O PROBLEMA DO CONHECIMENTO E A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE AUTOR Roberto Patrus Mundim Pena Endereço: Rua Arturo Toscanini, 83 30330-200 – Belo Horizonte - M G Tel. (031) 227-2114 INSTITUIÇÃO PUC -MG - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Av. Dom José, 500 30535-610 - Belo Horizonte- MG. Resumo: O texto mostra de modo participativo e didático como os alunos de graduação em Administração podem ser introduzidos na temática epistemológica da construção do conhecimento, da formação e superação de paradigmas. Utilizado como texto didático nas aulas de Filosofia para o Curso de Administração da PUC-MG, o texto discute o que é conhecimento, descreve como ele é construído e analisa o problema da verdade no conhecimento científico. O PROBLEMA DO CONHECIMENTO E A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE AUTOR Roberto Patrus Mundim Pena Graduado em Filosofa pela PUC-M G Graduado em Psicologia pela UFMG Mestrando em Administração – CEPEAD UFMG Endereço: Rua Arturo Toscanini, 83 30330-200 - Belo Horizonte - M G Tel. (031) 227-2114 INSTITUIÇÃO PUC-MG – PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS 1. INTRODUÇÃO As novas políticas de Administração têm provocado um grande debate sobre a questão dos, paradigmas. Fala-se em um novo paradigma no campo da Administração, com técnicas e procedimentos novos, corno a reengenharia, o Kanban, a Qualidade Total. Percebe-se, no entanto, entre os alunos de Administração, que falta-lhes algum base filosófica para melhor compreensão sobre o processo de construção do conhecimento. Em um momento em que a Filosofia toma-se disciplina obrigatória no currículo dos cursos de Administração, urge oferecer algum material bibliográfico que possibilite a compreensão do tema, de modo didático e acessível para alunos de Administração sem background filosófico. Exatamente nessa perspectiva que o presente trabalho foi desenvolvido pelo autor, professor de Filosofia nos cursos de Administração da PUC-MG, há cinco anos. Utilizado como leitura obrigatória para introdução à Filosofia da Ciência, o texto tem se mostrado útil também para compreender o problema do conhecimento nas disciplinas de Metodologia. Começamos por um problema didático, a fim de facilitar a exposição do nosso tema. Algumas perguntas são feitas diretamente ao leitor e é conveniente que elas sejam respondidas no momento em que são formuladas. O desenvolvimento de todo o trabalho reporta-se a este momento inicial. Em seguida, exploramos a noção de o que é conhecimento, analisamos a relação entre realidade construída e realidade ontológica e, finalmente. abordamos o conceito de paradigma suas vantagens e desvantagens. 2. PROBLEMA DIDÁTICO 1) Leia o texto abaixo atentamente: No nosso esforço para compreender a realidade, nossa situação lembra a de um homem tentando compreender o mecanismo de um relógio fechado. Ele vê o mostrador e os ponteiros em movimento, ouve o seu tique-taque, mas não tem meio algum de abrir a caixa. Se for engenhoso poderá formar a idéia de um mecanismo responsavel por tudo o que observa exteriormente, mas não poderá nunca ter a certeza absoluta de que o mecanismo que imagina seja o único capaz de explicar suas observações dos movimentos exteriores"( EINSTEIN, INFELD s. d ). 2) Suponha agora que um índio, que jamais conhecera a civilização dos brancos, encontre um relógio em um campo. Ele e sua tribo vivem da agricultura e da pesca, reverenciam o Sol e a Lua como deuses, mas nunca viram o que os brancos chamam de relógio. Como você imagina que o índio explicaria o movimento dos porteiros do relógio? Lembre-se de que ele não pode abrir o relógio para ver o seu mecanismo por dentro. 3) Agora, imagine que um astronauta, físico da NASA, tenha encontrado o relógio na superfície de Marte, na primeira expedição do homem àquele planeta, no ano de 2010. Como ele explicaria o movimento dos ponteiros do relógio? Lembre-se de que ele não pode abrir o relógio para ver o seu mecanismo interno. 4) Verifique, a partir das suas respostas anteriores, as questões propostas no quadro abaixo, respondendo SIM ou NÃO. PERGUNTA Houve a construção de um modelo que explicasse o funcionamento do relógio? As explicações correspondem ao universo cultural de cada personagem? Houve uma relação de analogia (comparação) entre aquilo que o personagem já conhecia e aquilo que ele queria conhecer? Índio Astronauta 5) Provavelmente as suas respostas à questão anterior são positivas. Caso você tenha respondido negativamente a alguma delas, volte às questões 2 e 3 e responda-as com base em seus enunciados, e no trecho do item 1. Quando todos os quadrinhos do Item 5 responderem SIM, poderemos dizer que o índio e o astronauta conheceram, cada um a seu modo o relógio fechado. 3. O QUE É CONHECIMENTO De modo simples, podemos definir conhecimento como a elaboração de um modelo de realidade (CYRINO, PENHA,1988). Por modelo, entendemos a construção intelectual baseada na crença de que existe uma relação de analogia entre aquilo que conhecemos e aquilo que desejamos conhecer (ALVES,1986). Com base no exercício, podemos afirmar que o índio construiu o modelo de funcionamento do relógio a partir de seu universo cultural, ou seja, sua observação do Sol, da Lua, sua concepção religiosa, seu trabalho. Do mesmo modo, o astronauta concebeu o funcionamento do relógio a part ir do seu conhecimento científico, embora não houvesse nada que lhe garantisse que o objeto não tenha sido criado por um "marciano". Como então ter certeza de que o conhecimento é verdadeiro? É o que veremos a seguir. 4. REALIDADE CONSTRUÍDA X REALIDADE ONTOLOGICA Segundo DEMO (1981), "um dos problemas mais cruciais da ciência é a sua coincidência com a realidade estudada". Sabemos que o conhecimento é uma relação entre o sujeito que conhece e o objeto observado. Consideramos a abordagem fenomenológica a mais apropriada para tratar a questão. Nesse sentido, distinguimos a coisa-em-si do fenômeno. A coisa-em-si é o objeto em seu ser, sua essência, inidependentemente de como o sujeito o perceba. O fenômeno, por sua vez, é a forma como o objeto aparece à consciência humana. Não podemos conhecer objetivamente a coisa-em-si. nós a conhecemos conforme ela aparece à nossa consciência. Só podemos conhecer, portanto o fenômeno, jamais o em-si. A verdade do conhecimento é a exata correspondência entre o que o sujeito enuncia sobre o objeto e o que o objeto é ern-si mesmo. Fenomenologicamente, podemos dizer que o conhecimento tem três caminhos: pode ser a verdade, que nunca poderemos afirmar com certeza absoluta; pode ser um caminho para a verdade; ou pode ser a negação da realidade. Como disse EINSTEIN & INFELD(s.d.), o cientista nunca poderá ter a certeza de que o mecanismo que imagina seja o único capaz de explicar suas observações dos movimentos exteriores. Conhecemos o relógio pelo seu tique-taque e pelo movimento dos seus porteiros. Não podemos abrir a caixa. Lá dentro está o em-si, que nos é inacessível. "O que há com os objetos em si e separados de toda essa receptividade da nossa sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido. Não conhecemos senão o nosso modo de percebê-lo (KANT,1991). Podemos concluir que a ciência "não passa de um modo possível de ver a realidade, nunca único e final (DEMO,1981). Ela é uma construção. A objetividade, o conhecimento exato. fidedigno da realidade, é apenas uma meta um ideal impossível de ser realizado. Nessa perspectiva, DEMO (1981) propõe a substituição do conceito de objetividade pelo de objetivação, que implica no "esforço controlado de conter a subjetividade dentro dos limites da suposta objetividade (deixar os fatos falar)", Mas como fica a questão de verdade na ciência? Para DEMO(1981), a questão da verdade será simplesmente a adequação relativa a uma demarcação científica histórica. Para ALVE.S (1986), a teoria científica é verdadeira quando funciona bem, isto é, quando resolve o problema que a originou. O autor nos conta um exemplo em que médicos dissecavam cadáveres e examinavam mulheres doentes para, logo em seguida, ir cuidar de pacientes sadias. Numa época em que nada se sabia sobre microrganismos, grande parte das mulheres contraía a febre puerperal e morria. Esses eram os dados, o visível. A caixa do mecanismo, no entanto, estava fechada. Já temos o problema. Restava criar o modelo, as hipóteses e testá-las. Ignac Semmelweis imaginou uma explicação: se é verdade que a doença é transmitida pela matéria putrefata que anda nas mãos dos médicos, pode-se deduzir que se suas mãos forem lavadas rigorosamente, a incidência da enfermidade deve cair. O teste deu certo! Isso quer dizer que o modelo foi considerado certo, embora hoje se saiba que não é a matéria putrefata que "passa" para as parturientes, disseminando a morte; são os microrganismos que decompõem a matéria os responsáveis pela transmissão No entanto a teoria foi considerada verdadeira porque funcionou. 5.O PARADIGMA Por paradigma, entendemos aquele conjunto de conhecimentos aceitos pela ciência, e tidos como verdades, que são transmitidos às novas gerações de cientistas através de manuais. O paradigma representa o que a comunidade científica alcançou até o momento. Embora possa ser substituído, de tempos em tempos, por outro, nunca pode ser facilmente abandonado. Recorrendo ao problema didático apontado no inicio deste texto, pode-se considerar paradigma o conhecimento a partir do qual se estabelece uma relação de analogia com o novo objeto que queremos conhecer. Os modelos do índio e do astronauta partiram de bases paradigmáticas diferentes. Note-se que não podemos considerar, no caso do índio, que se trate de um paradigma científico. O paradigma tem vantagens e desvantagens para a investigação científica. Quando a ciência adere a um paradigma, ele se impõe de maneira quase dogmática "Ao aceitar um paradigma, a comunidade científica adore toda ela, conscientemente ou não, à atitude de considerar que todos os problemas resolvidos o foram de fato, de uma vez para sempre"(KUHN,1989). Quando um cientista manipula as peças de seu quebra-cabeças e encontra resultados diferentes do esperado pelo paradigma, a tendência é considerar que o pesquisador fracassou ao colher os dados. Desse modo, o paradigma é conservador, ele não reconhece, a princípio, as inovações como novas eventuais descobertas, mas como falhas na habilidade do cientista. Por exemplo. se um biólogo colhe unia amostra de água da Lagoa da Pampulha para verificar a existência do transmissor da esquistossomose e, na sua análise ele detecta um microrganismo até então só encontrado no México, a primeira tendência é afirmar que ou a colheita foi mal feita ou a análise está errada. Caricaturizando, o cientista jogaria a água fora, voltaria à Lagoa e retiraria nova amostra. Essa é a principal crítica ao paradigma, que exige que o pesquisador tenha espírito crítico e mente aberta. Segundo KUHN (1989), "embora a atividade científica possa ter um espirito aberto, o cientista individual muito freqúentemente não o tem". Por outro lado, o paradigma tem vantagens. A adesão a ele é um elemento necessário à investigação. Antes de se estabelecer um paradigma, cada experimentador e forçado a construir o seu domínio de novo a partir da base, uma vez que o conjunto de convicções que ele podia tomar como certas em muito limitado. Assim, as investigações sobre o tema tendem a andar em circulo, voltando sempre ao mesmo ponto. Uma vez estabelecido o paradigma, as investigações recebem um novo impulso. O fim dos debates entre diferentes escolas põe fim à constante reavaliação dos fundamentos e encoraja os pesquisadores a se lançarem em trabalhos de maior envergadura. "Uma das grandes virtudes da adesão a paradigmas consiste em que ela liberta os cientistas para se ocuparem com os pequenos puzzles"(.KUHN, 1 989). Em suma, o paradigma é um resultado científico fundamental que inclui no mesmo tempo uma teoria e algumas aplicações tipo aos resultados das experiências e da observação. Esse resultado nunca é definitivo e deixa em aberto uma série de investigações a serem feitas. 6. CONCLUSÃO Procuramos demonstrar que a elaboração de um trabalho científico é uma construção feita pelo sujeito. Conhecemos somente o fenômeno, nunca o em-si. Por isso inventamos modelos sobre algum ramo do saber. Eles são aceitos pela comunidade cientifica e considerados verdadeiros Se o modelo não resiste aos testes e as novas descobertas, o paradigma é criticado e muito lentamente pode ser substituído, Essa vagareza na aceitação de um novo paradigma, ou melhor, à aceitação da crítica a ele se justifica porque a adesão ao paradigma envolve valores, interesses econômicos financeiros e ideológicos. Não tratamos da distinção entre as ciências sociais e humanas e as ciências naturais. controversa o exige tratamento cauteloso. A questão é Concluindo, consideramos que a reflexão filosófica sobre o conhecimento e a sua construção, embora não produza dados e resultados, muito contribui para que o pesquisador esteja consciente dos limites do seu trabalho e para que cultive seu espírito aberto as inovações e às eventuais "falhas" no exercício de sua atividade. 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS AI,VFS, RX.JB.FNS. Filosofia da ciência, introdução ao jogo e suas regras. 8.ed. São.Paulo: Brasiliense. 1986. CYRINO, Hélio, PENHA, Carlos. Filosofia hoje, 4. ed. Campinas - Papirus, 1988. DEMO, P. Metodologia científica em Ciências Sociais São Paulo: Atlas, 1981. EINSTEIN, A., INFELD, L. A evolução da Física. Trad. Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar. KANT, 1. C@ítica da razão Pura. Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores; 7). KUHN, T.S. A função do dogma na investigação científica ln:DEUS, J.O. (Org.) A crítica da ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. KUHN, T.S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1989.