conversa” com a própria imagem refletida no espelho (numa luta interior que supera o caso de Mattia Pascal, que se havia descoberto “um” e “dois”), revelando o que Sergio Campailla, no estudo que faz à abertura do romance que ora lemos, parece esclarecer-nos de maneira decisiva: 14 – O que você está fazendo? – minha mulher me perguntou (...) – Nada, – lhe respondi (...) Minha mulher sorriu e disse: – Pensei que estive olhando para que lado ele pende. Voltei-me como um cão a que tivessem puxado o rabo. – Pende? De mim? O nariz? E minha mulher, calmamente: – Sim, meu querido. Veja-o bem: ele pende um pouco para a direita. (tradução nossa) Ma soprattutto, il sosia pirandelliano non è esterno, ma interno, e prolifera in maniera allarmante: sono presto tanti sosia, che convivono come estranei, e anzi stranieiri. La rissa è interna, tanto che tra l’uno e l’altro si manifestano addirittura gelosia e furto. E il dialogo è un monologo ininterrotto, che però è un delirio. Un lucidissimo delirio. (PIRANDELLO, 2011, p. 191) 15 Iniciamos nossa incursão literária com um intelectual/anti-herói que termina entre ratos e uma cultura decadente, e que ao fim da vida afirmava não haver coisa mais importante para se fazer do que afirmar-se diante da sociedade, dizer o próprio nome e ter uma identidade. Chegamos ao fim de nossa análise com um intelectual que também coloca sua história em livro, que também se volta para a própria vivência para transmitir um conhecimento “criativo”, mas que naufraga na própria impotência. Serafino Gubbio entende o jogo e melhora economicamente; Moscarda, rico e único herdeiro do banco Paesetto, resolve liquidar o patrimônio, fundar um ospizio di mendicità e colocar-se dentro dele como um mendigo qualquer. Mulher, amigos e acionistas do banco consideram-no louco, mas ele está vivendo o próprio delírio, um lucidissmo delirio. O intelectual de nossos tempos parece ter perdido o lugar, parece ter compreendido as situações sociais, mas ter ficado inutilizado à margem da sociedade. Moscarda representa o intelectual, aquele ser “estranho” que busca encaixar-se nos parâmetros convencionais, mas que encontra como resposta recorrente à sua agonia o isolamento e o mais denso exílio. Apesar da tristeza existencial em que se vê metido, nosso intelectual, como um projeto de obra aberta, não desiste. Mattia Pascal acreditava nos nomes; Vitangelo parece deixar-nos a crença na continuação, Non è altro che questo, epigrafe funeraria, un nome. Conviene ai morti. A chi hà concluso. Io sono vivo e non concludo. La vita non conclude. E non sa di nome, la vita (PIRANDELLO, 2011, p. 311). 16 A consciência parece ser o maior ganho de Moscarda. Não a consciência de saber os nomes, de usufruir comercialmente do sistema, de calar o grito da garganta, mas a consciência da 15 Mas, acima de tudo, o duplo em Pirandello não é externo, mas interno, e se prolifera de modo alarmante: são muitos duplos, vivendo como estranhos, e até mesmo estrangeiros. A briga é interna, de modo que entre um e outro se manifestam até mesmo inveja e roubo. E o diálogo é, na verdade, monólogo ininterrupto, porém ilusão. Um delírio lucidíssimo. (tradução nossa) 16 Um nome não é mais do que isto: epígrafe funerária. Convém aos mortos. Àqueles que já concluíram. Eu estou vivo e não concluo. A vida não conclui. Nem conhece nomes. (tradução in: BOSI, 2008, p. 142) impotência de uma ação isolada. Vitangelo Moscarda mostra que o intelectual não pode e não deve se isolar em busca de uma desintegração de si mesmo; o eu lírico, narrador, personagem, anti-herói tem de se integrar à natureza. Conclusão Inundá-los de dúvidas, abalar suas crenças e instaurar a análise crítica. Este é o papel de nosso anti-herói, esta é a representação do papel do intelectual no século XX e, por que não dizê-lo, também a representação e função do intelectual do século XXI. É por este prisma que os romances de Luigi Pirandello conseguem identificar medos e crenças do homem moderno e lançar mão de importantes provocações para os ditos intelectuais. Tais representações parecem nos deixar claro que o intelectual é, quase necessariamente, um marginalizado, embora não o seja sempre da mesma forma. Por conceber o mundo de uma maneira menos linear que a maioria, por não fazer parte de uma “linha de montagem”, seu lugar vai sendo cada vez mais deslocado do centro. É no centro que fica o caos do homem moderno e é à margem que talvez esteja a salvação e que se consiga vislumbrar a criação de uma consciência do caos. Para não ficar preso em ideologias pouco produtivas e massificadoras, ou para não se enclausurar em uma época, o nosso herói passou a anti-herói, e para não se perder dentro dela, saiu do centro e foi à margem da civilização. Para os que duvidam da capacidade de volta ao cerne da civilização, é Pirandello quem resolve deslindar essa possibilidade intitulando o desfecho de Uno, nessuno e centomila, com a proverbial sentença: “Não conclui”. Referências BAUMAN, Z. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. bras. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. BOSI, A. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CHAUI, M. Filosofia. Série novo ensino médio. São Paulo: Editora Ática, 2 ed, 2009. ECO, U. A passo di gambero (A passo de caranguejo. Rio: Record. No prelo). GREGOLIN, M. R. V. Identidade: objeto ainda não identificado? Estudos da Língua(gem): imagens de discursos. Vitória da Conquista: Edições UESB, vol. 6, n. 1, p. 81-97, 2008. 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