Trombose do Seio Venoso Transverso Esquerdo como Complicação de Punção da Veia Jugular Interna Direita - Caso Clínico - 17 Ana Leão*, Gonçalo Durães*, Elza Moreira*, Sara Fonseca**, Céu Amorim***, Celeste Dias**** * Interno Complementar de Anestesiologia do Hospital de São João ** Assistente Hospitalar de Anestesiologia do Hospital de São João *** Assistente Hospitalar Graduada de Anestesiologia do Hospital de São João **** Chefe de Serviço de Anestesiologia do Hospital de São João e Coordenadora da UCI Neurocríticos Serviço de Anestesiologia e UCI Neurocríticos, Hospital de São João, E. P. E., Porto Resumo A trombose dos seios venosos cerebrais (TSVC) é uma entidade rara e constitui um desafio para os profissionais de saúde. Apresenta-se um caso clínico de uma doente com quadro de TSVC após hematoma cervical compressivo pós punção de veia jugular interna e complementa-se com uma revisão da etiologia, diagnóstico e manuseamento desta complicação de cateterização venosa central Palavras Chave: Cateterização venosa central, Trombose venosa cerebral. Abstract Cerebral venous sinus thrombosis (TSVC) is a rare entity and constitutes a challenge for the health professionals. The authors present a case report of a patient with TSVC after cervical hematoma as a consequence of central venous cannulation. The aetiology, diagnosis and management of this uncommon complication of central venous cannulation are discussed. Keywords: Jugular Cannulation, Cerebral Venous Thrombosis. CORRESPONDÊNCIA: Ana Leão Interna Complementar de Anestesiologia Serviço de Anestesiologia Hospital de São João EPE, Porto Alameda Prof. Hernâni Monteiro, Piso 6 4200 Porto Mail: [email protected] Tlm. 912 196 308 Revista SPA ‘ vol. 15 ‘ nº 5 ‘ Novembro 2006 Introdução 18 A trombose de seios venosos cerebrais é uma entidade pouco frequente que apresenta taxas de morbimortalidade entre 5 e 25%. Morgagni descreveu pela primeira vez a doença em 1760, mas a sua descoberta atribui-se a Ribes que em 1825 comunicou um caso de um homem de 45 anos que tinha sido observado por um quadro clínico com seis meses de evolução, caracterizado por cefaleias, convulsões e delírio e em que o estudo anatomopatológico revelou trombose do seio longitudinal superior e seio transverso1. A incidência da patologia não está bem definida mas os dados disponíveis sugerem que a trombose dos seios venosos pode corresponder a 5% das causas de patologia cerebrovascular hemorrágica em doentes com idades inferiores a 40 anos, sendo mais frequente em mulheres com idades compreendidas entre 20 e 35 anos 2. As complicações neurológicas da punção unilateral da veia jugular interna são raras e incluem a TSVC. Estão implicados diferentes factores na sua etiopatogenia: as anomalias anatómicas no sistema nervoso central, a hipotensão arterial, a hipovolemia durante a cirurgia, e o posicionamento do doente. Outros factores relacionados com a trombose da veia jugular e seios venosos são a presença de cateteres venosos, a administração de determinadas substâncias pelos cateteres venosos centrais, a presença de tumores ou processos infecciosos locais 2. Nos últimos 30 anos, a introdução da angiografia cerebral e da ressonância magnética cerebral (RMN) permitiu o diagnóstico mais precoce e preciso da trombose dos seios venosos cerebrais 1 . sob anestesia geral, a drenagem após correcção do INR=1,6 com plasma fresco. Após tentativa frustrada de cateterismo da veia jugular interna direita a seguir à indução da anestesia geral desenvolveu um hematoma cervical, resolvido por compressão. No recobro imediato apresentou melhoria do estado de consciência e ficou internada na Unidade de Cuidados Intermédios do SU para vigilância clínica neurológica. Durante o primeiro dia de pós operatório, foi necessária reintubação por aumento do hematoma cervical, cujo volume foi avaliado por TAC (fig.1) com compromisso da via aérea. No terceiro dia de pós-operatório surgiu deterioração neurológica com E.C.Glasgow = 5, o que motivou internamento na UCI Neurocríticos. Colocaram-se três hipóteses de diagnóstico: ressangramento da fossa posterior, mal epiléptico não convulsivo e TSVC. A TAC Cerebral, a EEG e a RM cerebral permitiram estabelecer o diagnóstico de TSVC do seio transverso esquerdo (fig.2). O ecodoppler carotídeo e transcraniano não apresentavam alterações, mas o ecodoppler jugular mostrou oclusão parcial da jugular interna direita por compressão e trombose da porção cervical alta da jugular interna esquerda. A clínica de TSVC é decorrente do aumento da pressão intracraniana (PIC) por obstrução da drenagem venosa cerebral, explicando-se assim o agravamento neurológico da doente com afundamento do estado de consciência. Foi efectuado tratamento conservador, sem recurso à hipocoagulação. Actualmente a doente encontra-se consciente, colaborante, com parésia em recuperação (GOS 4). Caso Clínico Caso Clínico Doente de 60 anos, sexo feminino, hipertensa com FA em hipocoagulação oral com varfarina e antecedentes de epilepsia pós traumática desde a infância. Admitida na Sala de Emergência do H.S.J. com E.C.Glasgow=12 (O3, M6,V3), por quadro de instalação súbita de vertigem associado a queda e a vómitos. Realizou-se TAC Cerebral que mostrou hemorragia cerebelosa direita, com efeito de massa. Foi colocada indicação cirúrgica, tendo a doente sido submetida, Revista SPA ‘ vol. 15 ‘ nº 5 ‘ Novembro 2006 As complicações neurológicas da cateterização venosa central são raras e incluem a TSVC 2 . A presença de uma bainha de fibrina à volta do cateter ou de trombo aderente à parede do vaso não são raros após cateterização venosa central. Um recente estudo sugere uma incidência de 70% 3,4. Os factores que poderão contribuir para o desenvolvimento da trombose são: duração da cateterização, posição do cateter, propriedades físicas do cateter e natureza dos fluidos. Contudo, apesar da aparente elevada incidência de trombose local à volta do cateter, a extensão anterógrada ou retrógrada sintomática do trombo é rara4. A infecção, as anormalidades intrínsecas da coagulação e a relativa estase intravascular, a gravidez e o puerpério, a policitemia, a trombocitopenia, a anemia hemolítica, as doenças do colagéneo, o défice de proteína S e de antitrombina III e terapia hormonal com estrogéneos são alguns dos factores que contribuem para a extensão do trombo. Nenhuma destas condições estava presente na doente. O desenvolvimento do hematoma cervical com a consequente alteração da dinâmica normal da drenagem venosa cerebral, foi provavelmente o factor de risco relevante para o aparecimento da TSVC. A anatomia da região da confluência dos seios é variável. Na maioria dos casos o seio sagital superior drena para o seio transverso direito e daí para a veia jugular interna direita. Só em 8% dos casos o seio sagital superior drena exclusivamente para o seio transverso esquerdo e daí para a veia jugular interna esquerda4. Neste caso a doente revelou trombose do seio transverso esquerdo. O diagnóstico foi confirmado por TAC e RMN. O papel da hipocoagulação na trombose venosa dos seios cerebrais é incerto. Na presença de enfarte hemorrágico deve ser evitado4. Neste caso foi efectuado tratamento conservador, sem recurso à hipocoagulação, após ponderar risco/benefício: a doente ainda apresentava sangue na loca cirúrgica da fossa posterior e a sua hemorragia cerebral espontânea tinha ocorrido com INR dentro da faixa terapêutica. O prognóstico da TSVC é difícil de avaliar e está relacionado com a sua etiologia. A morbimortalidade encontra-se entre 5-25%. Prognósticos adversos estão relacionados com coma, infecção, extensão venosa cerebral, enfarte cerebral e convulsões4. adequado, razão pela qual está indicada a realização de estudos que descartem outras causas que predispõem a fenómenos trombóticos1. Agradecimentos Os autores agradecem a preciosa ajuda do Professor Jorge Tavares ( Chefe de Serviço de Anestesiologia do Hospital de São João e Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto) na revisão do artigo. 19 Figura 1 - TC Cervical Hematoma Cervical Caso Clínico A TSVC é uma entidade que, apesar de ser rara, deve ser considerada em doentes que apresentem um síndrome de hipertensão intracraniana e se estão presentes factores de risco como cateterização venosa central, uso de contraceptivos orais, tromboses prévias ou recorrentes. Tem um prognóstico favorável se se estabelece um tratamento sintomático e etiológico Figura 2 - RMN Cerebral Trombose Venosa do Seio Transverso Esquerdo Revista SPA ‘ vol. 15 ‘ nº 5 ‘ Novembro 2006 1.Volcy-Gómez M. Trombosis de senos venosos cerebrales: descripción de las características clínicas, factores de riesgo y tratamiento en un hospital de Colombia. Rev Neurol 2003; 36(4): 311-316. 2. Adeva-Bartolomé MT. Trombosis de senos venosos cerebrales tras ligadura de vena yugular interna. Rev Neurol 2003; 36(4): 398-399. 3. Ameri A. Cerebral venous thrombosis. Neurol Clin 1992; 10: 87-111. 4. Stephens PH. Superior Sagittal Sinus Thrombosis after internal jugular vein cannulation. Br J Anaesth 1991; 67: 476-479. Revista SPA ‘ vol. 15 ‘ nº 5 ‘ Novembro 2006