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OS DESAFIOS DAS
ORGANIZAÇÕES
NO CONTEXTO
PÓS-MODERNO
The Challenge of the Organizations
in the Postmodern Context
Resumo Este texto busca estabelecer as articulações possíveis entre a pós-modernidade e o contexto organizacional moderno, com ênfase nas tendências e nos desafios
apontados para organizações. Nesse sentido, retoma-se o marco conceitual da pósmodernidade, a fim de configurar as interferências que tal dimensão cultural trouxe
para a sociedade como um todo, e, particularmente, para o campo de atuação das organizações. Na seqüência, procuramos determinar as interferências desse cenário na
atuação das organizações, sobretudo no que diz respeito à dimensão simbólica de sua
atuação. Para buscar referências mais concretas das estratégias de ação das organizações, recorremos a algumas autoridades da administração que apontam tendências
para o setor. Finalmente, tratamos as relações entre a pós-modernidade e o contexto
organizacional, destacando os desafios que, ao nosso ver, devem fazer parte das preocupações daqueles que atuam na área.
Palavras-chave MODERNIDADE – PÓS-MODERNIDADE – GESTÃO CONTEMPORÂNEA – IMAGINÁRIO ORGANIZACIONAL.
Abstract In the following text we try to establish the possible articulations between
postmodernity and the modern organizational context, emphasizing trends and challenges aimed towards organizations. In this sense, we retake the conceptual frame of
postmodernity, in order to configure the interference that was brought to society as
a whole by this cultural dimension, but focusing the particular field of action of the
organizations. Then, we tried to establish the interferences of such scenario in the action of the organizations, specially regarding the symbolic dimension of its action. In
order to bring more concrete and solid references on the action strategies of the organizations, we quote sayings from some “gurus” of administration, who point out
the trends for this sector, trying, finally, to establish the relationships between postmodernity and the organizational context, and to emphasize the challenges that, in
our point of view, should be a concern of those who work in this area.
Keywords MODERNITY – POSTMODERN – CONTEMPORARY ADMINISTRATION –
ORGANIZATIONAL IMAGINARY.
impulso nº 29
155
ELISABETE STRADIOTTO
SIQUEIRA
Doutora em ciências sociais e
mestre em administração pela
PUC/SP, professora da Faculdade
de Gestão e Negócios da UNIMEP
e coordenadora do Programa
de Gestão Social do Núcleo de
Estudos e Programas em
Educação Popular (Nepep)
[email protected]
VALÉRIA RUEDA ELIAS SPERS
Mestre em administração e
supervisão educacional pela
Unicamp, professora e
coordenadora do curso de
Administração na UNIMEP
[email protected]
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PÓS-MODERNIDADE: CRIANDO
CENÁRIOS PARA O CONTEXTO ORGANIZACIONAL
O
conceito de pós-modernidade encontra ampla gama de
possibilidades, que ora se aliam ora se colocam de forma contraditória, apontando, inclusive, que não haveria
uma ruptura da noção de modernidade, e sim a sua radicalização, uma vez que as estruturas de poder relacionadas ao domínio econômico não se modificaram. De
outra parte, a pós-modernidade pode indicar um momento de transição e de busca de um novo projeto.
Nesse sentido, mais do que uma estrutura de sociedade, ela representaria um
momento de construção valorativa, que daria as bases de uma nova época.
Para abordar esses aspectos, nos apoiaremos em Giddens, Menezes e
Archer. Giddens trabalha a idéia de uma modernidade reflexiva,1 definida
como a possibilidade de uma “(auto)destruição criativa” para toda uma era –
a da sociedade industrial – e o grande “sujeito” dessa destruição criativa não
é a revolução, não é a crise, e sim a vitória da modernização ocidental.
Se, no fundo, a modernização simples (ou ortodoxa) significa, primeiro,
desincorporação e, segundo, a reincorporação das formas sociais tradicionais pelas formas sociais industriais, então, a “modernização reflexiva” significa, primeiro, a desincorporação e, segundo, a reincorporação
das formas sociais industriais por outra modernidade.2
Partindo dessa questão, pode-se considerar que a radicalização da modernidade traria à realidade da sociedade industrial possibilidades de reincorporação de novas alternativas modernizantes que indicariam uma possível
continuidade.
Por isso, supõe-se que modernização reflexiva signifique que uma mudança da sociedade industrial – ocorrida sub-repticiamente e sem planejamento no início de uma modernização normal, autônoma, e com
uma ordem política e econômica inalterada e intacta – implica a radicalidade da modernização, que vai invadir as premissas e os contornos da
sociedade industrial e abrir caminhos para outra modernidade.3
A idéia introduzida por Beck é a de que quanto mais as sociedades são
modernizadas mais os agentes (sujeitos) adquirem a capacidade de refletir sobre as condições sociais de uma existência e, assim, de modificá-la.4 Contudo,
não no sentido de uma reflexão intencional (auto-reflexiva), mas especialmente em decorrência dos riscos que essa modernização produz na socieda1
GIDDENS, 1997, p. 12.
Ibid, p. 16.
Ibid., p. 13. Ainda segundo Giddens, o conceito de modernização reflexiva “não implica (como pode sugerir
o adjetivo reflexiva) reflexão, mas (antes) autoconfrontação. A transição do período industrial para o período
de risco da modernidade ocorre de forma indesejada, desapercebida e compulsiva no despertar do dinamismo
autônomo da modernização, seguindo o padrão dos efeitos colaterais latentes” (ibid., p. 16).
4 BECK, U. A Reinvenção da Política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva, in: GIDDENS et al.,
1997, pp. 10-71.
2
3
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de, modernaização esta definida pelo autor como
“autonomizada”.
Para Beck o auto-risco da modernidade é
substituído pela automodificação. O diagnóstico não é o declínio, mas uma mudança
de cena ou, mais precisamente, um jogo de
duas realidades interagentes. Um apontamento feito pelo autor procura exemplificar
o que significa esta automodificação. A antiga e familiar realidade da luta pela distribuição de “bens” desejados agora compete
com a nova realidade da sociedade de risco.
Esta última realidade é essencialmente uma
luta pela definição dos novos “males”, mas
esta realidade recém-descoberta interage
com o antigo conflito por modos confusos
e contraditórios. Este é o atual drama do
conflito de risco.5
Segundo Giddens, a característica de nossas
vidas atualmente é o que se poderia chamar “incertezas fabricadas”. De repente, muitos aspectos tornam-se abertamente organizados em termos de
“suposições de cenários”, construção “como se”
dos possíveis resultados futuros. Isso ocorre tanto
no plano individual quanto na humanidade como
um todo. Por um lado, podemos facilmente discernir muitas novas oportunidades que potencialmente
nos libertam das limitações do passado. Por outro,
quase em toda parte enxergamos a possibilidade de
catástrofe. E em muitos momentos é difícil dizer,
com qualquer grau de segurança, que direção as coisas irão tomar.
A explicação para esse estado de coisas não é
encontrado – como freqüentemente se pensa – no
ceticismo metodológico do conhecimento moderno, embora ele seja importante. Para o autor, o principal fator envolvido é exatamente a reflexividade
institucional, termo que prefere utilizar em substituição à modernização reflexiva, pois, para ele, esta
última tende a implicar uma espécie de “conclusão”
da modernidade, o vir à tona de aspectos da vida social e da natureza anteriormente adormecidos.
Assim, a modernidade é inseparável dos sistemas abstratos que propiciam o desencaixe das rela-
ções sociais através do tempo e do espaço e se estendem sobre a natureza socializada e o universo social. A razão da circularidade do conhecimento social (reflexividade), que afeta em primeira instância
o mundo social, ao invés do natural, forma um universo de eventos em que a velocidade, o acaso e os
riscos assumem um novo caráter. Em condições de
modernidade, o mundo social nunca pode formar
um meio ambiente estável em termos de entrada de
conhecimento novo (conceitos, teorias, descobertas). Não torna simplesmente o mundo social mais
transparente, mas altera sua natureza, projetando-a
para novas direções, que extensionam e intensionam, simultaneamente, os indivíduos a sistemas de
grande proporção, apontando para a complexidade
e a dialética das mudanças.
O mundo é “um” em certo sentido, mas radicalmente cindido por desigualdades de
poder em outro. E um dos traços mais característicos da modernidade é a descoberta
de que o desenvolvimento do conhecimento empírico não nos permite, por si mesmo,
decidir entre diferentes posições de valor.6
Nesse sentido, Giddens se apóia em uma manutenção da própria modernidade, sem necessariamente apostar na sua superação. Por sua vez, Philadelpho Menezes configura a pós-modernidade
como transição, e não como mundo reconfigurado:
O termo pós-modernidade surge para designar a cultura produzida numa sociedade
cuja evolução tecnológica se põe além da
produção industrial de bens materiais. Se a
economia capitalista baseada na industrialização é o cenário da cultura da modernidade, a superação dela e de sua base técnica daria vazão ao aparecimento de uma cultura
pós-moderna, pois que esse quadro representaria o esgotamento da própria modernidade.7
Desse ponto de vista, aquilo que caracterizaria
essa sociedade pós-industrial seria o domínio da informática, e sua conseqüente produção de bens
6
5
GIDDENS et al., 1997, p. 213.
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7
GIDDENS, 1991, p. 153.
MENEZES, 1994, p. 145.
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imateriais, dando lugar a uma nova estrutura de produção não mais centrada nas grandes aglomerações
industriais, mas na produção informacional, que
causaria menores impactos ao meio ambiente e à dinâmica urbana, uma vez que sua estrutura não demanda grandes complexos produtivos. Nesse novo
contexto, o próprio trabalho seria reconceituado,
pois, como atividade imaterial, também consistiria
em um produto, resgatando assim os laços que um
dia o separaram do espaço doméstico.
Menezes destaca a transitoriedade do momento em que vivemos: se a revolução informacional está em pleno curso, ainda é inconcebível uma
sociedade que tenha definitivamente eliminado a
produção de bens materiais, já que são fundamentais à própria existência humana, além de que as
concentrações industriais ainda são necessárias inclusive para garantir a produção informacional. Parece-nos que o autor chama a atenção para a necessidade de um certo cuidado quanto ao risco de nos
apegarmos a visões futuristas que desconsideram
que o futuro está para ser construído.
Enfim, observar até que ponto as inovações
tecnológicas foram incorporadas por meio
de processos intermediadores de assimilação das novas informações, entre os quais se
destacam a linguagem e as artes, ou se elas
restam até hoje na esfera das suposições futurológicas e salvacionistas sem que nada de
profundo tenha afetado.8
conceito de superação e de novidade a cada
época. Com o desaparecimento da história
entendida como progresso linear, esgota-se
também a visão teleológica que dotava os
atos sociais de uma finalidade útil dirigida à
redenção e à emancipação. Enfim, esgota-se
a própria formulação utópica que impregnava o pensamento histórico de um objetivo
ético. (...) Na noção de uma não-história é
que o pensamento pós-moderno procura se
estabelecer enquanto ruptura com o moderno.9
Não vivemos um momento de superação,
mas de sobreposições de momentos históricos diferentes, cujo produto não é a sua soma, e sim uma
complexa combinação desse mosaico, que, por sua
vez, é produtora de nossa cultura, e, de certa forma,
condutora do modo de ação dos agentes sociais envolvidos nesse processo. Não é possível pensar a revolução tecnológica sem considerar sua inter-relação com a cultura. Segundo Archer, é necessário superar a visão de sociedade industrial em que a cultura se submetia à estrutura, ou ainda à concepção
pós-industrial em que não há distinção entre elas.
Essa autora salienta a necessidade de preservação de
espaços próprios que se inter-relacionem, mediados
pela ética de construção de uma “boa sociedade”, de
forma a “libertar a cultura da subordinação, restaurar a sua autonomia relativa e restabelecer a sua autoridade moral”.10 E afirma ainda:
A subordinação da cultura em teorias da sociedade industrial rejeita a priori qualquer
importância das contradições culturais. A
visão da cultura subordinada é realmente
aquilo que promove um teórico da sociedade industrial – eles possuem uma imaginação industrial limitada que funde a estrutura
com a cultura, a racionalidade instrumental
com a moralidade, e o avanço técnico com
progresso social.11
O autor conceitua a pós-modernidade, em
seu momento de ruptura com o moderno, com
base no abandono da visão de história como processo evolutivo. Para ele, a ênfase no processo de
inovação técnico-científico permanente a rotiniza e
rompe sua possibilidade de impacto transformador
radical. Portanto, a configuração do pós-moderno
está marcada notadamente pela ausência de um projeto unificador que direcione as forças sociais.
A grande diferenciação que o pensamento
pós-moderno estabelece com relação à modernidade é o abandono da visão de história
enquanto processo evolutivo que implica o
Nesse sentido, acreditamos que o desafio colocado aos administradores não está na definição do
futuro, nem em uma tentativa saudosista de retorno
9
Ibid., p. 160.
ARCHER, 1994, p. 123.
Ibid., p. 130.
10
8
Ibid., p. 159.
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ao passado, quando imperavam as grandes aglomerações industriais. Seu papel extrapola o espaço produtivo, até porque ele próprio está disperso e em
fase de redefinição. O administrador ocupa, cada
vez mais, um lugar social em que a reconciliação entre produtividade e bem-estar social é urgente. Para
entender os efeitos da revolução tecnológica é necessário ultrapassar os limites da tecnologia, resgatando o seu sentido original, que a articulava ao conhecimento, à arte e, portanto, ao modo de vida da
sociedade.
Ao tratar a noção de administrador, nos referimos a todos aqueles que desenvolvem a ação de
gerir processos organizacionais, independentemente da relação dessa organização com processos produtivos ou de prestação de serviços (sejam eles lucrativos ou não, públicos ou privados). O objeto
colocado aqui em debate é, portanto, a organização,
por compreendermos que essas estruturas orientam-se por uma lógica semelhante que responde os
contextos históricos específicos.
As soluções não estariam no passado, nem
tampouco no futuro. Elas dependem de uma análise
intercultural do presente e dessa multiprocessualidade provocada por sinais do futuro e do passado.
Conseqüentemente, as habilidades do administrador devem ir além da racionalidade técnica e balizarse por um compromisso social de construção, cujo
norte seja a ética de uma vida melhor para todos.
O IMAGINÁRIO
ORGANIZACIONAL MODERNO
Vivemos em um mundo de conceitos contraditórios. Perplexidade e apatia, por exemplo, convivem sem muitos problemas, quando nos deparamos com um novo fenômeno: a intensidade das
mudanças e inovações vem retirando delas o caráter
de novidade. A própria noção de crise, que há algum
tempo apontava momentos particulares da história,
passou a fazer parte da construção do cotidiano, do
nosso modo de vida, deixando de significar momentos de ruptura. Em alguma medida, possamos
talvez reportar tal situação ao fato de vivenciarmos
um período de transição e, estando em tal redemoinho, passarmos a compreender que as forças no
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embate da construção do futuro são o próprio futuro.
As organizações não são diferentes, nem tampouco os indivíduos. E por serem produzidas por
eles, também são palco de um processo intenso de
mudança, que tem produzido um imaginário organizacional particular. Freitas reporta tal imaginário
ao contexto pós-moderno, por sua vez articulado a
um simbolismo nunca visto em nenhuma outra sociedade.12 A dimensão simbólica das organizações
encontra no ambiente atual as sementes e o terreno
que permitiram o seu desenvolvimento – ambiente
em que a complexidade13 e a velocidade determinam as condutas organizacionais e em que a fragmentação dos valores e condutas pessoais coloca a
organização como referência social14 para uma parcela significativa da população.
Freitas aponta a organização como uma instituição capaz de captar e se adaptar, com certa agilidade, às mudanças ocorridas no contexto contemporâneo, entendendo que elas são fruto de uma interação entre o espaço social e o temporal, os quais
produzem uma forma de representação de mundo
que constitui a sua auto-imagem.15 Com isso, a crise
das significações imaginárias, produzidas pela forma
12 FREITAS, 2000.
Cf. MORIN, 1990. O termo complexidade está relacionado à dificuldade
em explicar alguma coisa derivada particularmente dos processos simultâneos que produzem uma ação e, por outro lado, de fenômenos aleatórios
produtores da incerteza. Assim, a essência da complexidade é a impossibilidade de sua homogeneização. Ainda segundo o autor: “a complexidade é
correlativamente o processo da ordem, da desordem e da organização.
Digo também que a complexidade é a mudança de qualidades da ordem e
a mudança das qualidades de desordem. Na complexidade muito alta, a
desordem torna-se liberdade e a ordem é muito mais regulação do que
imposição. Neste aspecto modifiquei meu ponto de vista e mais uma vez
modifiquei complexificando” (Ibid., p. 157).
14 Mais adiante, teremos a oportunidade de comentar como alguns
“gurus” da administração caracterizam tal contexto, chamando a atenção à
mudança significativa no perfil do ambiente de negócios, que cria novas
referências para o conceito de produtividade e passa a ter como palco de
atuação uma dimensão digital. Destacaremos também a mudança demográfica, que altera o perfil do consumidor tanto com relação à idade como
no convívio e confronto de diferentes culturas, e a inserção do comércio
eletrônico, que altera as relações entre os vários agentes do processo organizacional (empresários, funcionários, fornecedores, consumidores,
governos e comunidade), além de trazer novos desafios quanto à concepção da atuação geográfica das organizações, modificando drasticamente a
importância estratégica dos canais de distribuição, e ainda relativamente a
conceitos como alianças corporativas. Afora essas questões, consideraremos ainda os impactos das mudanças tecnológicas que trazem uma nova
equação na composição de valor do produto, deslocando-se de sua dimensão material para ter seu valor agregado pelo quantum de conhecimento
investido.
15 FREITAS, 2000.
13
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de organização do trabalho durante o século XX, e
que o separaram significativamente da realização
dos desejos dos indivíduos, restringindo essa dimensão ao consumo, tenciona o espaço de identificação social e individual ao trabalho, colocando-se,
dessa forma, como fonte de referência tanto do sucesso como de uma auto-imagem socializada entre
funcionários e sociedade.
O imaginário organizacional moderno, em tal
contexto, busca materializar-se como alternativa
“única” capaz de promover o desenvolvimento econômico e social, uma vez que toma para si dimensões relacionadas a cidadania, excelência, flexibilidade e ética. Contudo, Freitas indica a limitação dessa
empreitada, pois esse imaginário constitui-se de elementos que podem assumir dimensões contraditórias, como por exemplo:
• a idéia de uma empresa cidadã, quando a cidadania é um atributo humano valorativo, e
de que o valor preponderante nas organizações ainda é o econômico;
• a concepção de excelência, sem se dar conta
de que esse é sempre um conceito provisório, pois está relacionado à dimensão da superação constante, e, portanto, à própria
impossibilidade do sucesso de todos;
• a flexibilidade que rompe com as barreiras
do espaço geográfico e do tempo, mas que,
ao mesmo tempo, impossibilita a dimensão
de qualquer estabilidade e consolidação;
• a empresa como restauradora da ética,
quando o propósito organizacional está
submetido à sua sobrevivência, além da necessidade de um mínimo de credibilidade
para que as organizações possam atuar, pois
de outra forma não poderiam colocar-se
como possibilidade de referência. A opção
ética visa, desse modo, à própria sustentação da imagem da empresa, e não necessariamente a um novo tipo de conduta organizacional.
Diante de tal panorama, a autora chama a
atenção para os riscos de uma imagem organizacional auto-referente, que induz a processos de homogeneização, restringindo as possibilidades de aprendizado e tendendo à estagnação. Assim, em sua atua-
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ção no contexto pós-moderno, as organizações deparam-se com riscos a serem enfrentados, pois o
imaginário criado apresenta limitações à apropriação
do conhecimento como agregador de valor ao produto.
A seguir, recuperaremos brevemente como o
cenário atual das organizações foi constituído, a fim
de delinear que o cenário organizacional moderno
não está marcado apenas pelo viés tecnológico, mas
primordialmente pela dimensão cultural.
CENÁRIOS DAS ORGANIZAÇÕES: AS
ORGANIZAÇÕES E SUA DIMENSÃO HOJE
O surgimento da indústria como fenômeno
social, no século XX, está marcado por uma mudança significativa, caracterizada pelo abandono ou superação de uma visão mística substituída por uma
concepção racional de mundo que guardava na técnica o seu suporte de legitimação. Sob esta ótica, no
início da sua constituição, as organizações se configuravam como forma de, em um mesmo espaço,
unir know how e acumular conhecimento, visando a
encontrar uma maneira de trazer o controle para o
capital.
O historiador Edgar De Decca defende que
tal relação foi conduzida pela idéia de controle tanto
da produção como do trabalho,16 fazendo com que
a tecnologia desse período, para além da melhoria da
produtividade, buscasse controlar e disciplinar o trabalhador – a revolução industrial modificou não
apenas o sistema produtivo, mas notadamente as
formas de administração. Por outro lado, o desenvolvimento tecnológico facilitou o processo de submissão, uma vez que reduziu a interferência do trabalhador especializado na definição e no controle da
produção. Pode-se, então, concluir que o processo
de desenvolvimento tecnológico desse período, aliado às novas formas de controle dele decorrentes, estabeleceu as relações de poder do capital sobre o trabalho.
Recorrendo a autores como Marx e Stephen
Marglin, Andre Gorz nos traz reflexões sobre
como a tecnologia tem sido utilizada para manter
não somente o controle do trabalho, mas sua sub16
DE DECCA, 1995.
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missão ao capital. Segundo o autor, “a divisão do
trabalho e o parcelamento das tarefas, a cisão entre
trabalho intelectual e manual, a monopolização da
ciência pelas elites, o gigantismo das instalações e a
centralização dos poderes que daí decorre – nada
disso é necessário para uma produção eficaz”.17
Nesse sentido, Gorz e De Decca concordam que a
tecnologia ou os imperativos tecnológicos amadureceram suas origens voltados mais para o controle
do trabalho do que necessariamente para melhoria
do processo produtivo.18
Com essas argumentações, os autores não
pretendem ignorar a importância da tecnologia, reconhecendo nela a diminuição do custo de produção, como também sua superioridade no que diz
respeito à eficiência em termos tanto de economia
de tempo como de simplificação das tarefas. Demarcam, contudo, que a divisão das tarefas, a criação
do mercado e a inovação tecnológica trouxeram definitivamente a dependência do trabalho ao capital.
Esse quadro demonstra significativamente as origens da função do administrador com relação à tecnologia. Em outras palavras, coube à figura do administrador gestar essa transição do domínio da
produção centrada na pessoa do artesão para a do
capitalista; o administrador no sistema de fábrica
passou a ser uma peça fundamental de mediação entre o capital e o trabalho, e a tecnologia tornou-se
instrumento essencial para execução de tal tarefa.
O fordismo foi a primeira grande promessa
da tecnologia na revolução da relação homem-trabalho. Para Ford, a ampliação da produção, cujo cerne tecnológico era a linha de montagem, possibilitaria geração de empregos, redução de custos e, conseqüentemente, a ampliação do consumo, criando
um círculo vicioso de melhoria no bem-estar geral
da sociedade. Além do elemento tecnológico (a linha de montagem), reorganizando o trabalho e
transformando o controle individual taylorista em
controle coletivo no fordismo, este contava ainda
com um eixo político: a política de bem-estar materializada no New Deal norte-americano completava
o quadro político-econômico que iria permitir a expansão do consumo.
Na década de 50, com a implantação das máquinas de controle numérico, tal controle se intensificou ainda mais, visto que ele podia então se realizar fora do espaço da fábrica. Já a década de 60 iria
apontar os primeiros sinais de crise do fordismo. Segundo Heloani, a recuperação da Europa do ponto
de vista econômico e o déficit público e comercial
nos EUA trouxeram dificuldades na continuidade
do aumento da produtividade;19 as tecnologias poupadoras de mão-de-obra e de intensificação do trabalho foram cada vez mais incentivadas, configurando o início do atual quadro de desemprego.
Os anos 80 são marcados pelo desemprego
tecnológico e pela recuperação da Europa e do Japão na busca de novos mercados, acirrando a concorrência e o déficit fiscal norte-americano; a rigidez
dos investimentos passa a exigir reestruturação econômica, reajustamento social e político e novas formas de organização industrial – que autores como
Antunes e Harvey denominam acumulação flexível.20 “Novos processos de trabalho emergem, onde
o cronômetro e a produção em série e de massa são
‘substituídos’ pela flexibilização da produção, pela
especialização flexível, por novos padrões de busca
de produtividade, por novas formas de adequação
da produção à lógica do mercado.”21
Partindo dessas considerações, podemos perceber que passamos não apenas por modificações
no sistema produtivo, mas sobretudo no modo de
vida social, ou seja, estamos assistindo a uma reorganização da sociedade, cujo futuro depende em
grande parte do tipo de atuação que os diversos
agentes sociais se proponham desenvolver. Em
1999, a revista HSM Cultura & Desenvolvimento
organizou um evento na Argentina com especialistas em diversas áreas do management, que contou
com a participação de quatro mil executivos no congresso. O resultado dessas discussões foi sistematizado em uma edição especial, publicada pela revista
no ano 2000, intitulada O futuro da empresa antecipado no maior encontro de executivos do mundo.
19 HELOANI, 1994.
17
GORZ, 1989.
18 Cf. GORZ, 1989; e DE DECCA, 1995.
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20 Cf. ANTUNES, 1995; e HARVEY, 1992.
21
ANTUNES, 1995, p. 16.
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Tomaremos por base algumas dessas conferências, a fim de explicitar como especialistas na área
de management reconhecem as mudanças referidas
neste texto. Na seqüência, adotaremos como eixo a
conferência de quatro autoridades reconhecidas no
mundo dos negócios: Peter Drucker, Bill Gates, Michael Porter e Nicholas Negroponte.22 Eles reconhecem que esse novo cenário desafia uma racionalidade tomada somente em sua dimensão instrumental e exige do gestor certas mudanças no seu
perfil de relacionamento organização-sociedade.
Drucker aponta que as organizações contemporâneas devem se preparar para alguns fatores que
sugerem mudanças nas formas gerenciais. Um deles
diz respeito à mudança demográfica caracterizada
pela redução do número de jovens e pelo aumento
na expectativa de vida da população. Tal mudança
também é marcada pelos processos de pressões migratórias, provocados por êxodos resultantes de
conflitos políticos, mobilidade do mercado de trabalho e trânsito trazido pela facilidade de transporte.
De certa maneira, tais processos colocam em convivência diferentes culturas. Com base nos fatores
de mudanças apontados por Drucker, configura-se
um perfil diferente do mercado consumidor, que
será reconfigurado a partir da releitura indicada por
essas tendências.
Outra vertente, segundo esse autor, diz respeito ao comércio eletrônico, que desloca o centro
de valor das empresas para o processo de distribuição e exige a integração das cadeias de abastecimento. Desse ponto de vista, o reflexo organizacional
poderia ser um sistema centralizado na alta administração, contraposto por uma estrutura descentralizada de fornecimento de produtos e serviços. Ou
seja, a cadeia de distribuição passa a ser um elemento
fundamental, como também as alianças, as associações e os acordos entre as empresas que viabilizam
tal processo. Uma terceira corrente se refere à eliminação das distâncias entre organização e consumidores, dada a universalização de bens e serviços
propiciada pelo comércio eletrônico, que inaugura a
competição mundial. Em tal contexto, embora à
22 Cf. DRUCKER, 2000; GATES, 2000; PORTER, 2000; e NEGROPONTE, 2000.
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primeira vista possa parecer que haverá uma homogeneização de produtos, Drucker alerta para o fato
de que a disponibilidade de acesso a produtos em
qualquer lugar do mundo evidencia a “cor local”, ou
seja, o diferencial de produto e sua competência essencial.23
Procurando ainda configurar o novo cenário
das organizações, o autor aborda a questão da nova
ênfase na produtividade, cujo fator mais relevante
desloca-se da equação “mão-de-obra, mais matériaprima, mais tecnologia” para “a imaterialidade do
produto”, cuja contribuição humana centra-se no
conhecimento. Tal mudança reconfigura o conceito
de organização do trabalho, que perde a sua dimensão de previsibilidade absoluta e ganha nova dinâmica, caracterizada pela eliminação de rotina e trabalho
em equipe, no sentido de viabilizar a criatividade no
processo produtivo. Nesse contexto, a assistência
educacional agregada à promoção da tecnologia da
informação passam a ser elementos fundamentais
do conceito de produtividade.
Já Bill Gates centra sua análise nas mudanças
proporcionadas pela inserção da informática nos
processos de gestão, que, segundo ele, podem trazer
como vantagem a capacidade de acelerar o fluxo de
informação dentro de e entre organizações, assim
como os elos da cadeia de valor dos clientes atuais e
potenciais.24 Ele considera que os computadores
têm sido ferramentas subutilizadas, em razão da resistência cultural na eliminação de papéis, falta de
conhecimento do aplicativo e pouco aproveitamento dos recursos eletrônicos no acompanhamento de
projetos. O empresário projeta para o futuro uma
organização que perderá o contato com o papel, privilegiará o feedback e a informação digitalizada, pois
atuará em um ambiente digital.
Esse ambiente digital é por ele definido como
a capacidade da informática de gerar alças e circuitos
de feedback que possibilitarão conhecer a opinião
23 Competências essenciais são habilidades e capacidades codificadas e
decodificadas que conferem à empresa seu sabor singular, não podendo
ser imitadas com facilidade pela concorrência. Não dizem respeito, necessariamente, ao que a empresa deve fazer, mas primordialmente ao que não
deve fazer. “Centrar-se na competência básica é atuar diretamente em bens
e serviços relacionados à razão de ser da empresa; não entregar esta competência ao mercado” (MOTTA, 1998, p. 81).
24 GATES, 2000.
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dos clientes, consultar funcionários, receber informações externas em tempo real, relacionar resultados, observar tendências e simular ações, prevendo
efeitos na realidade sem a necessidade de intermediários. Como conseqüência, o gestor poderá analisar a
evolução do relacionamento com clientes ou do clima do espaço de trabalho. Haverá ainda maior amplitude e possibilidade de articulação de dados que
interferem na lógica de preços, disponibilidade de
informação sistematizada do produto e aumento do
mercado potencial das organizações, reduzindo o
custo de busca da informação.
No entanto, para aproveitar a força propulsora da tecnologia, Gates considera necessárias algumas mudanças do ponto de vista organizacional, entre elas, a incorporação do correio eletrônico à cultura corporativa e a análise dos impactos da Internet
nos negócios, como também a promoção dessas modificações, como a simplificação de operações, o propiciamento de interligação da cadeia de valor (antecipação de processos informativos das reuniões), a disseminação dos benefícios da tecnologia, mediante
apoio governamental e de centros especializados,
especialmente para pequena e média empresa, e a inserção da informática como disciplina obrigatória
nas escolas.
Esse quadro aponta a tecnologia como uma
alternativa possível para a solução de dois problemas
de escassez: tempo e dinheiro. Em tal contexto, o
papel da liderança será o de promover a mudança
para inserção da organização no ambiente digital.
Ainda que essa realidade possa parecer promissora,
Gates adverte os riscos de invasão da privacidade e
a necessidade de manutenção do controle humano
ético sobre a informática. Porém, a utilização da Internet contribui certamente com o rompimento das
prisões geográficas.
Ao caracterizar o que denomina demografia
digital, Nicholas Negroponte a divide em três grupos: os usuários jovens que navegam na Internet
como peixes e, portanto, são 100% digitais, os de
faixa etária acima de 65 anos, que, dada a sua maior
disponibilidade de tempo, têm maiores possibilidades de conviver com o ambiente digital, e, finalmente, os “desamparados digitais”, que não entraram no
processo de digitalização por conta da limitação de
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tempo e do fato de estarem envolvidos com outras
atividades cotidianas.25 Esse bloco abriga os dirigentes de nações, escolas e empresas que, diante do seu
distanciamento com o mundo digital, reproduzem
tal dificuldade no espaço empresarial.
O autor caracteriza a civilização digital como
regida pelas unidades de informação computadorizada (bits)26 cujo impacto na vida diária é determinado pelo custo de reprodução igual a zero, trazendo, dessa forma, para economia um desafio ao tratar
a noção de reprodução ou ainda de oferta e demanda.
A força mobilizadora desse processo de digitalização, ainda segundo Negroponte, é a cultura, quando
expressa pela valorização das liberdades individuais,
da economia subterrânea,27 e pela cultura horizontal, que enfatiza uma falta de respeito saudável pela
autoridade e desenvolve-se com base na argumentação e no debate.28 Essas particularidades culturais
explicam as diferenças entre os países no que se refere à inserção no mundo digital, ou seja, esta não se
limita somente à disponibilidade dos recursos tecnológicos.
Quanto à inteligência da rede, Negroponte
afirma que a capacidade de interconexão determinará a eficácia do seu desempenho, que atingirá o
mundo empresarial pelo comércio eletrônico, à medida que algumas questões sejam equacionadas, entre elas, redução dos preços dos computadores e das
telecomunicações, melhoria nos sistemas de telecomunicação, diminuição de juros e de multas nos sistemas de pagamento e desintermediação entre empresa e consumidor. Com isso, as lojas perderiam a
sua função de venda para privilegiar a exposição e a
promoção dos produtos.
Como resultado desse processo, o autor
aponta a interconectividade sobre o conceito de nação articulando o local e o global, a aproximação da
qualidade de vida urbana e rural, e o rompimento da
noção de sincronismo do cotidiano, uma vez que no
mundo dos bits não há necessidade de simultanei25
Cf. NEGROPONTE, 2000, p. 86.
“Digito binário que pode estar apenas em um entre dois estados, representando zero ou um” (LAUDON & LAUDON, 1999, p. 375). Unidade de medida da quantidade de informação.
27 A economia subterrânea se caracteriza pela informalidade e pela valorização dos relacionamentos.
28 Cf. NEGROPONTE, 2000, p. 86.
26
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dade física. Entretanto, alerta para a necessidade
fundamental de investimento de programas educacionais que respondam à lógica de produção do conhecimento no mundo digital.
Finalmente, Michael Porter centra a sua análise do processo de mudança organizacional na
questão da estratégia.29 Para ele, a globalização tem
exigido uma mudança de mentalidade no que se refere à concorrência e existe uma dificuldade de formulação das estratégias, em função da instabilidade
e do curto prazo que o ambiente proporciona. Analisando detalhadamente os fatores que se inter-relacionam com a definição de uma estratégia de organização – entre eles, o desempenho do setor, a rentabilidade da organização e do setor em que se atua,
a relação entre preços e custos e a eficiência operacional –, o autor conclui que tal estratégia deve ser
definida pela competição de que a organização não
quer participar e pela liberdade de escolher o seu
concorrente. Assim, ela não se reduz à lucratividade,
mas se amplia para a geração de um crescimento
maior do que aquela concorrência que a organização decidiu enfrentar.
Do ponto de vista de um panorama para as
organizações, Porter constrói uma nova noção de
competitividade baseada na mudança e no rompimento com a tradição, possibilitando um ambiente
estimulador da produtividade que deverá estar centrada em um marketing melhor, marcas destacadas,
excelente distribuição e um esplêndido atendimento ao cliente. Dessa perspectiva, a criação de um ambiente de produtividade é responsabilidade da organização, da sociedade e da economia. Portanto, há
necessidade de uma articulação da macroeconomia,
que, apesar de não gerar riquezas, pode facilitar ou
dificultar a sua geração, e da microeconomia, responsável pelo oferecimento de produtos e serviços
valiosos, produzidos por pessoas com aptidões e
atitudes pouco comuns em campos específicos.
Em virtude disso, Porter caracteriza o ambiente microeconômico como o diamante econômico
responsável por oferecer insumos de altíssima qualidade (recursos humanos, infra-estrutura, sistema
de comunicação, base científica e capital a prazos ra29
Cf. PORTER, 2000.
164
zoáveis), bons clientes (exigentes, inteligentes e
com necessidades difíceis de atender e que, portanto, exigem eficiência) e competição como fruto de
conquistas, não de favores. Sobre essa última questão, afirma que a comunidade empresarial deve assumir sua responsabilidade na formulação da política
econômica da nação, uma vez que a estratégia de
uma organização extrapola o limite da empresa e
atinge a comunidade. Assim, considera que cabe ao
homem de negócios assumir o seu papel de estadista.
CONCLUSÃO
Certamente, Gates, Drucker, Negroponte e
Porter não abordam a totalidade das mudanças possíveis em um novo cenário organizacional; contudo,
pode-se dizer que, de uma forma ou de outra, os
quatro abordam dois eixos de discussão que consideramos fundamentais na análise de um possível
perfil de um gestor atuante num cenário complexo
e em constante mudança. São eles o conhecimento
e a tecnologia informática.
Muitos autores têm tratado a questão do conhecimento no processo de reconfiguração no
mundo do trabalho. No campo administrativo, ela
tem sido abordada com a terminologia de capital intelectual.30 Stewart constrói tal conceito estabelecendo uma distinção entre capital humano e capital estrutural: o primeiro diz respeito ao acúmulo cognitivo dos indivíduos e o segundo, à apropriação, por
parte das empresas, dos conhecimentos dos indivíduos que as compõem.31 Desse modo, a gestão do
conhecimento implica a habilidade do gestor em estabelecer a ponte entre o capital humano e o capital
estrutural. Quais os desafios para tal questão?
O primeiro deles diz respeito à própria formação dos indivíduos para o processo de trabalho.
Como vimos anteriormente, as formas de organização do trabalho no século XX privilegiaram as estruturas de controle, em detrimento da capacidade
proativa dos indivíduos, desde a própria forma de
concepção de ciência até a sua materialização na re30
“Capital intelectual é a soma do conhecimento de todos em uma
empresa, que lhe proporciona vantagem competitiva (...). Capital intelectual é intangível” (STEWART, 1998, p. XIII).
31 O “conhecimento” referido por Stewart (1998) diz respeito à forma de
processos e tecnologias.
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produção do ensino. Distanciaram, portanto, a idéia
de concepção da noção de conhecimento novo e a
sua reprodução. O sistema educacional formal tende a reproduzir conteúdos descontextualizados de
seu processo histórico e de sua inter-relação com
outras áreas do conhecimento.32
Na verdade, a limitação e a dificuldade encontradas pelas organizações em um contexto que exige atuação mais criativa e inovadora são, em alguma
medida, reflexo não apenas do processo de trabalho,
mas sobretudo da lógica que orientou a ciência, reduzindo-a ao conceito de tecnologia, esgotando a
sua capacidade de questionamento e criação do novo. Dessa perspectiva, a atuação das organizações
nesse contexto extrapola seus limites, por estar articulada a mudanças que devem ser promovidas em
todo o contexto social.
Quanto ao capital estrutural, que talvez esteja
mais restrito ao âmbito da organização, as transformações também são necessárias. A mediação da relação capital-trabalho assume aqui novos pesos e
medidas, pois, se a lucratividade ainda é a moeda
forte do capital, esta não pode mais, hoje em dia, ser
obtida apenas com o controle máximo da força de
trabalho. A adesão não deve ser só do corpo; envolve toda a dimensão humana. Não queremos dizer,
com isso, que as formas de organização do trabalho
que objetivavam o uso da força física não agreguem,
em seu processo, um nível de sedução da subjetividade.33 Contudo, a atividade de criação precisa da
subjetividade de forma integral e direcionada, capaz
de dar novo sentido ao já existente e, partindo daí,
de produzir o novo. Caberá, então, ao gestor cons32
Cf. MORIN, 2000.
O conceito de subjetividade aqui utilizado não se restringe à relação do
inconsciente com a realidade, mas estabelece a ligação entre o sujeito do
desejo com o mundo que o circunda. A subjetividade, ainda que no
âmbito do sujeito, é construída em um processo de inter-relação e interpretação da realidade. Segundo Félix Guattari, “Subjetividade é o conjunto
das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas
estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela
mesma subjetiva” (GUATTARI, 1989, p. 19). Assim, consideramos a
subjetividade integral como a utilização da intuição, da emoção, e direcionada à resolução de problemas organizacionais, como também na percepção de alternativas de novas conduções ao processo organizacional capazes
de sustentar a dinâmica da complexidade das organizações. No entanto, tal
relação só é possível na medida em que o sujeito possa interpretar ou
encontrar na ação a realização de seu próprio desejo, e não apenas daqueles
da organização.
33
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truir mecanismos que viabilizem a materialização do
capital humano no processo organizacional e, conseqüentemente, a construção do capital estrutural.
Esse é certamente um desafio significativo
para os processos de gestão, já que trazer à tona ou
convencer os indivíduos a disponibilizar seus conhecimentos não é uma ação meramente mecânica.
Ela necessita de uma adesão a um projeto organizacional e, nesse sentido, os indivíduos precisam constituir-se como sujeitos,34 dimensão essa constantemente negada pelo capital. Não se esgotará aqui
toda a construção teórica que sustenta tal negação
por parte do capital; entretanto, considerando que a
constituição do sujeito é elaborada pela construção
de uma auto-imagem,35 ou pela possibilidade de
esse sujeito colocar-se no “centro do seu próprio
mundo”,36 não se pode negar que o capital poderá
buscar a sua otimização em detrimento da constituição dos indivíduos. Certamente, o percurso do
capital no século XX não foi capaz de aniquilar a
existência de sujeitos, pois se tivesse tido tal êxito o
próprio conceito de humanidade estaria em risco.
Contudo, esse foi um campo de embate intenso
que, hoje em dia, se recoloca de um novo ponto de
vista, pois o desejo passa a ter uma dimensão importante para a criatividade de que a organização tanto
necessita.
O gestor, nessa dimensão, está em outro patamar de relação, pois, além de não dominar todo o
conhecimento necessário para atender as exigências
de criatividade demandadas pelas organizações, precisa potencializar os conhecimentos que se colocam
de forma fragmentada na organização e transformálos em produtos, serviços e processos. No que tange à informática, deve-se, num primeiro momento,
considerar que ela pode ser entendida com base em
duas possibilidades: uma aponta para a sua apropriação integral por parte do processo produtivo e a outra, apesar de instrumentalizar uma nova lógica de
34
Segundo MORIN (1996), a concepção de sujeito está relacionada ao
reconhecimento do “eu” – não de um “eu” absolutamente isolado e egocêntrico, mas que se constrói na teia de relações múltiplas colocadas pelo
cotidiano. Para o autor, a posição de sujeito implica toda uma complexidade de composições que o constituem como tal. Nesse sentido, o “eu”
não é apenas a pessoa, mas toda a rede de relações que ela traz consigo.
35 MANZINI-COVRE, 1996.
36 MORIN, 1990, p. 95.
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produção, extrapola tal dimensão e reconfigura relações sociais. Ateremo-nos a essa segunda dimensão, uma vez que os próprios consultores da área de
administração apontam como os processos informatizados possibilitam, por parte da comunidade,
maior controle das organizações. Isso, por conta das
possibilidades de acesso a informações, como também de interferência no processo organizacional,
considerando a expressão e o contato em tempo
real com as organizações, por meio de ferramentas
disponibilizadas aos clientes em uma série de serviços dessa natureza.
Do ponto de vista dos consumidores, o processo informacional reconfigura a idéia de mercado
consumidor, na medida em que o lugar geográfico
não se constitui mais como fator preponderante.
Ao mesmo tempo, o consumidor, do escritório de
sua casa, tem à sua disposição todo um conjunto de
empresas a lhe oferecer bens e serviços com detalhamento de preço e qualidade jamais vistos. Portanto, a delimitação do mercado consumidor potencial hoje é significativamente complexa, tanto
em termos de perfil quanto de quantificação. Na relação entre as empresas, essa tecnologia é capaz de
integrá-las em processos de altíssima velocidade,
exigindo maior precisão nos processos organizacionais, com ênfase no processo de distribuição.
Trabalhar com tal complexidade encontra nas
alianças e associações uma possibilidade de enfrentamento dessa questão. Exige, contudo, uma mudança na idéia de concorrência, visto que, ao se trabalhar com parceiros, o processo deverá se dar em
um contexto de compartilhamento e troca de informações, recursos, tecnologias, práticas etc. Internamente, a informatização das relações produz impactos tanto nos procedimentos, que podem deixar de
ser mediados por papéis e relações entre pessoas,
como na própria dinâmica interna organizacional,
pois a presença física no local de trabalho pode, em
muitos casos, ser substituída pela integração de processos mediante relacionamentos virtuais. Nesse
sentido, o trabalho voltaria à sua dimensão domiciliar e toda lógica de controle possibilitada pela concentração espacial cairia por terra.
Ainda no âmbito interno, a tecnologia informacional é capaz de socializar informações que possam contribuir na produção de novos conhecimentos, tendo em vista que se processam novas formas
de interpretações do mesmo bloco de elementos. A
simultaneidade da informação poderá propiciar um
ambiente holográfico, pois a relação entre a parte e
o todo se estabelece de maneira unidimensional, já
que facilita a superação da fragmentação de processos lineares de informação.
Nessa dimensão, o desafio colocado ao gestor
está demarcado pela exigência da capacidade de tratar uma multiplicidade de fatores determinados por
consumidores, concorrentes, alianças e pelo próprio
corpo funcional, sem uma lógica evidente de centralidade que lhe permita um controle preciso de todo
processo organizacional, uma vez que a sua atuação
ocorrerá em um ambiente mutante e multifacetado.
Estarão a ciência, a arte ou a técnica administrativa
preparadas para formar gestores com tal perfil?
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os desafios das organizações no contexto pós-moderno