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Compilado e editado por
Michael D. Palmer
Panorama
do pensamento
Cristão
Compilado e editado por Michael
D. Palmer
Prefácio de Russel P. Spittler
REIS BOOK’S DIGITAL
Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 para a língua portuguesa da
Casa Publicadora das Assembléias de Deus. Aprovado pelo Conselho de
Doutrina.
Título do original em inglês: Elements o f a Christian Worldview
Gospel Publishing House, Springfield, Missouri, USA
Primeira edição em inglês: 1998
Tradução: Luís Aron de Macedo
Preparação de originais: Jefferson Magno
Revisão: Alexandre Coelho e Kleber Cruz
Capa: Alexander Diniz
Projeto gráfico: Daniel Bonates
Editoração: Oséas Felício Maciel
CDD: Filosofia-201
ISBN: 85-263-0303-1
As citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Corrigida,
Edição de 1995, da Sociedade Bíblica do Brasil, salvo indicação em contrá­
rio.
Casa Publicadora das Assembléias de Deus
Caixa Postal 331
20001-970, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Ia edição/2001
Dedicatória
Para meus pais,
Don eThelm a Palmer,
que foram bem-sucedidos em me transmitir
a fé e sempre me incentivaram para que eu
buscasse a verdade,e para meu filho de 18
anos, Bradley Charley Palmer
que, na época de sua morte trágica ocorrida
em 22 de novembro de 1997,
já sabia profundamente muitos dos conceitos
centrais apresentados neste livro.
Sumário
Introdução / 7
Prefácio / 11
Agradecimentos / 13
Lista de Colaboradores / 15
1. Panorama do Pensamento Cristão / 1 7
Michael D. Palmer
2. O Rapei da Bíblia na Formação do Pensamento Cristão / 79
Edgar R. Lee
3. Vozes do Passado: Tentativas Históricas para Formar um
Pensamento Cristão / 109
Gregory J. Miller
4. O Cristão e a Ciência Natural / 149
Lawrence T. McHargue
5. Uma Perspectiva Sobre a Natureza Humana / 181
Billie Davis
6. Trabalho / 223
Miroslav Volf
7. Entrando no "Descanso Divino": Rumo a uma Visão Cris­
tã de Lazer / 247
Charles W. Nienkirchen
8. A Ética de Ser: Caráter, Comunidade, Práxis / 293
Cheryl Bridges Johns e Vardaman W. White
9. Música que Vem do Coração da Fé / 325
Johnathan David Horton
10. O Lugar da Literatura no Pensamento Cristão/ 351
Twíla Brown Edwards
11. Os Cristãos e a Cultura da Mídia de Entretenimento / 391
Terrence R. Lindvall e J. Matthew Mellon
12. Política para Cristãos (e Outros Pecadores) / 427
Dennis McNutt
Apêndice 1: Reflexões sobre os Significados da Verdade / 470
Michael D. Palmer
Apêndice 2: Jean-Paul Sartre / 487
Michael D. Palmer
Apêndice 3: Karl Marx / 489
Michael D. Palmer
Apêndice 4: A Música e o Espaço de Execução / 493
ELEMENTOS DE UMA COSMOVISÃO CRISTÃ
Johnathan David Horton
Apêndice 5: A Música e o Estilo de Adoração / 497
Johnathan David Horton
Apêndice 6: C . K. Chesterton no Poder dos Contos
de Fada / 502
Twila Brown Edwards
Apêndice 7: C. S. Lewis / 504
Twila Brown Edwards
Apêndice 8: Thomas FJobbes e a Teoria de Contrato
de Ju stiça /506
Michael D. Palmer
Apêndice 9: John Locke e a Teoria dos Direitos
Naturais / 509
Michael D. Palmer
Apêndice 10: Os D ireitos/ 512
Michael D. Palmer
Apêndice 11: A Justiça / 516
Michael D. Palmer
Introdução
Muitas palavras do vocabulário inglês (e também do portugu­
ês) vêm dos idiomas grego e latino. Palavras tão comuns quanto
agenda ou exit (saída) vêm diretamente do tempo dos autores clás­
sicos. Outras palavras, entretanto, entraram em nossa língua sem
serem percebidas, provenientes de alguma outra cultura. Khaki
(cáqui) é originária de um termo paquistanês. Bureau (agência,
repartição) é francês puro. Corridor (corredor), palio (pátio) e plaza
(praça) são termos espanhóis autênticos, e chocolate provém dire­
tamente do dialeto asteca.
Cosmovisão, a palavra que define o ponto central deste livro,
alcança a língua portuguesa como se também fosse um emigrante
linguístico. O idioma alemão tem uma grande propensão para pa­
lavras compostas. Só para dar um exemplo extremo, eis um termo
alemão para tanque m ilitar: Schutzengrabenzerstõrungsautomobil.
Pelas mesmas leis do idioma, este é um sinónimo: der Panzer. A
palavra “ cosmovisão” junta lado a lado duas palavras equivalen­
tes em português como tradução lite ra l do termo alemão
Weltanschauung — termo com longa e nobre herança filosófica.
Inventado por filósofos alemães, Weltanschauung descreve um
modo de ver o mundo. Alguém poderia supor que o mundo é uma
ilusão; que as coisas não são reais. Outros poderiam dizer, como
fazem os idealistas de todas os tempos, que existe mais coisas no
mundo do que se pode ver. Outros ainda poderiam concluir que o
mundo é inóspito e irremediável, levando ao desespero.
Em vez de aportuguesar Weltanschauung para a palavra “ cos­
movisão” , os linguistas teriam feito um favor aos povos de fala
portuguesa sendo um pouco menos com plicados. Trad u zir
Weltanschauung como “perspectiva” ou mesmo “ atitude” não te­
ria representado uma tradução longe do seu significado, a não ser
pelo fato de que o termo técnico alemão refere-se especificamente
à atitude da pessoa para com o mundo.
Que “mundo” ? A s vastas extensões do universo estrelado? O
pleno complemento das culturas humanas de nosso globo? Ou
possivelmente o “mundo” que entra em nosso vocabulário medi­
ante alguma pressão que alguém exerce de maneira incorreta e
forçada sobre a Escritura? Ao usar essa palavra, a tradição filosó­
fica alemã certamente tinha em mente o mundo material e o uni­
verso invisível, o mundo visível e as galáxias que o nosso intelec­
to é capaz de imaginar que existam. A noção que as pessoas têm
da realidade constitui a cosmovisão delas.
Até onde sei, não há palavra bíblica que possa equivaler à pa­
lavra “ cosmovisão” . Porém encontramos nas páginas das Escritu­
ras uma atitude normativa em relação ao mundo visível e in visí­
vel. A li existe - ainda que os teólogos não façam muita conta dis­
so - uma teologia do mundo.
A cosmologia é qualificada como um termo que descreve como
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
as pessoas pensam a respeito do mundo. Os astrónomos e cientis­
tas usam o termo para definir uma ciência do universo distante.
Os teólogos usam o mesmo termo para reunir doutrinas bíblicas
relacionadas com a origem e o destino do mundo visível — cha­
mado em grego (inclusive o grego do Novo Testamento) de cos­
mo. (O termo “ cosmético” obteve sua qualidade de beleza prove­
niente da admiração grega da simetria deslumbrante dos céus.)
A outra palavra importante no Novo Testamento grego traduzida
por “mundo” vai numa direção diferente. Oikoumenê descreve a
soma total das culturas humanas. Considerando que esta palavra
primeiro definia uma casa de fam ília, é fácil entender como veio
significar sociedade organizada, levando, por um lado, à palavra
“economia” e, por outro, à palavra “ ecuménico” . Assim , as pala­
vras bíblicas usadas para descrever o mundo foram tomadas de
outros significados comuns. Mas neste livro só nos preocupare­
mos em falar sobre uma teologia do mundo.
Detectei no Novo Testamento um uso duplo da idéia de mundo
e como os cristãos deveriam vê-lo. Há uma visão joanina do mun­
do — um sistema organizado de oposição humana, demoníaca até,
e que peca contra Deus. Deste ponto de vista, segundo um grupo
de passagens do Evangelho de João, das Epístolas de João e do
Apocalipse, os verdadeiros crentes são aconselhados a “evitar o
mundo” — o que pode ser chamado de “este mundo mal” , um
setor da sociedade que acha-se em oposição à Igreja. Este é o
mundo a evitar, a afastar-se, e sua existência torna necessária a
nossa santidade (separação do mundo).
O outro elemento da idéia de mundo na Escritura é paulino. A
visão de Paulo do mundo é mais sanguínea do que a de João. Essa
diferença pode refletir as diferentes experiências de suas respecti­
vas vidas. Tradicionalmente, João foi considerado um pescador
rural; Paulo, como cidadão de Roma, um sofisticado e frequente
viajante. Há, portanto, contrastes distintos nas atitudes de João e
de Paulo em relação ao mundo. Nutridos pelas Escrituras judai­
cas, ambos vêem Deus como o Criador de tudo o que há. Ambos
encaram Deus como estando no controle de todos os aconteci­
mentos humanos. Ambos sabem que o sistema mundial presente é
passageiro, que logo passará. Ambos, junto com Pedro, esperam
um novo céu e uma nova terra.
Porém, a diferença entre os dois jaz na opinião sobre o que fazer
no campo da cultura humana neste tempo presente. João mal conse­
gue achar alguma coisa boa no atual mundo de pessoas e coisas. Por
outro lado, Paulo eleva sua retórica majestosa em louvor do controle
de Deus sobre todo empreendimento humano, o que ele vê como
reflexos manchados, mas autênticos, da imagem de Deus residente
em toda pessoa e, por conseguinte, em toda cultura humana.
Claro que tanto João quanto Paulo levam em conta o pecado
para fazerem a análise fundamentalmente correta da condição hu­
mana falha. Ambos olham para as metáforas da transformação di-
vina da biologia — novo nascimento, segundo nascimento, vinhas
e podas, vida etema e coisa parecida. Paulo, treinado como advo­
gado, prefere a linguagem judicial — culpa, julgamento, adoção,
justificação, absolvição.
Os cristãos pensantes podem obter ajuda de Paulo e João. As
maquinações da humanidade caída realmente agrupam-se nos
bolsões da cultura humana — pornografia, leis injustas, trapaças
sistemáticas nos negócios ou na educação, para nomear apenas
algumas. Os cristãos de tradições arminianas, que ressaltam a li­
berdade humana, parecem inclinar-se às obscuras visões do mun­
do como algo a evitar, um reino do qual se separar. Tais idéias
vagas foram teologizadas especialmente nos setores metodista,
holiness e pentecostal da Igreja.
Porém, noções igualmente bíblicas sobre a cultura humana
emergem dos escritos do apóstolo Paulo e aparecem em partes da
Igreja afetada pela tradição reformada. Por exemplo, considere
esta afirmação feita por Paulo num contexto de aconselhamento
dado aos cristãos coríntios que se limitavam aos embaixadores
favorecidos da verdade cristã: “ Tudo é vosso: seja Paulo, seja
Apoio, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, seja o
presente, seja o futuro, tudo é vosso, e vós, de Cristo, e Cristo, de
Deus” (1 Coríntios 3.21-23).
“Tudo é vosso” , a herança dos cristãos. Tudo da cultura huma­
na: toda arte, toda música, todos os atos heróicos da abnegação,
toda nobreza, toda compaixão. Nada foi omitido. Tudo pertence
ao cristão. Os heróis da fé. O violinista mestre. Os fabricantes de
filigrana de prata pura. O evangelista eloquente. Corrie ten Boom.
Albert Einstein. Os bosques de tigre. Paulo, Apoio e Cefas: O Se­
nhor não pretendeu que ninguém limitasse a receptividade a qual­
quer uma das criaturas de Deus. Tudo é vosso: todas as pessoas,
até todas as coisas.
O editor dos capítulos deste livro, e os próprios autores, forne­
cem aqui recursos repletos de reflexão para que por meio deles
possa ser construída uma cosmovisão de amplitude que mescle
Paulo e João. Estas palavras sábias ajudarão seguidores pensati­
vos de Jesus a saber o que evitar no mundo, do que se afastar. Mas
também serão de ajuda na avaliação de tudo o que é bom na cultu­
ra humana, e na consideração das reflexões coletadas das mais
altas criaturas do Senhor que, embora manchadas e sozinhas entre
todos os seres viventes, encarnam a imagem de Deus.
Recomendo este livro aos cristãos pensativos de todos os
lugares, e especialmente aos adultos jovens que estão come­
çando a aprender a considerar a imensidão e diversidade do
mundo de Deus.
— Russel P. Slittler
Reitor e Professor do Novo Testamento
no Fuller Theological Seminary
Prefácio do Editor
O prefácio é frequentemente a parte menos lida de um livro.
Espero que este seja uma exceção, porque o objetivo deste livro e
as preocupações filosóficas que o inspiraram estão explicadas aqui.
Conforme o título dá a entender, este livro considera certos
componentes ou fatores — elementos, como os chamo — que cons­
tituem uma cosmovisão. E um livro escrito por estudiosos cristãos
destinado a cristãos que buscam respostas claras e sólidas às ques­
tões fundamentais que estão a confrontá-los nos inúmeros aspec­
tos da vida. Mais particularmente, foi escrito para todos os cris­
tãos que se sentem intensam ente confrontados por esses
questionamentos. Alguns capítulos alicerçam-se em algumas dis­
ciplinas académicas. Outros tratam de assuntos cotidianos da vida.
E outros, ainda, concentram-se em fenómenos culturais.
Enquanto medito na distribuição dos capítulos e as ligações
entre eles, a palavra mais descritiva que me vem à mente é monta­
gem: quadros separados foram combinados para formar um qua­
dro composto. Embora os capítulos sejam unidos uns aos outros
de vários modos, cada um pode ser lido independentemente.
Conseqiientemente, o leitor procurará em vão por um único e
contínuo argumento do princípio ao fim . Não se trata desse tipo
de livro. Não obstante, ele exibe periodicamente certo tema recor­
rente: a integração da fé, da aprendizagem e da vida. Integrar é
coordenar ou misturar informações, fatos e conclusões num todo
funcional e unificado. Integrar a fé, a aprendizagem e a vida signi­
fica desenvolver para nós mesmo um modo completamente cris­
tão de pensar e responder a assuntos e todos os tipos de situações
da vida. Significa desenvolver uma perspectiva distintamente cristã
em todos os assuntos da fé, todos os modos de investigação e to­
das as profundas questões que a vida levanta.
A integração em sua expressão mais rica — pensar e agir de
modo completamente cristão — não é nem facilmente alcançada,
nem alcançada de uma vez por todas. De fato, é melhor não pen­
sar nela como uma realização, absolutamente. E la é na verdade
mais um processo que continua ao longo da vida à medida que
refletimos no significado de nossa fé e intentamos permitir que
isso molde nossas respostas a novas idéias e experiências.
Infelizmente, o que vemos com mais frequência que integração
é alguma forma de justaposição. Justapor duas coisas é pô-las uma
ao lado da outra. A interação entre elas pode ser real de certa ma­
neira, mas o âmbito da interação total está limitado, e as duas nun­
ca estão verdadeiramente unidas. O estudante de psicologia estará
tão-somente justapondo sua fé e seu curso universitário se não
pensar cuidadosamente sobre como suas convicções cristãs relacionam-se com as teorias da personalidade que ele está estudando
em sala de aula. O jovem gerente empresarial está meramente jus­
tapondo sua fé e sua profissão, se ele não permite que as im plica­
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
ções morais do seu sistema cristão de convicção influenciem sua
política de administração.
Em geral, justapomos (ou colocamos lado a lado) nossa fé e
nosso curso universitário, ou nossa fé e nossa profissão, ou nossa
fé e qualquer outro aspecto de nossa vida.
Quando falamos da fé fazendo evidente diferença sobre como
pensamos e nos expressamos, queremos dizer mais que simples­
mente poder declarar nossas convicções clara e sucintamente. A
doutrinação pode alcançar esses resultados. Mas integração e dou­
trinação não são a mesma coisa. A doutrinação busca a aceitação
inquestionável de respostas desenvolvidas por outra pessoa, nor­
malmente uma figura de autoridade, enquanto que a integração
requer que descubramos para nós mesmos, mesmo que alguém
nos ajude no processo. A integração, mesmo quando d ifícil e do­
lorosa, promove a fé madura.
Com estas distinções em mente, apresso-me em observar que
este livro é uma tentativa deliberada de dirigir-se àqueles a quem a
doutrinação não é uma resposta aceitável para as grandes (e d ifí­
ceis) questões da vida. E um livro que explora idéias, conceitos e
princípios, alguns dos quais controversos e todos resistentes a res­
postas fáceis. Presume uma medida de maturidade por parte do
leitor. Além disso, pressupõe e encoraja uma abordagem integra­
da aos assuntos de que trata.
O primeiro capítulo apresenta os elementos básicos de qual­
quer cosmovisão. São, segundo minha concepção: 1) ideologia,
2) narrativa, 3) normas morais e estéticas, 4) rituais, 5) experiên­
cia e 6) o elemento social. O restante dos capítulos lida, de uma
maneira ou de outra, com aqueles seis elementos enquanto os ve­
mos desenvolvidos numa cosmovisão cristã. Em cada caso, os
autores dos capítulos se esforçaram por fornecer mais que infor­
mação sobre suas respectivas disciplinas e campos de habilidade.
Eles procuraram modelar o que significa pensar cristãmente —
para verdadeiramente integrar a fé, a aprendizagem e a vida. É
minha esperança que as palavras deles venham a servir de estímu­
lo a muitos cristãos, para que vivenciem o significado de sua fé
em cada aspecto de suas vidas.
— Michael D. Palmer
Professor de Filosofia
Evangel University
Agradecimentos
Os autores em geral isentam todas as pessoas que os ajudaram
da responsabilidade por quaisquer erros ou deficiências no texto.
Porém, mesmo que os erros e as deficiências sejam meus, o crédi­
to deles pertence a muitos amigos e colegas. Todos somos produ­
tos do que as outras pessoas nos ajudaram a ser. Com relação a
este livro, muitas pessoas ajudaram no processo — desde a for­
mação da idéia in icial até a criação do produto final — e desejo
reconhecer minha considerável dívida para com eles.
A junta diretora editorial da Logion Press merece crédito pela
confiança depositada em mim para empreender este projeto, e pela
paciência e apoio no processo. David Bundrick, presidente da junta
quando este livro foi proposto pela primeira vez, trabalhou com
afinco para assegurar que o projeto tivesse um bom começo. Dayton
Kingsriter, que sucedeu Bundrick como presidente da junta dire­
tora editorial, dedicou muitas horas a este trabalho. Agradeço-lhe
pelo empenho como facilitador. Jean Lawson, editor administrati­
vo, e Glen Ellard , editor de publicações, foram de grande auxílio,
agradáveis e profissionais em todos os sentidos. Sou grato a Leta
Sapp pelo design do lay-out e texto. Kim Kelley fez excelente
trabalho coordenando o lay-out e design do livro. Desejo expres­
sar agradecimento especial ao Dr. Stanley Horton, editor geral,
pela atenção cuidadosa que deu aos vários desenhos de cada capítulo.
Além do mais, desejo agradecer-lhe pelo apoio moral e paciência que
me estendeu durante o desenvolvimento do livro. Acabei tendo pro­
fundo afeto por ele como pessoa e considerável respeito por sua habi­
lidade como editor. Trata-se de um homem em quem não há dolo —
um cavalheiro no mais verdadeiro sentido da palavra — e considero
um privilégio ter trabalhado com ele.
Que prazer foi trabalhar com os autores colaboradores! Seus
escritos estimularam meu pensamento além de qualquer coisa que
eu tivesse imaginado no início.
Localmente, a Evangel University tem sido um lugar maravi­
lhoso para eu amadurecer como estudioso desde que cheguei no
campus em 1985. Desde os primórdios deste projeto, o Dr. Glenn
H . Bemet Jr., Vice-presidente para Assuntos Académicos, deu
encorajamento para o projeto — e dinheiro! Ele tem sido o principal
responsável por eu haver recebido subsídio do Fundo para Projetos
dos Alunos/Faculdade da universidade que subscreveu as várias des­
pesas associadas com o desenvolvimento do livro.
Muitos estudantes na Evangel University também contribuí­
ram para a qualidade global deste livro . Durante duas sessões de
verão (1996 e 1997), os estudantes de um curso de educação geral
intitulado Filosofia Cristã leram as primeiras versões de alguns
dos capítulos que aparecem aqui e fizeram comentários proveito­
sos. Estou satisfeito por terem levado a sério meu convite para
fazerem um comentário sobre todos os aspectos do manuscrito.
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
Estou em débito com vários colegas que leram e teceram co­
mentários sobre certos capítulos. Larry Dissmore, do Departamento
de Música, fez comentários sobre o capítulo de música. Turner
Collins, do Departamento de Ciência e Tecnologia, propôs nume­
rosos comentários úteis no capítulo de ciência. Eu mesmo não
poderia ter escrito meu principal capítulo sobre cosmovisão sem a
ajuda generosa de Tw ila Edwards (Estudos Bíb lico s) e James
Edwards (Humanidades). Quando em certo ponto no desenvolvi­
mento do capítulo cheguei a um impasse, eles dedicaram quase
um fim de semana inteiro lendo o manuscrito e discutindo comigo
numerosos assuntos organizacionais e substantivos.
Michael Buesking, do Departamento de Humanidades, produ­
ziu virtualmente todos os trabalhos de arte no texto. Os esbo­
ços do seu lápis me são fonte contínua de satisfação e orgulho.
Sinto-me honrado por seus nomes aparecerem neste livro. Stan
Maples, do Departamento de Humanidades, projetou a capa para
o livro. Agradeço a Stan por sua paciência em ouvir minhas idéi­
as para o design da capa e reconheço sua considerável habilidade
em transformar minhas idéias imprecisas em imagens que pren­
dem a atenção.
Aos meus colegas do Departamento de Estudos Bíblicos e F i­
losofia, que me incentivaram para que eu empreendesse este pro­
jeto e que me proporcionaram ajuda ao longo dele, expresso meus
agradecimentos. Gary Liddle, cujas funções pedagógicas habitu­
ais encontram-se nos estudos bíblicos, mas que é na verdade um
generalista ao estilo renascentista, é o herói não aclamado por trás
deste livro. Ele crê nos conceitos, entende-os de certa maneira
melhor do que eu e, portanto, suas palavras tiveram peso especial
nas conjunturas cruciais ao longo do caminho. Ele ofereceu análi­
se extensa sobre vários capítulos. Suas perguntas eram investiga­
doras e seus comentários muito prestimosos.
M inha esposa, C onnie M arie , fo i e tem sido m inha
incentivadora e minha companheira favorita— no desenvolvimen­
to deste livro, como em tudo o mais, sine qua non.
— M . D. P.
Lista de Colaboradores
Billie Davis, Ed.D. (Administração & Sociologia, University of
Miami, Flórida), é Professor Emérito e ex-Cátedra do Departamento de
Ciências Behavioristas da Evangel University, em Springfield, Missouri.
Twila Edwards, M.A. (Literatura Inglesa, Southwest M issouri
State U niversity), M A. (Literatura B íb lica, Assemblies of God
Theological Seminary), é Professora Associada de Estudos B íb li­
cos na Evangel University, em Springfield, M issouri.
Johnathan David Horton, Ph.D. (M úsica, George Peabody
College for Teachers), é Professor de M úsica na Lee University,
em Cleveland, Tennessee.
Cheryl Bridges Johns, Ph.D. (Educação C ristã, Southern
B ap tist Theo lo g ical Sem inary), é Professor A ssociado de
Discipulado e Formação Cristã no Church of God Theological
Seminary, em Cleveland, Tennessee.
Edgar R. Lee, S.T.D. (Teologia, Em ory U niversity), é Vicepresidente para Assuntos Académicos no Assem blies o f God
Theological Seminary, em Springfield, M issouri.
Terrence Lindvall, M.Div. (Fu ller Theological Sem inary),
Ph.D. (Comunicação, University of Southern Califórnia), é Pro­
fessor de Cinema e Estudos de Comunicação na Regent University,
em Virginia Beach, Virgínia.
Lawrence T. McHargue, Ph.D. (B io lo g ia, U niversity of
Califórnia, Irvine), é Professor de Biologia na Southern Califórnia
College, em Costa Mesa, Califórnia.
Dennis McNutt, Ph.D. (Governo, Claremont Graduate School),
é Professor de História e Ciências Políticas na Southern Califórnia
College, em Costa Mesa, Califórnia.
J. Matthew Melton, Ph.D. (Regent U niversity), é Cátedra de
Comunicação e Letras na Lee University, em Cleveland, Tennessee.
Gregory J. Miller, Ph.D. (Estudos Religiosos — História do
Cristianismo, Boston University), é Professor Associado de H is­
tó ria E c le siá stic a no V a lle y Forge C h ristian C o lleg e, em
Phoenixville, Pensilvânia.
C harles W. N ienkirchen, Ph.D. (H istó ria , W aterloo
U niversity), é Professor de História Cristã e Espiritualidade no
Rocky Mountain College em Calgary, Alberta, Canadá. Ele tam­
bém serve como Professor Adjunto em faculdades de graduação
de diversos seminários canadenses.
Michael D. Palmer, Ph.D. (Filosofia, Marquette University), é
Professor de Filosofia e Cátedra do Departamento de Estudos B íb li­
cos e Filosofia na Evangel University, em Springfield, Missouri.
Miroslav Volf, Th.D. (Teologia Sistemática, Eberhard-Karls
Universitát, Túbingen), é Professor em Teologia do Henry B .
Wright na Yale University, em New Haven, Connecticut.
Vardaman W. White, candidato a Ph.D. (Teologia e Ética,
University of Iowa), vive e trabalha em Atlanta, Geórgia.
1
Panorama do
pensamento
Cristão
Michael D. Palmer
18
MICHAEL D. PALMER
ão é frequente ler um livro que me surpreenda, muito me­
nos um que cause em mim uma impressão impactante. Mas
fiquei surpreso e impressionado com o romance de Chiam
Potok, The Chosen (O Escolhido). No início do romance, Reuven,
o narrador, confessa: “Durante os primeiros quinze anos de nos­
sas vidas, Danny e eu morávamos a cinco quarteirões um do outro
e nenhum de nós sabia da existência do outro” .1Minha infância e
primeiros anos de adulto foram passados numa cidade de tama­
nho médio nas montanhas do Estado de Montana ocidental, Esta­
dos Unidos, onde eu conhecia todos os vizinhos de vários quartei­
rões em todas as direções. Assim , quando essa observação no li­
vro de Potok, minha imaginação foi instigada. Descobri, enquan­
to lia, que Reuven e Danny estavam impedidos de ser amigos,
porque seus amigos mais chegados, fam ília e especialmente seus
pais, tinham adotado cosmovisões competidoras. Observar a coli­
são destas cosmovisões impressionou minha imaginação e mar­
cou um ponto crucial em minha reflexão sobre as principais for­
ças da convicção e do sentimento que animam minha própria cosmovisão cristã.
N
Dois Meninos, Dois Mundos
Reuven Malter e Danny Saunders eram meninos judeus que
cresceram nos anos de 1940, em um bairro densamente povoado
do Brooklyn. Até os anos da adolescência, não sabiam nada um
do outro porque pertenciam a seitas diferentes, ou da mesma ra­
mificação do judaísmo, com marcantes diferenças na cosmovisão.
A fam ília e amigos de Danny eram judeus hassídicos, profunda­
mente conservadores com origens na Rússia. Em sua vida cotidiana, comunicavam-se em iídiche e observavam certas práticas cul­
turais que inequivocamente os identificavam como hassidim.
Por exemplo, os homens usavam chapéus pretos e casacos pre­
tos longos, e cultivavam barbas fartas e cachos de cabelo pegados
aos lados do rosto; os meninos usavam cachos de cabelo pegados
O hassidismo é um movimento judaico
fundado na Polónia no século X V III por
um homem chamado B aal Shem Tov. O
nome “ hassid ism o” d eriva da p alavra
hassidim , que significa “ os piedosos” . O
movimento hassídico surgiu como reação
às perseguições e ao formalismo académi­
co do judaísmo rabínico. Desde seu início,
incentiva a expressão religiosa jo vial por
meio da música e da dança, e ensina que a
pureza de coração é mais agradável a Deus
do que a aprendizagem . Em 1781, os
talm udistas declararam herético o
hassidism o. Não obstante, o movimento
continuou crescendo e hoje é uma presen­
ça forte e vital na vida judaica.
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
19
aos lados do rosto e tinham franjas no lado de fora de suas calças
compridas. A fam ília e amigos de Reuven, ao contrário, pratica­
vam uma ortodoxia judaica menos conservadora. Em sua vida
cotidiana comunicavam-se principalmente em inglês, usavam rou-
O iídiche é um idioma do alto alemão escri­
to em caracteres hebraicos que se desenvolveu
durante a Idade Média. A palavra “iídiche” é a
forma abreviada de iídiche daytsh, que signifi­
ca literalmente “judeu-alemão” . Os linguistas
classificam o idioma como membro do grupo
germânico ocidental, da subfamília germânica
pertencente à família indo-européia de idiomas.
Antes do aniquilamento de 6 milhões dejudeus
pelos nazistas durante a década de 1940, o iídiche
era a língua de mais de 11 milhões de pessoas.
Embora não seja uma língua nacional, hoje o
iídiche é falado no mundo inteiro por mais de 4
milhões de judeus, especialmente nos Estados
Unidos, Israel, Argentina, Canadá, França, Mé­
xico, Rússia, Ucrânia e Roménia.
pa americana comum e não tinham barba ou cachos de cabelo ao
lado do rosto. Enquanto tanto os Maiter e os Saunders ansiavam
pelo retorno dos judeus à sua pátria, suas ideologias ditavam ca­
minhos muito diferentes para que isso acontecesse. O pai de Danny,
o rabino Saunders, como outros na comunidade hassídica, asseve­
rava que os judeus só poderiam voltar à sua pátria depois da che­
gada do seu tão esperado Messias.
O pai de Reuven, por outro lado, juntava-se ao sionismo, um
movimento ideológico que lutava para estabelecer o Estado de
Israel. Além de diferirem sobre assuntos políticos importantes, os
Saunders e os Maiter divergiam nas atividades cotidianas, como o
*7oná
Torá quer dizer “ ensinos” ou “ apren­
dizagem” . Os judeus usam a palavra de
duas maneiras relacionadas, mas distin­
tas. Prim eiro, Torá é o nome hebraico para
o Pentateuco, os cinco primeiros livros da
B íb lia. A Torá, ou Le i Escrita, que os ju ­
deus ortodoxos acreditam que foi revela­
da diretam ente por Deus a M oisés no
monte S in a i, estabelecia certas le is da
moral e comportamento físico . Segundo,
o nome Torá é usado num sentido mais
amplo para re­
ferir-se a todos
os ensinos do
ju d a ísm o , in ­
c lu s iv e toda a
escritura hebrai­
ca, o Talmude e
qualquer outra
in te rp re t a ç ã o
rab ín ica g eral­
mente aceitada.
20
MICHAEL D. PALMER
entretenimento. Danny e Reuven nunca teriam se encontrado em
um teatro, porque a cosmovisão do rabino Saunders proibia assis­
tir film es.
Tanto o ramo hassídico de Danny quanto o ramo ortodoxo de
Reuven acreditavam em Deus e ressaltavam a importância da Torá.
Não obstante, os hassidim viam o povo de Reuven com suspeita.
Eles os chamavam de apikorsim, termo de zombaria usado para
referir-se aos judeus que abandonavam as práticas culturais tradi­
cionais e negavam certas doutrinas básicas da fé judaica, como a
existência de Deus, sua revelação e a ressurreição dos mortos.
Também dizia respeito aos judeus que liam a Torá em hebraico e
não em Iídiche, um pecado imperdoável aos olhos dos hassidim,
porque o hebraico era a língua santa. Usá-la em discurso comum
de sala de aula era considerado uma profanação do nome de Deus.
Claro que o povo de Reuven não negava a existência de Deus.
Porém, sua educação diferia de maneira notável da educação das
crianças hassídicas. Enquanto a cosmovisão hassídica restringia a
educação principalmente aos assuntos religiosos aprovados, a cos­
movisão ortodoxa acrescentava à religião tais estudos como ciên­
cia moderna e psicologia, tópicos profundamente suspeitos para o
rabino Saunders.
No princípio da década de 1940, com o país completamente
comprometido com os esforços da guerra, alguns professores de
inglês nas escolas paroquiais judaicas (yeshiva) sentiram a neces­
sidade de fazer uma declaração ao “mundo gentio” . Eles queriam
mostrar que os estudantes yeshiva, conhecidos por seu estilo de
*7atwtude
í
A palavra Ta/mude quer dizer literalmente
“ aprendizagem” ou “ instrução” . No judaísmo,
é o nome de uma obra composta de duas par­
tes: A Lei Oral judaica e os comentários
rabínicos de acompanhamento. O texto da Lei
Oral (escrito em hebraico) é chamado Mishná;
o texto dos comentários rabínicos de acompa-
nhamento (escrito em aramaico) é chamado
Gemara. A Gemara desenvolveu-se das inter­
pretações da Mishná feitas por estudiosos ju ­
deus (fariseus de c. 200 a.C. a c. 500 d .C .),
cujos argumentos excessivamente minuciosos
tornaram a obra fonte valiosa de informação
suplementar e comentário.
vida repleto de estudos, eram fisicamente capazes como qualquer
outro. Para fazerem isso, organizaram as escolas de bairro numa
liga de softball, forma modificada de beisebol jogado com bola
mais macia e maior. Como era de se esperar, os rabinos que ensi­
navam nas yeshivas encararam o beisebol com ceticismo. Para
eles, era um nocivo desperdício de tempo. Eles temiam seu forte
apelo, temiam que seduziria os jovens a abandonar sua identidade
judaica, temiam que faria com que os jovens quisessem assim ilar
as idéias e cultura americanas. Mas os jovens resolveram adotar o
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
jogo e enfrentar o preconceito de serem americanos. Para eles,
uma vitória no beisebol entre as ligas “representou somente um
valor menos significativo do que uma nota alta no Talmude” . O
sucesso no beisebol permitiu-lhes considerar-se a si mesmos par­
ticipantes plenos na vida da nação: “Foi uma inquestionável mar­
ca do americanismo, e ser considerado um americano leal tinha se
tomado cada vez mais importante para nós durante esses últimos
dias da guerra” .2
Danny e Reuven encontraram-se pela primeira vez durante uma
competição de beisebol entre suas duas escolas. Durante o jogo, o
olho de Reuven ficou seriamente ferido, quando foi atingido por
uma bola batida por Danny. A interação dos rapazes, inclusive sua
consequente amizade depois do acidente, fornece base concreta
para considerar o que significa manter uma cosmovisão. Também
proporciona modelo proveitoso para refletir cuidadosamente e com
precisão nas principais linhas de uma cosmovisão cristã. Na ver­
dade, a história destes rapazes judeus merece consideração, por
causa das importantes questões que evoca, pois são as mesmas
que os cristãos enfrentam hoje: perguntas sobre Deus, sobre nós
mesmos, sobre nossa comunidade, sobre o que podemos esperar,
sobre o que temos de fazer.
Nas páginas que se seguem, exploraremos o que significa ter
uma cosmovisão em geral, e em particular o que significa ter uma
cosmovisão cristã. Quando tivermos terminado, disporemos de
(como Danny e Reuven) uma avaliação profunda das questões e
um melhor entendimento de como nossa cosmovisão pode perma­
necer unida.
O que É uma Cosmovisão?
Como definição in icial de nosso tópico, podemos dizer que
uma cosmovisão é um conjunto de crenças que a pessoa mantém.
Contudo, nem todo conjunto de crenças forma uma cosmovisão.
Alguns desses conjuntos são meramente coleções fortuitas ou sor­
timentos estranhos de crenças. Ao olhar os livros numa estante em
meu gabinete de estudos, identifico um chamado Triviata. Seu
subtítulo descreve-o como Um Compêndio de Informações Inú­
teis. Um amigo me deu o livro como uma brincadeira. As declara­
ções desconexas dos fatos que ele contém seguramente não cons­
tituem uma cosmovisão. As convicções numa cosmovisão perma­
necem unidas, de certo modo coesas. Em vez de ser uma lista de
idéias desconexas (um compêndio de informações inúteis, por as­
sim dizer), estas crenças ajustam-se umas às outras de modo uni­
ficado e formam um todo. Neste ponto, ninguém poderia encon­
trar contraste mais forte do que entre a Triviata e o Talmude.
Na tradição judaica, o Talmude representa um esforço ao lon­
go dos séculos feito por muitos comentaristas rabínicos para che­
gar a uma interpretação unificada da L e i Oral judaica. Mesmo
22
MICHAEL D. PALMER
quando os rabinos diferem em suas interpretações da Le i Oral,
eles continuam se empenhando na busca de uma interpretação
unificada que não contenha nenhuma contradição.
No mínimo, uma cosmovisão é um conjunto de crenças que
são consistentes entre si e que formam um ponto de vista unifica­
do. Mas até esta descrição não é adequada. Por exemplo, um con­
junto de crenças sobre geometria, outro sobre o equilíbrio do or­
çamento nacional e outro sobre a navegação numa grande rede de
computadores como a Internet podem exibir consistência e unida­
de de perspectiva, mas nenhum destes conjuntos de crenças cons­
titui uma cosmovisão. Isto é assim por pelo menos duas razões.
Prim eiro, embora consistentes e unificados em seu ponto de
vista, são bastante estreitos em seu enfoque e lidam principalmen­
te com assuntos técnicos. Ao contrário, as crenças centrais de uma
cosmovisão abordam interesses centrais ao significado da vida hu­
mana. Segundo, as crenças sobre geometria, a
dívida interna ou a Internet têm poucas cone­
xões diretas para as outras coisas em que acre­
Uma cosmovisão é um conjunto de
ditamos ou fazemos. O geômetra não tem de
crenças e práticas que moldam o
aplicar seu conhecimento para construir casas;
uma teoria sobre o equilíbrio orçamentário na­
envolvimento da pessoa nos assuntos
cional pode muito bem nunca ver a luz do dia
mais importantes da vida.
além da porta do economista que a desenvol­
veu; saber como navegar na Internet não diz
nada sobre que tipo de informação a pessoa
deve procurar ou compartilhar.
Ao contrário, as crenças centrais de uma cosmovisão têm im­
plicações importantes para muitas outras crenças e práticas na vida
diária. Na comunidade hassídica de Danny, por exemplo, crer em
Deus afetou profundamente todas as outras crenças e práticas. Se­
melhantemente, porque acreditavam que a Torá era a lei de Deus,
os hassidim também acreditavam que deveriam reunir-se regular­
mente na sinagoga para oração e estudo. Além disso, expressaram
sua fé e lealdade comunitária por meio de seus rituais (ritos de
passagem, como o bar mitzvah para os meninos), as roupas (cha­
péus pretos e casacos pretos longos), aparência externa (barbas
fartas e cachos de cabelo pegados aos lados do rosto) e práticas
tradicionais (matrimónios arranjados pelos pais). Em resumo, as
crenças centrais de uma cosmovisão não são estreitas em seu foco,
mas tocam quase todas as outras crenças e práticas daqueles que
mantêm-se fiéis à cosmovisão.
As questões enfrentadas por pessoas como Danny e Reuven na
tradição judaica e por pessoas pensativas na tradição cristã são
realmente questões sobre nossas crenças e práticas mais básicas.
Quer estejamos cientes disso ou não, nossas crenças centrais e
práticas formam um ponto de vista ou perspectiva que é distinta­
mente nosso. Esta perspectiva distintiva constitui nossa cosmovi­
são-, nossas várias crenças centrais e práticas são os elementos dessa
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
cosmovisão. Uma cosmovisão é um conjunto de crenças e práti­
cas que moldam a abordagem da pessoa aos assuntos mais impor­
tantes da vida. Por meio de nossa cosmovisão, determinamos pri­
oridades, explicamos nossa relação com Deus e com os seres hu­
manos, avaliamos o significado dos acontecimentos e ju stifica­
mos nossas ações.
Nossa cosmovisão também influencia as práticas mais comuns
da vida cotidiana, inclusive os tipos de coisas que lemos e vemos,
os tipos de entretenimento e atividades de lazer que buscamos,
nossa abordagem ao trabalho e muito mais.
Quem Tem uma Cosmovisão?
Qualquer pessoa capaz de considerar esse assunto tem uma
cosmovisão. O modo como falamos e agimos dá evidência que
temos uma cosmovisão. Isto mostra que mantemos certas crenças,
que adotamos determinado conjunto de prioridades, que certas
histórias nos impressionam como particularmente eficazes e pro­
váveis de mexer conosco, e que certas práticas e situações sociais
têm importância especial para nós.
Claro que não é verdade que todas as pessoas que têm uma
cosmovisão a possuem precisamente da mesma maneira. A cos­
movisão de algumas pessoas só existe no sentido de que herdaram
um conjunto de crenças e práticas de sua fam ília e comunidade
imediata. Elas não entendem suas crenças e não alcançam o signi­
ficado maior de suas ações. Acreditam e agem __________________
de forma não crítica e ingénua em vez de um
modo auto-reflexivo. Na grande maioria das
Quem tem uma cosmovisão?
vezes explicarão por que acreditam ou fazem
Todas as pessoas capazes de
algo, referindo-se às tradições da fam ília, aos
considerar esse assunto.
padrões da igreja ou à afiliação partidária po­
lítica. Em resumo, elas só têm uma cosmovi­
são no sentido de que outra pessoa a impôs
nelas, e não porque elas refletiram cuidadosamente sobre as ques­
tões importantes e escolheram sua cosmovisão.
Não é incomum para os indivíduos que tão-somente herdaram
sua cosmovisão presumirem que as crenças e práticas de todo o
mundo são semelhantes às suas. Não desafiados por qualquer ou­
tro ponto de vista, eles podem tornar-se apáticos com relação ao
seu próprio ponto de vista. Em meados dos da década de 60, numa
canção intitulada “Nowhere Man” (O Homem de Nenhum Lu ­
gar), os Beatles capturaram o sentido da vida para aquele que cres­
ceu indiferente à sua cosmovisão.3 De acordo com a letra da can­
ção, o homem de nenhum lugar ocupa um lugar na terra de ne­
nhum lugar fazendo planos sem sentido para ninguém. Ao que
tudo indica, ele não faz a mínima idéia para onde vai. Talvez no
ponto mais comovente da canção, ouvimos que o homem de ne­
nhum lugar “não tem um ponto de vista” . A frase levanta pergunta
23
24
MICHAEL D. PALMER
constrangedora: É possível não ter nenhum ponto de vista? Prova­
velmente não. E mais provável é que o verdadeiro problema do
homem de nenhum lugar não seja que ele não tenha literalmente
nenhum ponto de vista. Seu caso é pior. Ele é indiferente ao único
ponto de vista que lhe é fam iliar. Portanto, ele pode muito bem
não ter um porque não tem nenhuma idéia para onde está indo
na vida.
A descoberta de que nem todo o mundo
segue os padrões de crença e prática similares
"Somos os capitães de nosso
às suas próprias pode surgir como um desper­
destino e os mestres de nossa alma
tar abrupto. Quando isso ocorre, dois tipos de
em nossa capacidade de decidir
reação são comuns. Algumas pessoas reagem
defensivamente. Elas se retiram para trás dos
acerca da vida que levamos".
dogmas
memorizados e dos clichés familiares
— Vincent E. Rush
e geralmente adotam a posição de que não têm
nada a aprender de estranhos. (Em The Chosen,
os hassidim — particularmente os adolescen­
tes jovens — adotaram esta postura em relação aos judeus nãohassídicos.) Outras pessoas reagem com embaraço.
Ao compararem suas crenças ou práticas com as dos outros, as
suas podem parecer sem importância, triviais ou ingénuas. Elas
podem tentar menosprezá-las ou mesmo escondê-las quando
interagem com estranhos. (Uma das questões que Danny enfren­
tou quando foi para a universidade foi se deveria cortar seus ca­
chos de cabelos e usar roupas que não o identificassem como ju ­
deu hassídico.) Defesa e embaraço frequentemente são sinais de
imaturidade. Indicam que o indivíduo em questão não está com­
pletamente confortável com sua própria cosmovisão.
Estamos falando sobre o modo como as pessoas obtêm sua
cosmovisão. Alguns indivíduos, já dissemos, meramente herdam
sua cosmovisão. Aqueles que obtêm sua cosmovisão apenas por
este meio limitado podem muito bem tornar-se apáticos ou indife­
rentes a ela. Ou, se inesperadamente encontram alguém que tenha
uma cosmovisão diferente, podem reagir defensivamente ou com
embaraço. Por outro lado, uma cosmovisão pode ser obtida por
escolha. Escolher, no sentido pretendido aqui, não significa sim­
plesmente que a pessoa escolhe uma cosmovisão dentre várias
opções disponíveis — como se fosse uma criança que escolhe um
cachorrinho numa loja de animais domésticos.
Escolher também não significa que a pessoa rejeita a cosmovisão
herdada. Escolher diz respeito a um processo deliberativo que é qua­
se mais um estilo do que uma ação. Prontidão, consciência, autoreflexão, estar presente nas alternativas — tudo isso significa o que se
pretende dizer por escolha. Escolher significa que a pessoa não é
lançada ao sabor do vento como os despojos que o mar da vida traz à
praia. Como certo autor ressaltou: “Podemos não ser os capitães de
nosso destino e os mestres de nossa alma, com capacidade total para
controlar o ambiente que nos cerca, mas somos os capitães de nosso
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
25
destino e os mestres de nossa alma em nossa capacidade de decidir
acerca da vida que levamos...”4Em suma, o indivíduo que escolhe é o
oposto do homem de nenhum lugar dos Beatles.
Toda pessoa capaz de refletir sobre as questões da cosmovisão
já tem uma cosmovisão? A pergunta crítica é: Como afinal de contas
se obtém essa cosmovisão. Obtê-la como herança da fam ília e da
comunidade imediata pode ser uma boa forma de começar. Na
verdade, esse é o modo como todo o mundo obtém uma cosmovi­
são. Mas em certo sentido importante, uma cosmovisão herdada
ainda não é inteiramente da pessoa. Tê-la inteiramente como sua
— vivenciá-la com convicção e acreditar nela com entendimento
— requer que o indivíduo a escolha. Aquele que escolhe uma cos­
movisão tomando-a uma questão de escolha deliberada e reflexi­
va não ficará apático ou indiferente a ela. Nem é provável que tal
indivíduo se porte defensivamente ou fique envergonhado com ela.
Finalm ente, aquele que escolhe uma cosmovisão está melhor
posicionado para avaliar as deficiências de sua própria cosmovi­
são e para aprender de outras cosmovisões.
‘Deâ&uçâa de ‘r¥oCme& de uma,
Nas últimas décadas, os cristãos têm en­
frentado tremendos desafios intelectuais em
várias frentes. E o menor deles certamente
não é o de enunciar uma cosmovisão que sir­
va para as doutrinas centrais da fé do cristi­
anismo e ao mesmo tempo funcione adequa­
damente como resposta aos desenvolvimen­
tos contemporâneos da ciência empírica, da
teoria moral, das artes e da filosofia. Um dos
líderes em enfrentar este desafio desde a se­
gunda metade do século X X tem sido o filó ­
sofo Arthur Holmes. No trecho apresentado
a seguir, Holmes oferece um resumo dos
principais critérios de uma estmtura intelec­
tual que pode de maneira justa ser chamada
de cosmovisão.
“ Uma cosmovisão global apresentará as
seguintes características:
1. Tem uma meta globalizada, buscando
ver cada área da vida e do pensamento de
uma forma integrada.
2. E uma abordagem sob um determina­
do aspecto, versando as coisas de um ponto
de vista previamente adotado que agora pro­
porciona uma estrutura integrada.
3. É um processo exploratório, sondan­
do a relação de uma área após a outra para a
perspectiva unificada.
4. É pluralista no sen­
tido de que a mesma pers­
pectiva básica pode ser
enunciada de maneiras um
tanto diferentes.
5. Tem resultados de
ação , pois o que pensamos
e o que avaliamos guiam
o que faremos.”
Este trecho é um
excerto de The Making of
a C hristian Mind, A
Christian World View & the Academ ic
Enterprise (A Estrutura de uma Mente C ris­
tã, Uma Cosmovisão Cristã e o Empreen­
dimento A cad ém ico). Downers G rove,
Illin o is: InterV arsily Press, 1985, p. 17.
Outras obras notáveis de Holmes são AI.I
Truth is G od’s Truth (Toda Verdade é a
Verdade de D eus) e C ontours o f a
Christian Worldwide (Contornos de uma
Cosmovisão C ristã).
Elementos de Uma Cosmovisão
Uma cosmovisão bem desenvolvida fornece tipicamente um
amplo quadro das preocupações essenciais da vida. Portanto, uma
cosmovisão bem desenvolvida evidencia em geral certos compo­
nentes ou elementos essenciais. Na ciência como a química, um
elemento é uma substância fundamental que consiste em átomos
de um só tipo. Usamos a palavra elemento deste modo quando
falamos de elementos químicos, como o hidrogénio ou o hélio da
tabela periódica. Na matemática um elemento é um membro bási­
co de uma questão matemática ou lógica. Na fé cristã, usamos a
palavra elementos (plural) para nos referirmos ao pão e ao vinho
associados com a memória da última ceia de Cristo.
Entretanto, dentro do contexto de falar sobre cosmovisão, um
elemento é mais como um aspecto definível de como os seres hu­
manos explicam e praticam o que acreditam. Uma cosmovisão
bem desenvolvida mostra caracteristicamente pelo menos seis ele­
mentos distintos.5 Podem ser descritos sucintamente da seguinte
forma:
1. Ideologia. O elemento ideológico de uma cosmovisão con­
siste em crenças centrais. Estas crenças normalmente são expres­
sadas de uma maneira formal e precisa, como nas proposições fi­
losóficas, declarações de credo, fórmulas autorizadas ou doutri­
nas. A ideologia de uma cosmovisão também é geralmente ex­
pressada de um modo sistemático, significando que algum esfor­
ço é feito para assegurar que as declarações chaves sejam consis­
tentes entre si. Em The Chosen, o rabino Saunders ensinou a Danny
as ideologias do hassidismo mediante estudo intensivo do Talmude.
2. Narrativa. O elemento narrativo de uma cosmovisão reconta
certos eventos significativos da história daqueles que mantêm a
cosmovisão. Em alguns casos, as narrativas também tratam de
eventos futuros. As narrativas podem ser sobre muitas coisas, por
exemplo, uma pessoa famosa, a fundação de um povo ou nação, o
começo do mundo ou a interação de alguém com Deus ou com
práticas religiosas. Com frequência, os narradores expressam es­
ses eventos em escritos sagrados, mitos, contos históricos, históri­
as, lendas ou até na letra de um hino.
As vezes, os artistas também representam temas narrativos em
pinturas ou outras formas de arte. Se a ideologia expressa crenças
centrais em linguagem precisa e formal, as narrativas expressam
crenças centrais pelo exemplo, imagem, símbolo ou metáfora. As
histórias bíblicas de Abraão, Isaque e Jacó são centrais para a cos­
movisão hassídica.
3. Normas. Uma norma é um padrão de algum tipo. Quando se
trata de uma cosmovisão, dois dos mais importantes tipos de nor­
mas são as normas morais ou éticas e as normas estéticas. As nor­
mas estéticas proporcionam base para a tomada de decisão sobre
o que é bonito, agradável ou sublime.6 A s normas morais estabe­
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
27
lecem exigências para a conduta correta, estipulam nossas responsabilidades e geralmente nos explicam que tipo de pessoa de­
vemos ser. Em The Chosen, o lugar das normas morais no judaís­
mo emerge vigorosamente em certo ponto, quando Danny visita
Reuven no hospital logo depois de ferir-lhe o olho. Com raiva de
Danny, Reuven a princípio recusa-se a falar, mas depois explode:
“Vá para inferno e leve junto esse seu grupo esnobe de hassidim ” .
Quando o senhor Malter fica sabendo da atitude indelicada de
Reuven, diz: “Você fez uma coisa tola, Reuven. Lembre-se do que
diz o Talmude. Se alguém vem se desculpar por tê-lo ferido, você
tem de ouvi-lo e perdoá-lo” .7
Estes três elementos de uma cosmovisão — ideologia, narrati­
va e normas — formam um complicado padrão de crenças. Con­
tudo, este padrão não existe meramente na teoria. Ele se torna
vital e dinâmico no contexto da experiência e da prática. No juda­
ísmo ortodoxo, por exemplo, as crenças acerca de Deus (ideolo­
gia) não são meros conceitos sobre alguma deidade neutra e dis­
tante considerada como o Mestre do Universo.8E le é um ser que é
ativamente adorado. Os hassidim retratados em The Chosen oram
a Ele nas sinagogas do bairro e falam sobre Ele nas casas, ruas e
lojas. Sua influência é sentida em todas as facetas de suas vidas,
porque eles acreditam que são seu povo escolhido. A história (nar­
rativa) que eles recontam sobre os atos de Deus na história do
povo deles é célebre e representada de novo em certos rituais, como
aqueles associados com a Páscoa e o Hanuká. As narrativas cen­
trais juntamente com os rituais tradicionais evo­
cam intensas experiências para o crente.
4. Ritual. Um ritual é um ato cerimonial
Estes três elementos de uma
executado periodicamente em ocasiões espe­
cosmovisão — ideologia, narrativa e
ciais. E projetado a representar novamente ou
normas — formam um complicado
recordar um acontecimento especial. Um ritu­
al pode ser sombrio ou festivo, formal ou in­
padrão de crenças.
formal. Em todo caso, os rituais proporcionam
uma ocasião para se refletir no significado das
crenças centrais do indivíduo e evocam uma resposta afetiva a
essas crenças. Ambas as funções são tencionadas a integrar os pa­
drões de crença no trama da vida interior e no caráter da pessoa.
Por exemplo, observar a Páscoa envolve celebrar e, de certo modo,
reviver a libertação dos hebreus da escravidão egípcia descrita no
Livro de Êxodo.
5. Experiência. Quando falamos do elemento experiencial de
uma cosmovisão, queremos dizer o modo como alguém se dá con­
ta vivamente das verdades expressadas nas crenças centrais. As
crenças já não parecem abstratas e distantes. Ao invés disso, tor­
nam-se imediatamente presentes. Os hassidim são famosos por
nutrir experiências altamente místicas e pessoais.
6. Elemento Social. As crenças centrais de qualquer cosmovi­
são evaporarão como a névoa ao sol da manhã, se não estiverem
embutidas numa situação social. Isto é assim porque a situação
social fornece as estruturas organizacionais e outros meios que
permitem que as crenças sejam perpetuadas de uma geração para
outra. Uma das características mais notáveis de The Chosen é o
modo como Potok fornece insight na vida comunitária hassídica.
Cada seita hassídica tinha seu próprio rabino, sua própria sinago­
ga e yeshiva, seus próprios costumes, suas próprias lealdades fer­
renhas. Em um comentário bastante expressivo sobre a vida na
comunidade, Reuven diz: “Em um sábado ou manhã festiva, os
membros de cada seita podiam ser vistos caminhando para as suas
respectivas sinagogas, vestidos com seus trajes particulares, ansi­
osos para orar com seu rabino particular e esquecer o tumulto da
semana...” 9
Comentamos anteriormente que uma cosmovisão é um con­
junto de crenças e práticas que moldam a abordagem de uma pes­
soa para as mais importantes (e muitas outras) questões da vida.
Todo mundo, dissemos, tem uma cosmovisão. Também fizemos
uma descrição breve de seis elementos mais importantes de uma
cosmovisão. A seguir, examinaremos estes seis elementos com mais
detalhes em preparação à descrição de uma cosmovisão cristã.
O Elemento Ideológico
A s cosmovisões geralmente surgem da experiência e das nar­
rativas que exemplificam e desenvolvem-se nessa experiência. Mas
as experiências variam de uma pessoa para outra, e as narrativas
por sua própria natureza prestam-se a múltiplas interpretações. Por
estes motivos as cosmovisões comumente desenvolvem um con­
junto de declarações autorizadas que constituem seu elemento ide­
ológico. Estas declarações formam uma estrutura central, ou sis­
tema, para explicar a realidade. Já nos referimos a elas como cren­
ças centrais. Por exemplo, o judaísmo ortodoxo expressa diversas
crenças centrais, entre elas: Há um só Deus, Deus criou o mundo,
Deus está ativamente envolvido na história. Estas crenças essenci­
ais são parte do elemento ideológico do judaísmo ortodoxo. Estas
doutrinas (e outras importantes) explicam a natureza de Deus e
sua relação com o resto da criação, inclusive os seres humanos.
F u n ç õ e s G e r a is
da
I d e o l o g ia
O elemento ideológico de uma cosmovisão exerce diversas
funções. Uma dessas função é trazer ordem e coerência à vasta
série de dados proporcionados na experiência. Superficialmente,
as coisas que vivenciamos parecem não ter nenhuma relação uma
com outra. Além disso, as experiências de uma pessoa afiguramse não ter conexão com as de outra pessoa, especialmente se a
outra pessoa mora em outro país ou se viveu no passado. Mas a
ideologia pode fornecer um senso de ligação entre eventos apa­
rentemente discrepantes e entre pessoas separadas geograficamente
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
29
e pelo tempo. Este ponto é vividamente notório na ideologia do
judaísmo. Durante o tempo em que Moisés estava procurando as­
segurar a libertação dos hebreus, as pragas que sobrevieram aos
egípcios não eram catástrofes simplesmente fortuitas e isoladas.
Faziam parte de um destino maior: A obra de Deus nos eventos
históricos. O judaísmo também nutriu sempre um forte senso de
identidade do seu povo. Os judeus não são
meros indivíduos isolados, mas membros de
um povo histórico. Os Livros da Le i os lem­
As cosmovisões comumente
bram desta conexão histórica com seus ante­
desenvolvem um conjunto de
passados. No Livro de Deuteronômio, quando
Moisés está a ponto de pronunciar os manda­
declarações autorizadas que
mentos de Deus, ele diz: “ O SEN H O R, nosso
constituem seu elemento ideológico.
Deus, fez conosco concerto, em Horebe [mon­
te Sinai]. Não foi com nossos pais que fez o
SEN H O R este concerto, senão conosco, todos os que hoje aqui
estamos vivos” (Deuteronômio 5.2,3). Os indivíduos a quem estas
palavras foram ditas não estavam presentes quando o concerto foi
feito em Horebe. Não obstante, o concerto é válido para eles em
cada detalhe tanto quanto o era para seus antepassados, porque
eles são parte de um povo escolhido por Deus desde tempos
imemoriais. Em resumo, uma função da ideologia é trazer ordem
e coerência à experiência.
Uma segunda função é fornecer base para avaliar os valores,
os insights e as declarações de conhecimento dos outros. Tem ha­
vido poucas épocas na história humana em que os partidários de
qualquer determinada cosmovisão viveram uma geração inteira,
ou mesmo várias gerações, sem encontrar pessoas cuja cosmovi­
são diferia radicalmente da deles. Mesmo os mais isolados povos
ocasionalmente interagiam com estranhos. No ponto do fato his­
tórico, a maioria dos povos interagia com estranhos de maneira
frequente e diversa, desde o comércio à guerra e à troca cultural.
Sempre que ocorre interação entre uma pessoa e outra, a per­
gunta surge naturalmente: Como iremos avaliar e dar sentido àquilo
que estas pessoas (os estranhos) dizem e fazem? A ideologia da
cosmovisão do indivíduo fornece uma estrutura de referência para
responder à pergunta.
Quando Daniel e outros membros jovens da nobreza judaica
foram levados cativos para a Babilónia no século V II a.C ., eles
mantiveram sua identidade, enfrentaram e venceram a cosmovi­
são de seus captores, em parte porque estavam bem fundamentos
em sua própria cosmovisão. Eles julgaram o que era bom e mau,
certo e errado, proibido e permitido. Mas sem uma compreensão
clara das crenças centrais de seus captores, eles facilmente pode­
riam ter sido assimilados pela vida e cultura babilónicas.
Uma terceira função do elemento ideológico é definir a comu­
nidade. Em outras palavras, a ideologia ajuda a separar as pessoas
íntimas dos estranhos, aqueles que pertencem ao grupo daqueles
30
MICHAEL D. PALMER
que não pertencem ao grupo. Em cada cosmovisão, as crenças
tipicamente aceitas por aqueles que mantêm-se fiéis à determina­
da cosmovisão formam uma estrutura, um esqueleto, que dá for­
ma ao mundo como percebidas pelos membros da comunidade.
Enquanto normalmente há alguma abertura em como interpretar e
aplicar as crenças centrais, qualquer um que estira demasiadamente
os lim ites arrisca ser separado da comunidade. Grandes diferen­
ças nas crenças centrais não podem em geral ser toleradas indefi­
nidamente.
Considere, por exemplo, que os cristãos da Igreja prim itiva
eram judeus. Uma profunda divisão ideológica aconteceu quase
que imediatamente dentro do judaísmo, porque os seguidores de
Jesus declararam que Ele era divino e igual a Deus — uma noção
ideológica inaceitável para os judeus ortodoxos.
C o n t e ú d o I d e o l ó g ic o G e r a l
As cosmovisões que de outra forma diferem uma da outra em
seu conteúdo específico — mesmo aquelas que são radicalmente
opostas uma a outra — mostram uma semelhança interessante no
modo como desenvolvem seu conteúdo ideológico em geral. Em
outras palavras, as cosmovisões tendem a falar sobre tópicos se­
melhantes. Por exemplo, as cosmovisões naturalistas (como o
existencialismo ateísta marxista) e as cosmovisões teístas (como
o judaísmo ou o cristianismo) divergem em muitos pontos impor­
tantes. Elas são tão diferentes em alguns pontos que entram em
conflito uma com a outra, às vezes até se contradizem. Não
obstante, falam sobre tópicos similares. Por exemplo, ambas ex­
pressam visões ideológicas sobre o que existe e ambas fazem asseverações sobre a natureza humana. Vamos examinar estes tópi­
cos mais de perto.
~j
O alem ão K a rl M arx
(1818-1883) fo i o filósofo
social e revolucionário que
viveu e escreveu na plenitu­
de da Revolução Industrial
do século X IX . E le e
Friedrich Engels são conside­
rados os fundadores do mo­
derno socialismo e do comu­
nismo. Com Engels, ele es­
creveu o Manifesto Comunis­
ta (1848) e outras obras que quebraram a tra­
dição de teoristas como John Locke, que
apelava aos direitos naturais para justificar
a reforma social. M arx invocou o que acre­
ditou ser as leis da história que inevitavel­
mente levariam ao triunfo da classe operá­
ria. M arx foi exilado da Europa depois das
revoluções de 1848. Em sua monumental
obra O Capital (3 volumes, 1867-1894), a
qual foi escrita quando ele morava em Lon­
dres, M arx apresentou uma crítica cortante
à teoria económica capitalista e desenvolveu
uma teoria económica própria.
Para mais informações sobre M arx, veja o
Apêndice 3, “K arl M arx” , no fim deste livro.
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
T e o r ia
de
F undo
sobre o que
E x is t e
A s declarações ideológicas gerais sobre o que existe constitu­
em o que podemos chamar de teoria de fundo sobre a natureza do
universo. Uma teoria de fundo aborda pelo menos três tópicos: o
cosmo, Deus e a história.10
O Cosmo. A expressão cosmo foi usada pela primeira vez pe­
los gregos antigos para referir-se a algo formoso e sistematica­
mente organizado — como as linhas numa tapeçaria. O oposto de
cosmo era o caos ou a desordem. Desde então, os gregos usaram o
termo para descrever o arranjo ordenado e harmonioso das estre­
las e dos planetas como apareciam no céu à noite. Hoje, o signifi­
cado do termo foi ampliado para incluir não só a harmonia dos
corpos celestiais, mas o universo em geral — literalmente, tudo o
que existe.
Inclui as coisas que prontamente vemos como também as coi­
sas difíceis de se ver, por exemplo, os elétrons. Também inclui
coisas que não podemos ver de jeito nenhum, mas que podemos
apenas pensar nelas, como números, conceitos, leis da natureza.
Apesar destas mudanças em seu uso nos tempos modernos, o ter­
mo cosmo ainda levanta questões que os gregos antigos pondera­
vam. Se os corpos celestiais no céu à noite estão distribuídos de
um modo ordenado e harmonioso, o que explica essa ordem e har­
monia? Alguém ou algo os organizou de acordo com algum plano,
ou sua aparência é só produto do acaso?
Uma cosmovisão naturalista é aquela que nega que qualquer
evento ou objeto tenha algum significado sobrenatural. As moder­
nas cosmovisões naturalistas asseveram que leis científicas ou
princípios são adequados para explicar todos os fenómenos, tais
como o arranjo dos corpos celestiais e o movimento dos elétrons.
Uma cosmovisão teísta, por contraste, é aquela que adota a idéia
de que poderes sobrenaturais desempenham um papel no desdo­
bramento dos eventos. Portanto, as cosmovisões teístas de hoje
rejeitam a reivindicação de que as leis científicas em si podem
explicar o mundo e a nossa experiência dele. O marxismo e o
existencialismo ateísta são exemplos de cosmovisões naturalistas.
O judaísmo, o islamismo, o hinduísmo e o cristianismo são exem­
plos de cosmovisões teístas.
Deus. É bastante óbvio que nem todas as cosmovisões reco­
nhecem a existência de Deus. Entretanto, todas as principais cos­
movisões afirmam, ou pelo menos implicam, uma posição relati­
va à existência dEle. O judaísmo, o islamismo e o cristianismo
como cosmovisões teístas têm muito a dizer em suas declarações
ideológicas, doutrinárias, sobre a existência de Deus, seus atribu­
tos, suas atividades. Como era de se esperar, o marxismo, como
cosmovisão naturalista, tem menos a dizer sobre Deus. Não
obstante, não ficou calado no assunto nem é neutro. O próprio
M arx negava a existência de Deus. De fato, ele é famoso por ter
declarado que a religião é “ o ópio do povo” , querendo com isso
32
MICHAEL D. PALMER
afirmar que a vida de fé é enganosa e ilusória: Não oferece espe­
rança alguma para resolver os problemas existenciais, e só é bemsucedida em encobri-los temporariamente.
A História. Toda importante teoria de fundo do universo tam­
bém afirma ou im plica algo sobre a história em sua ideologia. As
cosmovisões teístas enfatizam a obra de Deus no fluxo da histó­
ria. Elas destacam o modo como Deus usa as pessoas e os aconte­
cimentos, em momentos e em locais específicos, para cumprir seus
propósitos supremos, que são infinitos.
Por exemplo, o hassidismo, tanto na realidade quanto descrito
no romance de Potok, identifica um homem chamado Baal Shem
Tov como alguém especialmente chamado por Deus em cerca de
1750 para viver uma vida piedosa e ensinar os outros a viver pia­
mente. (Hassidim quer dizer “ os piedosos” .)
O judaísmo em geral também tem um forte senso da interven­
ção de Deus na história: Deus criou o universo e os seres humanos
(Génesis 1— 2), deu uma promessa histórica a Abraão (“ Por pai
da multidão de nações te tenho posto” [Génesis 17.5]) e até usou
os inimigos dos hebreus (por exemplo, Faraó e Ciro) para cumprir
seus propósitos. Uma cosmovisão cristã diverge de qualquer cos­
movisão judaica em um aspecto crucial: Jesus, ao mesmo tempo
divino e humano, é a figura central no relato do tratamento de
Deus para com a humanidade.
As cosmovisões naturalistas afirmam uma visão cegamente
mecânica da história. A história é o produto dos seres humanos
interagindo entre si e com as forças naturais impessoais. Entretan­
to, os naturalistas estão divididos no que tange a se a história exi­
be padrões — quer sejam de progresso ou de regresso. O filósofo
francês Jean-Paul Sartre rejeitou qualquer noção da ordem natural
“participante” , ou que ela seja responsável por qualquer coisa como
eanr
O francês Jean-Paul
Sartre (1905-1980) foi fi­
lósofo, dramaturgo e novelista. A partir de 1936,
publicou estudos filosó­
ficos e romances, sendo
os mais notáveis A Náu­
sea (1938) e O Muro
(1939). Durante a Segun­
da Guerra M undial, ele
completou sua obra filosófica mais impor­
tante, O Ser e o Nada (1943). Em parte por
causa do seu envolvimento com as forças da
resistência francesa e em parte por causa do
seu brilho filosófico, depois da guerra Sartre
emergiu como figura dominante no m ovi­
mento existencialista francês. (3 próprio
Sartre era ateu. Durante os anos imediatos
depois da guerra, ele escreveu vários roman­
ces e peças teatrais que lhe deram fama mun­
dial.
Para informações adicionais, veja Apên­
dice 2, “ Jean-Paul Sartre” , no final deste
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
o progresso histórico. Para ele, a natureza não tem nenhum propó­
sito último, nenhuma intenção, nenhuma direção — simplesmen­
te existe.
Por outro lado, K a rl M arx, que certamente rejeitava qualquer
noção de propósito divino ou plano para a história, declarou que a
natureza mostra padrões de progresso. Os seres humanos são par­
te da natureza; portanto, também mostram padrões de progresso
em sua história.
Relato da Natureza Humana
Além de fornecer uma teoria de fundo do universo, as cosmo­
visões oferecem um relato geral do que significa ser humano. Este
relato trata de certos temas importantes da teoria de fundo. Por
exemplo, se a teoria de fundo rejeita (ou é silenciosa sobre) a no­
ção de que o universo tem um propósito e um destino último, en­
tão o relato associado da natureza humana também rejeitará (ou
estará silencioso sobre) se a pessoa individual tem um propósito
ou um destino último.
Semelhantemente, se a teoria de fundo diz que o universo tem
um propósito e um destino último, então o relato associado da
natureza humana expressará a mesma visão sobre a pessoa in divi­
dual. Sartre, um existencialista ateísta, retrata o universo como
totalmente destituído de propósito e destino último. A natureza
não existe para os seres humanos. Na verdade, a natureza não
existe para qualquer coisa. Simplesmente existe — sem plano,
propósito, intenção, esperança ou destino.11 (Certo personagem em
um dos romances de Sartre, percebendo este ponto enquanto pon­
dera junto às raízes de um castanheiro gigante, sente repugnância
pelo pensamento e vom ita.)12 Consistente com esta visão do uni­
verso, Sartre afirma que os seres humanos, no início da vida, tam­
bém carecem de qualquer propósito essencial ou destino. Nem
Deus nem a natureza dão significado à vida. Se a vida algum dia
vier a ter um propósito ou significado, acontecerá apenas porque a
pessoa escolhe tomá-la significativa.
Por contraste, o judaísmo e o cristianismo asseveram que Deus
criou o universo, que E le está atuando no universo para pôr em
execução seus propósitos, e que o universo tem um destino último
de acordo com o seu plano. E a humanidade se ajusta no propósito
último de Deus para o universo? Sim , com certeza! O livro de
Génesis, sagrado tanto para o judaísmo quanto para o cristianis­
mo, declara que fomos feitos à imagem de Deus. Potok, referin­
do-se ao fundador do hassidismo, diz: “ Ele os ensinou que o pro­
pósito do homem é tornar a vida santa — cada aspecto da vida:
comer, beber, orar, dormir” .13
Obviamente que uma cosmovisão que descreve o indivíduo
como tendo um propósito e um destino último também expressará
um conjunto de ideais para cada pessoa. Esses ideais podem ser
traços de caráter interior. Por exemplo, o apóstolo Paulo, falando
34
MICHAEL D. PALMER
no século I d .C ., descreve a tarefa de cada pessoa como a de confor­
mar-se à imagem de Cristo. E le estabelece certos ideais de caráter
em referência a Jesus. Cada pessoa tem de esforçar-se para encarnar
os ideais de caráter modelados por Jesus, inclusive a integridade
pessoal, a humildade, a mansidão, a paciência, o amor e a compai­
xão. Os ideais também podem ser expressos como situações soci­
ais. Os antigos profetas judeus, por exemplo, exaltavam a justiça
como um ideal social. Para eles, a sociedade justa seria aquela em
que o pobre e o fraco seriam adequadamente cuidados.
Se as cosmovisões propositadas parecem naturalmente expres­
sar ideais para seus partidários, as cosmovisões naturalistas tam­
bém oferecem ideais? A resposta parece ser um qualificado sim.
Como observamos anteriormente, M arx negou a existência de
Deus. Portanto, ele não deixou lugar em sua cosmovisão para um
conceito de propósito divino para os seres humanos. Neste sentido, a
humanidade não tem nenhum destino e nenhum ideal a alcançar.
Porém M arx reivindicou descobrir padrões de progresso na
história humana: E le raciocinou que os seres humanos progredi­
ram do antigo barbarismo através dos estágios da escravidão e do
feudalismo para as formas capitalistas da sociedade e da econo­
mia. O estágio fin al, acreditava ele, era aquele no qual os traba­
lhadores viriam a controlar a indústria e outros meios de produ­
ção. O controle destas forças económicas lhes perm itiria mudar as
instituições sociais e políticas para melhor e, assim, ocasionar as
melhores relações possíveis (quer dizer, o ideal) entre todos os
seres humanos. Em suma, embora a cosmovisão de M arx certa­
mente não seja propositada, parece identificar certos ideais e de­
fender o empenho por eles.
Albert Camus, como Jean-Paul Sartre, rejeitou não apenas a
noção de propósito como se evidencia na cosmovisão teísta, mas
também qualquer coisa como os padrões de progresso descritos
por M arx. Para ele, a realidade é absurda — totalmente destituída
de significado, propósito ou plano. Isto significa que, para Camus,
as escolhas humanas são no final das contas arbitrárias. Coisas e
eventos são o que lhes fazemos ser, e realmente não há razão para
fazê-las de um jeito em vez do outro. Isto significa que Camus
não reconheceu nenhum ideal? A resposta é: De fato, ele reconhe­
ceu ideais.
Em sua mais famosa publicação ideológica, O Mito de Sísifo,
Camus adapta aos seus próprios propósitos filosóficos o antigo
mito grego de S ísifo .14De acordo com o mito, certo dia, Sísifo, rei
de Corinto, incorreu na ira inexorável de Zeus. No Hades, o
submundo, Zeus castigou Sísifo forçando-o a rodar uma pedra para
cima e repetir este ciclo para sempre. Para Camus, Sísifo é “o
operário fútil do submundo” . Sua atividade é totalmente sem sen­
tido, completamente destituída de propósito. Deve Sísifo — deve
aqueles cujas vidas refletem a vida de Sísifo — desesperar-se?
Camus acha que não. A alegria é uma opção: “A pessoa tem de
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
35
imaginar Sísifo fe liz” .15 Mas como? E onde está o ideal nesta re­
presentação da condição humana?
A alegria é possível porque o significado de destino é no fim
uma questão de ser resolvida pelos seres humanos. Segundo
Camus, Zeus pode ditar nosso destino, mas somente nós podemos
determinar o que esse destino sig nificará para nós e se nos
desgraçará. “ Sísifo” , diz Camus, “ ensina a mais alta fidelidade
que nega os deuses e levanta pedras.” 16 O ideal de Camus — sua
figura heróica — é alguém que logo reconhece que o universo é
implacavelmente frio e indiferente para com os interesses huma­
nos, mas que, não obstante, resolve alcançar um tipo de “ vitória
absurda” ao determinar para si que suas experiências tenham sig­
nificado.
Os ideais estabelecem que tipo de pessoa devemos ser e
exemplificam o que vale a pena alcançar. Os ideais representam a
realidade e a condição humana como elas devem ser, e não como
são. A implicação é que as coisas podem ser melhores do que são.
Assim , quando uma cosmovisão inclui um conjunto de ideais, tam­
bém costumeiramente oferece uma explicação sobre porquê as
pessoas não alcançam esses ideais.
Nas cosmovisões judaica e cristã os seres humanos vivem
idealmente em comunidades fraternais entre si e em harmonia com
o seu Criador. Estas relações ideais existiram no princípio, numa
situação como o jardim . Elas foram quebradas pelo fato de terem
as escolhas humanas rejeitado os propósitos de Deus. Numa cos­
movisão existencialista com a de Sartre ou Camus, os seres huma­
nos vivem idealmente vidas autênticas, executando projetos que
tóent &uuu&
O francês Albert Camus (1913-1960) foi
romancista e homem de letras. Nascido em
Algiers, Argélia, grande parte de sua vida
intelectual foi dedicada a explorar sua con­
vicção de que a condição humana é absurda.
Este fato, juntamente com sua associação
com o filósofo francês Jean-Paul Sartre, le­
varam muitos a identificá-lo como membro
do movimento existencialista, embora sua
marca particular de humanismo o distinguisse
daquele movimento. Os personagens de suas
peças e romances são obviamente apresentados
como reconhecedores do absurdo e da falta
de sentido da situação deles (um tema
existencialista proeminente); ao mesmo tem­
po, afirmam sua humani­
dade ao se rebelarem con­
tra essa mesma situação (a
volta humanística distinta­
mente de Camus). Os tra­
balhos mais notáveis de Camus são os ro­
mances O Estrangeiro (1942), A Peste (1947)
e A Queda ( 1956), e seus ensaios O Mito de
Sísifo (1942) c O Rebelde ( 1951). Em 1957,
Camus foi premiado com o prémio Nobel
de literatura. Morreu num acidente de auto­
móvel em 1960. Na época de sua morte, ele
estava trabalhando num romance autobiográ­
fico, postumamente publicado em 1995 sob
o título O Primeiro Homem.
36
MICHAEL D. PALMER
eles escolheram livremente. Eles ficam aquém do ideal, porque
recusam a aceitar o fardo de sua própria liberdade e porque fa­
lham em assumir a plena responsabilidade pelo vasto alcance das
escolhas implicadas por aquela liberdade.
Na cosmovisão marxista, os seres humanos existem idealmente
em harmonia (e não em competição) entre si, trabalham em tare­
fas que satisfazem (e não humilham) e desfrutam o fruto do seu
trabalho (em vez de vê-lo tomado por outros e usado contra eles).
O ideal foge ao entendimento deles, por causa de certos arranjos
económicos capitalistas subjacentes, e por cau­
sa das estruturas sociais e políticas que refor­
çam
a economia capitalista. Em geral, cada
Em geral, cada cosmovisão não
cosmovisão
não só enuncia certos ideais, mas
só enuncia certos ideais, mas
também explica por que os seres humanos não
também explica por que os seres
os alcançam.
humanos não os alcançam.
Ordinariamente, quando uma cosmovisão
enuncia um conjunto de ideais e então explica
como os seres humanos e suas instituições so­
ciais ficam aquém dos ideais, também oferece alguma solução. Se
os ideais (ou algo parecido com eles) outrora existiram , então a
cosmovisão explicará como recuperar o que estava perdido.
Por exemplo, o judaísmo identifica um tempo sob o governo
dos reis D avi e Salomão quando Israel era uma nação unificada.
Se esse tempo não era bastante ideal, com certeza representava
um ponto político e social culm inante para os judeus. O ideal foi
perdido quando os exércitos estrangeiros repetidamente invadi­
ram a pátria deles. O ideal só pode ser recuperado quando os ju ­
deus se preparam espiritualmente e Deus intervém na história para
prover o M essias.
Claro que para algumas cosmovisões, os principais ideais na
verdade nunca existiram . Só existem no futuro, no horizonte do
tempo. Neste caso, a cosmovisão explicará como alcançá-los. O
marxismo é justamente tal cosmovisão. Os marxistas acreditam
que nunca houve um tempo na história humana em que a maioria
dos seres humanos de algum modo não sentiu falta de comunida­
de, não sofreu as indignidades do trabalho forçado, não perdeu o
controle sobre suas ferramentas e os produtos do seu trabalho.
Mas com o capitalismo desenfreado na plenitude da Revolução
Industrial na Europa e nos Estados Unidos no século X IX , estas
condições pioraram. As mulheres trabalhavam em miseráveis es­
tabelecimentos escravizantes e morriam prematuramente. Os ho­
mens competiam entre si por empregos de baixos salários. Mes­
mo as crianças trabalhavam horas dolorosamente longas em con­
dições imundas. Para M arx, a causa e a solução eram económicas.
O capitalismo desenfreado, em vez dos arranjos sociais ou políti­
cos, era responsável pela prevalecente miséria e alienação. Uma
vida melhor — na verdade, a vida ideal — só pode ser alcançada
no futuro à medida que as condições económicas são mudadas.
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
Resumo
Nesta seção, discutimos o elemento ideológico de uma cosmo­
visão. Prim eiro, citamos três funções gerais da ideologia: 1) trazer
ordem e consistência aos dados proporcionados pela experiência,
2) fornecer base para avaliar os valores, os insights e as declara­
ções de conhecimento dos outros e 3) definir a comunidade. Estas
funções da ideologia não pertencem a uma cosmovisão específi­
ca. Antes, são funções comuns de qualquer cosmovisão. Em
seguida, fornecemos um esboço do conteúdo ideológico geral de
uma cosmovisão. Aqui comentamos mais uma vez que embora as
cosmovisões possam ser diferentes em seu conteúdo específico,
elas falam sobre tópicos semelhantes. Por exemplo, eles forne­
cem uma teoria de fundo sobre o que existe. Três tópicos cen­
trais da teoria de fundo são o cosmo, Deus e a história. A s cos­
movisões também fornecem um relato geral da natureza huma­
na. Este relato explicará se a vida humana tem ou não propósi­
to, que ideais valem a pena alcançar, em que aspecto os seres
humanos ficam aquém dos ideais e como os ideais podem ser
alcançados.
O conteúdo ideológico de uma cosmovisão é ordinariamente
expresso em proposições filosóficas, declarações de credo, fór­
mulas autorizadas ou doutrinas. Em geral também é expresso de
modo sistemático, significando que algum esforço é feito para
assegurar que as declarações chaves sejam consistentes entre si. A
natureza preposicional formal da ideologia a distingue de outro
elemento importante de uma cosm ovisão, a narrativa, que
comumente tem uma qualidade semelhante à história.
O Elemento Narrativo
Ressaltamos anteriormente que o elemento narrativo de uma
cosmovisão reconta certos eventos passados ou futuros, tendo a
ver com aqueles que mantém a cosmovisão. Porém, as narrativas
da cosmovisão não são simples registros de acontecimentos coin­
cidentes ou resumos de eventos interessantes, mas fortuitos. São
histórias que contam algo especial sobre a cosmovisão ou sobre as
pessoas que a mantêm. Podem ser sobre uma pessoa famosa, a
fundação de um povo ou nação, o começo ou fim do mundo, a
interação de alguém com Deus ou deuses, ou algum outro evento
integralmente ligado à cosmovisão.
As narrativas são uma característica bem reconhecida das cos­
movisões religiosas. Todas as principais religiões do mundo estão
repletas delas. O elemento narrativo do cristianismo, por exem­
plo, enfoca a criação do mundo; o primeiro homem e a primeira
mulher afastando-se de Deus; os subsequentes concertos entre Deus
e a humanidade; o nascimento, morte e ressurreição de Cristo; a
formação da Igreja, e a promessa de que Cristo voltará à terra para
orquestrar os eventos finais da história. Mas as narrativas não são
limitadas às cosmovisões religiosas. As cosmovisões seculares
também contêm um importante elemento narrativo.
Por exemplo, o marxismo conta uma narrativa bastante elabo­
rada que enfoca o desdobramento da história humana, as forças
impessoais que moldam a natureza humana, as várias maneiras
que os seres humanos sofrem alienação, os modos como os arran­
jos económicos e políticos vêm à existência e mudam, e os pros­
pectos para uma vida melhor sob os novos arranjos económicos e
políticos.
F u n ç õ e s G e r a is
da
N a r r a t iv a
Há duas funções predominantes das narrativas da cosmovisão.
Prim eiro, elas reforçam e embelezam os temas ideológicos cen­
trais. Poderíamos comparar a ideologia de uma cosmovisão e suas
narrativas centrais com o esqueleto e a carne de um corpo. Entre­
tanto, esta comparação induzirá em erro se for considerada a im ­
plicar que um elemento é de alguma maneira mais básico ou fun­
damental que o outro. O esqueleto e a carne são necessários juntos
para que o corpo viva; a ideologia e a narrativa são necessárias
juntas para que uma cosmovisão floresça.
Segundo, as narrativas da cosmovisão fornecem padrões, ou
modelos, para os partidários da cosmovisão. A linguagem da ide­
ologia por sua própria natureza tende a ser abstrata, técnica e um
tanto escassa. Nas cosmovisões bem desenvolvidas, o papel da
ideologia é crucial, mas a pessoa comum encontra pouco deleite
ou estímulo em navegar em suas complexidades e distinções de
nuanças. Já as narrativas, ao contrário, atraem e capturam a ima­
ginação. Inspiram não só a mente, mas também despertam as emo­
ções. Convidam os ouvintes a visionar e vicariamente sentir o que
seria vivenciar o conteúdo ideológico da cosmovisão.
Se a Torá e o Talmude apresentam a estrutura ideológica perti­
nente ao judaísmo tradicional, as histórias de Abraão, M oisés,
Josué, D avi e Salomão fornecem seu conteúdo narrativo.17 Se os
ensinamentos didáticos de Jesus e Paulo, Tiago e Pedro e o Credo
Apostólico constituem parte da dimensão ideológica do cristia­
nismo, então as parábolas e ações de Jesus e os relatos em Atos
formam a parte crucial do seu conteúdo narrativo. Se a teoria do
valor do trabalho é parte da ideologia de M arx, as histórias de
trabalho infantil, o sofrimento e morte de mulheres em estabeleci­
mentos escravizantes e os homens trabalhando horas longas em
condições anti-higiênicas e perigosas (tudo recontado em seu li ­
vro, O Capital) fornecem parte do conteúdo narrativo de sua cos­
movisão.18
As narrativas podem nos fazer rir ou chorar; podem divertir ou
chocar nossa sensibilidade. Em todo caso, fornecem modelos —
para o desenvolvimento do caráter e sobre como nos comportar,
não para nos moldarmos a arranjos sociais aceitáveis, mas pelo
que somos.
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
T ip o s
de
N a r r a t iv a
O dever da narrativa é recontar os eventos centrais, passados e
futuros de um povo e sua cosmovisão. A função da narrativa é
reforçar ideologias centrais e fornecer modelos para os partidári­
os da cosmovisão. Tendo dito isto, devemos notar que o conteúdo
narrativo de uma cosmovisão pode tomar várias formas. D iscuti­
remos aqui cinco delas brevemente.
Escritos Sagrados
Em qualquer tradição, os escritos sagrados (cridos como pala­
vras divinas) são distintivos de outras histórias culturais ou lendas
1) na autoridade que inspiram, 2) nos propósitos religiosos a que
servem e 3) até ao ponto em que todos os pensadores ortodoxos na
tradição têm de ajustar seu pensamento ao deles. Em algumas cos­
movisões teístas, as narrativas mais importantes aparecem em tex­
tos considerados sagrados. Por exemplo, no judaísmo as narrativas
centrais à fé — os relatos de Abraão, Moisés, Josué, os juizes, os reis
e os profetas — são recontadas em textos cujo status bíblico é indis­
cutível entre os judeus ortodoxos. Os cristãos crêem no mesmo acer­
ca das narrativas encontradas ao longo da Bíblia, mas especialmente
nas de Jesus e dos apóstolos no Novo Testamento.
Na tradição hindu, a narrativa da cosmovisão mais importante
e famosa aparece no Bhagavad Gita (Canção do Senhor), um cur­
to fragmento de assustadora poesia dramática, que é parte de um
poema épico.19Nele, um homem chamado Arjuna, o herói da nar­
rativa, busca o conselho de Krishna, a principal deidade hindu,
visto que Arjuna está a ponto de entrar numa batalha importante
que envolverá todas as pessoas da índia.
Mito
Tendo sido antes uma palavra perfeitamente boa, o vocábulo
mito veio a ter uma reputação ruim em alguns círculos. Deriva da
palavra grega traduzida por histórias, mythoi. A s mythoi gregas
eram frequentemente sobre os deuses e sua interação com os seres
humanos. Com o passar do tempo, a cultura grega (incluindo sua
religião) caiu em má fama. Seus mitos vieram a ser vistos como
histórias não baseadas em fatos, “histórias falsas” . Entretanto, entre
os estudiosos de hoje, a palavra mito refere-se estritamente a uma
narrativa na qual os seres divinos representam algum papel. Usála deste modo não trata da questão se ou como a narrativa pode ser
considerada verdadeira. Em outras palavras, a avaliação da verda­
de de um mito é um item separado da questão do papel que de­
sempenha na cosmovisão. Além disso, mesmo que não fosse his­
toricamente factual, ainda pode funcionar como narrativa que con­
tribui de modo importante para uma cosmovisão.20
O mito é uma categoria distinta de escritos sagrados. No mun­
do antigo, esses escritos sagrados eram primariamente usados em
ritos e cerimónias religiosos. Em convocações sagradas especiais,
40
MICHAEL D. PALMER
as pessoas ouviam o texto sagrado lido por um sacerdote com o
propósito de encorajar e instruir.21 Claro que os mitos não estão
sem seu elemento religioso. A final de contas, eles são histórias
sobre a interação de seres divinos com seres humanos. Mas histo­
ricamente não serviam para as mesmas funções sacerdotais servi­
das para os escritos sagrados, especialmente a Escritura. Antes,
encontravam seu lugar na assembléia pública, no mercado e nos
teatros ao ar livre do mundo antigo.22
Quase não podemos entender as cosmovisões antigas sem pres­
tarmos honestamente atenção ao significado dos seus mitos. Este
ponto certamente é válido no caso dos gregos antigos. Por exem­
plo, os mitos de Homero, na forma de dois poemas épicos, a Ilíada
e a Odisséia, são indubitavelmente os mais famosos e influentes
do mundo grego antigo. A Odisséia é a história de Odisseu, o ú lti­
mo guerreiro grego a voltar para casa depois da derrota de Tróia.
Em cada virada da história, Odisseu encontra estranhas criaturas
m íticas: um Ciclope (gigante de um olho só), ninfas do mar,
lotófagos, sereias. E a cada reviravolta da história, seu caminho
ou é dificultado ou é facilitado por algum deus. Quando finalmen­
te chega à sua casa-ilha, ele tem de derrotar um exército de ho­
mens que queriam apossar-se de sua propriedade e tomar sua mu­
lher. Em sua jornada de volta ao lar, que durou anos, Odisseu, —
cheio de astúcia e m alícia, guerreiro ousado e impetuoso — teve
de aprender a enfrentar os desafios da vida com uma nova estrutu­
ra de referência. Gradualmente, ele aprende a paciência, a tempe­
rança e a humildade. Somente quando aprende estas lições é que
finalmente chega a Itaca, sua amada casa-ilha, e reencontra sua
fiel e devotada esposa, Penélope.
Por que esta história tinha tamanho poder para os gregos e res­
soava tão eloquentemente para as gerações subsequentes na c iv i­
lização ocidental? Ninian Smart sugere uma resposta parcial, di­
zendo que o significado último dos mitos têm a ver com os impul­
sos profundos de nossa psique: “ [Os mitos] têm a ver com o modo
como podemos chegar a um acordo com nossos sentimentos, e
como podemos alcançar a integração pessoal e a inteireza” .23 A
jornada de Odisseu à sua casa é na verdade uma jornada rumo a
um tipo de inteireza do ego, não possível sob o modelo do antigo
guerreiro grego. Mas, como Smart também ressalta, o mito tradi­
cionalmente tem um significado comunal predominante: “Um mito
não é apenas sobre mim: é sobre nós” .24 A história de Odisseu é
acerca de um homem que encontrou seu caminho para casa e, ao
fazê-lo, descobriu um novo modo de viver; mas também é a histó­
ria de um povo inteiro. Na realidade, é a história de como alguém
pode enfrentar as dificuldades da vida. Mais adiante no poema,
por exemplo, Homero faz Odisseu dizer:
Das criaturas mortais, entre tudo o que respira e se move, a terra
não leva sobre si nenhum mais frágil do que o género humano...
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
N enhum homem deveria zom bar da lei,
mas m anter em paz quaisquer presentes que os deuses podem dar.25
A Odisséia de Homero tem falado de maneira muito simples
aos gregos, e tem falado a sucessivas gerações no Ocidente, por­
que seus temas transcendem a história de um guerreiro.
Narrativa Histórica
O
mito continua sendo uma forma viável de narrativa no mun­
do de hoje. Mas desde o começo da era científica, e sobretudo
depois do advento de técnicas modernas de escrever história, o
poder de contar mitos diminuiu. Curiosos como estamos ao adentrar
o século X X I, parece que temos uma forte necessidade de desco­
brir e recontar como foi realmente o passado. Desejamos colocar
as pessoas e os fatos juntos numa ordem coerente. “ A Guerra C i­
v il” , história televisiva com dez horas de duração feita por Ken
Burns, da P B S , e “ Beisebol” , sua história televisiva mais recente
com dezoito horas de duração — ambas imensamente populares
nos Estados Unidos — ilustram bem o ponto em questão. Parte de
sua atração, e parte da atração dos trabalhos históricos em geral, é
que eles respondem nosso desejo de conhecer algo sobre nós mes­
mos. Conhecer algo sobre a história de nosso grupo é conhecer
algo sobre nós mesmos.
Mas mesmo quando falamos de nos conhecer, defrontamos dois
interesses competidores na produção dos trabalhos históricos. P ri­
meiro, tendemos a buscar a mesma resposta para as nossas per­
guntas históricas conforme a rainha malvada buscou no conto de
fadas Branca de Neve. “Espelho, espelho meu, haverá no mundo
alguém mais bonita do que eu?” , perguntou ela, esperando que o
omen&
Homero (século V III a .C .) é o mais fa­
moso poeta (bardo ou cantor) do período
arcaico da história grega. De acordo com
a antiga tradição, Homero era cego. Tam­
bém de acordo com a antiga tradição, ele
compôs dois poemas épicos com mate­
ria l trazido do século X III a.C . por uma
longa tradição oral: a Ilíada e a Odis­
séia. Hoje estes poemas são considera! dos os protótipos de todos os poemas
| épicos, e estão entre as maiores obras
i da literatura ocidental. A Ilíada narra um
i episódio que dura alguns dias na guerra
de dez anos entre os gre­
gos e os troianos: a ira de
A q u iles e suas conse­
quências trágicas, inclusi­
ve as mortes de Pátroclo e
Hector. A Odisséia come­
ça dez anos depoi s da que­
da de Tróia. Conta como
um dos heróis gregos,
Odisseu, finalmente conse­
gue retornar à sua casa, em
ítaca, onde é reunido à sua
esposa Penélope e ao seu filho Telêmaco.
41
espelho lhe dissesse que ela era a mulher mais linda da terra. Te­
mos a tendência de romantizar o passado, encontrando heróis em
conjunturas cruciais. Ao agirmos assim, fazemo-nos a nós mes­
mos parecer melhores do que talvez mereçamos.
Se George Washington se recusasse a mentir a respeito de cor­
tar a cerejeira, então sua virtude resultaria de algum modo dim i­
nuída a todos os americanos. Se um dos meus antepassados no
século X IX se candidatasse ao cargo de vice-presidente dos Esta­
dos Unidos, então sua fama de algum modo seria ocasião para eu
me gabar.
O segundo interesse em produzir um trabalho histórico é esta­
belecer um registro preciso dos eventos e pessoas baseado na evi­
dência empírica e em documentação apropriada. Quando a histó­
ria é procurada com este interesse em mente, grandes heróis às
vezes parecem menos brilhantes, menos virtuosos.26 Talvez um
dos nossos heróis do estabelecimento da democracia tenha possu­
ído escravos.
Assim , as narrativas históricas evocam interesses competido­
res. Por um lado, a história é mais que sobre o passado; é sobre
nós. Está em nossos interesses conhecer nossa história, porque
está em nossos interesses conhecer a nós mesmos. Mas este inte­
resse nos encoraja a inflacionar o passado, tomando-o algo mais e
melhor do que foi. Por outro lado, a história abordada de modo
crítico e científico representa uma tentativa em ver o passado com
precisão. Está em nossos interesses obter a precisão, porque então
a história pode servir como guia parcial para o futuro, ajudandonos a evitar os erros do passado. Mas este interesse na precisão
pode ter o efeito de esvaziar o passado, fazendo-o parecer rotinei­
ro ou comum e, portanto, não merecedor de nossa atenção.
Os dois interesses competidores discutidos aqui — o interesse
em conhecer a nós mesmos e o interesse na precisão — levantam
uma pergunta constrangedora: Se a abordagem crítica e científica à
história é tantas vezes bem-sucedida em esvaziar nossas imagens
queridas de pessoas e eventos de nosso passado, por que dar atenção
àqueles que produzem tais histórias? A resposta é que a história, que
é o resultado da investigação crítica, tem autoridade para nós.
O historiador moderno é parte do que Smart chama de “ a tra­
ma da erudição e ciência modernas, a qual para nós têm uma
aparência inteiramente convincente” .27 É justamente esta autori­
zada “ aparência convincente” da história moderna que a toma seme­
lhante aos mitos antigos. Hoje procuramos nas narrativas históricas e
biográficas iluminação sobre a maneira como as pessoas de outrora
encaravam os mitos que contavam a história do género humano.
Literatura e Drama
A s histórias e biografias representam um papel mais impor­
tante na era moderna do que em qualquer outra época do passado.
Isto não quer dizer que as pessoas modernas procuram nelas ex­
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
clusivamente, ou mesmo primariamente, iluminação para a situa­
ção humana. A literatura e o drama (quer no palco ou na tela)
comprovaram ser mídias particularmente capazes de nos dar his­
tórias significantes sobre a condição humana. Como tal, elas tam­
bém servem como instrumentos poderosos para reforçar a ideolo­
gia e para fornecer modelos.
Claro que o drama de palco e certas histórias orais e escritas
foram desde o princípio usados para cumprir estas duas funções.
A antiga tragédia grega é famosa por sua descrição de pessoas que
foram além dos lim ites do comportamento humano apropriado.
Na tradição grega, a honra, o orgulho e uma leve sagacidade eram
considerados qualidades desejáveis. Mas a arrogância ou jactân­
cia, o orgulho excessivo e a habilidade mental sem auto-reflexão
eram considerados falhas de caráter.
O drama trágico de Sófocles, intitulado Édipo Rei, apre­
senta dramaticamente as consequências de uma vida vivid a
com arrogância. Éd ip o, de acordo com a lenda grega, fo i um
homem que cum priu uma antiga profecia que d izia que ele
m ataria o pai e teria filhos com a própria mãe. Na apresenta­
ção da história de Sófocles, Édipo veio a cum prir a profecia,
porque ele confiou muito em seus próprios talentos e agiu sem
a verdadeira sabedoria. Nas últim as linhas da peça, o líd er do
coro resume as principais conclusões a serem tiradas da ex­
periência de Édipo:
Que todo hom em na fragilidade do género humano
Considere seu último dia; e que ninguém
Presum a que tem boa sorte até que encontre
A vida, em sua morte, e deixe uma m em ória sem dor.28
O Édipo Rei lembra aos gregos as expectativas importantes
colocadas pela cosmovisão dominante, e o próprio Édipo serviu
como modelo de como não viver a vida. O relato veterotestamentário de Sansão serve com propósito semelhante. Apesar de
sua educação religiosa e das repetidas lembranças do seu estado
espiritual como uma força moral, Sansão altivamente esqueceu da
fonte de sua força — Deus. No fim , ele devia ser mais lamentado
do que admirado. Assim , sua história também constitui um mode­
lo poderoso e negativo.
No século X X , os romances tomaram-se veículos proeminen­
tes para apresentar, reforçar ou examinar a ideologia e para forne­
cer modelos. Em 1906, Upton Sinclair publicou The Jungle (A
Selva), romance que apresenta um quadro vívido e realista das
condições de trabalho perigosamente insalubres nos currais de
Chicago e a indústria de empacotamento de carne. O romance
expressa claramente as convicções socialistas de Sinclair.29 Ele
queria denunciar o capitalismo desregulado como um arranjo eco­
nómico aceitável em qualquer cosmovisão.
44
MICHAEL D. PALMER
Anteriormente, discutimos o trabalho filosófico de Camus, O
Mito de Sísifo, no qual ele expressa a visão de que a realidade não
oferece nenhum propósito dominante para apoiar ou explicar a
existência humana, mas que os seres humanos podem determinar
por si mesmos que significado a vida terá. E le desenvolve estes
mesmos temas em imagens muito mais poderosas em seus traba­
lhos literários O Estrangeiro , A Peste e O Rebelde. Os persona­
gens nestas obras, embora sutilmente cônscios da falta de signifi­
cado da condição humana, afirmam sua humanidade rebelando-se
contra as circunstâncias. C . S. Lew is, famoso por sua racional
defesa da fé cristã em obras como Cristianismo Puro e Simples e
The Problem ofPain [O Problema da Dor], também escreveu ro­
mances significativos (That Hideous Strength e P erelandra), que
encarnavam temas distintamente cristãos. The Chosen [O Esco­
lhido], de Chaim Potok, o romance já referido aqui muitas vezes,
e muitos outros romances seus, oferecem profundos insights so­
bre a moderna vida judaica e sua cosmovisão na América.
Se os romances modernos permanecem na vanguarda da lite­
ratura como veículo para enunciar temas de cosmovisão, o cine­
ma quase eclipsou o drama de palco. Isto não quer dizer que o
drama de palco esteja desaparecendo; não está. Mas a indústria do
cinema tomou-se uma indústria de multibilhões de dólares, e sua
poderosa influência nas mentes de jovens e velhos não mostra si­
nais de enfraquecimento. O intressante romance de Norman
M cLean, A River Runs Through It obteve aclamação da crítica,
mas alcançou apenas um modesto número de leitores quando foi
publicado em 1976 pela University of Chicago Press. Porém, tor-
H
Sófocles (496-406 a.C .)
foi dramaturgo, figura pú­
blica respeitada, general e
sacerdote no período gre­
go clássico. Durante uma
carreira em que compôs
cerca de 123 dramas, ele
ganhou numerosos prémi­
os. Comparado a outros
dramaturgos do seu tempo,
Sófocles era conhecido
como inovador. Por exemplo, ele acrescen­
tou um terceiro ator, aumentou o tamanho
do coro e introduziu pinturas de cena. Em ­
bora tenhamos mais de 1.000 fragmentos
de suas obras, apenas sete peças comple­
tas sobreviveram . Suas obras mais conhe­
cidas são Antígona (c. 441), Édipo Rei ou
Édipo Tirano (c. 429) c Édipo em Colona
(401). Os personagens de Sófocles são dra­
maticamente interessantes no que respeita
a que seus destinos são determinados mais
por seus próprios traços de personalidade
do que pelos deuses gregos. Em parte por
esta razão, o trabalho de Sófocles influen­
ciou profundamente a tragédia ocidental.
O filósofo Aristóteles, do século TV a .C .,
em sua obra Poética, tratou Édipo Tirano
como um exemplo ideal da ironia dramá­
tica grega.
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
nou-se êxito mundial de bilheteria quando, em 1994, Robert
Redford lançou sua versão cinematográfica.
Inicialmente, As Pontes de Madison recebeu atenção somente
limitada como romance. Em 1995, como film e estrelado por C lint
Eastwood e M eryl Streep, ganhou um imediato e difundido públi­
co.30Não há que duvidar que o cinema capturou a imaginação das
audiências modernas de um modo que a literatura e o drama nun­
ca chegaram perto. Tomou-se o veículo transmissor mais podero­
so do século X X para apresentar, reforçar ou examinar a ideologia
e para oferecer modelos.
A Narrativa na Arte Visual
Os narradores (escritores, contadores de histórias) expressam
suas narrativas verbalmente — em escritos sagrados, mitos, rela­
tos históricos, romances e outros tipos de literatura. A s vezes, eles
combinam a palavra falada com a ação coreográfica, como no dra­
ma e no cinema, ou combinam letras com música, como numa
balada. Entretanto, as palavras não são essenciais para a expres­
são da narrativa. Usando símbolos não-verbais, os artistas podem
expressar os temas narrativos centrais de uma cosmovisão na mídia
tão diversamente quanto na pintura, na escultura, na ilustração ou
na arquitetura. As Escrituras hebraicas descrevem em detalhes v í­
vidos a construção do antigo Tabernáculo hebreu, as instalações à
semelhança de uma tenda usadas para adoração antes da construção
do Templo sob o governo do rei Salomão. O próprio Tabernáculo,
com os vestuários sacerdotais e os utensílios sagrados usados em seu
interior, expressava — sem palavras — a narrativa do concerto sa­
grado entre o povo hebreu e Javé.
Um pintor judeu russo do século X X , Marc Chagall, expressa
eloquentemente em suas pinturas a moderna experiência e cosmo­
visão judaicas. Certa pintura, “Crucificação Branca” , descreve uma
cena da cm cificação. O homem na cmz usa uma coroa de espi­
nhos e um xale de oração judeu no lugar de tanga. Em volta da
cena da crucificação estão pequenas imagens da atual perseguição
judaica, inclusive representações de atrocidades indizíveis associ­
adas com o Holocausto judeu da Segunda Guerra Mundial.
As cosmovisões seculares também se expressam por meio da
arte. O marxismo se expressa num determinado género conhecido
como realismo social que cobre o assunto com certo brilhantismo
ou qualidade ilustre. As pinturas neste género apresentam figuras
humanas em poses heróicas e enfatizam a importância da produ­
ção ou da luta revolucionária. Com o realismo social temos a arte
à serviço da política: a pintura promove a cosmovisão socialista e
aponta para a consumação da história humana.
R esum o
Nesta seção, discutimos o elemento narrativo de uma cosmo­
visão. Prim eiro, citamos duas funções das narrativas da cosmovi-
são: 1) reforçar e embelezar os temas ideológicos centrais, e 2)
fornecer padrões ou modelos para aqueles que mantêm a cosmo­
visão. Do mesmo modo que as funções do elemento ideológico
não são únicas a uma cosmovisão, assim também as funções da
narrativa não são únicas a uma cosmovisão. Também discutimos
brevemente cinco diferentes formas que a narrativa da cosmovi­
são pode ter: escritos sagrados, mito, narrativa histórica, literatura
(inclusive drama) e arte. Estas formas não são necessariamente as
únicas que uma cosmovisão pode ter, mas estão entre as mais im ­
portantes e comuns.
O Elemento Normativo
Uma norma é um padrão de algum tipo. Encontramos padrões
em virtualmente toda a área da vida. Por exemplo, quando escre­
vemos ou lemos o que outra pessoa escreveu, encontramos pa­
drões gramaticais. Quando dirigimos pelas ruas, encontramos pa­
drões legais (na forma de sinais de trânsito e carros de patrulha).
Quando cozinhamos ou comemos a comida que outra pessoa prepa­
rou, encontramos padrões culinários. Nossos julgamentos e avali­
ações de todos os tipos de comportamento humano são feitos em
termos de normas, de padrões. “ Sua frase não tem sentido” , “Você
estava dirigindo muito rápido” , “Esta macarronada está delicio­
sa” , todas estas avaliações implicam referência a uma norma, a
um padrão. Quando falamos sobre cosmovisão, dois dos tipos mais
importantes de normas são a norma moral e a norma estética.
As normas morais governam nosso comportamento e desen­
volvimento do caráter. Elas são padrões que requerem, proíbem
ou permitem certos tipos de comportamento ou o desenvolvimen­
to de certos tipos de traços de personalidade. Podem ser ou espe-
M arc Chagai 1 (18871995) foi pintor, impres­
sor, designer, escultor, ce­
ramista e escritor. Nasceu
na Bielorússia e preferiu
ser conhecido como artis­
ta bielorusso. (Suas obras
artísticas são notáveis pelo
uso consistente que fez da
imagem folclórica.) Contu­
do, depois de ter sido exila­
do da Bielorússia em 1923
(quando fazia parte da antiga
União Soviética), tornou-se
reconhecido como um im­
portante artista da França.
47
cíficas ou gerais. A s proibições contra mentir, roubar e ferir são
exemplos de normas morais específicas. A Torá (a L e i Mosaica)
expressa muitas das normas morais específicas que foram reco­
nhecidas no judaísmo no decorrer da história. Dez destas — os
“Dez Mandamentos” ou “Decálogo” — têm tido influência pro­
funda e duradoura não só no judaísmo e no cristianismo, mas tam­
bém na civilização ocidental em geral. Os cristãos acreditam que
Jesus resumiu toda a Le i Mosaica em duas or­
dens: amar a Deus sobre todas as coisas, e amar
Quando falamos sobre
ao próximo (inclusive aos inimigos) como a si
mesmo. Normas morais gerais são chamadas
cosmovisão, dois dos tipos mais
princípios morais. Incluem princípios de pro­
importantes de normas são a norma
priedade, ju stiça e utilidade. Os princípios
moral e a norma estética.
morais gerais, como a preocupação pelo bemestar e tratamento justo aos pobres, são eviden­
tes ao longo dos escritos proféticos hebraicos.
As normas estéticas são padrões pelos quais julgamos o que é
bonito, agradável ou sublime. A cultura ocidental de hoje parece
enraizada na crença de que os julgamentos estéticos são mera­
mente expressões de gosto pessoal, e que gosto não se discute. Ou
você gosta de algo (acha bonito, por exemplo) ou não gosta. Ne­
nhum padrão pode ser evo­
cado para apoiar-se ao se fa­
zer um julgamento ou pedir
a avaliação de outrem sobre
o fenómeno em questão. En ­
tretanto, esta visão parece
mais uma extensão de certa
ideologia prevalecente do
que um insight estético ínte­
gro. Além disso, as cosmovisões que historicam ente
têm dominado a civilização,
como também muitas que
hoje existem, não comparti­
lharam o ponto de vista de
que gosto é indiscutível.31
Pelo menos os pensado­
res críticos reconheceram a
relação importante entre a
ideologia de uma cosmovi­
são e sua dimensão estética.
Se a ideologia é prim aria­
mente intelectual, então a es­
tética é no mínimo afetiva: a
música, a pintura, a escultu­
ra e outras formas de arte têm Crucificação Branca, fo i produzida em 1938, três anos depois de Chagall ter
a Polónia e ficado cara a cara com o anti-semitismo virulento daquela
tremendo potencial para nos visitado
época e lugar.
Crucificação Branca”, © 1996, The Art Institute of Chicago. Todos os direitos reservados.
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
mover. Elas podem ser empregadas para reforçar as crenças cen­
trais de uma cosmovisão. Obviamente temos de reconhecer que
elas também têm o potencial para minar essas crenças centrais.
Então qual é a relação entre os elementos normativos de uma
cosmovisão e os outros elementos? Em palavra bastante simples,
os elementos normativos tanto moldam quanto são moldados pe­
los outros elementos. Por exemplo, os antigos hebreus experimen­
taram Deus como uma deidade poderosa, criativa, dinâmica e fre­
quentemente misteriosa. As vezes até o temiam. Mas sua impres­
são dominante não era de um Deus vingativo e caprichoso, mas de
um Deus bom, amoroso, santo e íntegro. Além disso, as caracte­
rísticas que eles acreditaram que Ele possuía eventualmente tor­
naram-se mandamentos morais para eles. Ele esperava obediência
e sacrifícios a E le , mas também esperava atendim ento adequado
às necessidades dos pobres; E le esperava observância formal do
sábado, mas também conduta correta. Nem a conduta correta em
si era suficiente. E le queria que o comportamento dos hebreus
refletisse um caráter correto.
No que diz respeito à dimensão estética, o Deus que tirou os
hebreus da escravidão no Egito e os conduziu pelo deserto tam­
bém ordenou-lhes que erguessem um tabernáculo, um lugar espe­
cial onde Ele os encontraria. Esta estrutura (não tanto um edifício
como uma tenda elaborada) deveria ser construída de acordo com
suas instruções detalhadas, sob a direção dos mais qualificados e ar­
tísticos artesãos entre eles. Sabemos sobre estas coisas, claro, porque
eles no-las transmitiram através das narrativas importantes nas Escri­
turas hebraicas. O que vemos neste exemplo é que os elementos
normativos de uma cosmovisão, juntamente com a experiência, a ide­
ologia e a narrativa, são entretecidos juntos num único tecido da vida
para os hebreus antigos. Relações semelhantes nestes elementos tam­
bém se manteriam fiéis às cosmovisões de outros povos.
O Elemento Ritualista
Com nossas discussões dos elementos ideológico, narrativo e
normativo de uma cosmovisão, levamos em conta as crenças cen­
trais e os valores que entram em nossas vidas. Mas uma cosmovi­
são consiste em mais do que estas convicções. Uma cosmovisão
vital e dinâmica também inclui inevitavelmente certos rituais. Se
a cosmovisão é secular, seus rituais poderiam incluir paradas ou
representações públicas de eventos política ou nacionalmente
significantes (por exemplo, D ia da Independência, D ia da Procla­
mação da República, o Ano Novo). Se é teísta, seus rituais prova­
velmente incluirão atos específicos de adoração ou maneiras es­
peciais de celebrar datas ou eventos religiosos importantes (por
exemplo, Hanuká, Páscoa, Natal).
O que separa os rituais de qualquer outro tipo de comporta­
mento humano e o que os toma de significado especial para nós?
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
49
Um modo de começar a responder estas perguntas é considerar
brevemente algumas das características comuns, mas frequente­
mente ignoradas, de nossa linguagem e comportamento.
Em princípios da década de 1960, o filósofo oxfordiano J. L .
Austin escreveu um livro que chamava a atenção para o papel
especial que as palavras desempenham em nossa linguagem e vida
diária. É óbvio que algumas palavras são simplesmente nomes ou
rótulos para objetos. Outras são executantes,
segundo observação de Austin, pois de fato
Um ritual é uma cerimónia
fazem coisas.32 Quando uma amiga me pede
executada em ocasiões especiais,
para encontrá-la a certa hora e lugar e eu res­
pondo: “Ire i, prometo” , fiz mais que expressar
projetado a representar ou recordar
meus sentimentos ou predizer minha conduta.
um evento especial.
F iz uma promessa. O mesmo é verdade quan­
do digo: “Eu o parabenizo...” ; “Desculpe-me
por...” ; “Eu inauguro este templo...” ; “Aceito sua oferta...” Dizer
as palavras constitui o próprio ato. Dito de outra maneira, dizer as
palavras realmente importa em executar um ato.
Elaborando na linha de raciocínio de Austin, podemos ampliar
a noção de executantes para incluir os gestos. Um soldado reco­
nhece a autoridade de um oficial na saudação, uma anfitriã saúda
sorrindo, um professor concorda inclinando a cabeça, um pai nega
permissão meneando a cabeça, um homem e uma mulher selam
seu casamento trocando anéis e beijando-se.
Agora, em última análise, os rituais geralmente usam palavras
e gestos. Eles são uma classe especial de palavras e ações que de
fato fazem coisas. Um ritual é uma cerimónia executada periodi­
camente em ocasiões especiais. É projetado a representar ou re­
cordar um evento especial. Pode ser sombrio ou festivo, formal ou
informal.
Nem todos os rituais funcionam precisamente da mesma ma­
neira. Na realidade, baseado no modo como funcionam, podemos
identificar pelo menos três tipos diferentes de rituais. Uma forma
de ritual é tencionada a renovar laços. Fazendo-se isso, fortalecese o grupo. Nos Estados Unidos, vemos tanto a renovação de la­
ços quanto o fortalecimento do grupo durante as celebrações a
cada ano do D ia da Independência. Discursos de figuras públicas
proeminentes, piqueniques fam iliares e comunitários, soltar fo­
gos de artifício ao término do dia — são rituais que lembram os
americanos de sua herança política comum. Ao lembrá-los assim,
as celebrações rituais renovam e fortalecem os laços nacionais que
unem os americanos como um povo.
Outra forma de ritual celebra ritos de uma maneira que recria
um evento, tomando-o real no presente. Uma característica proe­
minente da celebração do D ia de Independência americana — soltar
fogos de artifício à noite — serve a esta função além da função
descrita mais acima. Soltar fogos de artifício é uma representação
estilizada da batalha (o disparo dos mosquetes, a detonação dos
50
MICHAEL D. PALMER
canhões) durante a Guerra Revolucionária, que assegurou a inde­
pendência política da Inglaterra tão ousadamente declarada no fa­
moso documento de 4 de julho de 1776.
Um terceiro tipo de ritual facilita a transição de um estado a
outro. Por exemplo, o bar mitzvah é a cerimónia judaica na qual
um menino (tradicionalmente de 13 anos de idade) é iniciado na
comunidade religiosa e realiza seu primeiro ato como adulto len­
do na sinagoga o trecho semanal da Torá. A s cerimónias de gradu­
ação nas instituições educacionais são um meio secular de marcar
a transição de estudante para formado.
Todos os rituais parecem ter em comum pelo menos duas ca­
racterísticas essenciais: 1) fornecem ocasião para reflexão no sig­
nificado das crenças centrais do indivíduo, e 2) são destinadas a
evocar uma resposta afetiva às crenças centrais do indivíduo. Ambas
as funções integram os complicados padrões de crenças, narrativas e
normas no tecido da vida interior e caráter do indivíduo.
O Elemento Experimental
Quando consideramos o modo como uma equipe de progra­
madores desenvolve um novo sistema operacional para computa­
dores, ou a maneira como um lógico deriva a conclusão de uma
prova de lógica, ou a forma como um matemático resolve uma
equação, notamos imediatamente que estas são tarefas principal­
mente intelectuais. Os problemas em cada caso são estritamente
racionais em natureza, e não exigem o envolvimento das emoções
para resolvê-los. Claro que não é incomum ouvir os peritos nos
campos técnicos falarem de forma apaixonada sobre seu trabalho.
Mas quando os ouvimos falar deste modo, não confundimos o
entusiasmo com a habilidade intelectual para executar tais tarefas.
Se os programadores de computador, os matemáticos ou os lógi­
cos são ou não afetados pelas tarefas técnicas que os confrontam,
não é estritamente pertinente à conclusão dessas tarefas. O mes­
mo não é verdade quando alargamos a discussão para além dos
campos técnicos e começamos a considerar os relacionamentos
que as pessoas têm com sua cosmovisão. Falando de modo geral,
quando as pessoas adotam uma cosmovisão, fazem-no de corpo e
alma. Isto significa que quando adotam uma cosmovisão, elas se
entregam não só intelectualmente, mas também emocional e espi­
ritualmente. Quando isto ocorre, a importância de certas experi­
ências afetivas e espirituais competirá com a importância da ideo­
logia, o elemento racional de uma cosmovisão.
Com frequência, as experiências afetivas e espirituais também
desempenham um papel primordial no nascimento e desenvolvi­
mento de uma cosmovisão. Nesta conexão, é notável que o judaís­
mo e o cristianismo, os quais têm ideologias altamente desenvol­
vidas, tenham Abraão do Antigo Testamento como fonte de inspi­
ração. Abraão passou seus primeiros anos em Ur, lugar cujos ha­
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
bitantes (os caldeus) provavelmente adoravam muitos deuses. Pa­
rece plausível especular que, nesses dias, a ideologia de Abraão,
assim como das pessoas ao seu redor, era politeísta (que admite a
existência de muitos deuses). O que, então, explica o fato de que
com a idade de 75 anos ele decidiu deixar seu país, seu povo e a
casa do seu pai, e partir para uma terra que nunca tinha visto an­
tes? As Escrituras não atribuem a mudança a uma troca de ideolo­
gia. Antes, descrevem uma experiência: Deus
falou com ele (Génesis 12.1-3). As crenças de
Quando a pessoa adota uma
Abraão sobre Deus (parte dessa ideologia) pa­
cosmovisão, se entrega não só
recem ter mudado e amadurecido somente de­
pois que ele respondeu fielmente à voz de Deus.
intelectualmente, mas também
Em suma, a experiência de Abraão deu à luz a
emocional e espiritualmente.
uma nova maneira de pensar.
A maioria das cosmovisões religiosas dá
lugar proeminente à experiência. E comumente
considerada como força motriz em seu nascimento e desenvolvi­
mento. O mesmo se aplica às cosmovisões filosóficas? Em muitos
casos, a resposta é sim. Uma concepção errónea comum sobre
cosmovisões filosóficas é que elas são exclusivamente produto do
intelecto. O antigo filósofo grego Platão promoveu visão mais pre­
cisa, quando afirmou que a filosofia começa maravilhada. Em
outras palavras, o raciocínio filosófico é motivado habitualmente
pelas experiências que nos afetam profundamente. O nascimento
de uma criança, a morte de um amigo querido, um motim político,
encontros com fenómenos naturais majestosos ou temerosos —
estas e outras incontáveis experiências também podem nos levar a
ponderar questões de preocupação última. Quando a reflexão em
tais assuntos se aprofunda suficientemente, uma cosmovisão filo ­
sófica pode emergir.
O desenvolvimento da própria cosmovisão filosófica de Platão
ilustra o ponto. Platão nasceu em 428 a.C ., não muito depois do
começo da guerra entre Esparta e Atenas, que durou quase três
décadas (431-404 a .C .). Durante sua mocidade, ele vivenciou o
falecimento e subsequente colapso das instituições políticas em
Atenas, e experimentou em primeira mão o caos social em que
caiu a cidade. Estas experiências em sua juventude parecem ter
causado tremendo impacto em seu desenvolvimento filosófico.
M ais tarde, em seus anos maduros, ele escreveu a República , um
dos principais documentos políticos e filosóficos da literatura oci­
dental. Nele, Platão enuncia não só sua visão de uma sociedade
ideal, onde a justiça predomina, mas também fornece os temas
centrais de sua cosmovisão.
As cosmovisões filosóficas mais recentes, como o marxismo e
o existencialismo ateísta, exibem um padrão sim ilar. O marxismo
geralmente é considerado como uma ideologia, e certamente esta
não é uma maneira inexata de reputá-lo. Mas, como o platonismo,
não se desenvolveu num vazio social. O próprio M arx parece te
51
sido profundamente afetado pelo que viu e leu sobre as condições
de trabalho suportadas pelos trabalhadores da Europa do século
X IX , particularmente na Inglaterra. Em sua principal obra, O Ca­
pital, ele lança a teoria económica pela qual ficou famoso. Porém,
ele também detalha as condições miseráveis de mulheres que v i­
viam (e frequentemente morriam) como virtuais escravas em es­
tabelecimentos escravizantes, crianças que labutavam em fundi­
ções, e homens que trabalhavam muitas horas sem parar por salá­
rios de fome em moinhos e fábricas. Em suma, o marxismo emer­
giu em parte como ideologia social proeminente, porque o próprio
M arx foi profundamente movido pelo que experimentou.
Jean-Paul Sartre, amplamente considerado o fundador do mo­
derno existencialismo ateísta, morou na França durante e entre a
Prim eira e Segunda Guerras Mundiais. Muitas de suas mais desta­
cadas declarações ideológicas — a realidade não tem propósito
além daquela que lhe impomos, as relações humanas são domina­
das pelas lutas de poder — estão arraigadas em suas experiências
daquele período. Claro que para pessoas como Platão, M arx e
Sartre, suas ideologias eram acompanhadas de suas experiências,
e não separadas delas.
Dois pontos principais evidenciam-se de nossa discussão do
elemento experiencial de uma cosmovisão. Prim eiro, a experiên­
cia não é uma característica incidental de uma cosmovisão. Para o
partidário típico de uma cosmovisão, ela é tão importante quanto
a ideologia. Segundo, a experiência está integralmente ligada à
ideologia. Em alguns casos, serve até de manancial da ideologia.
O Elemento Social
Até aqui temos discutido os elementos de uma cosmovisão,
vendo-os sincronicamente. Em outras palavras, ignoramos sua
colocação na história e os discutimos como se existissem num
estreito período de tempo. Mas é claro que esta abordagem é en­
ganosa de vários modos. Em primeiro lugar, as cosmovisões não
permanecem inalteradas ao longo de sua história. Portanto, vê-las
apenas sincronicamente significa que ficamos propensos a igno­
rar ou negligenciar a importância das mudanças que ocorrem numa
cosmovisão com o passar do tempo. Além do mais, vê-las apenas
sincronicamente aumenta a probabilidade de que não apreciare­
mos uma das mais difíceis, contudo importantes tarefas que os
partidários de qualquer cosmovisão enfrentam: ser bem-sucedido
em perpetuar as crenças centrais e práticas de uma geração para a
outra. Por estas e outras razões, os estudiosos acharam proveitoso
considerar os fenómenos culturais à medida que ocorrem ou mu­
dam durante determinado tempo. Isto é chamado de abordagem
diacrônica. Um modo de exam inar uma cosm ovisão
diacronicamente é examinar os arranjos sociais e as instituições
de seus partidários.
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
M ax Weber (veja box no Capítulo 5) foi o primeiro a empreen­
der um exame sistemático dos arranjos sociais e instituições das
cosmovisões religiosas. E le notou que as religiões movem-se em
padrões historicamente cíclicos. Na primeira parte de um ciclo,
um líder carismático (um profeta, místico ou clérigo, por exem­
plo) desempenha um papel proeminente. Esta pessoa transmite
uma visão nova e poderosa às pessoas que estão preparadas para
recebê-la. Depois que aceitam a mensagem do líder carismático e
tomam-se seus discípulos, estas pessoas entram na fase de conso­
lidar e form alizar os insights do líder. Esta fase é comumente
marcada pelo tradicionalismo: os seguidores empenham-se em
manter o poder e a vitalidade da mensagem como recebidas do
fundador. A novidade dá lugar à rotina. A espontaneidade dá lugar
à institucionalização. Os ajuntamentos sociais e eventos que outrora requeriam pequena promoção ou notificação anterior agora
ocorrem de acordo com um horário fixo . Com o passar do tempo,
Platão (428-348 a.C .) foi filósofo grego
do período clássico. Como aristocrata jovem
concorreu a cargo político. A única relação
mais importante que travou foi com Sócrates,
cuja vida, personalidade e ensinos lhe influ­
enciaram profundamente. Poucos anos de­
pois da execução de Sócrates pelos atenienses
em 399 a.C., Platão começou a escrever traba­
lhos filosóficos na forma de diálogos (conver­
sações). Muitos deles apresentam Sócrates
como personagem principal. Em cerca de 386
a.C., perto de Atenas, Platão fundou a escola
mais influente do mundo antigo, a Academia,
onde ensinou até a morte. Seu aluno mais fa­
moso foi Aristóteles.
Os diálogos filosóficos de Platão entram
em três grupos principais. Os primeiros diá­
logos ou diálogos socráticos (por exemplo,
Apologia, Critias e Eutifró), apresentam
Sócrates em conversas viva ze s com
atenienses proeminentes sobre assuntos im­
portantes como a devoção e a coragem. Com
frequência as visões colocadas na boca de
Sócrates parecem ser consistentes com o que
se acredita que o Sócrates histórico manti­
nha. Os diálogos do período mediano ou
maduro (por exemplo, A
R epública, Fedo, O
Simpósio) ainda apresen­
tam Sócrates como pensa­
dor poderoso c falante, mas
acredita-se que a visões que
promovia são de Platão, o
filósofo maduro. Os diálo­
gos do último período ou período crítico (por
exemplo, Timeu, Parmênides e As Leis) pa­
recem reter a forma de diálogo apenas no
nome e trazem mais semelhança a tratados
que a diálogos. Na maioria das vezes Sócrates
não é o protagonista; às vezes ele faz somente
um aparecimento de relance; em Av Leis ele não
aparece de jeito nenhum. Os últimos diálogos
são chamados diálogos críticos, porque neles
Platão avalia e desafia suas próprias visões filo­
sóficas anteriores.
Os diálogos de Platão tocam virtualmen­
te em todo problema importante que foi objeto de estudo de filósofos subsequentes.
Seus ensinos são considerados entre os mais
influentes da história da civilização ociden­
tal, e seus escritos estão entre os mais im­
portantes da literatura em todos os tempos.
T
54
MICHAEL D. PALMER
os seguidores separam-se em facções identificáveis no grupo: os
que prudentemente aderem às rotinas da instituição, e os que ten­
tam recapturar a vitalidade da mensagem original do fundador. A
tensão entre estas duas facções pode durar muito tempo, mas even­
tualmente uma divisão acontece e o ciclo começa novamente quan­
do uma nova figura carismática explora a tensão.
O relato de Weber explica muitos fenómenos interessantes nas
cosmovisões religiosas. Por exemplo, ajuda a explicar a existên­
cia de seitas religiosas. No judaísmo, o hassidismo originou-se na
Polónia do século X V III, como um movimento em resposta à per­
seguição e reação contra o formalismo académico do judaísmo
rabínico. Seu fundador carismático chamava-se Baal Shem Tov,
que incentivava a expressão religiosa jo vial pela música e dança,
e ensinava que a pureza de coração era mais agradável a Deus do
que a repetição mecânica de rituais e o estudo intensivo das E scri­
turas e do Talmude. Mas as gerações subsequentes de hassidim
passaram precisamente pelos tipos da dinâmica cíclica identifica­
dos por Weber. A medida que os líderes e membros da seita pro­
curavam consolidar os insights do fundador, deram crescente aten­
ção a fatores externos que os identificavam como “ os piedosos” .
Quase imediatamente, as roupas e os penteados (descritos tão elo­
quentemente por Potok) começaram a se salientar como caracte­
rísticas identificadoras dos hassidim. Além disso, a adoração que
outrora era apreciada por sua espontaneidade, alegria e falta de
formalismo, passou a assumir padrões específicos e rotineiros.
Mesmo o estudo intenso das Escrituras e do Talmude, depreciado
pelos primeiros líderes, no fim tornou-se uma característica im ­
portante da vida hassídica. Na realidade, o estudo ganhou tama­
nha obsessão que dentro do prazo de algumas gerações do seu
início, o hassidismo tinha produzido vários grandes talmudistas. Em
várias conjunturas históricas, a tensão entre aqueles que fiel, mas
mecanicamente, mantiveram-se firmes às tradições, e aqueles que ten­
tavam recuperar o espírito e vitalidade que animou Baal Shem Tov
desencadeou-se abruptamente. Divisões ocorreram sobre pontos de
doutrina e prática, e novos ramos do hassidismo se formaram, em
geral sob a direção de um novo líder influente.
Em The Chosen, Potok, que é judeu e intimamente fam iliari­
zado com as tensões e pontos estressantes dentro do judaísmo,
fala com autoridade quando explica como os hassidim viam os
grandes líderes de sua tradição: “ Os hassidim tiveram grandes lí­
deres — tzaddikim, como os chamavam, os íntegros... Eles segui­
am esses líderes cegamente. Os hassidim acreditavam que o tzaddik
era um vínculo sobre-humano entre eles e Deus” .33 Profundo afeto por seus líderes, lealdade feroz uns aos outros e um forte senso
de tradição tomou possível aos hassidim sobreviverem durante
séculos de perseguição na Europa oriental.
Por outro lado, estas mesmas características também geraram
dentro deles atitudes de superioridade espiritual em relação aos
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
outros judeus, e os levaram a definir a sociedade grupai com ex­
clusividade. Aqueles, cujas visões eles rejeitaram, foram estigma­
tizados por eles com rótulos: goyim, para os gentios, e apikorsim,
para os judeus.
Seitas como o hassidismo dificilm ente são exclusivas ao juda­
ísmo. Se Weber estiver certo, todas as principais religiões as têm,
porque todas as principais religiões passam pelos ciclos sociais
que ele descreveu. Além disso, esses ciclos não parecem estar li­
mitados a comunidades religiosas. Os grupos sociais seculares
comumente mostram a mesma dinâmica. O desenvolvimento his­
tórico do comunismo tanto na Rússia quanto na China ilustram
perfeitamente o ponto. Vladim ir Lenin (1870-1924) foi revoluci­
onário russo, fundador do bolchevismo e força importante no es­
tabelecimento da União Soviética. Mao Tse-Tung (1893-1976) foi
revolucionário chinês e fundador da República Popular da China.
Am bos eram conhecidos como v isio n á rio s e líd eres
carismáticos. Contudo, enquanto ainda viviam , ambos viram a
visão pessoal que tinham do socialismo sofrer transformação. As
organizações políticas e os governos encarregados de executar a
visão desses homens em seus respectivos países depressa toma­
ram-se fortemente burocráticas, totalitárias até. Mao viveu o bas­
tante para entender o quão distante as instituições políticas e a
burocracia governamental tinham se desviado de sua visão. Em
parte como reação a isso, ele instigou a suposta revolução cultural
(1966-1969), um período de difundida agitação que ele parecia
considerar ocasião para recapturar o espírito revolucionário das
primeiras décadas.
Nenhuma cosmovisão pode sobreviver à parte de uma situa­
ção social que transponha múltiplas gerações. Em outras palavras,
uma cosmovisão que só dura uma geração quase não é digna do
nome. Assim , o elemento social é indispensável para o sucesso a
longo prazo de qualquer cosmovisão. Aqueles que se preocupa­
ram em passar uma cosmovisão vital à geração seguinte utiliza­
ram os elementos discutidos anteriormente: ideologia, narrativa,
normas morais e estéticas, rituais e experiência. Os professores
procuram transmitir uma compreensão de ideologia e normas, os
pais contam histórias, os líderes da comunidade buscam nutrir uma
avaliação dos rituais, e todo o mundo trabalha para prover eventos
sociais e instituições que evoquem as experiências que são vitais
para a cosmovisão.
Claro que não há garantia de que cada geração sucessiva en­
tenderá e permanecerá fie l à sua herança. Se Weber tiver razão
acerca das fases de desenvolvimento de uma cosmovisão, então
toda geração enfrenta duas tarefas assustadoras: 1) a tarefa de trans­
m itir fielmente à próxima geração os insights do seu passado (como
os enunciados na visão do fundador), e 2) a tarefa de ajudar a
próxima geração a lidar com as tendências culturais (sociais, polí­
ticas, religiosas) no presente. Os hassidim retratados em The
56
MICHAEL D. PALMER
Chosen procuraram cumprir a primeira tarefa, em parte estabele­
cendo yeshivas, exigindo rigorosos estudos diários do Talmude e
reunindo-se regularmente para oração nas sinagogas. Buscaram
realizar a segunda tarefa, em parte adotando um estilo distintivo
de vestuário, restringindo sua associação com estranhos, lim itan­
do a amplitude das matérias ensinadas na escola, e proibindo seus
filhos de assistirem film es.
Há inumeráveis maneiras de deixar de trans­
mitir uma cosmovisão em toda a sua riqueza. O
Nenhuma cosmovisão
fascínio da cultura popular contemporânea pode
pode sobreviver à parte de uma
ser uma distração importante. Foi justamente por
isso
que Potok fez com que os rabinos em The
situação social que transponha
Chosen objetassem em perm itir as crianças
múltiplas gerações.
hassídicas assistirem filmes e participarem de
jogos de beisebol. O fato de Danny e Reuven
terem se encontrado pela primeira vez num jogo de beisebol dá teste­
munho ao poder da cultura popular contemporânea.
Além do canto de sereia da cultura popular, as estratégias para
transm itir uma cosmovisão podem ser falhas ou ineficazmente
executadas. Por exemplo, os métodos pedagógicos apropriados
para uma pessoa ou geração podem ser impróprios para outra. O
rabino Saunders ensinou Danny impondo uma regra de silêncio:
desde quando Danny tinha quatro anos, o rabino Saunders só fala­
va com ele em situações formais, como quando eles estudavam o
Talmude. E le estava usando um método empregado por seu pai. O
propósito era assegurar que o seu filho brilhante aprenderia so­
frendo (pelo silêncio imposto) e, assim, aprenderia a sentir empatia
pelos que sofrem. No caso de Danny, a técnica quase não deu cer­
to, e por pouco não o enlouqueceu.
Obviamente há muitas dificuldades associadas com a tarefa de
transm itir uma cosmovisão de uma geração para a outra. Numa
corrida de revezamento há muitas maneiras de derrubar o bastão.
Dadas as inumeráveis dificuldades associadas com a tarefa, não
deveríamos ficar admirados que algumas cosmovisões caíssem em
desgraça e deixassem de representar um papel vital nas vidas de
um povo. Antes, deveríamos ficar maravilhados que algumas
cosmovisões foram transmitidas com sucesso de uma geração para
a outra por milhares de anos.
Elementos de uma Cosmovisão Cristã
Ao longo deste capítulo, citamos exemplos de diversas cos­
movisões para ilustrar os vários componentes de uma cosmovi­
são. Alguns dos exemplos foram retirados de nossa herança cristã.
Encaminhamo-nos à pressuposição de que o cristianismo é uma
cosmovisão, e que exibe elementos comuns a outras cosmovisões.
Agora estamos em posição para afirm ar explicitamente (e não
apenas presumir) que o cristianismo realmente é uma cosmovi-
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
são. Como outras cosmovisões, ela fornece uma abordagem in­
clusiva às preocupações essenciais da vida. Além disso, como ou­
tras cosmovisões, a cosmovisão cristã exibe todos os seis elemen­
tos discutidos nas seções precedentes. A seguir, vamos recapitular
os seis elementos de uma cosmovisão para destacar as crenças
centrais e práticas de uma cosmovisão cristã.
O Elemento Ideológico
Ideologia é um termo geral usado para descrever as crenças
centrais de qualquer cosmovisão. O nome mais habitual dado à
ideologia na tradição cristã é “ doutrina” . Outra maneira de ilus­
trar o ponto é dizer que, na tradição cristã, as declarações doutri­
nárias foram os instrumentos primários para declarar a ideologia
de uma cosmovisão cristã.
Como as outras principais cosmovisões, o cristianismo enun­
cia o que anteriormente chamamos de teoria de fundo sobre a na­
tureza do universo. Esta teoria de fundo inclui relatos do cosmo,
de Deus e da história. O cristianismo também oferece um relato
geral da natureza humana.
O C osm o
Na cosmovisão cristã, o cosmo foi criado por Deus. Esta posi­
ção separa o cristianismo das cosmovisões naturalistas, já que elas
não reconhecem a atividade divina no cosmo. Mas também separa
o cristianismo de outras cosmovisões que reconhecem a existên­
cia de seres divinos. Por exemplo, os gregos antigos acreditavam
que os deuses existiam , que eram imortais e que estavam ativos
no cosmo. Ao mesmo tempo, os gregos não acreditavam que os
deuses haviam criado o cosmo.
Na cosmologia grega antiga, a mais primitiva coisa existente era
uma unidade primordial, uma massa indiferenciada. O primeiro está­
gio do desenvolvimento era o aparecimento de um buraco (literal­
mente, “caos” ), uma separação em duas partes da unidade original.
As duas partes tomaram-se Céu e Terra. Os deuses da mitologia po­
pular apareceram somente muito mais tarde.34Aqui temos uma dife­
rença notável com a doutrina cristã, segundo a qual Deus existiu pri­
meiro e depois criou o cosmo: “No princípio, criou Deus os céus e a
terra” (Génesis 1.1). Além disso, o cristianismo ortodoxo assevera
que o cosmo é continuamente sustentado por Deus, e o que Ele criou
é bom. Os gregos acreditavam que os deuses eram ativos no cosmo,
mas não lhes atribuíam nenhuma responsabilidade pela existência
continuada do cosmo. Nem acreditavam que os deuses eram capazes
de determinar as qualidades morais de qualquer coisa que existe.
D eus
A s doutrinas cristãs sobre Deus são numerosas e complexas,
frequentemente sutis e altamente refinadas. Não podemos resu­
mi-las todas aqui. Porém, podemos reiterar algumas das mais im ­
portantes. Para começar, na doutrina cristã, Deus é a figura cen­
tral. Não apenas tudo foi criado por E le , mas tudo foi criado para
Ele. Ele é a fonte de tudo no cosmo e, no fim , tudo no cosmo
cumprirá seus propósitos de acordo com um plano traçado por Ele
desde tempos im emoriais. Deus também é bom. Além disso, Ele
não tem começo nem fim . Neste aspecto, o relato cristão de Deus
diverge de maneira importante do antigo relato grego dos seus
deuses. Os deuses gregos não eram uniformemente bons. Na ver­
dade, com algumas exceções, não eram moralmente superiores
aos seres humanos. É verdade que os deuses gregos eram conside­
rados seres imortais. Mas a imortalidade era um conceito lim ita­
do. Significava somente que os deuses não morreriam e não que
eles não tinham tido começo.
A H is tó ria
De acordo com a doutrina cristã, Deus não criou o cosmo e
depois o abandonou. Bem ao contrário, E le está intimamente en­
volvido no desdobramento dos eventos históricos. Na cosmologia
grega, o destino e o acaso receberam papéis proeminentes. Mas
estes eram forças fundamentalmente cegas e impessoais sobre as
quais nem os deuses nem os humanos exerciam muito controle.
Na doutrina cristã, Deus, que controla o destino de tudo, não é
cego nem impessoal. Ele está introspectiva e pessoalmente em ação
na história, num modo que consequentemente, a seu tempo, cum­
prirá seus propósitos. Neste ponto, claro que a doutrina cristã di­
fere notadamente não apenas das visões teístas limitadas como as
dos gregos antigos, mas também das cosmovisões naturalistas
(como do marxismo ou do existencialism o), que afirmam que os
eventos históricos são exclusivamente o resultado ou das forças
cegamente mecânicas, ou do empenho humano.
A N a tu re z a
H um ana
Comentamos anteriormente que as principais cosmovisões for­
necem não somente uma teoria de fundo sobre o universo, mas
também um relato geral da natureza humana. O cristianismo tam­
bém fornece tal relato. Este relato coincide com o que o cristianis­
mo afirma sobre o cosmo em geral: Deus criou a humanidade, Ele
não está afastado e distante, mas bastante íntima e pessoalmente
fam iliarizado com cada ser humano individual, e está executando
seus propósitos últimos na vida dos seres humanos individuais.
Mas aqui a semelhança entre a humanidade e o resto do cosmo
acaba. Estrelas e planetas, rios e montanhas, salmões e ursos cin­
zentos, prótons e nêutrons, tudo opera de acordo com certa or­
dem. Em toda criatura há certas forças naturais e inclinações que a
orientam a um fim e a capacitam a agir de certas maneiras. Esta
ordem é a que Deus impôs nas criaturas, quando instilou nelas as
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
tendências que têm, e é uma expressão de sua lei eterna que gover­
na o cosmo. É óbvio que os seres humanos são parte da natureza e,
como tal, também exibem inclinações naturais que os orientam a um
fim e os capacitam a executar as atividades físicas e mentais.
Mas os seres humanos estão ordenados ao seu fim e às suas
atividades de certo modo que difere profundamente de outras cri­
aturas. Os seres humanos são dotados de razão e, portanto, têm a
capacidade (embora limitada) de descobrir por si mesmos o que
necessitam fazer para alcançar seus fins. Diferentes de outras cri­
aturas distintas, eles também têm a capacidade de ignorar ou re­
jeitar os fins que lhes sejam apropriados. Em outras palavras, eles
podem eleger não se dirigir aos ideais que Deus lhes fixou anteri­
ormente. Tragicamente elegeram fazer isso e, assim, se alienaram
de Deus, o Criador de todas as coisas boas. Na doutrina cristã,
esta escolha em não visar os ideais estabelecidos por Deus é cha­
mada de pecado (tradução do grego e do hebraico que significa
errar a marca ou o alvo).
Quais são os ideais e como a atividade humana pode ser
reorientada de modo a que os seres humanos os almejem mais
uma vez? Alguns dos mais básicos e importantes são as caracte­
rísticas interiores que definem o caráter da pessoa, as relações fra­
ternais com os seres humanos e uma relação harmoniosa com o
próprio Deus. Se os seres humanos são capazes de direcionar um
curso para longe dos ideais divinamente ordenados, eles não são
semelhantemente capazes de redirecionar o próprio curso em direção a esses ideais e restabelecer uma relação harmoniosa com
Deus. Só Deus pode fazer isso, e E le escolheu efetuar a reconcili­
ação mediante a vida, morte e ressurreição de Jesus.
De onde vêm as doutrinas da cosmovisão cristã? Fundamen­
talmente, vêm da B íb lia. Visto que todas as partes da B íb lia são
consideradas sagradas e divinamente inspiradas, todas elas tam­
bém são fontes potenciais de doutrina.35
O Elemento Narrativo
Na cosmovisão cristã, as narrativas podem ser divididas em
duas categorias gerais — primária e secundária — , refletindo a
importância relativa e autoridade das fontes. As narrativas primá­
rias são encontradas na B íb lia. Incluem histórias sobre a criação
do cosmo por Deus; o afastamento de Deus por parte do primeiro
homem e da primeira mulher; os subsequentes concertos entre Deus
e a humanidade; o nascimento, morte e ressurreição de Jesus; a
formação e expansão da Igreja e os acontecimentos finais da his­
tória. Também incluem histórias de algumas das mais notáveis
pessoas de fé, como Abraão, Jacó, M oisés, Josué, D avi, Daniel,
Pedro e Paulo.
As narrativas secundárias refletem a experiência contínua dos
cristãos ao longo dos séculos desde a formação da Igreja. Incluem
relatos da morte de mártires, histórias de santos, descrições de
milagres e testemunhos da fidelidade de Deus em assuntos peque­
nos e grandes.
As narrativas secundárias às vezes tomam a forma de relatos
históricos. Dois exemplos modernos populares são O Refúgio Se­
creto, de Corrie ten Boom (que fala sobre uma fam ília cristã que
escondeu os judeus e, assim, os salvou da morte às mãos dos na­
zistas) e A Cruz e o Punhal, de David W ilkerson (sobre um m inis­
tro jovem que foi para as ruas e becos sujos de Nova York para
pregar o Evangelho aos membros de uma gangue de adolescentes
viciados em droga).
Às vezes, as narrativas secundárias tomam uma forma literá­
ria. O poema épico de Dante A ligh ieri, A Divina Comédia, a ale­
goria de John Bunyan, O Peregrino, o poema épico de John M il­
ton, O Paraíso Perdido, a curta história de Flannery 0 ’Connor,
“Revelação” , e os romances de C . S. Lew is, A í Crónicas de Namia,
são exemplos notáveis de peças literárias que enunciam uma cos­
movisão nitidamente cristã.
Às vezes, as narrativas secundárias até aparecem nas artes v i­
suais. A catedral gótica medieval em Chartres, França, encarna
eloquentemente uma cosmovisão cristã. O edifício foi disposto na
forma de cruz; os vitrais descrevem eventos do Antigo e Novo
Testamentos; as figuras esculpidas e colocadas nos portais fazemnos lembrar de personagens bíblicas famosas; seus pináculos apon­
tam para o céu. Cada característica visível da arquitetura da cate­
dral nos faz lembrar das narrativas centrais do cristianismo e, as­
sim, reforça as doutrinas e ensinos da Igreja medieval.
Numa cosmovisão cristã, as narrativas primárias são mais im ­
portantes e mais autorizadas do que as narrativas secundárias. Isto
deve-se ao fato de que elas aparecem na Escritura Sagrada, a qual
é considerada divinamente inspirada. Entretanto, as narrativas
secundárias certamente não são destituídas de im portância.
Além do m ais, as narrativas prim árias e secundárias proporci­
onam funções semelhantes. Como as narrativas em outras cos­
m ovisões, elas reforçam e embelezam temas ideológicos cen­
trais, ou seja, doutrinários, e fornecem padrões, ou modelos, para
os crentes seguirem.
O Elemento Normativo
Comentamos anteriormente que uma norma é um padrão de
algum tipo, que encontramos normas em virtualm ente toda
faceta da vida (da gramática às artes culinárias e à le i), e que
nossos julgamentos e avaliações de todo comportamento hu­
mano e caráter firmam-se nas normas. Também notamos que
dois dos tipos mais importantes de normas são as normas mo­
rais (ética) e as normas estéticas. Uma cosmovisão cristã in ­
clui ambos os tipos.
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
A D im e n s ã o M
oral
Para os cristãos, as normas morais derivam das Escrituras. Isto
acontece pelo menos de duas maneiras. A s vezes, as Escrituras
explicitamente proíbem ou exigem
certo tipo de comportamento. Os
Dez Mandamentos, apresentados
em Êxodo 20, e os dois mandamen­
tos de Jesus para amar a Deus e ao
próxim o são bons exemplos de
proscrições e prescrições específi­
cas. Mas normas importantes nem
sempre são apresentadas na forma
de mandamentos específicos. Por
vezes, elas surgem como enuncia­
dos vívidos e poderosos nas narra­
tivas de homens e mulheres que
aparecem na Escritura.
O sétimo mandamento proíbe o
adultério (Êxodo 20.14); a história
de José que foge da esposa de
Potifar (Génesis 39) exem plifica
dramaticamente o que significa v i­
ver segundo o sétimo mandamen­
to. O décimo mandamento proíbe
desejar coisas que pertencem ao
próximo (Êxodo 20.17); a história
do desejo de D avi por Bate-Seba, a
esposa de U rias, o heteu, nos faz
lembrar vividamente dos resultados
trágicos de agir segundo nossos
desejos cobiçosos (2 Samuel 11). A
lei levítica exige que o povo esco­
lhido de Deus ame o próximo como
a si mesmo (Levítico 19.18); a his­
tória de Jônatas e D avi descreve
eloquentemente o significado do
amor profundo e permanente de um
amigo: “A alma de Jônatas se ligou
com a alma de D avi- e Jônatas O Plano da Catedral de Chartres, França. (Segundo Frankl.)
amou como à sua própria alma” (1
Samuel 18.1).
Séculos depois, quando um jovem rico pediu a Jesus que lhe
dissesse quais eram as exigências para alcançar a vida eterna, Je­
sus o lembrou que os mandamentos lhe exigiam que amasse ao
próximo como a si mesmo e, depois, disse-lhe para vender todas
as suas possessões e dá-las aos pobres. O jovem partiu triste. Se a
história do amor de Jônatas por D avi exem plifica amar ao próxi­
mo, a história do jovem rico deixa claro como outras coisas po-
62
MICHAEL D. PALMER
dem reivindicar nosso afeto e nos afastar para longe do ideal. Ao
longo da B íb lia, as narrativas dão vida ao significado das normas
morais que, do contrário, pareceriam como mandamentos rudes e
formais.
A D im e n s ã o E s t é t ic a
Se a narrativa desempenha um papel proeminente mostrando
as normas morais para o cristão, desempenha papel ainda maior
demonstrando as normas estéticas — as normas pelas quais julga­
mos o que é bonito, agradável ou sublime. Considerando que as
Escrituras proporcionam uma riqueza de mandamentos para guiar
nosso comportamento e desenvolvimento de caráter na esfera
moral, elas fornecem algumas ordens explícitas sobre o que se
espera na esfera estética. Mas esta falta relativa de instrução espe­
cífica não significa que as Escrituras estejam caladas no assunto
de julgar o que é bonito, agradável ou sublime. Elas expressam
princípios importantes na forma de narrativa. Os detalhes apre­
sentados para construir o Tabernáculo no Livro de Êxodo36 não
deixam dúvida de que Deus valoriza imensamente a beleza. Além
disso, podemos deduzir das declarações sobre Bezalel, o principal
artífice do projeto, que a habilidade especializada e a perícia são
dons de Deus. Moisés, falando aos israelitas, diz acerca dele: “E is
que o SEN H O R tem chamado por nome a Bezalel. [...] E o E sp íri­
to de Deus o encheu de sabedoria, entendimento e ciência em todo
artifício, é para inventar invenções, para trabalhar em ouro, e em
prata, e em cobre, e em artifício de pedras para engastar, e em
artifício de madeira, para trabalhar em toda obra esmerada” (Êxodo
35.30-33).
Se a habilidade e o talento artístico são dons de Deus, a narra­
tiva em Êxodo deixa claro que os produtos resultantes da aplica­
ção desses dons não eram destinados a ficar guardados em mu­
seus. Os museus — edifícios erigidos para proteger e exibir artefatos e obras de arte — são em grande parte invenção moderna.
Mesmo quando protegem e exibem objetos de arte, eles dão teste­
munho silencioso do fato de que esses objetos já não pertencem à
vida cotidiana. O Tabernáculo do Antigo Testamento (e depois, o
Templo de Salomão) não eram museus. Eram lugares de adora­
ção, oração e (às vezes) celebração. Isto significa que os artefatos
e as obras de arte cuidadosamente produzidos por pessoas como
Bezalel não deveriam ser considerados objetos produzidos mera­
mente por amor a uma experiência estética pura — como se diz,
produzidos segundo a “ arte pelo amor a arte” . Antes, eram artefa­
tos e obras de arte cujo contexto significativo era um lugar de
adoração.
Em outras palavras, a contemplação de artefatos bonitos e obras
de arte — inclusive os artigos de vestuário dos sacerdotes, os co­
pos e tigelas, os altares, a arca da aliança — eram contínuos com
o ato da adoração. O mesmo Deus que chamou Bezalel e outros
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
artesãos para fazerem artefatos bonitos e obras de arte também
chamou o povo para entrar em adoração nos confins (ou pelo me­
nos próximo) de uma estrutura bonita e perto de objetos bonitos.
Mas claro que a adoração não era a adoração da beleza per se, mas
de Deus, o Criador de todas as coisas boas e bonitas.
Não estamos procurando fazer um esboço completo de uma
estética cristã. Nossa intenção é muito mais simples: Embora a
B íb lia dê poucas diretrizes ou instruções claras para avaliar a arte,
suas narrativas proporcionam fonte rica de exemplos que podem
nos ajudar a desenvolver uma estética cristã. Outro modo de al­
cançar o mesmo objetivo é: na ausência de instruções bíblicas ex­
plícitas para julgar coisas bonitas, agradáveis e sublimes, não
deveríamos concluir que Deus não se preocupa com a estética.
Nem deveríamos concluir que a arte é mera questão de gosto pes­
soal, e que nenhum padrão (norma) pode ser evocado para julgar
o que é apresentado como arte. As narrativas bíblicas ajudam o
leitor paciente a pensar em padrões apropriados. Por exemplo, elas o
fazem fornecendo modelos de contextos signifícãiivos (como adora­
ção ou celebração) dentro dos quais foram exibidos artefatos e obras
de arte. Entender estes contextos podem fornecer pistas sobre os lim i­
tes do esforço artístico e da avaliação artística para o cristão.
O Elemento Ritual
Os elementos ideológico, narrativo e normativo do cristianis­
mo enunciam suas crenças centrais. Mas o cristianismo é muito
mais que um conjunto de crenças. Como fé viva e cosmovisão,
inclui também rituais distintivos que ajudam a integrar as crenças
centrais na urdidura do comportamento e caráter dos crentes.
Identificamos anteriormente três funções dos rituais: 1) repre­
sentar eventos para tomá-los reais no presente, 2) facilitar as tran­
sições de um status para o outro, e 3) renovar laços entre os mem­
bros de um grupo. Os principais rituais no cristianismo atendem a
essas três funções.
O exemplo mais proeminente de um ritual que representa um
evento passado é a celebração da Ceia do Senhor. Evidentemente
este ritual era importante desde os mais prim itivos dias da Igreja.
Na época em que Paulo escreveu sua primeira carta aos crentes
coríntios, a Ceia do Senhor já estava em uso (1 Coríntios 11). Pa­
rece que alguns crentes a estavam usando como pretexto para fes­
tejar e beber, enquanto outros passavam fome. Por esta razão, Paulo
lembrou os crentes coríntios do propósito e significado da Ceia do
Senhor. Não é, mostrou ele, ocasião para se comer e beber desre­
grada e coletivamente. Antes, é ocasião para lembrar do sacrifício
de Cristo na cruz, e refletir sobre como está a condição espiritual
da pessoa.
No decorrer dos séculos, participar na Ceia do Senhor tem
sido definida nos termos da descrição que Paulo fez aos coríntios:
64
MICHAEL D. PALMER
“Porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice,
anunciais a morte do Senhor, até que venha” (1 Coríntios 11.26).
Os rituais também facilitam a transição de um status para o
outro. A expressão mais notável desta função de ritual no cristia­
nismo é a prática do batismo. O batismo marca a transição de um
conjunto de lealdade para outro, da identificação com o velho Adão,
o primeiro homem, para a identificação com o novo Adão, Cristo.
O batismo também atende à terceira função dos rituais: forta­
lecer laços com um grupo. Notavelmente, o batismo é um ato pú­
blico. Não é feito em segredo, mas na presença de testemunhas.
Assim , quando o convertido mergulha na água e depois emerge,
duas coisas acontecem. Prim eiro, o convertido, tendo simbolica­
mente morrido com Cristo, ressuscita para a vida com Cristo me­
diante sua ressurreição. Segundo, o convertido também se toma
parte de uma comunidade de crentes. Desta forma, o batismo esta­
belece um laço com todos os cristãos (a Igreja universal). Ao mes­
mo tempo, aqueles que testemunham o batismo são lembrados da
fé comum que os une a todos os crentes, vivos e mortos.
Antes de sairmos do elemento ritual, devemos parar por um
momento e refletir no significado dos rituais para o cristão. Os
rituais, na melhor das hipóteses, são expressões publicamente
observáveis de atitudes, intenções e disposições que essencialmente
O
A ctuai
da, &eJÍe&fu%çaó'
da, &eca, da Seaá&i
Todos os quatro Evangelhos relatam uma
ceia que Jesus teve com os discípulos próxi­
mo à época da Festa da Páscoa judaica e
imediatamente antes da crucificação: Mateus
26, M arcos 14,
Lu cas 22, João
13.
mente esta ceia
fo i considerada
importante, por­
que desde os pri­
m itivos dias da
Ig reja era lem ­
brada e comemo­
rada regularmente. Para m inim izar o abuso
e a distorção deste evento comemorativo na
igreja coríntia prim itiva, Paulo apresentou
instruções simples que se tornaram padrão
para todas as celebrações subsequentes da
Ceia do Senhor:
“ Porque eu recebi do Senhor o que tam­
bém vos ensinei: que o Senhor Jesus, na
noite em que foi traído, tomou o pão; e,
tendo dado graças,
E v id e notepartiu
­
e disse: Tom ai,
com ei; isto é o meu corpo que é partido
por vós; fazei isto em memória de mim.
Semelhantemente também, depois de cear,
tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o
Novo Testamento no meu sangue; fazei
isto, todas as vezes que beberdes, em me­
m ória de mim. Porque, todas as vezes que
comerdes este pão e beberdes este cálice,
anunciais a morte do Senhor, até que ve­
nha” (1 Coríntios 11.23-26).
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
65
não são vistas. Quando observados atenta e pensativamente, tornam-se os vestuários (túnicas cerimoniais) dos atos espirituais.
Claro que os rituais também podem ser representados de modo
irrefletido e mecânico. Neste caso, tornam-se meras rotinas e per­
dem seu poder espiritual. Onde está a diferença? O que determina
sua vitalidade? Os rituais que realizam sua promessa são instruí­
dos pela sã doutrina e fundamentados na experiência.
O Elemento Experiencial
Quando falamos do elemento experiencial do cristianism o
(aquele que é produzido pela experiência), temos em mente pri­
mariamente as formas pelas quais alguém encontra Deus. A B íb lia
está liberalmente salpicada de narrativas que descrevem tais en­
contros. Além disso, os encontros não seguem um modelo ou fór­
mula simples. Evidentemente, Deus toma sua presença conhecida
de numerosas e variadas maneiras. Não obstante, diversas descri-
O batismo é um ritual antigo, datado des­
de os mais primitivos dias da igreja. Mar­
cando uma quebra da identificação com o
velho Adão (o primeiro homem) para a iden­
tificação com o novo Adão, Cristo, o batis­
mo é o ritual de transição mais importante
da cristandade. Como ritual publicamente
representado, também serve para estabele­
cer e fortalecer os laços com membros da
comunidade imediata de fé, assim como com
os cristãos de todos os lugares e de todos os
tempos (a Igreja universal). A evidência para
a importância do batismo é vista no fato de
que o próprio batismo de Jesus está registra­
do nos Evangelhos.
João Batista falou aos seus seguidores:
“E eu, em verdade, vos batizo com água,
para o arrependimento: mas aquele que vem
após mim é mais poderoso do que eu; não
sou digno de levar as suas sandálias; ele vos
balizará com o Espírito Santo e com fogo.
Em sua mão tem a pá, e limpará a sua eira, e
recolherá no celeiro o seu trigo, e queimará
a palha com fogo que nunca se apagará.
“ Então, veio Jesus da G aliléia ter com
João junto do Jordão, para ser balizado por
ele. Mas João opunha-se-lhe, dizendo: Eu
careço de ser batizado por ti, e vens tu a mim?
“ Jesus, porém, respondendo, disse-lhe:
D eixa por agora, porque assim nos con­
vém cum prir toda a ju stiça. Então, ele o
perm itiu.
“ E , sendo Jesus batizado, saiu logo da
água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu
o Espírito de Deus descendo como pomba e
vindo sobre ele. E eis que uma voz dos céus
dizia: Este é o meu Filho amado, em quem
me comprazo” (Maieus 3.11-17).
ções bíblicas de encontros com Deus mostram padrões de experi­
ência que parecem repetir-se em tipos comuns de experiência na
história do cristianismo. Tocaremos aqui brevemente em quatro
exemplos: Paulo na estrada de Damasco (Atos 9), Isaías no Tem­
plo (Isaías 6), os apóstolos reunidos no D ia de Pentecostes (Atos
2), e Elias na caverna em Horebe (1 Reis 19).
A experiência de Paulo na estrada de Damasco foi de conver­
são radical. Aconteceu nos primeiros dias da formação da Igreja,
quando ela estava transbordando dos lim ites do seu local de nasci­
mento em Jerusalém, e espalhando-se para muitas regiões do anti­
go Oriente Próximo. Naquela época, a Igreja também estava co­
meçando a sofrer oposição organizada. Paulo (conhecido então
por Saulo) era judeu devoto e zeloso, com bastante treinamento
religioso na tradição farisaica. Por razões que não entendemos
completamente, ele buscou prender e encarcerar qualquer cristão
que encontrasse em Damasco. As Escrituras dizem que enquanto
se aproximava de Damasco, uma luz do céu iluminou tudo ao re­
dor. Caindo em terra, cego, ele ouviu a voz de Jesus: “ Saulo, Saulo,
por que me persegues?” A voz o instruiu a prosseguir para Da­
masco. Lá , depois de três dias, ele foi procurado por um cristão
chamado Ananias, que orou para que lhe fosse restaurada a visão.
Ao recuperar a visão, Paulo foi batizado e quase imediatamen­
te começou a pregar nas sinagogas que Jesus é o Filho de Deus. A
experiência de Paulo foi uma das primeiras e dramáticas conver­
sões à fé cristã. Fora o fato de ser batizado, nenhuma das caracte­
rísticas específicas da experiência de conversão de Paulo (o res­
plendor de luz, cair em terra, ouvir a voz) tornou-se padrão para as
outras conversões. Ao mesmo tempo, o fato de ter encontrado Deus
(na pessoa de Jesus Cristo) de um modo transformador é ampla­
mente considerado entre os cristãos como experiência fundamen­
tal que define o que significa ser cristão.
A experiência de Isaías no Templo traz certa semelhança com
a experiência de Paulo na estrada de Damasco: Ambos tiveram
uma experiência visual e ouviram uma voz. Paulo viu uma luz
ofuscante e ouviu a voz de Jesus; Isaías viu o Senhor “ assentado
sobre um alto e sublime trono” , e ouviu a voz do serafim declarar:
“ Santo, Santo, Santo é o SEN H O R dos Exércitos; toda a terra está
cheia da sua glória” (Isaías 6.1-3).
Mas a experiência de Isaías foi notavelmente diferente da
de Paulo. A experiência de Paulo fo i de conversão que radical­
mente o transformou de inim igo de Cristo e sua igreja a segui­
dor de Cristo e líder na comunidade de crentes. Por outro lado,
Isaías não era inim igo de Deus; na verdade, na época de sua
experiência no Templo, ele era israelita devoto. Sua experiên­
cia, então, é melhor descrita não como uma conversão, mas
como um comissionamento.
Isaías ouviu e respondeu a chamada de Deus para falar uma
mensagem profética da parte dEle ao povo de Israel. Da mesma
maneira que a conversão é comumente reconhecida entre os cris­
tãos como uma experiência espiritual definida, assim também ser
chamado e comissionado a uma vida de serviços a Deus é reco­
nhecido como experiência cristã comum. Com toda a certeza, nem
todo o mundo tem uma experiência tão impressionante e esmaga­
dora como Isaías. Mas os cristãos de todas as eras da Igreja deram
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
testemunho de encontros com Deus, nos quais criam que foram
comissionados para uma vida de serviço.37
A experiência de Isaías no Templo de nenhuma maneira era
sem igual entre os personagens do Antigo Testamento. Outros pro­
fetas também tiveram encontros incomuns — impressionantes até
— com Deus, que resultaram no comissionamento deles. Amós,
Jonas e Jeremias (só para citar três) tiveram tal experiência. Con­
tudo, os profetas de então são mais lembrados __________________
pela natureza singular de suas experiências do
O profeta Joel falou de um
que por qualquer padrão que estabeleceram
tempo futuro em que Deus
para os cristãos. Porém, o profeta Joel falou de
um tempo futuro, em que Deus derramaria do
derramaria do "seu Espírito"
seu Espírito em todos os seus servos, homens
em todos os seus servos,
e mulheres (Joel 2.29). Séculos mais tarde, no
homens e mulheres.
D ia de Pentecostes seguinte à ressurreição de
Jesus, Pedro achou ocasião para lembrar a pro­
fecia de Joel. No segundo capítulo de Atos,
Lucas descreve um fenómeno que transformou um pequeno gru­
po de tímidos seguidores de Jesus em uma comunidade vital de
crentes corajosos, que entenderam terem sido comissionados por
Deus para darem testemunho do Cristo ressurreto. “Cumprindose o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar;
e, de repente, veio do céu um som, como de um vento veemente e
impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E
foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais
pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo
e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes
concedia que falassem” (Atos 2.1-4). A experiência de Isaías no Tem­
plo mostra vividamente que Deus, de tempos em tempos, comissiona
indivíduos e lhes dá uma voz profética. A experiência dos crentes no
Dia de Pentecostes demonstra que a experiência de Isaías não está lim i­
tada a alguns: As línguas de fogo repartiram-se e pousaram sobre cada
um deles, e todos foram cheios do Espírito Santo.
A conversão de Paulo, o com issionam ento de Isa ía s, a
capacitação dos crentes no D ia de Pentecostes — todos estes en­
contros com a presença de Deus modelam uma importante parte
da experiência religiosa. Em cada instância, o aparecimento de
Deus foi majestoso: maravilhoso em poder e glória. Para Paulo,
Deus se apresentou como uma luz ofuscante do céu e a voz auto­
rizada de Jesus — à qual Paulo respondeu: “ Quem és, Senhor?”
Para Isa ía s, Deus se apresentou como uma fig ura régia e
entronizada — à qual Isaías só pôde dizer: “A i de mim, que vou
perecendo! [...] Os meus olhos viram o rei, o SEN H O R dos Exér­
citos!” (Isaías 6.5). No D ia de Pentecostes, foi o som de um vento
impetuoso e línguas de fogo. E a resposta foi uma declaração das
“ grandezas de Deus” .
Rudolph Otto cunhou uma palavra especial para o tipo de en­
contro com Deus experimentado por Paulo, Isaías e os apóstolos
67
no D ia de Pentecostes. E le chamou de “numinoso” , proveniente
do latim numen, que significa espírito.38 Para Otto, a experiência
numinosa é a experiência de algo que é misterioso e inspira admi­
ração, sem deixar de ser ao mesmo tempo temerosa e fascinante.
Para Otto, o algo em questão — aquilo que experimentamos como
misterioso e inspirador de admiração, maravilhoso em poder e gló­
ria — é corretamente chamado de santo. Deus não é apenas justo.
E le é santo. Este parece ser o detalhe sobre o qual os serafins
afirmam, quando dizem: “ Santo, Santo, Santo é o SEN H O R dos
Exércitos” (Isaías 6.3).
Destacamos três instâncias de seres humanos experimentando
a presença de Deus. A experiência da conversão de Paulo ajudanos a entender o significado da transformação radical. A experiên­
cia de Isaías no Templo leva-nos a considerar o que significa ser
comissionado para falar profeticamente. Os eventos no D ia de
Pentecostes lembram-nos de que a capacitação do Espírito Santo
é para todos. Enquanto estas três experiências acentuam facetas
diferentes da experiência relig io sa, também exibem certas
similitudes que podem nos dar uma impressão enganosa de como
a presença de Deus pode ser experimentada. Paulo, Isaías e os
apóstolos sentiram a presença de Deus no que pode ser positiva­
mente descrito com palavras como extraordinário, fantástico, im­
pressionante, majestoso, glorioso. As respostas de cada um deles
foram apropriadas às suas respectivas experiências: Paulo caiu em
terra, cego; Isaías clamou “A i de mim, que vou perecendo!” ; os que
estavam reunidos no Dia de Pentecostes romperam em expressões
vocais inspiradas pelo Espírito Santo. Mas Deus faz sua presença
conhecida apenas de modos fantásticos e impressionantes? E o que
dizer também da amplitude de nossas respostas a Deus?
A experiência de Elias à entrada de uma caverna em Horebe
sugere acréscimo importante ao que comentamos até aqui. O es­
critor de 1 Reis descreve um tempo na história de Israel em que o
povo começou a adorar Baal, um dos deuses de fertilidade reco­
nhecido pelos povos do antigo Oriente Próximo. Depois de vários
anos de seca, E lia s, o profeta de Deus, chamou quatrocentos e
cinquenta profetas de Baal para uma montanha, onde organizou
uma competição. O deus que consumisse pelo fogo um bezerro
sacrificatório seria reconhecido como o verdadeiro Deus. Seria
Baal ou Javé? Depois que Baal não respondeu às orações dos seus
profetas, Elias articulou uma oração eloquente em sua simplicida­
de e brevidade. As Escrituras descrevem uma cena não menos
inspiradora de admiração do que qualquer coisa experimentada
por Isaías, Paulo ou os apóstolos no D ia de Pentecostes: fogo do
céu queimou o bezerro sacrificial, a lenha, as pedras e a terra
circunvizinha. Quase imediatamente, Elia s mandou que os profe­
tas de Baal fossem mortos.
Logo as chuvas retomaram e a seca terminou. Enquanto a
maioria do povo em Israel regozijava-se, a esposa do rei, Jezabel,
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
ficou profundamente enfurecida com a morte dos profetas de Baal.
Quando ela ameaçou matar E lia s, ele fugiu, viajando muitos dias
para o sul, a Horebe, “o monte de Deus” , onde buscou refúgio
numa caverna. No dia seguinte, Deus lhe mandou que se pusesse
à entrada da caverna, onde mostrou a Elia s três fenómenos fantás­
ticos: um vento poderoso, um terremoto e um fogo. Em cada caso,
dizem as Escrituras, o Senhor não estava no fenómeno. Mas de­
pois do fogo, lemos, Deus falou a Elias em “uma voz mansa e
delicada” (1 Reis 19.12).
Ao menos nesta ocasião, Deus não estava presente nas demons­
trações fantásticas da natureza. Antes, E le se fez conhecido numa
voz tão suave que era quase inaudível. Em resposta, E lia s não cla­
mou de alegria ou desencadeou um hino vitorioso. E le simples­
mente cobriu a cabeça com a capa. Podemos apenas imaginar que
meditação ou oração pode ter-lhe vindo à mente naquele momen­
to. Para muitos cristãos ao longo da história da Igreja, Deus fez
sua presença conhecida do modo como fez com Elias em Horebe.
Pois se Deus se revela numa luz ofuscante, ou como monarca
exaltado, ou em línguas de fogo, E le também se revela no sus­
surro gentil.
O Elemento Social
Qualquer tratamento do elemento social de uma cosmovisão
cristã tem de levar em conta a Igreja, pela simples razão de que a
Igreja é a instituição social primária do cristianismo. Seu nasci­
mento está descrito no Livro de Atos. De começo humilde na Palesti­
na, foi se espalhando gradualmente a todas as regiões da bacia medi­
terrânea. Tendo suportado perseguição dos romanos em várias épo­
cas durante seus primeiros trezentos anos, seu endosso por Constantino
I (313 d.C.) no século IV representou um novo desafio.
No Oriente, a Igreja foi centrada em Constantinopla, onde era
em grande parte subordinada ao imperador; no Ocidente, em Roma,
permaneceu uma força independente sob o governo papal. De
ambos os centros, cresceu abarcando toda a Europa. Durante a
denominada baixa Idade Média, quando a luz da investigação ra­
cional parecia extinta por causa das doenças, pobreza e constantes
alinhamentos políticos, a Igreja continuou a aprender, cheia de
vida, em mosteiros e escolas. Gradualmente, uma cisão desenvol­
veu-se entre o Oriente e o Ocidente, que tornou-se permanente
depois de 1054. No Ocidente, o crescente poder e corrupção da
Igreja contribuíram para haver uma luta em seu interior a fim de
reformar sua herança espiritual. Numerosos movimentos inspira­
dos por reformadores, como Martinho Lutero (1483-1546) e João
Calvino (1509-1564) inevitavelmente separaram-se da Igreja ro­
mana e formaram ramificações distintas do cristianismo. Hoje, a
Igreja é mundial — cruzando lim ites culturais, raciais e étnicos, e
abrangendo muitas denominações.
70
MICHAEL D. PALMER
O que dissemos anteriormente acerca das cosmovisões em ge­
ral tem sido historicamente verdadeiro para a Igreja, e permanece
verdadeiro hoje: Cada geração enfrenta duas tarefas formidáveis.
A primeira é a tarefa de transm itir fielmente sua herança à geração
seguinte. Como já vim os, a herança do cristianismo é um padrão
complexo de crenças centrais, narrativas, normas, rituais e experi­
ências. Transm itir com sucesso este padrão complexo envolve
doutrinas pedagógicas e o contar (e recontar)
histórias, modelando os adequados valores
Saber as palavras de Jesus ou as
morais e estéticos, representando as cerimó­
doutrinas da Igreja não é o mesmo
nias e dando testemunho das experiências es­
pirituais.
Em suma, envolve integrar os vários
que compreender seus significados.
elementos no ritmo diário do pensamento e prá­
tica da geração recipiente. Abordar o todo da
vida a partir desta perspectiva integrada é a soma e substância do
que significa ter uma cosmovisão cristã.
A segunda tarefa é ajudar a geração seguinte a lidar com as
tendências culturais contemporâneas. Ajudar a lidar derrota vári­
as coisas. Para começar, significa ensinar as pessoas a entenderem
o sentido de suas crenças centrais dentro de uma situação contem­
porânea. Saber as palavras de Jesus ou as doutrinas da Igreja não é
o mesmo que compreender seus significados.39 É completamente
possível estar fam iliarizado com um ensino importante e, contu­
do, não compreender realmente seu significado ou ser incapaz de
aplicá-lo com entendimento. Esta distinção acha-se no centro do
inquietante fato de que os cristãos às vezes toldam a linha entre
um ensino fam iliar e uma tendência ideológica popular na cultura
prevalecente. Um exemplo simples do âmbito moral ilustra o pon­
to.
Uma das passagens mais famosas da B íb lia é a ordem de Je­
sus: “Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mateus 7.1). O
contexto sugere que Jesus está se dirigindo à tendência de alguns
em exagerar as faltas dos outros para depois pronunciar a conde­
nação deles. Mas o contexto não im plica categoricamente que Je­
sus nos proíbe que avaliemos (julguemos com precisão) o que as
outras pessoas dizem e fazem. Porém, hoje a fam iliar declaração
de Jesus está em perigo de ser assimilada no penetrante relativismo
moral da cultura ocidental. Para muitos na Igreja de hoje, ela veio
a significar: “ Devido ao fato de os gostos e valores das pessoas
serem diferentes, então ninguém tem o direito de avaliar (julgar) o
mérito moral de que quem quer que seja, ou diga, ou faça” .
Deste modo, a tarefa da Igreja de ajudar a geração seguinte a
lidar com a cultura contemporânea requer que se forneça ampla
oportunidade para reflexão extensa e pensativa no significado de
suas crenças centrais, para que se faça análise crítica das tendên­
cias ideológicas predominantes. Mas também significa criar um
ambiente social agradável para a nossa natureza. Na cosmovisão
existencialista de Jean-Paul Sartre, os seres humanos estão com­
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
71
pletamente sós. Eles vivem como indivíduos isolados, sempre em
competição entre si. Porém, numa cosmovisão cristã, justamente
o oposto é a verdade: Somos seres extremamente sociáveis.
Antes e acima de qualquer coisa, fomos criados para um rela­
cionamento com Deus. Levamos em nós sua imagem e fomos cri­
ados para precisar dEle. Nas palavras de Agostinho: “Tu nos cri­
aste para ti, ó Deus, e nossos corações vivem inquietos enquanto
não descansam em ti” .40 Mas também fomos __________________
criados para relacionamentos uns com os ou­
"Tu nos criaste para ti, ó Deus, e
tros. Não somos como bolas de gude guarda­
das num saco por pouco tempo apenas para
nossos corações vivem inquietos
serem espalhadas em todas as direções quan­
enquanto não descansam em ti."
do o saco é aberto. A metáfora mais apropria­
— Agostinho
da sobre esta situação está no Novo Testamen­
to: juntos, míerdependentes em vez de mdependentes, somos o Corpo de Cristo. Se so­
mos seres inclinados ao relacionamento, então ajudar a geração
seguinte a lidar com as tendências culturais contemporâneas sig­
nifica, em parte, criar ambientes conducentes para nutrir relacio­
namentos. Especificamente, se somos seres que se relacionam,
então uma função primária da Igreja é fornecer oportunidades para
os indivíduos encontrarem Deus e para interagirem uns com os
outros.
Por que não é o bastante apenas entender o que cremos e ter a
capacidade de avaliar criticamente as tendências da cultura popu­
lar? Por que a Igreja também tem de nutrir relacionamentos? Por­
que, embora desenvolver as habilidades críticas, analíticas e re­
flexivas seja fundamental para o nosso desenvolvimento global
como pessoas, somos em última análise governados não tanto pelo
que sabemos, e sim pelo que mais amamos. Desenvolver relacio­
namentos com Deus e os crentes é, no fim , um esforço em nutrir
amor por ambos.
Conclusão: O Argumento em Defesa do
Pluralismo Limitado
Começamos este capítulo considerando dois meninos judeus,
Reuven Malter e Danny Saunders, e suas respectivas cosmovisões segundo nos foram apresentadas pelo romancista Chaim
Potok. De fato, teria sido mais exato falar de dois meninos que
vivenciaram versões alternadas da mesma cosmovisão, o judaís­
mo. Na verdade, antes do dia em que chegaram a se conhecer,
Reuven e Danny viam um ao outro com suspeita e certo desdém.
A comunidade hassídica de Danny até falava depreciativamente
do pessoal de Reuven. Porém, apesar de suas diferenças, Reuven
e Danny viviam muito bem dentro da corrente do judaísmo orto­
doxo. Os dois criam em Deus e aceitavam as Escrituras hebraicas
como a revelação de Deus para a humanidade. Suas diferenças
centravam-se principalmente no valor relativo que eles davam a
certos pontos da interpretação da Torá e do Talmude, como tam­
bém nas escolhas que faziam relativas a questões culturais, como
roupa e penteado. A história deles é muito semelhante à nossa.
O cristianismo está povoado com seus Reuven e Danny, cada
qual representando uma tradição interpretativa distintiva e um
conjunto distintivo de práticas culturais. O que explica este tipo
de diversidade, e será que devemos estar dispostos viver com isso?
O cristianismo exibe diversidade por pelo menos três razões.
Prim eiro, uma cosmovisão cristã é o produto de como integramos
os vários elementos descritos neste capítulo: a ideologia (doutri­
na), as narrativas, as normas morais e estéticas, os rituais, a expe­
riência e vida em comunidade. Devido as diferenças de tempera­
mento pessoal e experiência, algum grau de diversidade no modo
como realizamos esta integração é virtualmente certo.
Por exemplo, as experiências dos cristãos em várias épocas e
lugares na história os levaram a enunciar a fé de maneiras que
conduziram a tradições teológicas diferentes. Outro exemplo: a
teologia luterana difere da teologia tomística, e ambas diferem da
teologia reformada e da teologia pentecostal. Além disso, as dife­
renças de experiência e teologia trouxeram diferenças no ritual e
vida em comunidade. A liturgia formal dos episcopais difere nota­
velmente da simplicidade de adoração encontrada nas casas de
culto quakers e do animado culto nas igrejas pentecostais.
A diversidade também é explicada pelas diferentes maneiras
como os cristãos interagem com outras cosmovisões não-cristãs
contemporâneas e com a cultura. Nos primeiros séculos da Igreja,
os cristãos achavam-se em constante diálogo com religiões e filo ­
sofias “misteriosas” gregas e romanas. A s visões específicas des­
tas religiões e filosofias os levaram a ajustar certos aspectos de
sua cosmovisão para enfrentar os desafios do dia, enquanto reti­
nham sua estrutura global de crenças e normas.
Durante o Renascimento (séculos X IV ao X V I), os cristãos
encontraram novas questões, inclusive o surgimento de novas ins­
tituições políticas, a transição do comércio de troca para uma eco­
nomia monetária, e avanços no método científico. Como haviam
feito nos séculos anteriores, os cristãos tiveram de realizar ajustes
em sua cosmovisão para afrontar os novos desafios, e tiveram de
fazê-lo dentro de uma estrutura bíblica. A s respostas que antes
lhes permitiam lidar com as antigas religiões de mistério já não
falavam mais adequadamente com as questões importantes dos
séculos X IV , X V e X V I. Hoje, os cristãos também têm de enun­
ciar uma cosmovisão que explique como pensar de maneira
cristã nas atuais tendências da filo so fia e psicologia, literatura
e arte, ética e política, ciência e tecnologia. Considerando que
a estrutura cristã é suficientemente ampla para acomodar mais
que uma abordagem a estas disciplinas, certa quantidade de di­
versidade é de se esperar.
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
73
Finalmente, a diversidade na cosmovisão cristã é inevitável,
porque uma cosmovisão vital e em funcionamento nunca pode ser
considerada um produto acabado. Uma cosmovisão é como um
idioma: Onde quer que esteja em uso sofrerá modificações para
satisfazer as necessidades da situação. As modificações acontece­
rão em momentos diferentes, por pessoas diferentes, com níveis
variados de habilidade, em resposta a eventos constantemente va­
riáveis. Pelo fato de nenhuma versão de cosmovisão cristã poder ser considerada final, a
Uma cosmovisão vital e em
diversidade quase não pode ser evitada.
Assim , a diversidade em uma cosmovisão
funcionamento nunca pode ser
cristã é praticamente inevitável. Mas a diver­
considerada um produto acabado.
sidade é uma coisa boa? Em muitos aspectos,
sim. Para começar, a diversidade é em parte ------------------devida a nossas limitações humanas — nossas habilidades lim ita­
das em perceber, pensar e avaliar criticamente, e a estreiteza de
nossos interesses. A diversidade nos faz lembrar de nosso lugar no
cosmo: mais altos que as criaturas, porém mais baixos que Deus.
A diversidade, diz Arthur Holmes, “nos faz lembrar de nossa finidade,
nossa qualidade de criatura, nossa humanidade; sem essa consciên­
cia, uma cosmovisão não pode ser cristã absolutamente” .41
Segundo, a diversidade é uma coisa boa, porque quando aten­
tamente tratada, aumenta mesmo o entendimento e a sabedoria da
pessoa, aprofundando sua avaliação das questões importantes. Um
dos grandes debates perenes no cristianismo centraliza-se na ten­
são entre o livre-arbítrio da humanidade e a soberania de Deus.
Historicamente, Jacó Arm ínio tomou um lado deste debate, e João
Calvino o outro. Agora é possível que um lado ou o outro tenha de
fato acertado em sua totalidade na posição teológica correta. Mais
provavelmente, cada lado entendeu parte de um grande mistério.
Aqueles, então, que atentamente tratam dos vários lados do deba­
te, colocam-se em boa posição para apreciar a profundidade das
questões que jazem no centro da dúvida. Este tipo de avaliação
profunda das questões representa um passo essencial em direção a
crescer em sabedoria e entendimento.
Finalmente, a diversidade nos recorda que o cristianismo não é
um sistema fechado de pensamento e prática, mas uma aborda­
gem vital e exploratória à vida. Neste capítulo, apresentamos al­
guns dos principais elementos de uma cosmovisão cristã. Esses
elementos foram enunciados como uma estrutura geral de crenças
centrais e práticas. Durante os últimos dois milénios, os pensado­
res cristãos trouxeram esta estrutura geral para muitas situações
diferentes, em cenários culturais e históricos diferentes. O que
notamos em caso após caso é que os cristãos se distinguiram em
sua habilidade de adaptar uma estrutura básica de crenças e práti­
cas biblicamente baseadas num ambiente de constantes mudan­
ças.42 Embora tenham havido lapsos, falsos retornos e enganos, o
registro impressionante é de constância à tradição bíblica e notá-
vel abertura e flexibilidade em um ambiente social e intelectual
sempre em mutação.
Revisão e Questões para Discussão
1. Defina, em uma só frase, cosmovisão. Quem tem uma cos­
movisão? Explique por que a resposta a esta pergunta é mais com­
plicada do que parece a princípio.
2. Apresente com suas próprias palavras definições breves ou
descrições dos seguintes elementos de uma cosmovisão: ideolo­
gia, narrativa, norma, ritual. Junto com cada definição ou descri­
ção, dê exemplos não citados aqui.
3. Na seção da ideologia, o autor usa as expressões “teoria de
fundo” e “relato da natureza humana” . A que estas expressões se
referem e como estão relacionadas?
4. Explique as diferenças entre escritos sagrados e mitos.
5. Compare e contraste os mitos e narrativas históricas. Para
cada um, forneça exemplo que não tenha sido mencionado no ca­
pítulo.
6. Identifique um romance, história curta, drama ou film e que
expresse uma ideologia. O trabalho que você escolher deve ser
um com o qual você esteja fam iliarizado, mas que não tenha sido
mencionada no capítulo. Identifique a ideologia e explique como
o trabalho que você escolheu o expressa.
7. O que é norma? Que tipos de normas são importantes para
uma cosmovisão?
8. Explique a noção de uma declaração ou ato executante. Como
esta noção se ajusta com o elemento ritualista de uma cosmovi­
são? Dê um exemplo não mencionado no capítulo.
9. Por que a experiência é importante para uma cosmovisão?
Qual é a relação da experiência com a ideologia?
10. Resuma o relato de M ax Weber sobre o modo como as
religiões se movem em padrões cíclicos. Você acha que essa teo­
ria se aplica ao cristianismo? Apóie sua resposta com exemplos e
razões.
11 . 0 autor argumenta em defesa do “pluralismo limitado” em
uma cosmovisão cristã. O que significa esta expressão? Você con­
corda que uma cosmovisão cristã possa acomodar pluralismo li­
mitado? Explique sua resposta. Se você acredita que o pluralismo
limitado é possível, quais são os lim ites?
Projetos Sugeridos para Reflexão
1.
Leia o romance de Chaim Potok, The Chosen (O Escolhi­
do). Anote as semelhanças e diferenças nas respectivas cosmovisões de Danny Saunders e Reuven Malter. Identifique duas pesso­
as em sua própria tradição de fé que mostrem um conjunto com­
parável de semelhanças e diferenças de cosmovisão.
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
2.
D iscuta outros trabalhos lite rá rio s ou artístico s que
exemplifiquem um ou mais dos elementos de uma cosmovisão
discutidos no capítulo.
Bibliografia Selecionada
B L A M IR E S , Harry. The Christian Mind. Londres: S .P .C .K .,
1966.
H O LM ES, Arthur. Contours of a Worldview. Grand Rapids:
W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1983.
H O LM ES, Arthur, editor. The Making o f a Christian Mind, A
Christian Worldview & the Academic Enterprise. Downers Grove,
Illin o is: InterVarsity Press, 1985.
N ASH , Ronald. Worldviews in Conflict, Choosing Christianity
in a World ofldeas. Grand Rapids: Zondervan Publishing House,
1992.
S IR E , James. The Universe Next Door, A Basic Worldview
Catalog. Downers Grove, Illin o is: InterVarsity Press, 1976.
SM ART, Ninian. Worldviews, Cross-cultural Explorations o f
Human Beliefs. 2 .a edição. Englewood C liffs , Nova Jersey:
Prentice-Hall, 1995.
STEV EN SO N , Leslie. Seven Theories o f Human Nature. 2.a
edição. Nova York e Oxford: Oxford University Press, 1987.
W U TH N O W , Robert. C hristianity in the 21 st Century,
Reflections on the Challenges Ahead. Nova York e Oxford: Oxford
University Press, 1993.
Notas bibliográficas
1. Chaim Potok, The Chosen (Greenwich, Connecticut: Fawcett
Publications, 1967), p. 9.
2. Ibid ., p. 12.
3. Beatles, “Nowhere Man” , trilha original lançada em 1965
pela Northern Songs, Lim ited.
4. Vincent E . Rush, The Responsible Christian (Chicago:
Loyola University Press, 1984), p. 94.
5. Meu modo de pensar sobre as categorias gerais de crenças e
prática que compõem uma cosmovisão foi estimulado por Ninian
Sm art, Worldviews — Crosscultural Explorations o f Human
Beliefs, 2.a edição (Englewood C liffs, Nova Jersey: Prentice-Hall,
1995).
6. Chaim Potok não tem nada significativo a dizer sobre estéti­
ca ou normas estéticas em The Chosen. No entanto, a estética é
um tema principal em dois dos seus romances sobre um pintor
chamado Asher Le v: My Name is Asher Lev (Meu Nome é Asher
Lev) (Nova York: A lfred A . Knopf, 1989), e The Gift o f Asher Lev
(O Presente de Asher Lev) (Nova York: A lfred A . Knopf, 1990).
Desde os tempos bíblicos, o judaísmo ortodoxo tem expressado
sentimentos mistos sobre a arte e a beleza artística. Por um lado,
as Escrituras relatam que o próprio Deus ditou muitos dos projetos do antigo Tabernáculo e dos artefatos que ele alojava. O texto
também diz que E le até identificou os artesãos especializados que
deviam fazer os vários utensílios cerimoniais e os trajes sacerdo­
tais. Assim , o judaísmo claramente tem um interesse histórico em
artigos de beleza e nos julgamentos que se relacionam ao que é
bonito. Por outro lado, as Escrituras proíbem a fabricação de “ima­
gens esculpidas” . No judaísmo ortodoxo, este mandamento é in­
terpretado com a proibição de fazer quadros, especialmente retra­
tos de pessoas. Por conseguinte, os artistas judeus tendiam a in cli­
nar sua arte a formas altamente simbólicas.
7. Potok, The Chosen, pp. 63, 64.
8. A expressão “Mestre do Universo” é comumente usada pe­
los judeus para descrever Deus.
9. Potok, The Chosen, p. 9.
10. A expressão “teoria de fundo” vem de Leslie Stevenson,
“R ival Theories” , capítulo 1, in: Seven Theories o f Human Nature,
2.a edição (Nova York e Oxford: Oxford University Press, 1987).
Também adaptei partes da estrutura geral de Stevenson para dis­
cutir as teorias rivais da natureza humana.
11. As mais notáveis visões filosóficas de Jean-Paul Sartre es­
tão expostas em Being and Nothingness [O Ser e o Nada] — A
Phenomenological Essay on Ontology, traduzido para o inglês por
Hazel E . Barnes (Nova York: Washington Square Press, 1992;
publicado em associação com a Philosophical Library, c. 1956).
Este é o principal texto filosófico do existencialismo ateísta mo­
derno.
12. Jean-Paul Sartre, Nausea [A Náusea], traduzido para o in­
glês por Lloyd Alexander (Nova York: New Directions, 1949 e
1964).
13. Potok, The Chosen, p. 103.
14. Albert Camus, The Myth o f Sisyphus [O Mito de Sísifo]
And OtherEssays, traduzido para o inglês por Justin 0 ’Brien (Nova
York: Random House, Vintage Books, 1955), pp. 88-91.
15. Ibid ., p. 91.
16. Ibid.
17. No romance de Potok, o senhor M alter é sionista, em parte
porque a terra de Israel é o lugar das histórias sobre pessoas e
lugares importantes para o judaísmo: Abraão e Isaque, Jericó e o
Templo de Salomão.
18. K arl M arx, Capital [O Capital], volume 1, editor Frederick
Engels, traduzido para o inglês por Samuel Moore e Edward
Aveling (Nova York: International Publishers, 1967). Veja especi­
almente o Capítulo X , “ O D ia do Trabalho” .
19. O Bhagavad Gita é inquestionavelmente um escrito sagra­
do, mas estritamente falando não é considerado Escritura (ou seja,
escrito sagrado divinamente revelado) na tradição hindu. Entre os
PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO
escritos sagrados do hinduísmo, somente quatro Vedas (antigos
livros de salmos) e alguns Upanishads (antigos livros de filoso­
fia) são considerados Escritura.
20. Para uma discussão mais completa sobre mito, veja Joseph
Campbell, The Hero With a Thousand Faces, 2.aedição (Princeton,
Nova Jersey: Princeton University Press, Bollingen Series X V II,
1968), e Joseph Campbell e B ill Movers, The Power ofMyth (Nova
York: Doubleday, 1988).
21. Os escritos sagrados em qualquer tradição, inclusive no
judaísmo e no cristianismo, não estavam prontamente disponíveis
às pessoas comuns até longo tempo depois da invenção da im ­
prensa de tipos móveis no século X V . A disponibilidade atual de
B íb lia em livrarias, bibliotecas, CDs de computador e quartos de
hotel dão uma visão completamente enganosa do que era no mun­
do antigo ter um texto sagrado.
22. O Bhagavad Gita, na tradição hindu, é um exemplo de po­
esia épica que veio a ser absorvida numa estrutura religiosa e feita
funcionar em subordinação a uma doutrina religiosa. Os poemas
épicos de Homero, A Ilíada e A Odisséia, na tradição grega, são quase
mitos no sentido descrito aqui. Os poemas épicos de Homero, embo­
ra recitados em ocasiões religiosas e incorporados em festas e convo­
cações públicas de significado religioso, são primeiramente poemas,
não veículos para transmitir temas religiosos.
23. Ninian Smart, Worldviews, p. 94,
24. Ibid.
25. Homero, The Odyssey [A Odisséia], traduzido para o in­
glês por Robert Fitzgerald (Garden City, Nova York: Anchor Books,
Doubleday & Company, 1963), p. 340.
26. Entretanto, deve-se estar ciente de um ponto ao escrever
história: o revisionismo, “ uma tendência na historiografia ameri­
cana da década de 1960 e princípios de 1970 a reescrever a histó­
ria da guerra fria e pôr a culpa nos Estado Unidos” ( Harper
Dictionary ofM odem Thought, Alan e Oliver Stallybrass, editores,
Nova York: Harper & Row, 1977, pp. 541ss). Com efeito, deve-se
perceber que até as histórias são escritas (e reescritas) por pessoas
que podem ter sua parte no material. (Veja, por exemplo, Francis
Fitzgerald, America Revised [Nova York: Random House, 1980].)
27. Smart, Worldviews, p. 81.
28. Sophocles, Oedipus Rex, in: The Oedipus Cycle, traduzido
para o inglês por Dudley Fitts e Robert Fitzgerald (Nova York:
Harcourt, Brace & World, Harvest Book, 1939 e 1949), p. 78.
29. The Jungle mostra que os autores não controlam o modo como
os leitores irão interpretar a obra. Em vez de convencer os america­
nos da necessidade do socialismo, The Jungles deu ímpeto adicional
para a passagem das leis sobre alimentos puros e sobre droga.
30. Curioso é o fato de que o film e baseia-se numa cosmovisão
que permite que uma dona de casa chateada tenha um encontro adúltero.
Em parte, como resultado do sucesso difundido pela versão do filme, o
romance chegou a vender mais de dez milhões de exemplares.
31. Entre os gregos antigos, por exemplo, o filósofo Platão se
destaca como alguém que dedicava considerável atenção crítica
para desafiar este ponto de vista. Veja os diálogos de Platão
Simpósio e A República.
32. J. L . Austin, How To Do With Words (Londres: Oxford
University Press, 1962).
33. Potok, The Chosen, p. 104.
34. Hesiod, Theogony, Volume II, pp. 114-138, traduzido para
o inglês por Richard Latim ore, in: Hesiod (Ann Arbor, Michigan:
University of Michigan Press, 1959).
35. Não, porém, como assunto de fato histórico, todas as par­
tes da B íb lia receberam atenção igual no desenvolvimento da dou­
trina. A s passagens que receberam tipicamente mais atenção são
as que tratam da natureza de Deus, Seus atos de criação (inclusive
a criação da humanidade), a rejeição de Deus pela humanidade
(chamado de A Queda), o plano de Deus para restaurar a humani­
dade pela morte e ressurreição de Jesus, e o plano de Deus para os
eventos finais da história.
36. Veja especialmente os capítulos 35 a 39.
37. Exemplos notáveis incluem Agostinho (354-420), Francis­
co de Assis (1181-1226), Inácio de Loyola (1491-1556) e John
Wesley (1703-1791).
38. Rudolf Otto, The Idea OfThe Holy, traduzido para o inglês
por John W. Harvey (Londres, Oxford, Nova York: Oxford University
Press), capítulo H l, ‘Numen’ and the ‘Numinous’, pp. 5-7.
39. A analogia a seguir, embora imperfeita, ajuda a ilustrar o
ponto. Muitos estão familiarizados com a famosa fórmula de Albert
Einstein E = mc2. Mas só uma fração dessas pessoas sabe o que
representa as letras na equação, e pouquíssimas na verdade enten­
dem seu significado o bastante para aplicá-lo.
40. Augustine, The Confessions o f Saint Augustine, traduzido
para o inglês por Edward B . Pusey (Nova York: Random House,
The Modem Library, 1949), p. 3.
41. Arthur Holmes, “Toward a Christian View of Things” , in:
The Making ofa Christian Mind, editor Arthur Holmes (Downers
Grove, Illin o is: InterVarsity Press, 1985), p. 16.
42. Alguns na tradição cristã têm rejeitado idéias novas e tentado
isolar-se de influências não-cristãs; os Amish, por exemplo. O isola­
mento dos seus povoamentos em forma de fazendas, sua rejeição dos
dispositivos tecnológicos modernos, o estilo de roupa do século X V H I
e o uso continuado de um idioma europeu, nos faz lembrar das comu­
nidades hassídicas no judaísmo. Embora suas razões para procurar
isolar-se possam ter alguma justificação, os Amish representam uma
minoria declinante entre os cristãos. Veja Ruth Hoover Seitz, Amish
Ways (Hanisburg, Pensilvânia: R B Books, 1991).
2
O Papel da
Bíblia na
Formação do
Pensamento
Cristão
Edgar R. Lee
80
EDGAR R. LEE
proverbial “pista de serragem” 1 foi meu caminho para a
liberdade e a realidade quando, aos dezesseis anos de idas de, em uma tenda, atendi ao apelo de um dinâm ico
evangelista itinerante e me ajoelhei diante de um altar simples
para confessar meus pecados e convidar Jesus Cristo para ser o
Senhor de minha vida. Enquanto orava, a paz e a segurança mais
profundas que jam ais sentira inundaram minha alma. De algum
modo eu sabia, sem sombra de dúvida, que
meus pecados tinham sido perdoados. Eu era
Construir uma cosmovisão pode
realmente uma nova pessoa, e agora Cristo, de
ser algo como reunir as peças de
alguma maneira misteriosa, não obstante po­
derosa,
era o Senhor de minha vida. Meus pés
um complicado quebra-cabeças.
pareciam quase não tocar o chão no domingo
à noite enquanto eu andava os poucos quartei­
rões até minha casa. No decorrer dos anos, este acontecimento
simples continuou sendo o momento decisivo de minha vida.
Imediatamente a B íb lia tornou-se viva para mim. Comecei a
primeira de muitas jornadas do Génesis ao Apocalipse, sempre
encontrando círculos mais amplos de insight e significado, à me­
dida que as verdades bíblicas ondulavam continuamente por m i­
nha vida. Porém, muito antes daquela noite decisiva, a B íb lia co­
meçou a formar o que agora entendo ser minha cosmovisão, “um
conjunto de crenças sobre os assuntos mais importantes da vida” .2
Quando m enino, eu tinha aprendido breves noções dos
ensinamentos bíblicos em uma Escola Dom inical batista, e ouvin­
do os sermões mensais do pastor, quando ele fazia seu giro pelas
igrejas pequenas a seu cargo.
Foi então que, em um dos verões em que fiz minha visita anual
à fazenda de meu tio, descobri a B íb lia em quadrinhos. Sentei-me
durante horas no banco de balançar da varanda da frente devoran­
do histórias e quadros que vividamente descreviam o desdobra­
mento da revelação de Deus. Sem estar plenamente cônscio dos
assuntos técnicos da cosmovisão, a B íb lia começou a preencher
minha compreensão da origem da humanidade, do significado e
propósito de nossa vida na terra, e da natureza de nosso destino
eterno. Bem cedo aprendi que Deus é o Criador de tudo, que os
seres humanos caíram em pecado e estavam necessitando deses­
peradamente de redenção; que Jesus Cristo morreu e ressuscitou
por nossos pecados, e que Ele está vindo para no fim reconciliar o
universo com Ele. Quando o evangelista pediu minha “decisão” ,
já era do meu conhecimento os elementos básicos de uma cosmo­
visão cristã.
Construir uma cosmovisão pode ser algo como reunir as peças
de um complicado quebra-cabeça. E muito parecido com uma cri­
ança que procura todas as peças com uma borda reta e depressa
monta a estrutura exterior do quebra-cabeça somente para depois
laborar mais longa e intensamente e preencher a cena central. É o
que faz um crente novo. Inicialmente ele localiza nas Escrituras
A
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
somente a estrutura básica da fé, para depois começar o processo
de aprendizagem dos detalhes. A Escritura é ao mesmo tempo sim­
ples e complexa. Suas narrativas3transformam maravilhosamente
os mistérios das eras em histórias simples prontamente entendi­
das pelos incultos.
Uma compreensão mais plena do texto obtido pela exegese
cuidadosa e interpretação teológica é o trabalho exigente da vida
de um estudioso. Nesta seção, em rota com a compreensão mais ple­
na, queremos pensar um pouco mais intencionalmente no papel que a
Escritura desempenha na formação de nossa cosmovisão.
A Natureza da Bíblia
Os cristãos sempre consideraram a B íb lia como a história dos
procedimentos de Deus para com a humanidade ao longo dos tem­
pos. Em estilo de narrativa concisa, carregada de rico simbolismo,
o livro de abertura de Génesis descreve em poucas pinceladas Deus
criando “ os céus e a terra” , apresentando também uma explicação
teológica de suas origens. A atividade divina e criativa simples­
mente é destacada nas palavras: “E disse Deus: H aja...” (Génesis
1.3ss) com o trabalho criativo que se seguiu: “E assim foi” (Génesis
1.7ss). Em seis dias, a palavra falada de Deus trouxe o planeta
terra de um estado sem forma e escuro para um jardim abundante
em plantas verdejantes e vida animal.
Quase imediatamente, a narrativa passa a explicar as origens
humanas com a apresentação do prim eiro casal, Adão e Eva
(Génesis 1.26-29; 2.1-25). Criados diretamente por Deus a partir
dos elementos da terra em um estado de evidente inocência, eles
foram colocados no jardim do Éden e comissionados a m ultipli­
car-se e subjugar a terra. Mas Adão e Eva logo descobriram, com
alguma ajuda da serpente, o exercício do livre-arbítrio, desobede­
ceram o mandamento direto do Criador e perderam o paraíso. Não
somente eles, mas o seu mundo estava agora caído e resistente aos
seus esforços de ganhar a vida e ter uma vida. A maldição do livre-arbítrio e da desobediência foi solta na raça humana. Seu pri­
meiro filho cometeu o primeiro assassinato; a depravação humana
tem sua explicação no primeiro livro da B íb lia.
Entretanto, estas narrativas são apenas o prefácio da B íb lia e
da condição humana. Do entulho moral, o Génesis logo passa a
tracejar o surgimento de uma linhagem íntegra por meio de Noé.
Sensível à voz de Deus, ele com sua fam ília imediata, sobrevive­
ram a uma inundação catastrófica do julgamento divino para rece­
berem de novo a comissão do Criador de encher e dominar a terra
(Génesis 9.1-17). Acompanhando a história da Torre de Babel com
sua explicação para a multiplicidade de idiomas e agrupamentos
étnicos (Génesis 11.1-9), nossa atenção se volta para Abrão. É ele
que Deus chama para gerar uma grande nação que será a fonte de
bênçãos a todos os povos da terra (Génesis 12.1-3). Desse ponto
81
Exegese: o processo de
explicar um texto da Bíblia
mediante análise, contexto
e os costumes e cultura da
época.
em diante, os livros do Antigo Testamento tomam-se uma saga
contínua de forma que, ao longo dos séculos, Deus gradualmente
forma um povo eleito do concerto por quem a raça caída de Adão
será restabelecida.
E que história! Os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó transfor­
mam-se sempre lentamente em homens de fé, e no processo exi­
bem excentricidades humanas. José, homem de caráter excelente,
providencialmente leva a fam ília ameaçada pela fome à seguran­
ça do Egito. Contudo, sob a regência de um novo Faraó, o Egito
não se torna refúgio, mas um crisol no qual esta adolescente fam í­
lia semítica pode forjar sua identidade em meio ao sofrimento e
escravidão. Surge M oisés, um fugitivo da corte real, a quem Deus
chama do pastoreio de ovelhas para tirar seu povo da escravidão e
dar-lhe identidade nacional mediante um concerto de fogo no Sinai.
O corajoso Josué tem a tremenda tarefa de guiar o povo de
Deus de volta à terra que Deus havia prometido séculos antes aos
patriarcas nómades. Subsequentemente, durante a anarquia no pe­
ríodo dos juizes, o profeta Samuel torna-se o instrumento de Deus
para escolher o primeiro rei, Saul, que prova ser mais astuto na
guerra do que em estabelecer uma nação. Mas Davi sucede Saul e
combina de modo ímpar o gênio m ilitar de um construtor de im ­
pério com a paixão e visão de um profeta. Por ele, Deus promete
trazer um reino eterno (2 Samuel 7.5-16), embora reserve a cons­
trução do Templo de Israel ao filho de D avi, Salomão, renomado
como homem mais sábio que jam ais viveu.
Na sucessão dos reis que sucederam D avi e Salomão, o Antigo
Testamento registra as histórias frequentemente repetidas de
apostasia e avivamento, a divisão do reino, revoltas no palácio,
guerras que ziguezagueiam na Palestina, a queda e deportação do
Reino do Norte e, finalmente, a destruição de Jerusalém e do seu
Templo. Um remanescente sobrevivente vai para um exílio de se­
tenta anos na Babilónia. As adversidades e sofrimentos, de acordo
com os grandes profetas de Israel, que falaram ousadamente con­
tra os pecados dos seus contemporâneos, são o resultado da rebe­
lião contra Deus e o fracasso em guardar seu concerto. Mas sem­
pre perdoando, Deus age para restaurar um povo castigado,
restabelecê-lo na terra, reconstruir o Templo e reiterar as promes­
sas da vinda de um futuro Messias pela semente de D avi.
Depois de séculos de silêncio profético, a promessa do M essi­
as é cumprida em Jesus de Nazaré, cuja história excitante encon­
tramos nos quatro Evangelhos. Concebido pelo Espírito e nascido
de uma virgem, de modo misterioso mesmo para a fé, Jesus vira
de cabeça para baixo as noções populares de um líder messiânico.
E le é mais profeta e mestre que o libertador político que o povo
esperava. Sua missão é proclamar as Boas-novas da salvação de
Deus para os pobres. Para espanto dos líderes judeus, o povo julga
suas palavras confirmadas por seus milagres de amor e compai­
xão. No fim , para absoluta tristeza dos seus seguidores, E le é pre-
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
so e condenado pela aristocracia governante e entregue ao gover­
nador romano para ser crucificado como messiânico embusteiro
blasfemo e revolucionário.
Mas a crucificação trágica é seguida pela ressurreição triun­
fante, o milagre central da B íb lia. Os apóstolos declaram que o
Jesus ressurreto é verdadeiramente o Messias prometido por meio
de D avi (Atos 2.29ss). Sendo tanto Senhor (Deus) quanto Cristo,
E le é o que dá o perdão de pecados e o dom do Espírito Santo a
toda a humanidade (Atos 2.38). O batismo no Espírito, dado pri­
meiramente no Pentecostes, capacita os crentes e faz deles a Igre­
ja , os descendentes espirituais de Israel, a quem todas as bênçãos
da salvação divina estão agora disponíveis. O resto do Novo Tes­
tamento apresenta a história do crescimento geográfico e espiritu­
al da Igreja, à medida que os apóstolos e seus colegas de fé
evangelizam o mundo do século I. Ao longo do caminho, guiados
pelo Espírito Santo, eles produzem as cartas do Novo Testamento
para dar direção aos crentes e, providencialmente, a nós. A B íb lia
é concluída com o Livro do Apocalipse que, quaisquer que sejam
seus mistérios apocalípticos, prediz a consumação escatológica
final do Reino de Deus e a reconciliação final dos herdeiros de
Adão e do mundo de Adão.
Relatando com tanta ousadia a história da obra paciente de Deus
com a humanidade, a B íb lia se apresenta como um livro inspirado
e autorizado, iniciado e escrito sob a supervisão do próprio Deus.
“Toda Escritura [é] divinamente inspirada” (2 Timóteo 3.16), es­
creveu o grande apóstolo Paulo, no que se tomou a base da doutri­
na cristã da inspiração. A expressão “ divinamente inspirada” é tra­
dução literal do grego theopneustos, termo composto por duas
palavras, theos, que significa “Deus” , e pneô, que significa “res­
pirar, soprar” . O sentido da passagem é que Deus se envolveu tão
pessoal e intimamente na inspiração das Escrituras, que ela pode
ser considerada sua exalação.
Paulo, escrevendo muito tempo antes da definição formal do
cânon do Novo Testamento, realizada no Concílio de Cartago em
397 d .C .,4 estava provavelmente pensando em primeiro lugar nas
Escrituras do Antigo Testamento, as quais normalmente ele usa­
va. Contudo, sua declaração está estrategicamente posicionada no
cânon e, na tradição cristã, veio a ser aplicada de fato à totalidade
da Escritura.5 Com efeito, mesmo durante a vida de Paulo, seus
companheiros apóstolos referiam-se aos escritos dele como E scri­
tura. Assim , o livro de 2 Pedro também observa que “o nosso ama­
do irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada
[por Deus]” , mas “ que os indoutos e inconstantes torcem [as car­
tas de Paulo] e igualmente as outras Escrituras” (2 Pedro 3.15,16).6
As cartas de Pedro revelam muito da mesma compreensão e
ênfase sobre a origem e inspiração da Escritura. “ Sabendo primei­
ramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular
interpretação; porque a profecia nunca foi produzida por vontade
83
Escatologia (do grego,
eschatos, "último", e
legein, "estudo"), refere-se
ao estudo do fim dos
tempos, e ao futuro
cumprimento do plano e
propósito eternos de Deus.
84
EDGAR R. LEE
de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram inspira­
dos [do grego,pheromenoí] pelo Espírito Santo” (2 Pedro 1.20,21).
Sinótico: "ver junto",
refere-se a Mateus, Marcos
e Lucas, porque estes
Evangelhos têm muito
em comum.
Se Paulo usou a metáfora da “respiração” ou “ sopro” de Deus,
Pedro usou a imagem marítima de um barco “levado” em seu cur­
so pelo vento. Da mesma maneira que o vento enche as velas de
um navio e o impulsiona pelo mar, assim o Espírito de Deus mo­
veu pessoas sensíveis a entender e escrever precisamente o que
Ele desejava. A tradição apostólica era enfática em insistir que a
iniciativa para a produção da Escritura acha-se na vontade de Deus.
O inspirador da Escritura nunca deve ser atribuído aos seres hu­
manos.
Estes apóstolos e seus colegas que escreveram o Novo Testa­
mento seguiram o exemplo e ensinamento do próprio Jesus na
consideração e uso que fizeram da Escritura. Várias passagens
dos Evangelhos podem ser citadas como comprovação. Numa
declaração crucial sobre o divórcio, Jesus citou Génesis 2.24: “ Por­
tanto, deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher, e serão
dois numa só carne” (Mateus 19.4,5). O texto em Génesis não
atribui a declaração diretamente a Deus. Porém, Jesus apenas ob­
serva, como de passagem, que Deus, o Criador, o dissera. De modo
semelhante, quando Jesus citou o Salmo 110.1, o qual é tradicio­
nalmente atribuído a D avi, disse: “ O próprio D avi disse pelo Es­
pírito Santo ...” (Marcos 12.36). John W. Wenham declarou: “Tão
verdadeiramente é Deus considerado o autor das declarações
bíblicas, que em certos contextos ‘Deus’ e a ‘Escritura’ tomam-se
intercambiáveis” .7 Um exame cuidadoso dos Evangelhos mostra
que Jesus mantinha uma consideração extraordinariamente alta
com relação às suas Escrituras, o Antigo Testamento. Por exem­
plo, Ele simplesmente não se acomodou ao que às vezes era inter­
pretado como compreensão primária por parte dos seus contem­
porâneos. Ao invés disso, Ele na verdade mostrou seus verdadei­
ros sentimentos pela Escritura ao se voltar a ela em busca de direção e autoridade nos momentos mais cruciais de sua vida pesso­
a l.8Na tentação, Ele pôs o diabo em fuga com citações da Escritu­
ra (Mateus 4.6,10). Semelhantemente, E le interpretou os m ovi­
mentos finais da traição com as palavras “ está escrito” (Marcos
14.21,27). Portanto, entretecido na vida e consciência de Jesus
estava o Antigo Testamento, do qual encontramos não menos de
sessenta e quatro citações ou insinuações apenas nos Evangelhos
sinóticos.9
Em qualquer debate teológico, a Escritura sempre era a autori­
dade final. Tão confiante estava Jesus de sua validez permanente
que afirmou: “Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a
terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei sem que tudo
seja cumprido” (Mateus 5.18). Em um dos debates com os líderes
judeus, Ele destacou: “A Escritura não pode ser anulada” (João 10.35).
Embora fie l ao Antigo Testamento e nunca contradizendo seus
ensinamentos, Jesus todavia viu-se como a realização do Antigo
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
85
Testamento (Mateus 5.17; Lucas 24.27,44-46; João 5.39-47). Ele
é superior aos maiores profetas, Moisés e E lia s (Mateus 17.1-11).
Seus ensinamentos são autorizados comparativamente às interpre­
tações dos seus dias (cf. Mateus 5.22,28,32,34,39,44). E le não he­
sitou em assumir uma posição de autoridade superior na interpre­
tação do Antigo Testamento. Por exemplo, E le reconheceu que
Moisés permitiu o divórcio. Contudo, em sua autoridade, E le es­
clareceu o ensinamento do Antigo Testamento
sobre o divórcio ao afirmar que, no princípio,
Ao elevarmos as reivindicações
isso não era a vontade do Criador (Mateus
19.8,9). A autoridade pessoal de Jesus também
da Bíblia à autoridade divina,
é demonstrada em sua compreensão de que suas
nunca devemos perder de vista o
palavras julgarão os homens no último D ia
fato de que também se trata de um
(João 12.48).
livro humano.
O Antigo Testamento, o qual Jesus tratou
com tal reverência, foi escrito como a Palavra
do Deus que frequentemente se revela nele pelo
discurso direto. “ O Espírito do SEN H O R falou por mim, e a sua
palavra esteve em minha boca” , afirmou D avi (2 Samuel 23.2).
“A boca do SEN H O R dos Exércitos o disse” , foi o testemunho de
Miquéias (Miquéias 4.4). Amós começa seu livro deste jeito: “A s­
sim diz o SENHO R” (Amós 1.3). Os profetas regularmente relata­
ram que a “Palavra do SENHOR” veio a eles (Oséias 1.1; Joel 1.1;
Jonas 1.1; Sofonias 1.1). E assim continua em muitos dos 39 livros.
Ao elevarmos as reivindicações da B íb lia à autoridade divina,
nunca devemos perder de vista o fato de que também se trata de
um livro humano com as distintivas personalidades dos seus es­
critores humanos manifestas em quase todas as páginas. Com cer­
teza, Deus às vezes é mostrado a escrever certas coisas, como os
Dez Mandamentos (Êxodo 31.18; cf. Êxodo 34.1). Ocasionalmen­
te, E le até fala de certo modo que parece muito com o nosso dita­
do moderno.
Por exemplo, Ele evidentemente deu instruções diretas a Moisés
para construir o Tabernáculo (Êxodo 25-27). E le ditou alguns pa­
lavras a Isaías: “ Toma um grande volume e escreve nele em estilo
de homem: Apressando-se ao despojo, apressou-se à presa [MaerSalal-Hás-Baz]” (Isaías 8.1). Porém, mais habitualmente, E le fa­
lou pelos profetas de maneira tal a utilizar as personalidades dis­
tintas de cada um deles. Assim , também temos de enfatizar a hu­
manidade da B íb lia. Realmente é theopneustosl Não obstante, a
palavra soprada por Deus também veio pelas experiências e pala­
vras dos seres humanos mortais.
Por um lado, “homens santos de Deus falaram inspirados pelo
Espírito Santo” (2 Pedro 1.21). Por outro, eles ainda eram seres
humanos plenamente conscientes, cooperativos, diversos e
talentosos. Em todos os lugares da B íb lia tem-se a consciência de
que as personalidades com as quais Deus está tratando e por quem
está falando ou escrevendo são únicas. A B íb lia mostra os patriar-
86
EDGAR R. LEE
Septuaginta: tradução grega
do Antigo Testamento feita
em Alexandria, Egito, antes
de Cristo. Uma tradição
mais recente diz que foi
feita por setenta homens;
por isso, "Septuaginta", do
latim septuaginta, setenta.
cas Abraão, Isaque e Jacó dando passos vacilantes, e às vezes tei­
mosos, ao procurarem seguir o Deus Vivo que estava se revelando
progressivamente a eles. Apresenta Moisés como pastor educado
no Egípcio e como o profeta de Israel.
O sofrimento de Jó é historiado em elegante poesia hebraica.
D avi lamúria suas queixas a Deus pelos possantes salmos, quando
Saul incessantemente o perseguia. Provérbios descreve o pendor
dos humanos em destilar sua experiência, e dá conselhos através
de provérbios sábios. A linguagem do amor é encontrada em Can­
tares de Salomão, e a procura do cínico é detalhada em Eclesiastes.
Isaías fornece linguagem humana incomparável para um encontro
exaltado com o Deus transcendente (Isaías 6), enquanto os olhos e
palavras de Jeremias enchem de lágrimas quando ele traça o mer­
gulho descendente do Israel apóstata.
O esquisito profeta Ezequiel representa suas profecias de modo
que às vezes o fazem parecer quase um doente mental, enquanto
que Amós, pastor simples mas brilhante, captura a mensagem de
Deus em nítidas metáforas agrárias.
Semelhantemente, o Novo Testamento, como o Antigo, trazem as
marcas dos seus autores humanos. Os Evangelhos ilustram este pon­
to. Juntos eles compõem uma forma literária bastante diferente dos
outros escritos do Novo Testamento. Eles falam de Jesus Cristo, o
Deus-Homem, que produziu a redenção humana por sua encarnação,
ministério, morte e ressurreição. Mas cada um dos quatro Evange­
lhos, embora contendo uma história comum de perspectivas um tanto
diferentes, exibe características distintas do seu autor.
Por exemplo, o Evangelho de Lucas traz evidências de pesqui­
sa meticulosa (Lucas 1.3) feita por um escritor que aparentemente
não foi testemunha ocular e que pode ter sido médico (Colossenses
4.14). E le enfatiza aspectos da vida e ministério de Jesus em gran­
de parte ignorados pelos outros. Entre os exemplos incluem seu
interesse na obra do Espírito Santo, os pobres e oprimidos, a dig­
nidade das mulheres e sua importância na economia divina. Cada
um dos escritores das cartas do Novo Testamento tem uma abor­
dagem única. Paulo escreve às vezes num estilo profundo e, não
obstante, utiliza por vezes um estilo que procede aos arrancos. A
carta aos Hebreus trai a mão de um mestre polido do idioma gre­
go, que está impregnado pela Septuaginta e que organiza seu ar­
gumento com esmero. A carta de Tiago, com suas muitas metáfo­
ras agrárias e inclinação prática, pode bem refletir as necessida­
des básicas das igrejas na zona rural palestina algumas décadas
depois da morte e ressurreição de Jesus. As cartas de Pedro pare­
cem tratar de assuntos mais teológicos para as igrejas da Á sia
Menor. João, no Apocalipse, prediz o fim da era em uma série de
visões altamente simbólicas, cujo significado preciso ainda intri­
ga estudantes aplicados.
A presença de elementos divinos e humanos na B íb lia requer o
que os estudiosos bíblicos frequentemente chamam de visão orgâ-
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
nica da inspiração. “ O Espírito entra na história e cultura dos es­
critores e não sobrepõe simplesmente a verdade sobre eles” .10Esta
declaração significa que Deus preparou cada escritor bíblico de
maneira que a individualidade da pessoa não fosse violada. Toda­
via, o escritor inspirado comunicou com exatidão a mensagem que
Deus desejava numa linguagem apropriada para as audiências inten­
cionais. O caso de Moisés ilustra o ponto.
Por qualquer padrão humano, mesmo que tivesse escapado do
Faraó infanticida, Moisés deveria ter crescido pobre e inculto, não
conhecendo nada dos procedimentos da corte
egípcia. Ao invés disso, as águas do N ilo o le­
varam para os braços da filha de Faraó, que
A palavra soprada por Deus
contratou a própria mãe israelita do menino
também veio pelas experiências
para alimentá-lo. A princesa o criou no palácio
e palavras dos seres
como seu filho (Êxodo 2.1-10), certificandose de que fosse “instruído em toda a ciência
humanos mortais.
dos egípcios” (Atos 7.22). Porém, somente
depois que os privilégios da corte real foram
temperados pela vida de pastor espartano na península do Sinai, é
que Deus deu a Moisés a revelação inaugural da sarça ardente
(Êxodo 3) e o concerto de fogo no monte Sinai (Êxodo 19). Todas
aquelas experiências prepararam exclusivamente Moisés para es­
crever as mensagens de Deus ao seu povo em um idioma e estru­
tura de referência que os israelitas pudessem entender.
Enquanto a B íb lia foi escrita e compilada por muitos autores
diferentes e editores ao longo de centenas de anos, ela mostra uni­
dade notável em revelar progressivamente Deus e sua vontade aos
seres humanos. Todos os seus vários livros têm uma origem e situ­
ação histórica singulares. Mas cada um cumulativamente aumen­
ta nosso conhecimento da natureza de Deus e seus esforços reden­
tores em nosso favor. James Orr resumiu bem a complexa unidade
histórica da B íb lia: “A B íb lia é o registro das revelações de Deus
de si mesmo aos homens, em sucessivas eras e dispensações,
(Efésios 1.8-10; 3.5-9; Colossenses 1.25s), até que a revelação
culmina no advento e obra do Filho e na missão do Espírito. E este
aspecto da B íb lia que constitui sua principal distinção de todas as
coleções de escritos sagrados [...] do mundo” .11
A veracidade e autoridade da Escritura, embora vigorosamente
desafiadas pelos críticos antigos e modernos, têm sido em grande
parte consideradas evidentes aos homens e mulheres de fé. Com
toda a certeza, os estudiosos cristãos demonstraram com habilida­
de que a B íb lia é incrivelmente precisa em se tratando de livro
antigo compilado no decorrer de um tão longo período de tempo e
tocando em tantos fatos da história.12Aqueles que buscam a ver­
dade não precisam temer que, adotando a B íb lia, estejam adotando mitos ou lendas infundadas. Porém, a B íb lia permanecerá em
grande parte irrelevante se o Deus de quem ela fala não se revelar
aos seres humanos no próprio tempo e espaço deles. Só porque
87
88
EDGAR R. LEE
algo é verdade, ou factual, não o torna relevante e significativo. A
autoridade da Escritura só é cabalmente demonstrada quando a
pessoa abre o seu coração para um encontro pessoal com o Deus
da Escritura.
Nas palavras do grande reformador, João Calvino: “A mais alta
prova da Escritura deriva do fato de que Deus em pessoa fala
nela” .13 Prosseguindo, Calvino acrescentou: “O testemunho do
Espírito é mais excelente do que toda a razão. Pois assim como só
Deus é testemunha apropriada dEle mesmo em sua Palavra, assim
também a Palavra não encontrará aceitação nos corações dos homens
antes que seja selada pelo testemunho interior do Espírito” .14
Distinguindo a Cosmovisão da Bíblia
Mesmo uma leitura casual da B íb lia permitirá que se distinga
sua cosmovisão das várias cosmovisões competidoras comuns na
sociedade moderna. Consideraremos aqui de forma breve o con­
traste entre três cosmovisões modernas: o naturalismo, o panteísmo
e o deísmo.15
O N a t u r a l is m o
Na sociedade ocidental, a cosmovisão dominante veio a ser o
que poderíamos chamar de naturalismo. Nesta visão, a realidade
última é material, a “matéria” de que é feito o universo. Tudo no
universo acontece naturalmente do potencial intrínseco dos ele­
mentos em si. O naturalismo16é uma excrescência da mentalidade
científica advinda do iluminismo.
“Deus, o A rtífice do universo, nos
é manifesto na Escritura...”
“Assim , a mais alta prova
da Escritura deriva do fato de
que Deus em pessoa fala nela” .
“Pois assim como só Deus
é testemunha apropriada dEle
mesmo em sua Palavra, assim
também a Palavra não encon­
trará aceitação nos corações
dos homens antes que seja se­
lada pelo testemunho interior
do Espírito” .
T
“ Que este ponto fique cla ro :
aqueles a quem o Espírito Santo en­
sinou interiormente devem descan­
sar verdadeiramente na Escritura, c
que a Escritura realmente seja autoautentieada; por conseguinte, não é
certo sujeitá-la à prova e argumen­
tação. A certeza que ela merece de
nós chega pelo testemunho do E s­
pírito” .
(M aterial extraído de As Instituías
da Religião Cristã, de João Calvino,
Volume X X .)
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
A perspectiva naturalista afirma a crença apenas nas coisas que
podem ser empiricamente testadas e explicadas. Tudo no universo
ao nosso redor, inclusive nós, é considerado produto acidental do
tempo e dos processos de mudança im plícitos no universo. O na­
turalismo não reconhece nem lugar nem necessidade de um cria­
dor onipotente e onisciente. O universo, e nós, que o habitamos,
evoluiu por combinações fortuitas das forças químicas. Qualquer
idéia que tivermos de um Deus criador é simplesmente uma projeção de nossa imaginação na tela gigantesca de um universo confu­
so. Esta visão também pode ser chamada materialista, por causa
do modo em que considera a matéria física do universo como fator último. Também pode ser considerada ateísta por causa de sua
rejeição da idéia de Deus. Pode ser pensada como humanista por
causa de sua exclusiva associação de qualquer valor ou moralidade
com os seres humanos. Se não há uma realidade espiritual última,
além dos próprios seres humanos, então a morte dos seres huma­
nos é presumivelmente o fim de sua existência pessoal. Não há,
portanto, base para crer na vida eterna.17
Em geral, o naturalismo domina os currículos das universida­
des e faculdades seculares de hoje. Nelas, Deus é largamente des­
conhecido e normalmente considerado inexistente ou impossível
de ser conhecido. O universo é um sistema fechado, imperturbado
e imperturbável; os eventos sobrenaturais, como os milagres, não
podem se intrometer. A B íb lia é meramente um livro como todos
os outros livros antigos, cheio de mitos e enganos, a ser interpreta­
do por qualquer “método científico” que esteja atualmente em voga.
Suas experiências informadas sobre Deus são em grande parte
explorações dos próprios sentimentos e desejos internos dos es­
critores. Os estudantes modernos logo entendem que, se não há
legislador divino, então a ética e a moralidade nunca podem ser
vistas em condições absolutas. O comportamento do indivíduo é
/Jutena
lluminismo: movimento
filosófico do século XVIII,
que enfatizava o livre uso
da razão, o método
empírico da ciência e
questionava as doutrinas e
valores tradicionais.
Ateu: do grego a, que
significa "sem", e theos,
que significa "deus".
urfke <z S&ctutccui
“As Escrituras, embora também te­
nham sido escritas por homens, não são
de homens nem provenientes de ho­
mens, mas de Deus” .
“ [...] A Palavra de Deus e maior
do que o céu e a terra, sim, maior do
que a morte e o inferno, porque for­
ma parte do poder de Deus e dura eter­
namente; devemos estudar a Palavra
de Deus esforçadamente, e saber e
crer com certeza que o próprio Deus
fala conosco” .
89
“ Como podemos saber o que é
a Palavra de Deus e o que é certo
ou errado? [...] Você mesmo tem de
determinar este assunto, pois sua
própria vida depende disso. Por
isso, Deus tem de falar em seu cora­
ção: Esta e a Palavra de Deus; caso
contrário você fica indeciso [...]”
(Material extraído dcA Compend
ofLuther’s Theology [Um Compên­
dio da Teologi a de Lutero]., Hugh T. Kerr,
editor.)
puramente questão de escolha pessoal ou coação social. O natura­
lismo inevitavelmente deixa os seres humanos à toa, num mar de
relativism o e subjetividade éticos.
Por contraste, a B íb lia ensina com vigorosa certeza que Deus
existe e chamou tudo à existência por sua palavra poderosa. A s­
sim, seu primeiro livro , Génesis, começa com simplicidade e ele­
gância: “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Génesis 1.1).
“ Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia a
obra das suas mãos” (Salmos 19.1), acrescenta o salmista. O po­
der criativo e o governo de Deus mostram-se tão óbvios, que outro
salmista adiciona: “Disse o néscio no seu coração: Não há Deus”
(Salmos 53.1).18 O Deus da B íb lia não só criou, mas continua a
intervir no mundo. E le chamou Abraão, tirando seu povo do E g i­
to, estabeleceu um concerto com os israelitas no Sinai, e deu um
código de conduta pelo qual o povo deve viver. E le tem cumprido
seus propósitos ao longo da história bíblica, realizando suas pro­
messas em Cristo e a Igreja. Por Cristo, a Igreja está segura da
presença e poder contínuos de Deus até o fim da era e a consuma­
ção de todas as coisas.
Os vastos dados bíblicos que apóiam uma análise da interven­
ção de Deus em seu mundo, em defesa dos seus próprios propósi­
tos, estão historicamente expressos na doutrina cristã da provi­
dência. M illard Erickson define esta doutrina como “ a ação conti­
nuada de Deus, pela qual Ele preserva em existência a criação que
Ele trouxe à existência, e a guia ao seu propósito intencional para
ela” .19
O P a n t e ís m o
Outra cosmovisão comum, nativa a muitas religiões orientais e
crescente em influência no Ocidente, é o panteísmo. Nesta visão,
a humanidade é realmente deus. Mas é deus da mesma forma como
o é uma cabra, ou uma árvore, ou um asteróide. Para o sistema
panteísta, Deus é totalmente imanente, ou presente, na criação e
indistinguível dela. O panteísmo despreza qualquer senso de
transcendência, em que Deus está de algum modo separado de sua
criação e é maior que ela. Também não leva em conta a possibili­
dade de milagres ou intervenção sobrenatural. Sobre o futuro da
humanidade, esta visão está frequentemente associada com a reencarnação, a crença de que depois da morte o indivíduo nasce
outra vez em outra vida, às circunstâncias das quais são determi­
nadas pelos resultados líquidos das ações boas ou más na vida
pregressa.20
A B íb lia ensina que Deus é imanente em seu universo no sen­
tido de que E le está em todos os lugares presente e ativo. Na ver­
dade, E le foi tão longe quanto assumir a carne humana na pessoa
de Jesus de Nazaré. Porém, o panteísmo, distinto da B íb lia, tam­
bém apresenta Deus como transcendente: Mesmo tendo criado e
inclinado-se para se envolver no seu mundo, Ele todavia existe à
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
parte dele no sentido de que sua essência divina não deve ser con­
fundida com algo que E le tenha feito. Deus não é o mesmo que
seu mundo.
O cristianismo é correspondente e na realidade ensina o que
pode ser chamado de cosmovisão teísta. Em um sistema teísta, a
realidade última é um deus, ou deuses, que traz o universo à exis­
tência e, em algum sentido, o transcende. O Deus da B íb lia não
apenas é pessoal, mas também é uma realidade eterna. Ele existiu
antes de qualquer entidade material no universo e do nada trouxe
à existência tudo o que existe fora dEle. “Pela fé, entendemos que
os mundos, pela palavra de Deus, foram criados; de maneira que
aquilo que se vê não foi feito do que é aparente” (Hebreus 11.3).
Em contraste com os sistemas politeístas que caracterizam vá­
rios deuses, os escritores da B íb lia descrevem uma crença
monoteísta21 vigorosamente expressada na antiga declaração
hebraica de fé, chamada Shema: “ Ouve [hebraico, shema’], Isra­
el, o SEN H O R, nosso Deus, é o único SEN H O R” (Deuteronômio
6.4). A idéia de um Deus que é invisível e intolerante às imagens
físicas ou ídolos, em um mundo antigo repleto de numerosas dei­
dades caprichosas, feitas à imagem de seres humanos de ambos os
sexos, era, realmente, revolucionária!
Mas o cristianismo é um tipo especial de monoteísmo. Enquanto
acredita firmemente em um Deus, os cristãos afirmam ao mesmo
tempo, sem qualquer senso de contradição, que o único Deus de­
les também é trino em sua natureza essencial e obra redentora.22
Assim Paulo, como judeu devoto, pôde escrever em certo mo­
mento que “há um só Deus” (1 Coríntios 8.6) e, quase imediatamen­
te, acrescentar: “Todavia, para nós há um só Deus, o Pai [...] e um só
Senhor, Jesus Cristo” (1 Coríntios 8.6). Ele frequentemente alternava
os nomes trinos em suas referências a Espírito, Senhor e Deus na
conferição e operação dos dons espirituais (1 Coríntios 12.4-6).
91
Panteísmo: do grego, pan,
que significa "tudo", e
theos, que quer dizer
"deus"; assim "tudo é
Deus" ou "Deus está em
tudo".
Teísta: do grego, theos, que
significa "deus".
O D e ís m o
O teísmo cristão em suas históricas expressões ortodoxas vem
sendo entendido como supematuralista, no sentido de que Deus
não apenas cria o universo, mas também o sustenta pelo seu poder
e intervém diretamente nele para cumprir seus propósitos. Porém,
uma variação do teísmo cristão surgiu na Inglaterra em princípios
do século X V II, a qual ficou sendo conhecida como deísmo,23 e
que ainda aparece de vez em quando em maneiras muito sutis e, às
vezes, não tão sutis assim. Altamente racionalistas, os deístas logo
abandonaram o conhecimento revelador da B íb lia para postular
um universo no qual Deus foi reduzido ao papel de “causa primei­
ra” . Usando a imagem do relojoeiro, eles afirmaram originalmen­
te que Deus criou o mundo, “ deu corda” nos processos naturais e
o deixou correr pelo universo, onde o abandonou. Em tal sistema
de crença, há pouca necessidade das clássicas doutrinas cristãs,
como a Trindade, a encarnação de Cristo, a expiação, os milagres
ou a inspiração da Escritura.
Politeísta: monoteísta-, poli
significa "muitos"; mono
significa "um" ou "só".
Trino: "três Pessoas em um
Ser divino".
92
EDGAR R. LEE
Deísmo : do latim deus, mais
o sufixo -ísmo.
Basicamente, nesta visão, Deus equipou a espaçonave terra para
sua viagem e a deixou entregue a quaisquer aventuras que ve­
nham suceder. Considerando que a intervenção divina é d ifícil de
predizer ou verificar, esta ótica tem certa atração para as pessoas
que sentem a necessidade de um Criador, mas que pensam que E le
está ausente da vida diária. No uso popular, a palavra deísta é
aplicada às vezes a expressões ortodoxas da fé cristã que limitam
a vontade ou a capacidade de Deus de intervir milagrosamente em
seu mundo.24
Por contraste, a B íb lia demonstra em todas as suas páginas que
Deus não só criou o mundo, mas que está constantemente envol­
vido em sua preservação. No avivamento ocorrido nos dias de
Neemias, os levitas oraram: “ Tu só és SEN H O R, tu fizeste [tempo
passado] o céu” . Mas depois acrescentaram: “ Tu os guardas [tem­
po presente] em vida a todos” (Neemias 9.6). O tema do Antigo
Testamento bem poderia ser: “ O SEN H O R tem estabelecido o seu
trono nos céus, e o seu reino domina sobre tudo” (Salmos 103.19).
Daniel observou: “E le muda os tempos e as horas; ele remove os
reis e estabelece os reis” (Daniel 2.21). Semelhantemente, o Novo
Testamento ensina que Cristo “ é antes de todas as coisas, e todas
as coisas subsistem por ele” (Colossenses 1.17) e que E le , como
Filho de Deus, está “sustentando todas as coisas pela palavra do
seu poder ” (Hebreus 1.3).
Ambos os Testamentos mostram o cuidado de Deus pelo mun­
do. No Salmo 104, Deus “nos vales [faz] rebentar nascentes que
correm entre os montes” (Salmos 104.10) e Ele “faz crescer a erva
para os animais” (Salmos 104.14). A chuva pára e semelhantemente
volta a cair segundo o prazer dEle (1 Reis 17.1; 18.1,45). Nas
palavras de Jesus, é Deus quem envia o sol e a chuva sobre os
bons e os maus (Mateus 5.45), e quem cuida dos pássaros, lírios e
erva do campo (Mateus 6.26-30).
Deus também guarda as pessoas individualmente: D avi, quan­
do perseguido por Saul (1 Samuel 23.9-12; 26.24); Sadraque,
Mesaque e Abede-Nego na fornalha de fogo ardente (Daniel 3.28);
Paulo em meio a tempestade e naufrágio (Atos 27.23,24). Enquanto
o deísmo pode parecer uma visão atraente aos que têm dificuldade
de traçar cientificamente o caminho da intervenção sobrenatural
no universo, ele não pode ser sustentado por uma leitura cuidado­
sa da B íb lia.
Preenchendo a Cosmovisão
Afirm ar que a B íb lia apresenta uma cosmovisão inclusiva e
unificada é exagerar o argumento e entender mal a natureza da
literatura bíblica. Enquanto todas as culturas têm uma cosmovi­
são, seja simples ou complexa, declarada miticamente ou abstratamente, difundida e preservada oralmente ou escrita com cuida­
do num documento, nenhum modo de declarar uma cosmovisão
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
cristã satisfaria as necessidades de todas as culturas, em todos os
tempos. Antes, a B íb lia é essencialmente a testemunha escrita da
criação e governo de Deus no universo, à medida que se relaciona
com os seres humanos. Também é o registro das maneiras como
Deus se revelou a si mesmo e a sua vontade à humanidade.
Como documento autorizado que presta testemunho à nature­
za de Deus, ao mundo e aos seres humanos, a B íb lia é uma fonte
da qual uma cosmovisão sensatamente pode ser construída. M ui­
tas narrativas ou ensinos da Escritura falam diretamente aos vári­
os elementos de uma cosmovisão. Onde os assuntos não são espe­
cificamente tratados pela Escritura, conclusões racionais podem
ser tiradas de fontes narrativas relevantes e abundantes. Por exem­
plo, as narrativas da criação em Génesis (capítulos 1-3) pressu­
põem que Deus criou tudo o que existe. Mas não tratam direta­
mente da questão de se Deus criou o mundo em seis dias de 24
horas literais há aproximadamente 6.000 anos, como muitos acre­
ditam, ou se foi ao longo de dias de eras como muitos outros acre­
ditam. A teoria particular do indivíduo sobre a maneira e a crono­
logia da criação da terra será estabelecida em conclusões tiradas
de estudo cuidadoso do texto bíblico, quando comparado com a
evidência das ciências física e biológica.
A I d e o l o g ia
Os cristãos têm achado historicamente necessário identificar
as crenças centrais de sua fé mediante o estudo meticuloso da B í­
blia, para depois expressar essas crenças em declarações de fé
concisas e facilm ente memorizáveis, as quais são comumente cha­
madas de credos. Na grande maioria das vezes, as declarações da
Escritura sobriamente formuladas tratando de assuntos doutrinários-chaves serviram como os primeiros credos e continuam a ser­
v ir assim até hoje. Deste modo, no Shema, mencionado anterior­
mente, temos uma crença central do judaísmo e, subsequentemen­
te, do cristianismo: “ Ouve, Israel, o SEN H O R, nosso Deus, é o
único SEN H O R” (Deuteronômio 6.4).
Quando um proeminente rabino judeu questionou Jesus sobre
qual dos muitos mandamentos do Antigo Testamento era o maior,
ele tinha inventado um ardil inteligente para determinar a essên­
cia do sistema de crença de Jesus. Evidentemente sem vacilar, Je­
sus citou Deuteronômio 6.5: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo
o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento” , e
prosseguiu com uma segunda citação retirada de Levítico 19.18:
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (veja Mateus 22.3440). Jesus entendia que essas passagens continham elementos es­
senciais da fé de Israel.
Os primeiros pregadores cristãos procuravam, naturalmente,
passagens-chaves do Antigo Testamento para expressar aspectos
importantes de sua crença na ressurreição de Cristo, como por
exemplo na citação de Pedro do Salmo 16.8-11 (veja Atos 2.25-
94
EDGAR R. LEE
Kenose: a condescendência
de Cristo à humilhação
terrena, assim nomeado do
grego kenoô, "esvaziar", de
Filipenses 2.7.
Encarnação: a tomada da
forma humana,
completamente humana e
completamente divina.
Exaltação: a restauração de
Jesus à sua glória no trono
do Pai.
28), ou na citação de Paulo do Salmo 16.10 (veja Atos 13.35).
Julga-se que Paulo tenha citado em Filipenses 2.5-11 um credo
cristão prim itivo, quando usou a kenose como exemplo para enco­
rajar os crentes a imitarem a humildade do Senhor. Outro exem­
plo aparece em 1 Timóteo 3.16, que enfatiza a encarnação e
exaltação de Jesus.25
Proveniente daqueles primeiros começos tem manado um flu ­
xo constante de desenvolvimento de credos tencionados a reafir­
mar as crenças centrais da fé cristã em forma facilmente repetível.
O propósito era responder a desafios particulares de cada era his­
tórica. O mais conhecido dos credos prim itivos é o denominado
Credo Apostólico, ainda em uso difundido hoje. Embora não com­
posto pelos apóstolos, como se sugere, suas primeiras formas pro­
vavelmente remontam a um período primitivo na história da igre­
ja , o fim do século I I .26E uma declaração eloquente, mas simples,
da fé bíblica articulada em volta das declarações de crença em
“Deus Pai todo-poderoso” , “Jesus Cristo, seu Filho unigénito, nosso
Senhor” e “ o Espírito Santo” .
De inícios simples, os credos pouco a pouco desenvolveramse em complexidade e sofisticação para contrabalançar as heresi­
as particulares dos seus tempos. Na era da Reforma ficaram bas­
tante longos, enquanto as tradições protestantes emergentes tenta­
vam clarificar suas crenças com base escriturística, diferente das
crenças do catolicismo romano. A Confissão de Augsburgo, de
1530, tem mais de quarenta páginas. Cerca de um terço é uma
declaração de fé em forma de credo; o restante tem a ver com as
questões doutrinárias então em disputa.27 Cada uma das principais
tradições prepararam credos extremamente precisos para declarar
o que acreditavam ser as cruciais crenças bíblicas importantes para
eles, mas omitidas ou contraditas por outros.
A Confissão Westminster de Fé (1646), influente na tradição
reformada, enfatiza fortemente a predestinação de Deus daqueles
a quem E le elegeu para a salvação.28 Por contraste, os Trinta e
Nove Artigos da Religião (1563)29 dos anglicanos deram pouca
ênfase à predestinação. Sua revisão metodista, Os [Vinte e Cinco]
Artigos da Religião (1784), também ignora em grande parte a ques­
tão.30Todos os credos históricos representam um esforço em des­
tacar os ensinamentos diretos ou im plícitos das Escrituras em afir­
mações chaves pelas quais seus autores estavam disputando. A
Escritura é normalmente compreendida como a base autorizada
da qual os credos são desenvolvidos e argumentados.
A N a r r a t iv a B íb l ic a
Os credos tendem a ser abstratos e filosóficos. Portanto, ape­
lam principalmente a adultos cultos interessados em refinar e trans­
m itir os pilares teológicos-chaves da fé. Muito da vitalidade da fé
é transmitido nas narrativas da B íb lia, as quais tendem a ser colo­
ridas, dramáticas e facilmente lembradas. As narrativas bíblicas
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
nunca são somente um fim em si mesmas. Sempre contêm lições
teológicas ou éticas importantes. Por exemplo, as histórias sim­
ples, mas dramáticas, de Adão e Eva (Génesis 1-3) tratam de al­
gumas das questões mais vitais da existência humana. Um Deus
pessoal, transcendente e todo-poderoso criou o primeiro casal hu­
mano à sua imagem (Génesis 1.27) a partir dos elementos da terra
(Génesis 2.7). Ele fez deles uma unidade fam iliar (Génesis 2.24) e
definiu sua existência por meio de certas instruções para a adora­
ção (Génesis 3.8,9), o serviço (Génesis 1.26; 2.15) e o comporta­
mento ético (Génesis 2.17).
Mas se os seres humanos são nobres, eles
também são ignóbeis. Assim , a história conta
A Bíblia não é apenas a fonte
a tentação de Adão e Eva pela serpente (Génesis
para a doutrina ou teologia na
3.1-7), e como eles foram expulsos do jardim ,
cosmovisão cristã; também é a
o lugar de sua origem. A narrativa dá uma ex­
plicação do sofrimento (Génesis 3.16) e o tra­
fonte para um sistema ético
balho duro (Génesis 3.17-19), e até pressagia
consistente e benevolente.
a redenção da humanidade.31
Como até o leitor principiante logo apren­
de, a B íb lia nos fornece muito mais que dou­
trinas, mandamentos e preceitos. Do Génesis (o livro dos come­
ços) ao Apocalipse (o livro da revelação), a B íb lia comunica suas
mensagens em histórias evocativas tão cativantes quanto um dra­
ma shakespeariano ou tão lum inoso quanto uma pintura
impressionista. As histórias de Abraão dão início à saga do povo
do concerto, vital ao plano de Deus de redenção (Génesis 12—
25.11). As histórias de Moisés narram a libertação milagrosa, o
estabelecimento do concerto, a instituição da profecia e a forma­
ção da nação. O futuro Salvador é profetizado nas histórias do rei
D avi, sob cujo governo o povo da promessa derrotou seus inim i­
gos de todos os lados e estabeleceu um império. Ao longo do ca­
minho, as narrativas de heróis como José e Sansão incorporam
lições éticas positivas e negativas, com importantes insights
teológicos.
No Novo Testamento, as narrativas do nascimento de Jesus
contêm os elementos cruciais da doutrina cristã da encarnação, na
qual Deus toma a forma humana para redim ir a posteridade caída
de Adão. A s histórias do batismo, da dotação com o Espírito, da
tentação e do ministério de Jesus recontam como Deus viveu entre
os seres humanos, ensinando o caminho da salvação. A história da
crucificação é mais que um relato triste de um erro judicial trági­
co. É a história de como Deus perdoa o pecado da raça humana. A
narrativa da ressurreição é o clím ax da história do Evangelho,
mostrando como Deus venceu a morte de Jesus para completar a
obra de redenção. A narrativa do Livro de Atos reconta os come­
ços da Igreja. Em detalhes fascinantes descreve que o Deus vivo
mora no interior daqueles que são dEle (e não no Tabernáculo ou
no Templo), e que E le os manda sair como sócios responsáveis
95
96
EDGAR R. LEE
pela reconciliação do mundo. Os enredos do Apocalipse contam a
consumação de todas as coisas, com o julgamento final para a
bem-aventurança impenitente e eterna pertencente aos remidos.
Os E l e m e n t o s
Pentateuco: do grego penta,
que quer dizer "cinco", e
teuchos, que significa
"livro".
N o rm a tiv o s d a E s c r i t u r a
A B íb lia não é apenas a fonte para a doutrina ou teologia na
cosmovisão cristã; também é a fonte para um sistema ético con­
sistente e benevolente. A instrução ética é encontrada ao longo da
B íb lia, de Génesis, o primeiro livro, onde Deus ordena que Adão
não coma do fruto da árvore da ciência do bem e do mal (Génesis
2.17), ao Apocalipse, o último livro, onde o ouvinte é ordenado a
não acrescentar nem tirar de suas profecias (Apocalipse 22.18,19).
Começando no Pentateuco e prosseguindo pela B íb lia, os ensinos
éticos variam de leis cuidadosamente codificadas, tão específicas
e práticas quanto a proibição contra a usura (Deuteronômio 23.19)
a princípios gerais de amplo alcance, como “ Amarás o teu próxi­
mo a ti mesmo” (Levítico 19.18).32
A ética bíblica é tanto pessoal - tendo a ver com o modo como
os indivíduos se relacionam com Deus e uns com os outros, como
nos exemplos precedentes - quanto social, explicando em deta­
lhes as ações que contribuem para o bem-estar da sociedade como
um todo. Assim Amós censura amargamente seus companheiros
que pisam os pobres (Amós 5.11) e pede que haja justiça nos tri­
bunais (Amós 5.15). Muito do conteúdo da B íb lia é ético em sua
natureza, diretamente preocupado com o modo como as pessoas
vivem em relação a Deus e umas às outras.
O coração da ética bíblica encontra-se nos Dez Mandamentos,
ou “Dez Palavras” , como significa literalmente o texto hebraico
(como também o texto grego: “Decálogo” ), os quais o próprio Deus
escreveu em tábuas de pedra e as deu a Moisés (Êxodo 20.1-17;
Deuteronômio 5.1-22). Muito mais que um simples conjunto de
prescrições legais, o Decálogo é um concerto (Deuteronômio 5.3),
estruturado na linguagem dos contratos do antigo Oriente Próxim o:
O Senhor, como o Grande Rei que libertou Israel do Egito, fixa as
cláusulas pelas quais seu povo deve pautar a vida. Para ser exato, os
mandamentos requerem uma resposta de amor e gratidão discipli­
nada ao Senhor, e não são um sistema legalista tedioso.
O Decálogo divide-se naturalmente em duas seções.33 A pri­
meira seção, compreendendo os mandamentos um a quatro, tem a
ver com o que poderia ser chamado de relacionamento vertical,
entre o homem e Deus. Assim Israel 1) não deve ter outro Deus, 2)
não deve fazer (cultuar) nenhum ídolo, 3) não deve permitir ne­
nhum abuso com o nome de Deus e 4) deve observar o sábado. A
segunda seção inclui os mandamentos cinco a dez, tendo a ver
com o relacionamento horizontal, entre as pessoas. Assim Israel
5) deve honrar os pais, 6) não deve assassinar, 7) não deve come­
ter adultério, 8) não deve roubar, 9) não deve dar falso testemu­
nho, 10) não deve desejar nada que pertença ao próximo.34 Numa
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
época de idolatria excessiva e confusão ética, o Decálogo foi um
documento muito mais revolucionário do que possa ser imaginado por nossa cultura, que foi intensamente influenciada pela tradi­
ção judaico-cristã.
A importância do Decálogo é enfatizada pelo modo como foi
usado no Novo Testamento. Jesus considerou as ordens do
Decálogo a ética básica do Reino de Deus. Em debate com seus
oponentes, E le reiterou o Decálogo. Mas ao fazê-lo, Ele o elevou
muito mais acima do que um mero conjunto de regras, quando
resumiu a primeira tábua com o mandamento de amar Deus e a
segunda tábua, com o mandamento de amar o próximo (Mateus
22.34-40). O interesse de Jesus pelo Decálogo é demonstrado re­
petidamente. Por exemplo, Ele recitou a segunda tábua para um
jovem rico , mas aparentemente cobiçoso e legalista (Mateus
19.18,19). A implicação clara era que o jovem tinha perdido de
vista o que significava amar Deus e o próximo. Em outra ocasião,
E le disse: “ Tudo o que vós quereis que os homens vos façam,
fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas” (Mateus
7.12). Aqui mais uma vez E le reafirma dinamicamente a segunda
tábua com o amor ao próximo, e mostra sua centralidade na vonta­
de de Deus. Para Jesus, a essência do Decálogo como amor a Deus
e ao próximo é eternamente válida e universalmente ordenada.
Paulo e — no que diz respeito ao assunto — a comunidade do
Novo Testamento em geral, seguiram o exemplo de Jesus na perpe­
tuação da ética do Decálogo. Paulo repetiu quatro mandamentos da
segunda tábua e, como Jesus, reduziu-os dinamicamente para a lei
do amor. “ Se há algum outro mandamento” , disse ele, “tudo nesta
palavra se resume: Amarás ao teu próximo como
a ti mesmo. [...] De sorte que o cumprimento da
lei é o amor” (Romanos 13.9,10). Entretanto,
longe de ser legalista, Paulo entendeu que o amor
é o dom de Deus dado pelo seu Espírito (Roma­
nos 5.5), e que o Espírito quebra o poder do peca­
do (Romanos 6.12; 8.2,13; Gálatas 5.16) e forne­
ce a motivação para vivenciar a ética do Reino de
Deus (Romanos 8.4; Gálatas 5.22). Além disso, a relação do indivíduo
com Deus não está baseada na adesão perfeita aos mandamentos (Ro­
manos 3.20), importantes como são como respostas obedientes a Deus,
mas na retidão livremente fornecida pela fé na obra redentora de Jesus
Cristo (Romanos 3.21-26).
A B íb lia não nos deixa com um código legalista de comporta­
mento ético, que apresenta prescrições específicas para toda situ­
ação d ifícil. Antes, presta testemunho a um Deus pessoal, tremendo
em santidade, que ordena que a humanidade o ame e ame uns aos
outros pela graça que Ele dá. O Decálogo e outros mandamentos
específicos da B íb lia tornam-se um conjunto de princípios
orientadores autorizados, que são incrivelmente elásticos e aplicáveis
a toda situação mediante a oração e a sabedoria do Espírito Santo.
97
Usura : "sobrecarregar de
juros exorbitantes".
98
EDGAR R. LEE
Os R i t u a i s
D e riv a d o s d a E s c r i t u r a
As narrativas bíblicas estão repletas de rituais poderosos, pe­
los quais o povo de Deus invocava suas bênçãos e observava seus
mandamentos para adoração e serviço. Dos sacrifícios simples de
Abrão no início do concerto de Deus com ele (Génesis 15), ao
elaborado Tabernáculo no deserto com seus sistemas sacrificiais e
rituais cuidadosamente prescritos (Êxodo 35^10; Levítico 1-27),
ao dourado e ainda mais complexo Tempo de Salomão (1 Reis 58), Israel desenvolveu o que entendia ser a maneira de adoração
ordenada pelo grande Rei como demonstração adequada de sua
vontade na vida do seu povo.
Assim , a liturgia do Templo veio a simbolizar a eleição de Is­
rael e o privilégio especial como povo peculiar de Deus. A des­
truição do Templo, realizada pelos babilónios em 586 a.C ., efetivamente explicou em detalhes a rejeição de Deus e o castigo pelos
pecados que eles cometeram. Subsequentemente, os israelitas pi­
edosos almejaram a restauração do favor divino im plícito na volta
ao ato de reunirem-se e na reconstrução do Templo.
A importância da reconstrução do Templo nas vidas dos ju ­
deus imediatos ao exílio é vista no modo como o próprio Jesus
frequentava o Templo e participava dos seus cultos (Mateus 2124; Marcos 11-13; Lucas 2.27,41-49; 19.45,46; 20-23; João 2.1316; 7.14ss, etc.). Isto era verdade apesar, do seu desprezo pela
maldade dos líderes de então (cf. Mateus 23) e pela comercialização
excessiva dos sacrifícios que faziam (Mateus 21.12,13; João 2.1316). Jesus também previu um tempo quando o esplêndido Templo
dos seus dias, magnificentemente restaurado por Herodes, o Gran­
de, seria destruído outra vez (Mateus 24.1,2; Marcos 13.1,2; Lucas
21.5,6). Os cristãos primitivos regularmente usavam o Templo para
suas reuniões (Atos 3.1ss; 5.12; 5.42) e tomavam parte em seus ritu­
ais (Atos 21.26), mas, mesmo assim, compreen­
diam que o perdão de pecados agora era consu­
As narrativas bíblicas estão
mado pela morte de Jesus (Atos 2.38; 5.30,31) e
repletas de rituais poderosos, pelos
não pelos rituais do Templo como tais (cf.
Hebreus 9).
quais o povo de Deus invocava
O
fato de que cada vez mais o
Suas bênçãos.
prim itivos davam menos significado ao r i­
tual do Templo (junto com a predição de Je­
sus da destruição do Tem plo) pode ter contribuído para o
surgimento de tensões entre eles e os líderes judeus. Por exem­
plo, Estêvão fo i acusado de fa la r contra o Tem plo (A tos
6.13,14). Em resposta, ele ressaltou eloquentemente que, em­
bora Deus tivesse dado aos judeus o Tabernáculo e, depois, o
Tem plo, eles se fizeram de surdos aos mandamentos e leis de
Deus. Estêvão então in sistiu : “ O A ltíssim o não habita em tem­
plos feitos por mãos de homens” (Atos 7.48). Em todo caso, na
época em que o Templo fo i destruído em 70 d .C ., a adoração
nele já não era mais vital para a fé cristã.
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
Os rituais do Templo e da sinagoga tiveram indubitavelmente
influência importante nas práticas35 rituais da cristandade em al­
guns aspectos, como na música e no canto, na oferta, na oração,
na leitura da Escritura e na pregação. Os antecedentes judeus so­
bejavam em cada uma dessas práticas, e a B íb lia ensina diretamente a sua importância ou fornece precedente para o seu uso no
culto.
As duas práticas rituais mais óbvias ensinadas na Escritura são
0 batismo e a Eucaristia, ou Santa Ceia, como é frequentemente
chamada. As igrejas litúrgicas tendem a considerar estes eventos
como sacramentos, crendo que a graça é de fato mediada por eles.
Aqueles que se alinham à tradição da igreja liberal geralmente os
chamam de ordenanças e desejam fic a r longe de qualquer
conotação mágica da graça, que possa depreciar a necessidade da
fé e obediência na observância.
O batismo nas águas, como sinal de arrependimento e compro­
misso a Deus, parece que foi introduzido pela primeira vez na
tradição judaica pelo ministério de João Batista (Mateus 3.6). O
próprio Jesus se submeteu ao batismo, não como sinal de arrepen­
dimento, mas para “cumprir toda a justiça” (Mateus 3.15). Tam­
bém se tornou a ocasião para a sua unção pelo Espírito (Mateus
3.16,17). Ocasionalmente, os discípulos de Jesus parecem ter batizado outros (João 3.22-26; 4.2). O batismo está ordenado junto
com a Grande Comissão que Jesus deu aos discípulos (Mateus
28.19) e era, desde o princípio, parte da prática ritual cristã (Atos
2.38; 8.12,38; 9.18; 10.48). A linguagem do batismo aparece aqui
e nas Epístolas, falando sobre a morte para a velha vida de pecado
e desobediência antes da chegada à fé em Cristo (Romanos 6.1-4;
1 Pedro 3.21). (Veja o box “ O Ritual Cristão do Batismo nas
Águas” , no Capítulo 1.)
A prática ritual da Santa Ceia deriva da compreensão cristã de
que o próprio Jesus a ordenou nos relatos de sua última ceia com
os discípulos, encontrados nos Evangelhos sinóticos (Mateus
26.17-30; Marcos 14.12-26; Lucas 22.7-23) e na primeira carta de
Paulo aos coríntios (1 Coríntios 11.17-34), provavelmente nosso
registro mais primitivo sobre o evento. Nos momentos emocionalmente mais elevados daquela refeição, Jesus tomou o pão e, de­
pois de dar graças, deu aos discípulos para que o comessem, di­
zendo: “ Isto é o meu corpo” . Semelhantemente, passou para as
mãos deles o cálice de vinho, dizendo: “Isto é o meu sangue, o
sangue do Novo Testamento [concerto], que é derramado por mui­
tos” .
Jesus identificou esta ocasião cerimonial claramente com sua
morte iminente, e ensinou que ela simbolizava exclusivamente o
modo pelo qual sua morte se tornaria uma compensação pelos pe­
cados da humanidade. Tanto o testemunho de Lucas quanto o de
Paulo apresentam Jesus relacionando o pão com seu corpo dado
por nós (Lucas 22.19; cf. 1 Coríntios 11.24). O seu sangue é “o
99
Eucaristia: do vergo grego
eucharisteô, que significa
"dar graças".
Sacramento: do latim
sacrere, que quer dizer
"consagrar".
Ordenança: uma cerimónia
prescrita; na teologia, os
mandamentos de Cristo.
1 0 0
EDGAR R. LEE
sangue do Novo Testamento [concerto], que por muitos é derra­
mado” (Marcos 14.24). Mateus acrescenta: “Para remissão dos
__________________ pecados” (Mateus 26.28). Lucas (Lucas 22.19)
e Paulo (1 Coríntios 11.24) relembram especi­
As narrativas bíblicas estão
ficamente que a ceia será repetida “em memó­
ria de mim” . (Veja o box “ O Ritual Cristão da
repletas de rituais poderosos pelos
Celebração da Ceia do Senhor” , no Capítulo
quais o povo de Deus invocava
1.)
suas bênçãos.
O utras p ráticas são frequentem ente
deduzidas da B íb lia, como o modo apropriado
de celebrar e observar a fé pessoal. Tais práticas incluem as reuni­
ões regulares, o canto, o uso de instrumentos musicais, a oração, a
pregação, o uso dos dons espirituais no culto, e assim sucessiva­
mente. Diferentes igrejas colocam diferentes valores em determi­
nados rituais, dependendo de sua interpretação da B íb lia.
A E x p e r iê n c ia E s p ir it u a l
No capítulo anterior foram investigados quatro exemplos
marcantes de experiências religiosas bíblicas. As narrativas bíblicas
realmente abundam em histórias sobre as diferentes maneiras pe­
las quais Deus encontrou os seres humanos em modos transfor­
madores de vida. O que precisa ser acrescentado aqui é que a B í­
blia apresenta um Deus vivo, pessoal e amoroso, que deseja ter
um relacionamento com todos os que estão dispostos a ir a E le em
4
-
Síeme*tto& da, &eàz do* Sm ám
Tem havido grande debate ao lon­
go da história da Igreja concernente a
como entender precisamente os ele­
mentos do pão e do vinho em relação
ao verdadeiro corpo e sangue de Je| sus. Historicamente, os
católicos romanos têm
defendido seu ponto de
vista denominando-o de
transubstanciação, afir­
mando que durante a ce­
lebração da m issa os
elementos do pão e do
vinho são transformados
de verdade no corpo e
no sangue de Jesus. Os luteranos,
seguindo o reform ado r alem ão
Martinho Lutero (1483-1546), argu­
mentaram em favor da consubstanciação, acreditando que o corpo e
sangue de Jesus estão realmente presenles em, com e sob os elementos
do pão e do vinho. Porém, a maio­
ria dos protestantes tem seguido até
certo ponto a visão memorial do lí­
der su íço da R efo rm a U lric h
Zw inglio (1484-1531), acreditando
que os elementos da Santa Ceia são
simplesmente símbolos do corpo e do
sangue de Jesus. Com frequência eles
amenizam o entendimento memorial
de Zw inglio com o insight de João
C alvino, de que, em algum sentido
m ístico, Cristo está realmente pre­
sente na comunhão pela atividade do
Espírito Santo.
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
101
arrependimento e fé. Este ponto está talvez supremamente ilustra­
do na descrição que os quarto Evangelhos fazem da encarnação:
“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (João 1.14). Habitan­
do entre os seres humanos, Jesus entrou em relacionamento afetivo
e pessoal com eles. Mesmo quando se prepa­
rava para a morte, os escritores evangelísticos
Igreja denota frequentemente
notam a preocupação de Jesus em continuar os
relacionamentos. “E eu rogarei ao Pai, e ele
um edifício, significado não
vos dará outro Consolador, para que fique
encontrado na Bíblia, e que
convosco para sempre. [...] Não vos deixarei
tende a desviar a atenção da
órfãos; voltarei para vós” (João 14.16-19).
Em outras palavras, na presença confortante
Igreja viva como entidade
do Esp írito Santo que E le enviaria, Jesus
encabeçada por Cristo.
mais uma vez entraria em contato pessoal e
vital com o seu povo.
A experiência dos crentes prim itivos, segundo registro no
Livro de Atos dos Apóstolos, fo i construída sobre a promessa
do Evangelho. Lucas inform a: “ Os discípulos estavam cheios
de alegria e do Esp írito Santo” (Atos 13.52), ligando decisiva­
mente a alegria deles com o Esp írito . A marca registrada da fé
na Igreja prim itiva era uma experiência jo via l de Cristo pelo
seu Espírito (Atos 2.46,47; 8.8,39). Ao longo do Novo Testa­
mento, há notável conexão entre a experiência cristã e a pessoa
e presença do Esp írito Santo.
No pensamento de Paulo, Deus derrama amor no coração do
crente pelo Espírito (Romanos 5.5), que também alimenta o fruto
“ adicional” da alegria e da paz, juntamente com outros atributos
de caráter (Gálatas 5.22; cf. Romanos 15.13). A esperança é outra
contribuição do E sp írito (Rom anos 15.13). Esta presença
habitadora do Espírito dá garantia, pela qual os crentes sabem que
Deus os ama e aceita. Assim Paulo escreve: “ O mesmo Espírito
testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (Roma­
nos 8.15,16; cf. Gálatas 4.6). De modo semelhante, a Prim eira
Carta de João adiciona: “E nisto conhecemos que ele está em nós:
pelo Espírito que nos tem dado” (1 João 3.24). Os cristãos primi.tivos também não tinham dificuldade em falar de Cristo (Roma­
nos 8.10; Gálatas 2.20; Efésios 3.17).
Em suma, a experiência cristã é sentir o poder de Deus no inte­
rio r da pessoa, de modo a fortalecer a fé (Efésio s 3.16,20;
Colossenses 1.11) e contribuir para a paz de espírito do indivíduo
(Filipenses 4.7).
A I g r e ja
como
I n s t it u iç ã o S o c ia l
A entidade social primária associada à fé cristã é-a Igreja, o
fundamento lógico pelo qual está profundamente incrustada na
Escritura. Biblicam ente, a palavra igreja é usada para denotar um
grupo local de cristãos e a Igreja universal - a reunião de todos os
verdadeiros crentes ao longo das eras. Na vida moderna, igreja
denota frequentemente um edifício, no qual um grupo particular
de cristãos se reúne, uso não encontrado na B íb lia, e que tende a
desviar a atenção da natureza essencial da Igreja como entidade
espiritual encabeçada por Cristo, composta de seu povo e habita­
da pelo seu Espírito. Hoje, também usamos a palavra para nos
referir às denominações em particular. Cada denominação será de­
finida por sua ênfase distintiva da B íb lia e o modo singular de
entender sua história. Nosso propósito aqui é inquirir sobre o im ­
pacto da B íb lia em nossa experiência singular de Igreja.
A B íb lia nos mostra que Deus sempre tratou a humanidade em
um nível individual e pessoal. Ao mesmo tempo, E le a dispôs
em grupos sociais. Logo depois da criação de Adão, Deus pro­
nunciou: “ Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma
adjutora que esteja como diante dele” (Génesis 2.18). Seguiuse a criação de Eva e o estabelecimento da unidade fam iliar
(Génesis 2.21-24). A chamada de Abraão por Deus veio com a
promessa de ser feito dele uma grande nação (Génesis 12.1-3).
A história do Antigo Testamento é a história da criação de Isra ­
el como povo peculiar de Deus, por quem E le pôde fomentar
seus propósitos para a humanidade. A Igreja cristã veio à existên­
cia com a compreensão de que era a culminação de muitas das
promessas de Deus para e por Israel.36
De acordo com o Novo Testamento, o próprio Jesus se anteci­
pou à criação da Igreja (Mateus 16.18; 18.17) e prefaciou sua as­
censão com uma comissão que resultaria no crescimento dela
(Mateus 28.18-20). A Igreja não é simplesmente uma associação
voluntária, como muitas pessoas numa sociedade democrática
comumente acreditam. Biblicam ente, é um organismo criado pelo
Espírito Santo à medida que homens e mulheres respondem com
fé à pregação da Palavra de Deus. Não há muito o que decidir para
tornar-se parte da Igreja no que tange a ser colocado lá pela ação
de Cristo no evento da salvação. “Pois todos nós fomos batizados
em um Espírito, formando um corpo, [...] e todos temos bebido de
um Espírito” (1 Coríntios 12.13). O cabeça da Igreja é o próprio
Cristo (Efésios 1.22,23; Colossenses 1.18), e a metáfora bíblica
mais descritiva para a Igreja é Corpo de Cristo (Romanos 12.5; 1
Coríntios 12.12, etc.). Assim a Igreja, biblicamente falando, é o
corpo universal de crentes capacitados pelo Espírito de Deus e
obedientes a Jesus Cristo, o cabeça.
A Igreja existe para cumprir os vários objetivos no propósito
divino. Prim eiro, existe para adorar e servir a Deus. Pedro, com
uma mescla vívida de metáforas, vê o povo de Deus como pedras
vivas construídas numa casa espiritual, ou templo, e ao mesmo
tempo é um sacerdócio santo que oferece sacrifícios espirituais a
Deus (1 Pedro 2.5). Paulo também descreve a Igreja em condições
semelhantes (1 Timóteo 3.15). Segundo, a Igreja existe para
evangelizar o mundo. Jesus constituiu o seu povo exclusivamente
como povo de missão, e dirigiu-o a ir e fazer discípulos de todas
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
as nações (Mateus 28.19). Terceiro, a Igreja é incumbida a pro­
porcionar nutrição e crescimento aos seus membros. Deve ser lu­
gar “para edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos
à unidade da fé e ao conhecimento do Filho de Deus, a varão per­
feito, à medida da estatura completa de Cristo” (Efésios 4.12.13).
Uma cosmovisão bíblica pode ser corretamente enunciada e v iv i­
da somente a partir da realidade incorporada da Igreja.
Conclusão
No correr dos anos houve poucos dias, desde minha conversão
numa tenda de reuniões, em que eu não abri a B íb lia para ler sua
sabedoria por necessidade devocional ou académica. Não hou­
ve nenhum dia sequer em que a lembrança de sua mensagem
não guiou e ilum inou meus pensamentos e ações. O quebracabeça de uma cosmovisão consistente e satisfatória fo i sendo
completado à medida que, muitas e muitas vezes, eu descobria
a harmonia dinâmica de meu relacionamento pessoal com Deus,
a palavra que E le falou na B íb lia e o mundo que E le criou. Não
há que duvidar que meu modo de pensar e de ser foi muitas
vezes desafiado dolorosamente.
Com frequência enfrentei a necessidade de me arrepender e
me renovar em ambas as frentes. Além disso, ainda não tenho
respostas plenamente satisfatórias para todas as perguntas concebíveis que podem ser feitas ao meu sistema de crença. Certa­
mente nenhuma cosmovisão está isenta de dificuldades. Mas en­
contrei-as em menor número em uma abordagem cristã baseada
na Escritura. Em lugar de requerer um sacrifício do meu intelec­
to, descobri que a B íb lia continua me mudando na busca de um
entendimento m ais cabal dos seus ensinos. E descobri que
vivenciar sua mensagem traz alegria e satisfação em um nível
pessoal, que recompensa o custo de uma obediência como cren­
te. Para m im, a B íb lia provou ser verdadeiramente theopneustos,
“ soprada por Deus” . Como Calvino, descobri que “Deus em pes­
soa fala nela” .
Revisão e Questões para Discussão
1. Como você contaria a história da B íb lia em algumas breves
frases?
2. D iscuta o significado e im portância da palavra grega
theopneustos encontrada em 2 Timóteo 3.16.
3. Qual é a opinião geral dos escritores bíblicos sobre a origem
e autoridade dos seus escritos?
4. Qual é o significado do fato de que a B íb lia parece apenas
presumir a existência de Deus, sem qualquer necessidade de pro­
vas racionais de sua existência? Por que você acha que os pensa­
dores cristãos mais recentes — Anselmo, Tomás de Aquino, Paley
— sentem necessidade de oferecer tais provas?
103
5. Compare e contraste a cosmovisão da B íb lia com a do natu­
ralism o, panteísmo e deísmo.
6. Como os credos históricos da igreja cristã relacionam-se com
a B íb lia e nossa cosmovisão?
7. Como as narrativas da B íb lia informam nossa cosmovisão?
Que precauções devem ser tomadas na formação de uma cosmo­
visão a partir das narrativas?
8. Como devemos entender o significado do Decálogo para
nossa vida ética hoje?
9. Quais são as duas principais práticas rituais que quase todos
os cristãos observam, e qual é o significado de cada uma? Outrossim, de que maneira essas cerimónias podem se tornar “meros”
rituais? O que você sugere para ajudar a igreja de hoje a evitar
tratar os rituais dessa forma?
10. Discuta o papel do Espírito Santo na experiência da fé cristã.
Bibliografia Selecionada
B LO ES C H , Donald G. Holy Scripture: Revelation, Inspiration,
& Interpretation. Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1994.
E L W E L L , W alter A ., editor. Evangelical D ictionary o f
Theology. Grand Rapids: Baker Book House, 1984.
E L IA D E , M ircea, editora. The Encyclopedia ofReligion. Nova
York: The M acm illan Publishing Company, 1987.
H O F F E C K E R , W. Andrew, e SM ITH , Gary Scott, editores.
Building a Christian World View. 2 volumes. Phillipsburg, Nova
Jersey: Presbyterian & Reformed Publishing Company, 1986,1988.
HORTON, Stanley M „ editor. Teologia Sistemática. Rio de
Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1996.
JOHNSON, Alan F ., e W E B B E R , Robert E . What Christians
Believe: A Biblical and Historical Summary. Grand Rapids:
Academic Books/Zondervan Publishing House, 1989.
L E IT H , John H ., editor. Creeds ofthe Churches: A Reader in
Christian Doctrine from the Bible to the Present. 3.a edição.
Lo u isville: John Knox Press, 1982.
M cN E IL L, John T ., editor. Calvin: Institutes ofthe Christian
Religion. Traduzido para o inglês por Ford Lew is Battles. The
Library of Christian C lassics, volume 20. Filadélfia: Westminster
Press, 1960.
N ASH , Ronald H. Faith and Reason: Searchingfor a Rational
Faith. Grand Rapids: Academ ic Books/Zondervan Publishing
House, 1988.
Notas Bibliográficas
1.
Alusão à serragem que os evangelistas itinerantes america­
nos mandavam espalhar no corredor entre as fileiras de cadeiras
nas tendas que erguiam de cidade em cidade. Assim , os corredo­
res tomavam-se “pistas de serragem” . (N . do T .)
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
2. Ronald H . N ash, W orldviews in Conflict: Choosing
Christianity in a World o f Ideas (Grand Rapids: Zondervan
Publishing House, 1992), p. 16.
3. Veja o Capítulo 1 para uma discussão sobre este termo.
4. Para um bom exame do processo de canonização, veja Alan
F. Johnson e Robert E . Webber, What Christians Believe: A Biblical
and Historical Summary (Grand Rapids: Academ ic Books/
Zondervan Publishing House, 1989), pp. 36-40.
5. Donald G. Bloesch cita o argumento de Fred D . Gealy em
Interpreter’s Bible (Nova York: Abingdon, 1955), volume 11, pp.
504-506, no sentido de que esta passagem im plica que os escritos
de Paulo e, talvez, todos os escritos do Novo Testamento, devam
ser entendidos como Escritura. Confira Holy Scripture: Revelation,
Inspiration, & Interpretation (Downers Grove, Illino is: InterVarsity
Press, 1994), p. 317.
6. Gealy observa que esta passagem representou papel impor­
tante no “ estabelecimento do lugar do corpus paulino no Novo
Testamento emergente” . Ibid ., p. 506.
7. Citado em A lan F. Johnson e Robert E . Webber, What
C hristians B elieve: A B ib lica l and H isto rica l Sum m ary
(G rand R ap id s: A cad em ic Boo ks/Zond ervan P u b lish in g
House, 1989), p. 23.
8. Ibid ., p. 24.
9. Leon M orris, IBelieve in Revelation (Grand Rapids: W illiam
B . Eerdmans Publishing Company, 1976), p. 59, citando o estudo
de R . T. France, Jesus and the Old Testament (Londres: The Tyndale
Press, 1971), p. 27.
10. Donald G. Bloesch, Holy Scripture: Revelation, Inspiration,
& Interpretation (Downers Grove, Illin o is: InterVarsity Press,
1994), p. 122.
11. The International Standard Bible Encyclopedia, edição re­
vista, Geoffrey W. Brom iley, editor. (Grand Rapids: W illiam B .
Eerdmans Publishing Company, 1979), no verbete: “ Bible” .
12. Veja os comentários e bibliografia de Donald G . Bloesch:
Holy Scripture: Revelation, Inspiration, & Interpretation (Downers
Grove, Illin o is: InterVarsity Press, 1994), pp. 323, 324.
13. John T. M cN eill, editor, Calvin: Institutes ofthe Christian
Religion, traduzido para o inglês por Ford Lew is Battles. The
Library of Christian Classics (Filadélfia: Westminster Press, 1960),
volume 20, p. 78.
14. Ib id ., p. 79.
15. O existencialismo é outra visão proeminente hoje. Veja a
discussão no Capítulo 1.
16. Veja o Capítulo 1 para uma discussão sobre este termo.
17. Para uma crítica proveitosa sobre o naturalismo, veja Ronald
H . Nash, Faith and Reason: Searchingfor a Rational Faith (Grand
Rapids: Academic Books/Zondervan Publishing House, 1988), es­
pecialmente as pp. 256-259.
105
18. A B íb lia nunca procura comprovar a existência de Deus
mediante provas racionais. Porém, os pensadores cristãos o pro­
curaram com variados graus de aceitação, em diferentes momen­
tos na história da igreja. Os melhores argumentos conhecidos são
o ontológico, baseado em nossa habilidade de conceber um ser
perfeito que deve por necessidade e x istir se é p erfeito ; o
cosmológico, baseado na necessidade aparente de um criador para
o nosso universo complexo; o teleológico, baseado no desígnio
aparente de nosso universo; e o moral, baseado na presença da
capacidade moral dos seres humanos. Para uma exposição clara,
veja Stanley J. Grenz, Theology fo r the Community o f God
(N ashville: Broadman & Holman Publishers, 1994), pp. 40-45.
19. M illard J. Erickson, Christian Theology (Grand Rapids:
Baker Book House, 1983-1985), p. 387.
20. Veja The Encyclopedia ofReligion, M ircea Eliade, editora
(Nova York: The M acm illan Publishing Company, 1987), no ver­
bete: “Reincamation” .
21. Veja Evangelical Dictionary o f Theology, Walter A . Elw e ll,
editor (Grand Rapids: Bake Book House, 1984), no verbete:
“Monotheism” .
22. Veja G. W. Brom iley, no verbete: “Trinity” .
23. Ibid., no verbete: “ Deism” .
24. V eja K ir k Bottom ly, “ Corning Out of the H angar:
Confessions of an Evangelical Deist” , in: The Kingdom anã the
Power: Are Healing and the Spiritual Gifts Used by Jesus and the
Early ChurchMeantfor the Church Today? Gary S. Greig e Kevin
N. Springer, editores (Ventura, Califórnia: Regai Books, 1993),
pp. 257-274.
25. Para informações adicionais, veja John H . Leith, editor,
Creeds ofthe Churches: A Reader in Christian Doctrine from the
Bible to the Present, 3.a edição (Lo u isville, Kentucky: John Knox
Press, 1982), pp. 12-16.
26. Ibid., pp. 22-25.
27. Ib id ., pp. 63-107.
28. Ib id ., pp. 193ss.
29. Ib id ., pp. 266ss.
30. Ibid., pp. 353ss.
31. A narrativa parece presumir que animais foram sacrifica­
dos para fazer vestuário das peles, pressagiando práticas mais tar­
dias de sacrifício animal para a expiação do pecado. Também pro­
mete que a descendência da mulher ferirá a cabeça da serpente
(Génesis 3.15). Esta promessa tem sido historicamente compre­
endida como oprotoevangelium (“primeiro evangelho”), apontando
para a morte e vitória de Cristo.
32. Contudo, note o modo no qual o mandamento ético do
Antigo Testamento está inserido na vida em comunidade para preve­
nir a vingança e o ressentimento contra os israelitas companheiros. Je­
sus e Paulo, por contraste, parecem universalizar este mandamento.
O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO
33. Alguns estudiosos, reparando na natureza comportamental
do décimo mandamento, classificam-no numa terceira seção.
34. Veja Evangelical Dictionary o f Theology, no verbete: “ The
Commandments” . Observe que Craigie, o autor, inclui o quinto
mandamento de honrar os pais com aqueles relacionados princi­
palmente a Deus, visto que os pais são responsáveis por ensinar a
lei de Deus aos filh os.
35. Veja o Capítulo 1 para uma discussão sobre este termo.
36. Muitas promessas específicas serão cumpridas para Israel
no M ilé n io . V eja Stan ley M . H orton, N osso D estino: O
Ensinamento Bíblico das Ultimas Coisas (Rio de Janeiro: Casa
Publicadora das Assembléias de Deus, 1998).
107
3
Vozes do
Passado:
Tentativas
Históricas
para Formar
um
Pensamento
Cristão
Gregory J. Miller
110
GREGORY J. MILLER
uando a maioria dos estudantes chega à faculdade, nenhum
deles está muito interessado em história. Penso que isto é
compreensível. Os estudantes de faculdade americanos não
au vi vem numa cultura orientada para o futuro, mas também atra­
vessam um período em suas vidas em que estão particularmente
interessados pelo futuro. Sentem-se muito felizes por estar livres
dos constrangimentos, reputações e até relacionamentos passados.
“O passado já era. O que é importa mesmo é para onde estamos
indo, certo?”
Errado. O passado formou tudo o que somos no presente. Para
saber onde estamos e para onde vamos, temos de saber onde estive­
mos. Trata-se de uma verdade tanto para indivíduos quanto para ins­
tituições, nações e civilizações. Embora os que desconheçam a histó­
ria possam não ser invariavelmente “fadados a repetir seus erros” ,
são obrigados a ser dominados pelas forças históricas das quais têm
somente vaga consciência.
Neste sentido, somos prisioneiros do passado. E a chave para a
nossa liberdade é o conhecimento de nosso captor. Saber o passa­
do nos abre novos mundos de possibilidades para o pensamento e
a ação humana. Quando chegamos ao alto de uma montanha, nos
voltamos para trás e contemplamos, ficamos maravilhados com a
paisagem. Da mesma forma, ao contemplarmos nosso passado, apren­
demos que as coisas nem sempre foram como são, e nem necessaria­
mente têm de ser. Com o aumento da nossa perspectiva e da nossa
maturidade, nos tomamos capazes de corrigir a direção do nosso cami­
nho e de ver de modo mais claro para onde estamos indo.
Isto é especialmente verdade para os crentes. Deus proporcio­
nou uma herança rica para nos inspirar e nos instruir. Os filhos de
Israel frequentemente eram ordenados a se lembrar das obras do
Senhor (Salmos 77.11). No Novo Testamento, por exemplo, o
“ Capítulo da Fé” (Hebreus 11) é essencialmente uma lição de his­
tória sobre a fidelidade a Deus e a fidelidade de Deus. Quando nos
lembramos de que “ estamos rodeados de uma tão grande nuvem
de testemunhas” (Hebreus 12.1), nossa fé é
fortalecida para que “corramos, com paciên­
Entender o passado é essencial
cia, a carreira que nos está proposta” . Seme­
para construir pensamento cristão
lhantemente, qualquer capítulo da história da
Igreja (começando com o Livro de Atos) exi­
no presente.
be a provisão e o cuidado de Deus. Conside­
rando que Deus intervém nos assuntos huma­
nos, a história revela algo da própria natureza e caráter de Deus.
Apesar da heresia, das divisões, das dificuldades e ataques, o R ei­
no de Deus não está derrotado. Os indivíduos e nações podem
subir e cair, mas Deus permanece no controle. Para o cristão, o
estudo da história constrói a fé e aumenta a esperança.
Entender o passado é essencial para construir no presente um
pensamento cristão. O cristianismo do século X X é imensamente
diferente do século I. Não podemos ingenuamente tentar recriar a
Q
OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
111
Era Apostólica. Porém assim mesmo aprendemos, ao estudar vin­
te séculos de história da igreja, que muitos fatores nos levaram a
crer e agir como fazemos. Os fracassos do passado nos advertem
de possíveis perigos. Os triunfos do passado nos encorajam a se­
guir seus exemplos.
Visão Geral da História da Igreja
A história é mais facilmente compreendida se uma estrutura
sólida foi primeiramente estabelecida. Você não precisa memori­
zar longas listas de datas. Antes, concentre-se em datas chaves
para formar uma estrutura de referência (o começo e o fim dos
períodos, por exemplo) e
procure entender a linha da
Períodos da História da Igreja
história do passado. Os his­
toriadores em geral d ivi­
Igreja Primitiva j (igreja Medieval ) í Igreja Moderna
dem a história da Igreja em
três períodos principais: 1)
a Igreja Prim itiva: do Pen­
tecostes a 500 d .C . 2) A
Igreja M edieval: de 500 a
1500 e 3) A Igreja Moder­
na: de 1500 ao presente.
Estes períodos não estão
nitidamente divididos; an­
Fim do Poder Romano
O Renascimento
tes, o anterior mistura-se
no Ocidente
e a Reforma
com o seguinte, principal­
(c. 1450-1650)
(c. 400-600)
mente nas fases de transi­
Ilustração 1
ção importantes de 400 a 600 d.C. (a queda de poder romano na
Europa Ocidental), e 1450 a 1650 (o Renascimento e a Reforma).
(Veja a Ilustração 1.)
Em qualquer breve sumário da história, as generalizações são
inevitáveis. Portanto, é importante manter em mente que, embora
a história apresente a obra de Deus, suas características primárias
são os seres humanos e as instituições. A história da Igreja não é
um simples declínio de uma “ dourada Era Apostólica” para a ruí­
na moderna, nem uma ininterrupta marcha triunfante sempre para
a maior glória. Ao invés disso, em todo o período da Igreja e em
todo grande líder, houve tanto momentos de força como momen­
tos de fraqueza. Uma das mais motivadoras lições da história é
que Deus faz maravilh as através de pessoas de verdade.
A Igreja Primitiva
V is ã o G e r a l
Quer percebam ou não, muitos cristãos estão familiarizados
com os eventos relacionados com a história da Igreja até cerca de
60 d .C ., porque esta é a data aproximada em que o Livro de Atos
112
GREGORY J. MILLER
acaba. Porém, é preciso não esquecer que o período completo da
Igreja Prim itiva (c .30-500) nos mostra uma história fascinante da
expansão numérica e geográfica do cristianism o. A primeira me­
tade deste período (veja a Ilustração 2), também conhecido como
a Era da Perseguição, foi um tempo de crescentes conflitos com o
governo rom ano.
Por causa da recusa
A Igreja Primitiva
dos cristãos em par­
ticipar no culto pa­
A Igreja Perseguida
A Igreja Imperial
gão patrocinado
pelo governo, m ui­
tos romanos passa­
30 d.C.
312 d.C.
500 d.C.
ram a considerar os
cristãos como trai­
dores, e a temer sua
progressiva influên­
M árcion,
A Grande
Agostinho,
O Concílio
cia na sociedade.
c. 150
de Nicéia,
Perseguição,
m. 430
A s vezes o ódio
325
303-311
romano estourava
em curtos períodos
O Concílio de justino Mártir,
A Conversão de
Atanasio,
Concílio de
de intenso sentimen­
Jerusalém, 48
Constantino
Calcedônia, 451
m. 165
m. 373
to anticristão e mas­
sacre aberto. A mais
severa destas perse­
guições, a Grande
Ilustração 2
Perseguição iniciada pelo imperador Diocleciano (303-311),
objetivava nada menos que a aniquilação do cristianismo.
A segunda metade deste período, também conhecido como a
Era da Igreja Im perial, testemunhou a vitória dramática da Igreja.
Numa surpreendente reviravolta dos acontecimentos, Constantino,
o Grande (c. 274-337) - o imperador que passou a governar Roma
e seu Império após Diocleciano - fez uma declaração pública a
favor do cristianismo. Sua conversão inesperada parece ter sido
ligada a um sonho (ou visão) de uma cruz no céu à noite, antes de
uma batalha importante. Depois que Constantino ordenou que as
tropas pusessem em seus escudos o símbolo cristão, eles ganha­
ram uma batalha decisiva, embora estivessem em menor número
(a Batalha da Ponte M ílvia, 312).
Quando Constantino ganhou o controle do Império Romano,
muitos declararam esse reinado o alvorecer de uma nova era glo­
riosa na história da Igreja. Eusébio, o historiador da Igreja e gran­
de admirador de Constantino, comparou seu reinado ao reino
m ilenar de Cristo. De muitas formas esse reino fo i um tremendo
triunfo. Durante trezentos anos os cristãos tinham sido uma m i­
noria suspeita. Porém, apesar de ser só uns 15 por cento da po­
pulação romana total por volta de 300 d .C ., a Igreja depressa
assumiu um papel dominante na sociedade depois da conversão
do imperador.
DZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
Em cerca de 400 d .C ., a Igreja já não era mais uma minoria
perseguida, mas uma maioria que perseguia. Os pais eclesiásti­
cos tinham lutado com muitas questões críticas, uma forte estru­
tura institucional tinha sido construída e boa parte da cosmovisão
cristã já estava formada. Esta grande vitória radicalmente mudou
o caráter da Igreja. Na opinião de muitos contemporâneos, a Igre­
ja da Era Im perial, estruturada e patrocinada pelo Estado, repre­
sentou uma vitória fácil e significativa da fé.
Mas o cristianismo oficial não foi a única coisa que mudou de
312 a 500. À proporção que a Igreja ganhava influência no mundo
romano, o próprio Império Romano estava se desmoronando. A
data tradicional para a “ Queda do Império Romano” na Europa
Ocidental é 476 d.C. O processo, na realidade, foi muito longo,
começando em princípios da década de 400 e durando até a déca­
da de 600. Por volta de 500 d .C ., tribos germânicas invasoras ti­
nham trazido consigo uma nova ordem política e social e introdu­
zido um novo período na história da Igreja.
F orm ando
uma
C o s m o v is ã o C r is t ã
A era da Igreja Prim itiva também é conhecida como o período
patrístico. “Patrístico” (do latim pater, que significa “pai”) é um títu­
lo de respeito, e alude à importância da atuação de alguns teólogos
destacados e líderes eclesiásticos, hoje coletivamente conhecidos como
“pais da Igreja” . À medida que o cristianismo se expandia no mundo
romano, a Igreja Prim itiva enfrentava muitas questões e desafios
novos. Os pais escreveram e ensinaram, individualmente e em reuni­
ões de concílios, no esforço de responder a essas questões. Muitas de
suas soluções ainda formam um fundamento essencial para a refle­
xão teológica, a organização da igreja e a vida cristã.
Entre as contribuições da Igreja Prim itiva para a formação de
uma cosmovisão cristã, quatro áreas foram particularmente im ­
portantes: 1) autodefínição, quer dizer, a compreensão do que sig­
nifica ser cristão em referência ao judaísmo, 2) a relação do cristi­
anismo com a cultura não-cristã, segundo reflexões feitas pelos
apologistas ou defensores da fé, 3) a visão cristã de Deus e de
Jesus Cristo nos primeiros concílios ecuménicos, e 4) a relação do
cristianismo com o governo.
O Cristianismo e o Judaísmo
Desde o princípio, a Igreja recém-nascida achou-se num mun­
do m ulticultural. Seu contexto imediato e seus primeiros mem­
bros eram quase exclusivamente judeus. Uma preocupação in icial
que a comunidade de crentes enfrentou dizia respeito à sua rela­
ção com o judaísmo do século I. O indivíduo tinha de se tornar
judeu para ser verdadeiro seguidor de Jesus? A identificação com
a comunidade de crentes livrava a pessoa de todas as expectativas
tradicionais dos judeus? E as Escrituras dos judeus? Elas foram
substituídas em todo ou em parte por Jesus Cristo?
114
CREGORY J. MILLER
A Septuaginta (conhecida
pela abreviatura LXX) foi
traduzida entre 250 e 150
a.C., por estudiosos judeus
em Alexandria, no Egito,
centro intelectual
proeminente da época. Foi
inicialmente usada para
estudo e evangelismo por
judeus cujo idioma materno
era o grego. Depois que foi
adotada pelos cristãos como
sua Escritura, foi
amplamente.abandonada
pela comunidade judaica.
Estas preocupações estavam em primeiro lugar na mente dos
autores neotestamentários, especialmente de Paulo. Como “ após­
tolo aos gentios” , Paulo estava particularmente preocupado que
fossem permitidos tanto aos gregos, aos bárbaros (os não-gregos),
aos judeus e aos gentios, terem uma posição igual na comunidade
de fé (Gálatas 3.28; Colossenses 3.11). O Concílio de Jerusalém
em cerca de 48 e 49 d.C. (Atos 15) reconheceu o valor do seu
trabalho esforçadíssimo em escrever cartas, viajar e pregar. A im ­
portância desse Concílio dificilm ente pode ser exagerada: os gen­
tios seriam aceitos na comunidade com base na fé em Cristo
(Atos 15.7,9,11).
Os apóstolos recomendaram com insistência uma vida moral e
unidade cristã, mas não exigiram que os crentes participassem na
vida ritual do judaísmo ou que se identificassem fisicamente com
os judeus pela circuncisão.
Apesar do relaxamento das exigências rituais, o cristianismo
primevo continuou sendo influenciado significativamente por sua
origem judaica. Isto é claramente observado na importância das
Escrituras hebraicas (o Antigo Testamento) na vida da Igreja. L e ­
vou um longo período de tempo (cerca de 350 anos depois do
nascimento da Igreja) para que a coleção diversificada de escritos
que chamamos o Novo Testamento fosse padronizada e universal­
mente aceita. Durante esse tempo, o Antigo Testamento recontou
a história do relacionamento de Deus com a humanidade e profe­
tizou sobre a vinda de Jesus, o M essias. Em sua tradução grega,
chamada Septuaginta, os cristãos primitivos podiam mostrar às
pessoas de todo o Império Romano que o cristianismo não era um
ensino novo, mas a culminação das antigas promessas de Deus. O
cristianismo não era uma mera “ seita de judeus” , mas a própria
realização do concerto de Deus com Abraão, Isaque e Jacó.
A visão de que o cristianismo era o novo concerto do Deus de
Israel sofreu suas rejeições e críticas. M árcion, homem de negóci­
os do século I I na Igreja de Roma, buscou separar completamente
o cristianismo do judaísmo. Para M árcion, só Paulo e Lucas ti­
nham entendido corretamente os ensinos de Jesus, e até certa por­
ção dos seus escritos havia sido corrompida por idéias judaicas.
Márcion rejeitou todas as Escrituras hebraicas. Também declarou
que o Javé do Antigo Testamento — um Deus que ordenava sacri­
fícios de animais e até a morte de crianças, ainda que filhos dos
inimigos — , era um ser espiritual mau e menor, e não o Deus
absoluto de amor revelado em Jesus. O ensino de Márcion ganhou
muitos partidários e atraiu os cristãos do Império Romano que
não se sentiam à vontade com uma conexão estreita com a mino­
ria judaica frequentemente menosprezada.
Os pais eclesiásticos foram rápidos em defender o uso que os
apóstolos fizeram do Antigo Testamento e sua identificação de
Javé com Deus segundo nos está revelado em Jesus C risto.1 Se­
guindo o exemplo dos escritos dos apóstolos, eles responderam à
/OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
crítica que Márcion fez ao Antigo Testamento com duas técnicas
interpretativas que tiveram influência enorme na história do pen­
samento cristão. Prim eiro, esses escritores priorizaram certos tex­
tos do Antigo Testamento, enfatizando as profecias sobre Cristo e
rebaixando as instruções cerimoniais somente ao significado his­
tórico. Segundo, interpretaram alegoricamente passagens técni­
cas e difíceis de entender. As descrições do Tabernáculo no deser­
to, das peças do vestuário sacerdotal e dos eventos na história dos
israelitas prefiguravam o ministério de Cristo e a Igreja. Os intér­
pretes bíblicos mais tardios, como Orígenes e Gregório de Nissa,
achariam “tipos” ou “figuras” do novo concerto em quase todos
os versículos do Antigo Testamento. Usando estas duas estratégi­
as interpretativas, eles preservaram a continuidade essencial entre
o Antigo e Novo Testamentos e entre o judaísmo e o cristianismo.
De acordo com uma posição mediana, os apóstolos e pais enten­
deram que o cristianismo está separado e, não obstante, é o cum­
primento do judaísmo.
Apesar das conexões importantes, ao final da segunda rebelião
judaica (conhecida como a Revolta de Bar Kochba, 132-135 d .C .),
o cristianismo tinha ficado completamente distinguido do judaís­
mo. Este foi o caso nas mentes não apenas dos cristãos e judeus,
mas também do governo im perial romano. Dentro de cem anos do
nascimento da Igreja, o cristianismo tinha se tornado uma religião
gentia. Esta mudança está ilustrada dramaticamente pelo fato de
que todos os escritores do Novo Testamento (exceto um) são ju ­
deus, e todos os autores pós-neotestamentários da literatura cristã
são gentios.2
Antes de cerca de 150 d .C ., os escritores cristãos tinham fre­
quentes debates contra os judeus, e vigorosas diferenças entre seus
ensinos e culto e os ensinos e cultos do judaísmo. Depois desta
época, os pais eclesiásticos voltaram sua atenção às questões da rela­
ção do cristianismo com a cultura greco-romana que os cercava.
Os Apologistas e a Relação entre o Cristianismo e a Cultura
A resposta da Igreja Prim itiva à cultura greco-romana foi mui­
to mais ambígua. Celso, um crítico do cristianismo de fins do sé­
culo II, afirmou que os cristãos seduziam somente as “mulheres
iletradas, as crianças e os escravos” . Porém, a realização pessoal e
moral da fé atraiu cada vez mais um número significante de parti­
dários educados e instruídos. Eles reconheceram a verdade e a
beleza do Evangelho, mas estavam cientes de que a cultura pagã
tinha produzido trabalhos que também continham (pelo menos)
um pouco de verdade e um pouco de beleza. Mesmo hoje há
considerável debate sobre a atitude apropriada dos cristãos para
com a arte e a aprendizagem não-cristãs. A Igreja Prim itiva aju­
dou a moldar a cosmovisão cristã nesta área, estabelecendo os
lim ites dentro dos quais o assunto fo i discutido ao longo da
história da Igreja.
MILLER
Justino M ártir (c .100-165 d .C ) é quem melhor reflete um ex­
tremo do espectro das respostas cristãs. Mesmo depois de sua con­
versão, Justino continuou usando o traje tradicional de filósofo
greco-romano. Ele também encontrou muito valor na filosofia pagã,
especialmente em Sócrates e Platão. Não apenas fez uso dos seus
conceitos como ponte para o entendimento de sua audiência ro­
mana educada, mas também declarou que os pensadores gregos
tinham entendido, embora só parcialmente, a real verdade de Deus.
E le via a aprendizagem clássica como um tipo de preparação para
o Evangelho. Justino peneirou a cultura antiga, apropriando-se da­
queles conceitos que considerou compatíveis com o cristianismo,
e os usou em suas defesas instruídas.
Seguindo esta mesma lin h a , dois outros estudiosos
alexandrinos, Clemente e Orígenes, como também muitos outros,
ajudaram grandemente a expansão do Evangelho traduzindo os
conceitos cristãos em termos compreensíveis para o mundo roma­
no. O trabalho deles também ganhou respeitabilidade intelectual
para a fé. Pelo lado negativo, o processo de tradução do pensa­
mento cristão foi influenciado e formado pelo pensamento grecoromano. Na pior das hipóteses, alguns mestres cristãos vieram a
expressar as cosmovisões mais em comum com os filósofos gre­
gos mais antigos (como Platão) do que com os ensinos de Jesus.
O teólogo sírio Taciano (c. 180 d.C) representa outra possível
resposta à cultura não-cristã. Apesar de ser discípulo de Justino
M ártir, mais tarde Taciano rejeitou completamente a cultura cris­
tã. Taciano negou a possibilidade de qualquer pessoa fora da fé
descobrir alguma verdade independente ou possuir qualquer bem
independente. Taciano declarou que qualquer coisa de valor que
Sócrates pudesse ter dito foi tomado emprestado (ou roubado) de
Moisés e dos profetas. Os pensadores cristãos que seguiram a es­
tratégia de Taciano puderam reter mais facilmente os aspectos da
u tá ú tO '
Mestre profissional inteira­
mente fa m ilia riza d o com o
p latonism o e o e sto icism o ,
Justino M ártir (c. 100-165) tor­
nou-se cristão após ter encon­
trado um velho enquanto cam i­
nhava por uma p ra ia samaritana. Embora Justino nun­
ca tivesse exercido cargo na
igreja, ele escreveu e debateu
extensivam ente a serviço do
‘TJtãntcn
E va n g e lh o . Os trab alh o s que
escreveu em Efeso e Rom a, e
que o levaram ao m a rtírio , o
elevaram à posição de o m ais
im portante ap o lo g ista ou de­
fensor do cristian ism o no sécu­
lo I I . E scrito s m ais im portan­
tes: D iálogo com o ju d eu Trifão
e Prim eira A pologia (d irig id a
ao im perador romano A ntonino
P io ).
OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
herança judaica no cristianismo e evitar, às vezes, as contenções
prejudiciais que surgiam pela teologia especulativa. Contudo, eles
pagaram alto preço por sua pureza cultural e isolamento com uma
tendência a decair no elitism o, no legalism o severo e numa
marginalização que deu fim à sua contribuição para o pensamento
cristão mais recente.3
A maioria dos pais eclesiásticos situa-se em algum ponto entre
estas duas posições. Como representada por sua alegorização do
relato do Êxodo, a Igreja Prim itiva despojou os egípcios do seu
tesouro e usou a aprendizagem pagã para construir o seu
tabernáculo intelectual cristão. As vezes, esta apreciação pela cul­
tura greco-romana resultou em consciências intranqiiilas. Por exem­
plo, Jerônimo, tradutor da mais influente versão da B íb lia em la­
tim (conhecida por Vulgata), certa vez sonhou que Deus o repre­
endia por ser “mais ciceroniano [famoso orador romano] que cris­
tão” . Contudo, quando o teólogo norte-africano Tertuliano per­
guntou: “ O que Atenas tem a ver com Jerusalém?” , como muitos
outros, ele o fez com uma metodologia e num estilo que traía exatamente quão in fluente Atenas tinha se tomado.
Concílios e Credos: A Visão Cristã de Deus
Bem no centro da cosmovisão cristã está uma concepção sin­
gular de Deus como Um (monoteísmo), contudo em três Pessoas:
o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Nesta área importante a Igreja
Prim itiva usou toda ferramenta à disposição (inclusive a filosofia
grega) para expor em conceitos bíblicos e enunciar declarações
autorizadas relativas à natureza de Deus e de Cristo. As duas de­
clarações mais importantes, o Credo de Nicéia (325 d .C .) e o Cre­
do de Calcedônia (451 d .C .), permanecem sendo a base para o
cristianismo ortodoxo mundial, mesmo para a era atual.
Quando Constantino, o Grande, finalmente colocou todo o
Império Romano sob seu controle, para seu desânimo descobriu
que a Igreja Cristã que ele apoiava fora profundamente dividida
pela controvérsia: Um clérigo alexandrino, A rio (m. 336 d .C .),
estava ensinando que Jesus era a primeira e melhor criação de
Deus, mas não co-igual e coetemo com o Pai. Por causa do seu
uso hábil de algumas passagens bíblicas, a posição ariana tornouse popular. Sua racionalidade era atraente e removia as dificulda­
des filosóficas da Trindade. Para muitos, porém, a posição ariana
foi tida como uma divergência dos ensinos dos apóstolos e uma
difamação de Cristo.4 O conflito entre os dois partidos frequente­
mente ficava acalorado e, às vezes, até violento. Em 325, o impe­
rador Constantino chamou todos os líderes da Igreja (os bispos)
em todo o Império Romano para reunirem-se em N icéia, Á sia
Menor (moderna Turquia), a fim de resolverem a disputa e resta­
belecerem a unidade na Igreja. Este Primeiro Concílio Ecuménico
(ou seja, universal) da Igreja rejeitou a posição ariana e confirmou
o mistério do três em um. Eles declararam que o Filho é da mesma
117
118
GREGORY J. MILLER
"Cremos... em um Senhor
Jesus Cristo, o Filho
Unigénito de Deus,
unigénito do Pai antes de
todas as eras, Luz da Luz,
verdadeiro Deus do
verdadeiro Deus, Unigénito
não criado, de uma
substância com o Pai".
— Credo de Nicéia
essência (grego, homoousia) que o Pai, igual em sua divindade,
coetemo, unigénito, não criado, mas ao mesmo tempo uma pessoa
distinta dentro da Deidade.
Embora o assunto tenha permanecido grandemente em dúvida
durante os 60 anos seguintes, no fim a posição de N icéia triunfou,
graças em grande parte à luta incansável de líderes como Atanásio
de Alexandria (295-373 d .C .). Desde então, a doutrina da Trinda­
de, o entendimento singular que o cristianismo tem sobre Deus,
foi o padrão central pelo qual a ortodoxia foi medida.
Cerca de cem anos depois, entendimentos competidores sobre
a relação da humanidade e da divindade em Cristo causaram outro
conflito significante. Por um lado, havia um grupo, em sua maior
parte do Egito, que tendeu a enfatizar demasiadamente a divinda­
de de Cristo. Para estes monofisistas (do grego, “uma natureza” ), as
qualidades humanas de Jesus eram relativamente sem importância.
Os monofisistas afirmavam que a humanidade de Cristo foi tragada
por sua divindade como uma gota de água num frasco de vinho.
Diretamente oposta a esta posição, acham-se os seguidores de
Nestório (c. 451 d .C .), bispo de Constantinopla. O ensinamento
nestoriano separava radicalmente as duas naturezas de Cristo. Em
vez de ver uma união de naturezas (a analogia tradicional era “como
água e vinho” ), os nestorianos viam a encarnação como uma “ con­
junção” das pessoas divina e humana. Assim , as características da
divindade de Cristo não podiam ser designadas ao Jesus humano.
M aria podia ser descrita como “Mãe de Jesus” , mas não como
“ Mãe de Deus” ( theotokos).5Em vez da relação entre o humano e
o divino em Cristo ser como água e vinho, os nestorianos argu­
mentavam que era mais como água e azeite.
Atanásio de Alexandria pergunta sobre por que ele simples­
(c. 295-373d.C.), chamado mente não se entregava, pois o mun­
£ ;;] por seus conhecidos de
do inteiro parecia estar contra ele, re“ anão negro” devido à bai­ puta-se que tenha respondido: “ Então
xa estatura e cor da pele, foi será Atanásio contra o mundo!” Ele es­
um dos bispos e teólogos tava convencido de que Jesus Cristo ti­
mais importantes da Igreja nha de ser completamente Deus para
Prim itiva. A maior parte da obter a redenção completa da humani­
sua carreira de 45 anos dade. E le também fo i influente na
r J como bispo de Alexandria popularização do monasticismo no Ori­
fo i dedicada à batalha contra o ente e Ocidente, por seu apoio a Santo
arianismo. Era frequente estar em pe­ António, o ermitão. Escritos importan­
rigo de morte e foi exilado não me­ tes: Sobre a Encarnação da Palavra, e
nos que cinco vezes. Em resposta à Vida de Santo António.
8
OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
O Quarto C oncílio Ecum énico na Calcedônia (451 d .C .) re­
jeitou estas duas posições extremas. O Credo de Calcedônia
afirm a com vigor que Cristo é completamente Deus e comple­
tamente homem (deixando em m istério como isto é possível).
De acordo com Calcedônia, Cristo com partilha a mesma natu­
reza com Deus, sob todos os pontos de vista, e com partilha a
mesma natureza com a humanidade, sob todos os pontos de
vista, com exceção do pecado.
Embora estas duas controvérsias possam parecer mais que in­
significantes trocadilhos teológicos para os cristãos do século X X ,
com certeza não eram insignificantes para os cristãos prim itivos.
Antes, estas visões foram elaboradas na bigorna da discussão sé­
ria, apaixonada e intelectual. Graças ao seu labor intelectual e sa­
crifícios pessoais, a singular compreensão cristã sobre Deus havia
sido preservada. Desde o período da Igreja Prim itiva, estas diretrizes têm determinado quando se vai além dos lim ites do cristia­
nismo ortodoxo.
Agostinho e a Queda de Roma
O novo poder da Igreja depois de Constantino não foi exercido
sem custo ou perigo. A religião do imperador tomou-se popular.
Diferente dos primeiros dias da Igreja, a “porta estreita” (Mateus
7.13) se alargou e muitos se apressaram em passar por ela, alguns
por razões questionáveis. Enormes basílicas foram construídas para
cultos de adoração formais e elaborados. As congregações se tor­
naram cada vez mais observadoras e curiosas que participantes, e
uma linha muito distinta de separação e superioridade foi traçada
entre o clero e o laicato. Os líderes eclesiásticos eram escolhidos
com base na influência política e no status económico, em vez da
capacidade m inisterial.
Talvez o m aior perigo ja z ia na coexistência presumida do
cristianism o e do poder romano. O governo da Igreja quase se
nivelou ao do Estado. Os imperadores romanos concediam aos
principais o ficiais eclesiásticos em cada cidade, os bispos, con­
sideráveis responsabilidades cívicas. Com frequência servi­
am como ju ize s locais e como representantes do poder im pe­
ria l. Em troca, o Estado ajudava a reforçar a doutrina correta
e a fornecer apoio financeiro. Considerando que todo o mun­
do presum ia que Roma era a Roma aeterna (Rom a eterna),
eles perceberam que esta estreita relação era uma força, e não
uma fraqueza.
Em 410 d .C ., o mundo romano ficou aturdido ao o uvir que
os visigodos, tribos germânicas do norte, tinham capturado e
saqueado a Cidade Eterna. Em vez de um incidente isolado,
durante os próxim os duzentos anos vários povos germânicos
infestaram a Europa O cidental e a Á fric a do Norte O cidental.
A parte oriental do im pério fo i preservada (G récia, Á sia M e­
nor, Eg ito , Síria-P alestin a), mas o poder im perial se desmo-
119
Jesus Cristo é
"verdadeiramente Deus e
verdadeiramente homem
[...] reconhecido em duas
naturezas sem mistura, nem
mudança, nem divisão, nem
separação".
— Credo de Calcedônia
120
GREGORY J. MILLER
ronou no ocidente. A g lo rio sa c iv iliz a ç ã o de Rom a fo i
destruída e as luzes da aprendizagem e cultura começaram a
ser apagadas por toda a Europa O cidental.
Alguns culparam a queda de Roma pelo fato de esta ter adotado o cristianismo. Os próprios cristãos estavam confusos sobre a
relação da Igreja com o governo. Em resposta à crise do declínio
de Roma, o maior mestre cristão desde Paulo voltou sua atenção
ao assunto. Em seu livro A Cidade de Deus, Agostinho (354-430),
pai da igreja norte-africana, diferenciou entre o governo humano
e a sociedade (a Cidade do Homem) e a Igreja invisível de todos
os verdadeiros crentes (a Cidade de Deus). A “ Cidade do Homem”
era a ferramenta temporal e temporária dEle e podia assumir mui­
tas formas ao longo do tempo. A “ Cidade de Deus” era invencível
e continuaria triunfando e realizando a vontade de Deus. Em es­
sência, homens e nações se levantariam e cairiam , mas o Reino de
Deus conquistaria tudo.
O ensino de Agostinho ajudou a encorajar a Igreja num perío­
do de transição d ifícil. Foi um manancial de forças para muitos
crentes, quando confrontados com o colapso de um “governo cris­
tão” . O conceito importante de que o cristianismo poderia conti­
nuar, apesar do colapso de qualquer forma particular de sociedade
ou governo, foi uma das últimas contribuições da Igreja Prim itiva
para a cosmovisão cristã.
Depois de vários anos
buscando realização espiri­
tual e controle sobre sua
natureza pecadora, Agosti­
nho de Hipona (354-430
d .C .) Leve poderosa conver­
são ao cristianismo em 387.
Sua conversão o incitou a
deixar prestigiosa posição
como mestre de retórica na
importante cidade italiana
de M ilão, e voltar para sua
nativa Á frica do Norte. Embora de­
sejasse uma vida quieta de oração e
estudo, logo foi ordenado a bispo na
cidade de Hipona (atual Tunísia). De
seu gabinete e púlpito em Hipona,
Agostinho voltou sua mente bem trei­
nada e pena hábil aos assuntos críti­
L_
cos do dia. A s contribuições teológi­
cas de Agostinho são extensas e ele é
amplamente considerado o indivíduo
mais importante na história da Igreja
depois do período apostólico. Escre­
veu numerosos livro s, tratados, co­
mentários e sermões, mas talvez seja
melhor conhecido por sua comovente
biografia espiritual, Confissões, que
estabeleceu o género autobiográfico
e por séculos foi fonte de inspiração
para os crentes. O papel de Agosti­
nho como figura de transição entre os
períodos romano e medieval é desta­
cado pelo fato de que ele morreu em
430, quando a tribo vandálica alemã
estava invadindo a cidade de Hipona.
Escritos mais importantes: Confissões
e A Cidade de Deus.
OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
121
A Igreja Medieval
V is ã o G e r a l
A designação Idade Média foi primeiramente usada por volta
de 1500 d .C . como nome derrogatório para um período de m il
anos de “ignorância e superstição” , entre a “Idade Dourada” da cul­
tura clássica e seu “renascimento” (a Renascença). (O adjetivo “me­
dieval” , nome para a mesma era, apareceu pela primeira vez no início
dos anos de 1800.) Sabemos agora que o Período Medieval não foi
necessariamente a “Idade das Trevas” , mas, ao invés disso, fez muitas
contribuições essenciais
para a civilização ocidental.
A Igreja Medieval
O período da Ig re ja
M edieval é dividido em
Baixa Idade Média) (Alta Idade Média ) (Tardia Idade Média
três subperíodos (veja a
Ilustração 3). O período da
B aixa Idade Média (500- 500 d.C.
1000 d.C
1300 d.C.
1500 d.C.
1100) testemunhou o de­
senvolvimento gradual das
tribos germânicas em rei­
r — T
nos. O m ais im portante
U
Surgimento
Invasões
de
Era
das
João W ycliffe,
Cativeiro
Tomás
de
destes, o reino franco de
do IslamisBabilónico m. 1380
Vikings,
Cruzadas,
Aquino,
Carlos Magno, promoveu
e Cisma,
mo, c. 622
c.900
1096-1291
m. 1274
João Huss,
1309-1415 m .1415
breve florescimento da cul­
tura e da aprendizagem,
Regra de
Era
Estabelecimento
Catarina de
conhecidos por Renascen­ São Bento, Carolíngia,
das Universidades,
Siena,
540
800
1200
1380
ça Carolíngia.
No período da B a ixa
Ilustração 3
Idade Média, a autoridade da igreja romana e seu bispo (o papa)
foi estabelecida sobre todas as igrejas européias ocidentais (pelo
menos teoricamente). O número de mosteiros aumentou rapida­
mente, os quais se tornaram os centros espirituais e educacionais
para o cristianismo.
Depois do reinado de Carlos Magno (c. 771-814), a Europa
Ocidental mergulhou em seu período mais negro. Os descenden­
tes de Carlos Magno não só eram inaptos para manter seu reino,
mas também foram duramente pressionados por ataques em três
lados. Um povo nómade das estepes da Á sia Central, os húngaros,
varreram a Europa Oriental e Central. Partindo da península ára­
be, os guerreiros islâmicos conquistaram o oriente romano (Síria,
Palestina e Egito), a Á frica do Norte e a Espanha (c. 630-730 d .C .).
Marinheiros muçulmanos faziam contínuos ataques relâmpagos
na Itália e na costa meridional da França. Com exceção da penín­
sula grega e da Á sia Menor, o mar Mediterrâneo foi dominado
pelos muçulmanos. Os ataques mais pavorosos vieram dos nórdi­
cos (os vikings).
Descendo da Escandinávia em seus escaleres, os vikings podi­
am adentrar muito rio acima. Eles pilharam e saquearam aldeias,
1 2 2
GREGORY J. MILLER
destruíram mosteiros e dispersaram os habitantes por onde passa­
vam. Para o monge que, em fins dos anos de 800 e 900, sentava-se
solitário em sua cela, parecia que o mundo estava acabando. Co­
mentários marginais em manuscritos continham predições sérias
relativas à passagem do M ilénio.
M udanças clim á tica s, o crescim ento da população e o
redesenvolvimento do comércio permitiram que a A lta Idade Mé­
dia (1100-1300) fosse uma época de vigor renovado no Ocidente.
O cristianismo prosseguiu na ofensiva contra o islamismo e ten­
tou recuperar as terras perdidas durante a conquista muçulmana
in icial. Estas Cruzadas (principalmente 1096-1291) incentivaram
o desenvolvimento do comércio e do mercado, que em troca esti­
mularam o crescimento de vilas e cidades. Artesãos qualificados
construíam castelos e catedrais magníficos. As primeiras univer­
sidades foram fundadas. Membros de novas ordens monásticas,
os dominicanos e os franciscanos, escreveram trabalhos teológi­
cos e filosóficos impressionantes.
A Tardia Idade Média (1300-1500) é uma época complexa e
transitiva na história ocidental. O governo da igreja tornou-se cada
vez mais avaro e corrupto. Divisões internas e cismas quase des­
truíram a instituição do papado. Em apenas três anos (1346-1349),
a Peste Negra (a peste bubônica) matou quase um terço de todos
os europeus. Guerras destruíam a zona rural e as cidades. Contu­
do, começando primeiramente na Itália por volta de 1300 d .C .,
uma renascença (renascimento) da aprendizagem e literatura clás­
sicas passaram a se espalhar em direção ao norte. Além disso, cla­
mores do interior da Igreja em favor da reforma ganharam força e
urgência. Em meio da decadência do estilo de vida medieval, uma
nova cultura importante estava nascendo.
evtfo de ‘Ttm&ia,
Inspirado pelos exem­
plos dos monges solitários
orientais, Bento de Núrsia
(c. 480- 547 d .C .) começou
uma vida de monasticismo
quando jovem . Dentro de
pouco tempo, a reputação
de Bento para a santidade
cresceu e muitos outros jo ­
vens se reuniram ao seu re­
dor para receberem instru­
ção. Depois de alguma hesitação,
Bento formou seus monges numa
com unidade ao sul de Rom a, no
monte Cassino. Para sua comunida­
de, Bento compilou uma regula, ou
regra, que servia de guia ou instru­
ção para a comunidade. A Regra de
São Bento v iria a ser um dos docu­
mentos mais influentes do período
medieval, e tornou-se o modelo para
a vida monástica.
3ZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
F orm ando
uma
C o s m o v is ã o C r is t ã
Para as pessoas de hoje, o Período M edieval é até mais
alienígena que o mundo da Grécia e Roma clássicas. A Idade Mé­
dia era mais rural que urbana, mais comunal que individual. Como
um todo, parece mais supersticiosa que racional. Não obstante, a
Igreja Medieval fez muitas contribuições significativas para a for­
mação de uma cosmovisão cristã. Entre as mais importante estão:
1) o monasticismo e sua visão de vida e trabalho cristãos, 2) o
casamento da fé com a razão pela escolástica, e 3) a busca por um
encontro direto com o Deus vivo pelo misticismo cristão.
O Monasticismo
Talvez o único aspecto mais importante do cristianismo no
ocidente medieval tenha sido o monasticismo. A s formas de
monasticismo variaram amplamente. Alguns monásticos eram
contemplativos, outros principalmente ativos, alguns eram solitá­
rios, outros viviam em comunidades. Todos os monásticos com­
partilhavam a característica explícita de uma separação rigorosa
do mundo para viver uma vida de devoção a Deus. A separação do
mundo exigia o ascetismo (negação de si mesmo), incluindo (no
mínimo) o celibato vitalício e o abandono de propriedades parti­
culares. Com frequência os monásticos submetiam-se a sofrimen­
tos severos para disciplinar o corpo e a mente. Viver uma vida
totalmente dedicada a Deus era considerada a forma mais alta de
imitatio Christi (imitação de Cristo).
Embora o monasticismo oriental tivesse muitos adeptos mes­
mo sob o Império Romano, o monasticismo na Europa Ocidental
não começou a florescer senão depois do colapso de poder roma­
no. Bento de Núrsia (c. 547 d .C .) foi o instrumento para a forma­
ção e popularização da vida monástica, especialmente pelo exem­
plo de sua comunidade e de sua Regra.
A Regra de São Bento era sim ilar a muitas outras regras mo­
násticas, orientais e ocidentais. Entretanto, possuía duas caracte­
rísticas singulares que grandemente impulsionaram o desenvolvi­
mento do cristianismo no ocidente e na civilização ocidental. P ri­
meiro, especialmente em comparação com as regras orientais, o
tom das Regras de São Bento é notavelmente moderado. Diferen­
te de algumas privações estranhas e ultrajantes que aconteciam
nos desertos sírios e egípcios, a vida comunitária não excessiva
tornou-se a norma na Europa Ocidental. Os monges recebiam o
bastante para comer, vestiam roupas adequadas e tinham discipli­
na equilibrada. Os anciãos e os fracos eram tratados com gentile­
za especial. Este tom moderado foi quase totalmente responsável
pelo enorme crescimento do monasticismo na Europa Ocidental e
pela estabilidade a longo prazo da instituição.
O mais importante foi a sabedoria excepcional de Bento em
fazer do trabalho parte essencial da devoção monástica a Deus. O
slogan beneditino ora et labora (“ore e trabalhe” ) sumaria com
1 2 3
1 2 4
GREGORY J. MILLER
precisão a vida diária do monástico. Para o monge, o trabalho era
um tipo de oração. A pessoa expressava devoção a Deus por cada
ação da vida consagrada. O mundano ficou sagrado. Em si mesmo
esta teria sido uma contribuição significativa para o pensamento
cristão. O monasticismo beneditino salvou quase sozinho a cultu­
ra e a aprendizagem ocidentais, quando defendeu o trabalho inte­
"A ociosidade é a inimiga da
lectual como um tipo de trabalho particularmente satisfatório para
alma. Então, em horários
a glorificação de Deus.
fixos, os irmãos devem
Com o colapso da cidade romana, os mosteiros dispersos nas
ocupar-se com trabalhos
zonas rurais tomaram-se os centros primários de aprendizagem.
manuais; e, em outros, com
Os reis germânicos confiaram aos mosteiros a tarefa de ensinar a
leitura santa. [...]
Tencionamos fundar uma
ler e escrever em latim , o que era necessário para a manutenção
escola para treinar os
do governo. E o que é mais importante, os mosteiros medievais
homens no serviço do
prim itivos preservaram os registros escritos da cultura: livros e
Senhor, mas nisso não
manuscritos. Particularmente relevante neste desenvolvimento foi
tornaremos as regras muito
um breve florescimento da cultura centrada na corte do maior
rígidas e pesadas. [...] Se
monarca da Baixa Idade Média, o imperador Carlos Magno.
parecemos severos, não se
Mediante campanhas anuais m ilitares, Carlos Magno estendeu
assuste e fuja. A entrada ao
o domínio dos francos para todos os lados. Ele subjugou a maior
caminho da salvação deve
ser estreita, mas à medida
parte da França, Alemanha Ocidental e porções do norte da Itália
que você progredir ao longo
e da Espanha. Uma das realizações mas significantes de Carlos
da vida de fé, o coração se
Magno foi unir sua dinastia estreitamente com a igreja romana. A
expande e acelera com a
coroação de Carlos Magno como Santo Imperador Romano, ocor­
doçura do amor ao longo do
rida no Natal de 800 a.C. e feita pelo papa Leão III, simboliza esta
caminho dos mandamentos
união. Para melhor controlar seu reino, Carlos Magno apoiou os
de Deus".
mosteiros como centros de aprendizagem e educação. Ele se ser­
— A Regra de São Bento6
viu dos bispos como conselheiros e representantes do poder impe­
ria l, e coagiu os pagãos nos territórios recentemente conquistados
a converterem-se ao cristianismo.
Das muitas reformas que resultaram desta união de forças, a
que teve o maior efeito foi uma reforma simples da escrita à mão.
Pelo fato de o velino (pergaminho fino para escrever, preparado
com a pele de bezerro ou cabra) se deteriorar com o passar do
tem po, os m anuscritos tinham de ser
recopiados para que seu conteúdo fosse pre­
Devemos muito do nosso
servado. Considerando que escrever o manus­
crito
à mão era o único jeito de preservar a
conhecimento sobre o mundo
palavra escrita, letra ilegível significava au­
antigo ao trabalho aplicado dos
mentos significativos no número de erros tex­
monges medievais.
tuais e até a perda completa de conhecimen­
to. Infelizm ente, o declínio geral da apren­
dizagem depois da queda do poder romano
e do isolamento dos mosteiros causou a degeneração da c a li­
grafia. Sob ameaça de castigo severo por sujeira ou divergên­
cia, em resultado das reformas de Carlos Magno, os monges de
toda a Europa Ocidental foram ensinados a escrever em bom e
legível latim . O número de manuscritos copiados também au­
mentou significativamente.
OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
Os efeitos a longo prazo são impressionantes: Dos manuscri­
tos mais velhos dos textos antigos que agora existem, inclusive os
manuscritos bíblicos, a maioria destes são do período da renas­
cença carolíngia. Devemos muito do nosso conhecimento sobre o
mundo antigo ao trabalho aplicado desses monges.
A Escolástica e o Avivamento da Aprendizagem
O ano 1000 veio e passou, e as poucas predições medonhas
relativas ao fim do mundo não aconteceram.7A Europa Ocidental
parecia ter atravessado o ponto crítico. A cultura e o comércio se
reavivaram. O poder político se estabilizou. Especialmente na Itá­
lia , as cidades começaram a crescer novamente. A erudição pros­
perou na A lta Idade Média, estimulada pelo redescobrimento dos
escritos clássicos gregos, que eram desconhecidos ao Ocidente,
mas que tinham sido preservados pelos m uçulm anos. Este
florescimento da aprendizagem, em combinação com as necessi­
dades das crescentes burocracias da realeza, produziu a universi­
dade ocidental. No século X III, grandes universidades foram fun­
dadas em Paris (França), Bolonha (Itália) e Oxford e Cambridge
(Inglaterra).
Em resposta à nova aprendizagem e às necessidades da vida
urbana, emergiu um tipo diferente de monasticismo. As ordens
monásticas fundadas por São Francisco e São Domingos (os
franciscanos e dominicanos) não buscaram refúgio em áreas ru­
rais, mas viviam em cidades e ministravam à população urbana.
Pela razão de não terem nenhuma terra na qual cultivar a comida,
esses monges e freiras eram conhecidos por mendicantes ou mo­
násticos mendicantes.
Desde o princípio, os mendicantes estavam estreitamente rela­
cionados com as universidades medievais. Uma riqueza de apren­
dizagem, sobretudo em teologia e filosofia, começou a manar dos
dominicanos e franciscanos nos novos centros académicos. Como
uma referência à aplicação rigorosa da razão na teologia, sua
metodologia é chamada escolástica. (Veja o box sobre Escolástica
no Capítulo 4.) Muitos destes pensadores (por exemplo, Anselmo,
Abelardo, Pedro Lombardo) fizeram contribuições significativas
para a história da teologia cristã. Porém, o indivíduo que melhor
representa o ápice da aprendizagem cristã na A lta Idade Média é
Tomás de Aquino (1225-1274).
A partir dos dados bíblicos e das evidências da razão, Tomás
de Aquino construiu um edifício do pensamento cristão que em
seu âmbito rivalizava com as grandes catedrais medievais. De acor­
do com Tomás, alguns aspectos da fé poderiam estar além da ra­
zão (quer dizer, não racionais). Entretanto, pelo fato de Deus ser
um Deus da razão e ter construído a racionalidade no universo,
nenhuma parte do ensino ortodoxo cristão pode contradizer a ra­
zão (quer dizer, é irracional). Usando a estrutura lógica e analíti­
ca redescoberta de Aristóteles, Tomás tentou fornecer uma visão
125
126
GREGORY J. MILLER
abrangente e enciclopédica do mundo, e o conhecimento a partir
de uma perspectiva cristã. A política, a ética, a arte, a ciência tive­
ram um lugar na casa de aprendizagem de Tomás de Aquino.
Alguns líderes cristãos mais recentes têm criticado a escolástica
por exagerar a capacidade da mente humana, não dando suficiente
lugar para o mistério e frequentemente girando em torno de deba­
tes complicados sobre assuntos de pequena importância. Não
obstante, a união do cristianismo e da razão na escolástica perma­
nece uma realização significante. A obra Suma Teológica, de Tomás
de Aquino, continua a fornecer os fundamentos para grande parte da
crença católica romana, e provê fundamento essencial para a
apologética (a defesa da fé) cristã moderna a protestantes e católicos.
O Misticismo Cristão
O poder do papado e da igreja institucional também alcançou
seu ápice no século X III. Do seu ofício em Roma, o papa Inocêncio
I II ditava a política aos reis de toda a Europa e exigia maior con­
formidade entre os crentes comuns. Entretanto, este impulso pelo
omá& de /í<%otttvx
Embora conhecido por
seus companheiros domi­
nicanos como “boi mudo” ,
em razão do seu porte físi­
co grande e seriedade len­
ta, Tomás de Aquino (12251274) foi um dos pensado­
res mais poderosos da his­
tória da Igreja. Durante seu
cargo como mestre de teologia em Paris e Roma, To­
más trabalhou para reconci­
liar a fé (a doutrina cristã tradicional)
e a ra/ão (inclusive os escritos filosó­
ficos de Aristóteles recentemente des­
cobertos). De acordo com Tomás de
Aquino, a habilidade da humanidade
em raciocinar era a “imagem de Deus”
na qual a humanidade fora criada
(Génesis 1.26). Sua confiança extre­
ma na razão humana estava baseada
na crença de que a Queda corrompeu
só a vontade da humanidade, e não
seus poderes de raciocínio. Apesar do
seu enfoque filosófico, Tomás reco­
nheceu a importância da experiên­
cia cristã e da B íb lia . Tomás ensi­
nou que a razão pode demonstrar a
existência de Deus e a imortalidade
da alma humana, mas não pode es­
tabelecer doutrinas essenciais como
a Deidade de C risto. Embora nunca
possa contradizer a razão, a fé na re­
velação de Deus é necessária para a
salvação e doutrina. O tomismo, sis­
tema teológico baseado nos escritos
de Tomás de Aquino, fo i extensiva­
mente usado na resposta católica
romana à reforma protestante e per­
maneceu altamente influente ao lon­
go do século X X . Muitos dos argu­
mentos de Tomás, especialmente as
“ C inco M aneiras” (provas para a
existência de Deus), foram usados
por defensores da fé católica e pro­
testante. Escritos mais importantes:
Suma Teológica e Suma contra os
Gentios.
OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
poder deixou a Igreja sem aliados políticos adequados e vulnerá­
vel à cobiça e corrupção. As fraquezas ficaram evidentes, quando
uma série de calamidades no século X IV dividiu profundamente a
cristandade.
Sob pressão do rei francês Filip e, o Belo, o papa Clemente V
deixou Roma e fixou residência perto da fronteira francesa em
Avinhão. Embora o papado de Avinhão (1309-1377) tenha se de­
senvolvido em uma burocracia altamente organizada e eficiente,
para muitos contemporâneos parecia que o cabeça espiritual da
cristandade tinha perdido sua independência. Uma tentativa para
terminar com esta “ servidão babilónica da Igreja” gerou m últi­
plos e competidores papas. Esta competição resultou numa d ivi­
são na igreja conhecida como o Grande Cism a Papal (1378-1417).
Na confusão deste período, alguns cristãos voltaram-se para o
interior de si mesmos. Estes místicos ajudaram a formar a cosmo­
visão cristã promovendo a experiência direta com um Deus amo­
roso e, contudo, Todo-poderoso. Para eles, a adoração de Deus e a
vida do crente transcendiam as instituições e ações humanas. Se a
Deus foi dado purgar o pecado das pessoas, isto tornou possível
sua iluminação do coração e o fornecimento de meios, mesmo
que apenas por um momento, de obter um senso de união com
E le . Os escritos dos m ísticos, frequentemente repletos de metáfo­
ras apaixonadas de amantes, são alguns dos textos mais bonitos
em toda a literatura cristã.8
Catarina de Siena (c. 1347-1380
d .C .) demonstrou forte sensibilidade
espiritual no início de sua infância em
Florença (Itália). Depois de uma sé­
rie de visões, com a idade de 15 anos
Catarina jurou permanecer virgem e
retirada a uma vida de oração e con­
templação em associação com uma
ordem das irmãs leigas dominicanas.
E la continuou tendo experiências
místicas ao longo da vida. Seu ensi­
no místico enfatizava o sangue reden­
tor de Cristo e a união com Deus pelo
sofrimento mediante a identificação
com Cristo na cruz. Sua combinação
incomum de contemplação e atividade levou-a a um arrebatamento m ís­
tico que inspirou sua ação confiante
e ag ressiva em nome da Ig re ja .
Um místico cristão busca
uma experiência ou um
encontro direto e não
mediato com Deus.
Contrário ao misticismo
oriental, o misticismo
cristão apóia a
transcendência última de
Deus. Por exemplo, quando
os místicos cristãos falam
de uma consciência da
"identidade com Deus" ou
"possessão por Deus", não
estão querendo dizer uma
absorção que destrói o eu
ou a distinção entre os
seres humanos e Deus.
Várias formas de
misticismo cristão
estiveram presentes ao
longo da história da Igreja.
Catarina passou a maior parte
de sua carreira lutando contra
os abusos eclesiásticos medi­
ante o ensino, a pregação e a
instrução. Embora quase anal­
fabeta, Catarina ditou centenas
de cartas instrutivas, muitas
orações e uma im portante
obra sobre experiência m ís­
tica. Sua repreensão direta ao
papa G re g ó rio X I , em
Avinhão, ajudou a dar o im ­
pulso para o retorno do papado a
Roma. Morreu em resultado dos seus
trabalhos e esforços para acabar com
o cism a papal. Catarina fo i declara­
da santa protetora da Itá lia em 1939.
Escrito importante: O Livro da Provi­
dência Divina.
127
128
GREGORY J. MILLER
Especialmente para muitas mulheres, o misticismo deu opor­
tunidade para a liderança religiosa e atividades que tinham estado
bloqueadas pela igreja institucional dominada por homens. Por
exemplo, Catarina de Siena (c. 1347-1380), uma das místicas mais
profundas e influentes, ganhou reputação internacional por sua
santidade, sabedoria e intimidade com Deus. Falando com base
em sua autoridade carismática, Catarina foi instrumental para o
fim da “ servidão babilónica” e o retorno do papado a Roma.
À medida que o ano 1500 se aproximava, ficou cada vez mais claro
para muitos que só a experiência mística não podia resolver os problemas
sérios dentro da
Igreja. Apesar
A Igreja Moderna
da cura do
Grande Cisma
Era do
Era da
Papal e o fim da
Século XX
Renascença &]
lluminismo
Revolução
“servidão babi­
v
Reforma )
lónica” , as res2000 ponsabilidades
1500
1650
1914
1789
ministeriais não
estavam sendo
cum pridas. A
m
imoralidade en­
C. S.
W alter
Jonathan
Martinho
Lewis,
tre o clero era
RausRevolução
Primeira
Edwards,
Lutero,
m.1963
chenbusch,
Francesa
frequente. Mui­
Guerra
m .1758
m. 1546
m .1918
Mundial
Karl Barth,
tas vezes apenas
1968
por mero lucro
Fundamentalismo
João C a lv in o ,.
Primeiro Grande
John
Friedrich
Avivamento
m. 1564
Despertamento,
Wesley,Schleiermacher, d aR u aA zu sa,
financeiro, os
1730-1740
m. 1791
m. 1834
1906-1909
Movimento
oficiais da igre­
Carism ático, 1963
ja estimulavam
Ilustração 4
o povo a acreditar que as relíquias (porções preservadas dos corpos ou
pertences dos santos) podiam fazer milagres. Fazia-se necessária uma
reforma moral e governamental “na cabeça e nos membros” , ou seja,
tanto na hierarquia quanto na vida dos cristãos em geral.
Algumas vozes foram mais adiante e requereram mudanças na
doutrina. Os primeiros reformadores, inclusive João W ycliffe
(m. 1384) e João Huss (m. 1415), advogavam novas maneiras de
entender o sacramento da Ceia do Senhor. E o que é mais importan­
te, eles exigiram que as Escrituras estivessem disponíveis no verná­
culo (a língua do povo), e não apenas em latim (a língua da elite).
Embora suas atividades estivessem lim itadas em número e exten­
são geográfica (Inglaterra e Boémia, respectivamente), as reformas
de W ycliffe e Huss foram um sinal das coisas que sucederiam.
A Igreja Moderna
V
is ã o
G eral
Mudanças rápidas e complexidade crescente caracterizaram a
história durante os últimos 500 anos. O espírito de individualismo
OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
da Renascença combinado com os avanços cien tífico s do
iluminism o, produziram uma série de inovações tecnológicas que
revolucionaram a vida humana. Contudo, em lugar de resolver os
problemas do mundo, a tecnologia moderna criou novos desafios.
Em particular, as crises do século X X exigiram uma reavaliação
crítica do futuro curso da civilização. A cultura ocidental enfrenta
algumas questões difíceis na virada do milénio.
Os historiadores dividem o Período Moderno em quatro
subperíodos (veja a ilustração 4). No Baixo Período Moderno
(c. 1500-1650), também conhecido como Renascença e Reforma,
ocorreu uma transição gradativa do Medieval para o Moderno. Ma­
rinheiros europeus, como Colombo, exploraram o mundo. A s des­
cobertas astronómicas de Galileu G alilei e Johannes Kepler de­
ram início à Revolução Científica. A proliferação da imprensa de
tipos móveis revolucionou a comunicação de massa. Começando
em 1517, demandas existentes há muito por uma reforma dentro
da Igreja romperam em um cisma impetuoso.
Liderado por Martinho Lutero e outros, o protestantismo foi
estabelecido como um ramo separado do cristianismo indepen­
dente do controle católico romano. Em 1650, depois de uma longa
luta m ilitar e política, o protestantismo foi estabelecido no norte
da Europa e na Am érica do Norte.
Durante a Era da Razão (1650-1789), as descobertas sobre o
mundo natural incentivaram a visão de que o progresso pela ciên­
cia e tecnologia era inevitável. Os líderes do Iluminismo acredita­
vam que a razão humana podia retirar o véu da ignorância e su­
perstição e revelar um universo formosamente ordenado. As artes
também refletiram esta nova cosmovisão enfatizando a estrutura,
a ordem e a simetria. Na política, a fundação dos Estados Unidos
parecia demonstrar que os seres humanos racionais poderiam tra­
balhar para construir uma sociedade justa e im parcial. A cosmovi­
são do modernismo, baseado nos princípios do individualism o, da
razão humana e do progresso por meio da ciência e tecnologia,
passou a dominar a civilização ocidental.
A Era da Revolução (1789-1914) testemunhou várias mudan­
ças políticas e culturais. Começando com a Revolução Francesa
(1789), os cidadãos comuns usaram a política e a violência para
destruir os privilégios aristocráticos antigos. Levada pelo exem­
plo dos Estados Unidos, a democracia triunfou gradualmente na
Europa Ocidental. Na cultura, o romantismo rebelou-se contra o
“racionalismo seco” do Ilum inism o. Artistas, músicos e escritores
glorificaram o Sturm und Drang (tempestade e fúria) da natureza
e emoção humanas. O espírito romântico também impulsionou a
teologia. O liberalismo protestante clássico, com sua ênfase nos
elementos subjetivos e imanentes da religião, veio a dominar as
igrejas populares e seminários.
A lém das m udanças p o lític a s, uma série de avanços
tecnológicos, coletivamente conhecido como Revolução Industri-
1 2 9
130
GREGORY J. MILLER
Modernismo é a cosmovisão
que dominou o pensamento
ocidental desde o
iluminismo. As
características primárias do
modernismo são 1)
confiança no poder da
razão humana, 2) fé no
progresso e
desenvolvimento,
principalmente por meio da
ciência e tecnologia, e 3)
crença na soberania
absoluta do indivíduo.
al, transformam a sociedade ocidental no século X IX . Novos mé­
todos de conversão de energia (especificamente a máquina a va­
por) capacitaram a indústria e transporte em larga escala. Popula­
ções inteiras mudaram-se como operários migrados de zonas ru­
rais para áreas urbanas, atravessando os lim ites nacionais. Como
resultado das novas condições económicas, a classe média come­
çou a crescer. A urbanização extensa produziu a cidade moderna
orientada ao consumidor. Enquanto a tecnologia e a manufatura
deram um padrão de vida mais alto para muitos, para outros as
novas condições económicas nas cidades só trouxeram crime,
pobreza e despersonalização.
Os avanços tecnológicos que capacitaram o rápido desenvol­
vimento industrial também deram pela primeira vez ao Ocidente
(Europa Ocidental e Am éricas) uma vantagem m ilitar sobre o
Oriente Médio e o Extremo Oriente. Ambos saíram à procura de matérias-primas e mercados para os produtos industrializados que fabri­
cavam, e sentiram o dever de civilizar os “ selvagens” não-europeus.
Os poderes ocidentais estenderam o controle sobre grande parte do
mundo mediante a colonização ou intimidação em fins do século X IX .
As missões cristãs seguiram de perto as conquistas coloniais
européias e, às vezes, até as precediam. De uma perspectiva glo­
bal, o século X IX foi o “ Grande Século” para o protestantismo; as
igrejas cristãs foram estabelecidas por todo o mundo. Por volta de
1914, o Ocidente estava politicamente poderoso, cada vez mais
democrático e economicamente próspero. Com os avanços
tecnológicos em todos os campos, parecia a muitos que as pro­
messas do modernismo triunfante, uma sociedade justa e racio­
nal, estavam ao alcance da humanidade.
A perda de uma geração de jovens na Prim eira Guerra Mundi­
al (1914-1918) foi o primeiro grande revés para a esperança mo­
dernista. A Grande Depressão, o totalitarismo de H itler e Stálin, a
Segunda Guerra Mundial (1940-1945) e o Holocausto demonstra­
ram que os avanços na ciência e tecnologia não traziam automati­
camente um mundo melhor.
Depois da Segunda Guerra M undial, os Estados Unidos e par­
tes da Europa Ocidental desfrutaram um tempo de prosperidade
sem igual. No entanto, por volta de meados dos anos de 1970, a
prosperidade económica americana e a estabilidade cultural já es­
tavam começando a frustrar a m uitos. Apesar dos avanços
tecnológicos da informação e a era do computador, o mundo ain­
da está infestado por crime, pobreza, governos opressivos e de­
sastres ambientais.
Na ciência teórica como também na cultura, a confiança mo­
dernista na razão humana e no progresso fundiu-se na ansiedade e
confusão pós-modemistas. Embora o pós-modernismo retenha a
elevação da cultura ocidental do indivíduo, ele assevera que a ver­
dade é subjetiva, dependente da perspectiva pessoal ou cultural e,
portanto, é completamente relativa.
OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
131
A falta de verdade objetiva conduz à falta de significado objetivo. Consequentemente os pós-modemistas são deixados a en­
contrar seu próprio caminho em um mundo que necessariamente
não vai a lugar nenhum.
F orm ando
um
P e n s a m e n t o C r is t ã o
O mundo moderno de mudanças rápidas tem apresentado vári­
os desafios significativos para a Igreja. Muitos mais indivíduos e
eventos fizeram contribuições importantes para a formação de uma
cosmovisão cristã no período moderno do que possam ser menci­
onados em algumas páginas. Além disso, por causa da natureza
direta de sua influência, os esforços protestantes em formar uma
cosmovisão cristã ficarão enfatizados. Entre os mais importantes
destes estão 1) a reforma e o nascimento do protestantismo, 2) a
síntese puritana, 3) as respostas do século X IX ao modernismo, 4)
a renovação do pensamento cristão ortodoxo no século X X , e 5)
os movimentos carismáticos e pentecostais, e a realidade da cris­
tandade sobrenatural.
A Reforma e o Nascimento do Protestantismo
Em 1517, um monge jovem e professor universitário em Wittenberg, Alemanha, ficou muito aflito com as declarações ultra­
jantes feitas por um vendedor de indulgências dominicano, John
Tetzel. Tetzel declarou que para as “boas obras” de contribuir di­
nheiro para a Igreja (isto é, comprar indulgências), Deus recom­
pensaria os doadores perdoando-lhes os pecados. Se necessário, a
pessoa poderia obter perdão com antecedência do pecado intenci­
onal, ou por um ente querido já falecido (para ficar menos tempo
no purgatório). Havia até uma tabela variável dependendo da se­
veridade do pecado e da capacidade em contribuir.
Martinho Lutero (1483-1546) considerou isso não menos que
com ercializar a graça de Deus por um preço. A resposta escrita de
Lutero ao comércio de indulgências, as 95 Teses sobre a Eficácia
das Indulgências, ajudou a desencadear uma reforma da doutrina
por toda a Europa. Dentro de uma geração, a maioria dos euro­
peus do norte tinha se separado radicalmente da igreja romana
para formar suas próprias confissões e instituições. Muito do cris­
tianismo moderno é resultado direto deste “protesto” contra os
abusos do catolicismo romano medieval.
Durante os anos seguintes às 95 Teses, Martinho Lutero gradu­
almente percebeu que estava defendendo uma mudança completa
da autoridade para a Igreja. Se o papa e até os concílios eclesiásti­
cos (reuniões oficiais de líderes da Igreja) poderiam errar, como
era o caso relativo às indulgências, como os crentes podiam saber
o que fazer para agradar a Deus? A resposta de Lutero tornou-se o
fundamento para todo o pensamento protestante subsequente. A
autoridade final para a vida cristã era só a Escritura ( sola scriptura).
Usando o princípio de sola scriptura, Lutero não viu base alguma
Pós-modernismo é a
cosmovisão que, durante o
último século, ganhou cada
vez mais influência sobre o
modernismo. O pósmodernismo continua
enfatizando a soberania
absoluta do indivíduo, mas
é pessimista em relação ao
progresso humano e duvida
da habilidade da razão
humana em produzir a
verdade objetiva. Onde não
há verdade objetiva, há
somente relações (políticas)
de poder. Por isso, os
debates intelectuais do pósmodernismo têm se
centrado em volta de
questões concernentes ao
controle e interpretação da
cultura.
132
GREGORY J. MILLER
para indulgências, purgatório, relíquias, peregrinação. Em suma,
todo o sistema católico romano medieval de perdão e mérito dian­
te de Deus foi construído em fundamento falso.
Lutero achou o perdão completo de Deus, dado livremente,
não com base no que o indivíduo tinha feito, mas baseado somen­
te pela fé (sola fides) em Jesus Cristo. Para uma pessoa como
Lutero, que tinha lutado intensamente com sua sensação pessoal
de culpa diante de Deus, esta “ descoberta da
reforma” foi como o amanhecer de um novo
dia. Já não era mais necessário nenhum exer­
A autoridade final para a vida
cício religioso infinito para obter o favor e per­
cristã era só a Escritura (sola
dão de Deus. Isto já tinha sido feito por causa
scriptura),
da obra de Cristo na cruz. O crente não podia
contribuir com uma coisa sequer para a salva­
ção eterna, exceto com o receber humildemente
o perdão de Deus em Cristo pela fé. Para Lutero, isto deu ao cren­
te a tremenda liberdade de viver uma vida de serviço a Deus mo­
tivada pelo amor, e não pela culpabilidade ou responsabilidade.
Em um dos primeiros usos bem-sucedidos dos meios de co­
municação de massas, a indústria da impressa recentemente de­
senvolvida levou a mensagem de Lutero e a divulgou por toda a
M artinho Lu tero (14831546), o pai do protestantismo,
é geralmente reconhecido como
um dos indivíduos mais impor­
tantes na história da Igreja. Nas­
ceu na Alem anha central, de
pais camponeses prósperos, que
queriam que ele estudasse ad­
vocacia. Entretanto, em resulta­
do de um voto feito por ter es­
capado por um triz de um raio,
aos 23 anos Lutero ligou-se a um mos­
teiro agostiniano nos arredores de Erfurt
(Alemanha). Lutero excedeu-se em dis­
ciplina monástica e no estudo académi­
co; ao mesmo tempo, passou por uma
crise espiritual contínua, porque sentia
que nunca podia satisfazer a Deus. Tanto
pelo reconhecimento das habilidades de
Lutero, quanto uma tentativa de satisfa­
zer suas necessidades espirituais, em
1508 sua ordem monástica o transferiu
para a nova universidade de Wittenberg,
a fim de que ele continuasse seus estu­
dos académicos. Quatro anos depois,
ele recebeu o grau de Doutor em Teo­
logia e foi designado para a cátedra de
estudos bíblicos. Durante os cinco anos
seguintes, em grande parte pela prepara­
ção de conferências sobre Salmos, Ro­
manos e Gálalas, Lutero veio a entender
que a justiça de Deus não era algo que
alguém ganhava com base em seus pró­
prios méritos, mas era creditada ao cren­
te pela fé na obra de Cristo na cruz. À
medida que Lutero explorava as conse­
quências desta “ base” da refo rm a,
monitorando a controvérsia acerca das
indulgências e ocupando-se dos deba­
tes que se seguiram (especialmente A
IZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
Europa. Muitos líderes políticos e religiosos uniram-se ao seu cla­
mor pela reforma. Em grandes porções do norte da Europa, foi
abolido grande parte dos m il anos anteriores de prática e doutrina
cristãs. Os mosteiros, em lugares contendo proporção significati­
va de população e possuindo tremendas quantidades de terra e
riqueza, estavam fechados. (Ser monástico não garantia nenhum
favor especial de Deus e era visto como um tipo de justiça pelas
obras.) Os clérigos também perderam seu status especial como
mediadores da graça de Deus. Em última instância, todo o mundo
era o seu próprio sacerdote diante de Deus. A pessoa no arado
recebia a mesma graça e agradava a Deus da mesma forma que o
santo mais digno.
Então, qual era o papel das boas obras? Não deixando em
momento algum de preocupar-se com a realidade do pecado,
Lutero sabia que só o amor de Deus não m otivaria suficiente­
mente a m aioria das pessoas para fazer o que é certo. Mesmo
depois da graça havia a necessidade da le i, contanto que as pes­
soas não voltassem a crer novamente que suas boas obras as
salvariam . A le i era um guia para o comportamento e uma res­
trição ao pecado. Refletidas nos governos humanos, as leis pre­
servavam a paz e a ordem. O Reino do Céu e os reinos da Terra,
Disputa em Leip zig , 15 19), ele se deu
conta de que muito do catolicism o ro­
mano medieval estava baseado numa
ju stiça pelas obras, o que era contrário
ao cristianism o b íb lico . Visto que o
papa e muitas autoridades eclesiásticas
tinham apoiado estas práticas, Lutero
foi obrigado a argumentar que eles po­
deriam errar e que só a Escritura deve
ser a autoridade para a fé e prática.
Lutero foi declarado herege pelo papa
(1520) e proscrito pelo Santo Imperador
Romano (1521), mas recebeu apoio po­
lítico dos príncipes alemães, que o per­
mitiram reformar muitas igrejas de acor­
do com as linhas bíblicas independentes
do controle romano. Quando Lutero mor­
reu em 1546, os territórios da Suíça à
Escandinávia tinham seguido Lutero em
seu “ protesto” contra a Igreja Católica
Romana. Mas nem todos os “ protestan­
tes” concordaram com Lutero em todos
os pontos, e o movimento logo partiu-sc
em muitas facções. Porém, a importân­
cia de Martinho Lutero como originador
e paladino da reforma é inegável. Entre
os trabalhos do grande reformador inclu­
em-se mais de cinquenta volumes de ser­
mões, comentários bíblicos e escritos te­
ológicos. Contudo, sua contribuição es­
crita mais importante foi a tradução da
Escritura para o alemão. Pelo fato de ter
sido a primeira tradução em alemão, a B í­
blia Alemã de Lutero foi um marco na
história da tradução bíblica, e uma influ­
ência significativa no desenvolvimento do
próprio idioma alemão. Escritos mais im­
portantes: Da Liberdade de um Cristão,
Da Servidão Babilónica da Igreja, e a tra­
dução da B íb lia para o alemão.
133
134
G R E G O R Y J. M ILLER
não obstante separados, podiam e deviam coexistir em harmo­
nia. Cada crente possuía cidadania dual, com responsabilidades em cada reino.
Dos muitos outros reformadores importantes que ajudaram a
formar a cosmovisão cristã, João Calvino também merece men­
ção específica. Como Lutero, Calvino declarou a justificação so­
mente pela fé, mas centrou esta justificação na soberania absoluta
de Deus. Considerando que Deus estava no controle de todas as
coisas, a base da salvação estava nas escolhas de Deus e não nas
da humanidade.9 Nesta base, para seu grande conforto, Calvino
podia agora, com energia e confiança, prosseguir na cruzada con­
tra o pecado e as trevas, sem medo de perder a graça devido ao
fracasso. Calvino não permitia nenhum desafio à sua autoridade e
não tinha nenhuma tolerância pelo pecado aberto. O pecado e a
falsa crença devem ser extirpados da comunidade cristã como cân­
cer do corpo.
Lutero tinha algumas suspeitas sobre a razão humana, e caute­
la dos grandes sistemas de Tomás de Aquino e dos escolásticos.
João Calvino tinha uma confiança muito maior na mente cristã
iluminada. O alto tom moral e o uso brilhante da mente fez de
Muitas das idéias de Lutero
foram tomadas e desenvolvidas
pelo m aior sistem atizador da
Reforma, João Calvino. O fran­
cês Calvino (1509-1564) havia
sido treinado para uma carreira
em Direito, mas foi forçado ao
exílio por causa de sua crescen­
te atração às idéias da Reforma.
Enquanto viajava no exílio, pas­
sou por Genebra, Suíça, cidade que
recentemente tinha optado pelo pro­
testantismo. Embora preferisse a vida
quieta de estudioso, Calvino fo i per­
suadido a lid e ra r a R eform a
genebresa. Com um brilhante e pe­
netrante intelecto, aguçado pelo trei­
namento legal, Calvino fez contribui­
ções importantes para os estudos bí­
blicos, a teoria m inisterial e a teolo­
gia. As Instituías da Religião Cristã,
sua magnum opus, permanece uma
das mais importantes teologias siste­
máticas em toda a história da Igreja. A
Genebra de Calvino tornou-se centro
de treinamento importante para pro­
testantes, especialmente para aqueles
que fugiam da perseguição na França
e Inglaterra. A ênfase de Calvino na
soberania de Deus encorajou seus es­
tudantes a verem-se especialmente
escolhidos por Deus. Esta confiança
triunfante permitiu que o estilo da Re­
forma de Calvino causasse um impac­
to sig n ifica tivo na Holanda, GrãBretanha e no Mundo Novo. As deno­
minações que hoje são sucessoras de
João Calvino compõem o maior gru­
po particular de protestantes e inclui
os presbiterianos, os reformados ho­
landeses e a maioria dos batistas. E s ­
critos mais importantes: Comentários
Bíblicos de Calvino, e As Instituías da
Religião Cristã.
OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
Genebra o centro da educação do protestantismo. Nas palavras do
reformador escocês John Knox, a Genebra de Calvino “ foi a me­
lhor escola de Cristo desde os apóstolos” . A sensação do controle
de Deus no destino deu aos que estudavam em Genebra grande
confiança na justiça da causa que promoviam. Esta confiança capa­
citou aqueles que seguiam Calvino a causarem profundo impacto
na cultura ocidental, não apenas na Europa continental, mas tam­
bém em grande parte da Inglaterra e Estados Unidos.
A Síntese Puritana
Durante o Iluminismo dos séculos X V II e X V III, os avanços
na ciência e tecnologia fincaram uma cunha entre a fé e a razão
para muitas pessoas. Os líderes do Ilum inism o, como Voltaire,
entendiam que a religião era sinónimo de superstição. A religião
prodtlzia escravidão, enquanto que a razão gerava liberdade, afir­
mavam os ilum inistas. Alguns destes pensadores ilum inistas, cha­
mados deístas , retiveram a ética cristã, mas rejeitaram qualquer
sobrenaturalismo na religião. Embora Deus fosse visto como C ri­
ador transcendente, seu papel era comparado ao de um fabricante
de relógio, que construiu o mecanismo complicado do universo e
/
Jonathan Edwards (1703-1758)
foi um menino prodígio, que domi­
nava o latim , grego e hebraico e, já
na adolescência, escrevia documen­
tos científicos e filosóficos. Depois
de com pletar os estudos na Yale
C o lle g e , Ed w ard s assum iu o
pastorado da Igreja Congregacional
em Northampton, M assachusetts,
com a idade de 24 anos. Foi do púl­
pito em Northampton que Edwards
apoiou e guiou o avivamento ameri­
cano conhecido por Grande
Despertamento. Além de desempe­
nhar suas responsabilidades pastorais,
Edwards era estudioso infatigável,
trabalhando frequentemente doze a
quatorze horas por dia em seu gabi­
nete. Também era pessoa de profun­
da experiência religiosa, talvez me­
lhor ilustrado por sua resposta emo­
cional ao Grande Despertamento, so­
bretudo a pregação de avivamen­
to de George W hitefield. Embo­
ra, in fe lizm e n te , Jonathan
Edwards seja mais conhecido por
um sermão atípico: “ Pecadores
nas Mãos de um Deus Irado” ,
seus trabalhos sobre filosofia, psi­
cologia e teologia estão entre os
mais importantes da história da
Igreja americana. Seu apoio à ex­
perimentação científica é tragica­
mente ilustrado por sua concordância
em se deixar ser injetado por uma forma primitiva da vacina contra varíola.
Morreu em consequência disso, apenas três meses depois de assumir a presidência da College of New Jersey
(Princeton). Escritos mais importantes: Uma Narrativa Fiel das Obras
Surpreendentes de Deus, Um Tratado
Relativo ao Afeto Religioso, A Liber­
dade da Vontade.
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136
GRECORY J. MILLER
ficou à parte dele. Na versão americana do deísmo, sob o disfarce
da “providência” , Deus também moldava os destinos das nações.
Contudo, o Deus dos deístas não intervinha na vida das pessoas
comuns, nem se revelou em um Filho encarnado. Eles afirmavam
que Jesus foi o maior mestre moral, e a B íb lia o melhor lugar de
instrução moral, mas Jesus não era divino e a B íb lia era somente
palavras de sábios.
No meio deste ambiente d ifícil, foi feita uma das maiores con­
tribuições para a formação de uma cosmovisão cristã ortodoxa.
No século X V II, um grupo de protestantes ingleses, chamado pu­
ritanos, povoou as colónias britânicas da Nova Inglaterra. Dedi­
cados aos princípios da Reforma, eles exigiram a purificação da
Igreja Anglicana de toda falsidade humana (que se entendia ser os
vestígios do catolicismo romano), e a purificação de si mesmos
do pecado. Punham grande ênfase na atuação de Deus em meio à
comunidade e vida dos indivíduos. Os puritanos enfatizavam a
conversão pessoal e estavam imensamente preocupados com o
crescimento espiritual e o desenvolvimento na vida cristã.
Além deste enfoque moral e emocional, os puritanos também
enfatizavam a importância do intelecto. Estimulavam-se uns aos
outros a amar a Deus de coração e também de mente. Acredita­
vam que a educação era responsabilidade da comunidade cristã.
Ao povo da fé deveria ser ensinado ler, de forma que pudesse ler a
Palavra de Deus por si mesmo. Como líderes da comunidade, os
ministros precisavam de experiência pessoal com Deus e de rigo-
oAa 'WeáJÍety
John Wesley (1703-1791) foi
o décimo quinto filho de uma fa­
m ília m inisterial em Epworth, In ­
glaterra. O pai de John Wesley,
Samuel Wesley, tinha sido signi­
ficativam ente influenciado pelo
puritanismo inglês e criado seus
filhos em disciplina rígida e de­
voção cristã. Enquanto era estu­
dante na Oxford University, John,
seu irm ão C h a rle s, o amigo
George W hitefield e outros começaram
a se encontrar para estudo da B íb lia e
encorajamento mútuo (1727). Este “ Clu­
be Santo” , como veio a ser chamado, de­
pois se tornou a fundação da qual o mo­
vimento metodista se desenvolveu. A pri­
m eira exp eriên cia independente de
Wesley como ministro de congregação
terminou em desastre; ele foi forçado a
deixar sua posição missionária na coló­
nia britânica da Geórgia (1737). Sua
aventura fracassada, porém, resultou num
contato importante com os m orávios
anabatistas. A certeza de salvação dos
morávios encorajou Wesley a buscar uma
experiência mais profunda com Deus. Em
1738, Wesley recebeu a certeza do per­
dão dos seus pecados, quando seu cora­
ção “ ficou estranhamente quente” , en­
quanto ouvia a leitura do prefácio de
Lutero ao comentário de Romanos. Esta
DZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
roso treinamento intelectual. O fruto deste esforço em unir “ cabe­
ça e coração” como cristão inclui a fundação de muitas institui­
ções importantes de ensino superior.10Contudo, o impacto da sín­
tese puritana ultrapassa em muito o ensino superior. Os Estados
Unidos da América têm suas raízes no cristianismo evangélico em
grande parte por causa das contribuições dos puritanos da Nova
Inglaterra.
O
ápice da tentativa puritana em formar uma cosmovisão cris­
tã é representado por Jonathan Edwards (1703-1758), pastor
congregacional em Northampton, Massachusetts. Desde pequeno
ele se interessava na exploração do mundo natural e no desenvol­
vimento do intelecto. Edwards estava convencido de que sendo
Deus realmente o Criador do universo natural e o Doador do inte­
lecto, então a exploração racional do mundo era uma atividade
que em si mesmo glorificava a Deus. Sempre permaneceu entusi­
asticamente interessado nas descobertas científicas e avanços
tecnológicos ao longo de sua vida.
Contudo, Jonathan Edwards não era desprovido de uma fé pes­
soal fervente. Seu apoio ao avivamento colonial conhecido por
Primeiro Grande Despertamento (1730-1740) foi essencial para o
seu sucesso. A defesa que publicou sobre os aspectos emocionais
do avivamento, Um Tratado Relativo ao Afeto Religioso (1746),
permanece obra essencial para entender o equilíbrio formal entre
a emoção e a razão na vida cristã.
Do outro lado do Atlântico, na Inglaterra, um contemporâneo
experiência dramática revolucionou a
vida e ministério de Wesley: No ano se­
guinte, ele começou a escandalosa práti­
ca de pregar ao ar livre para grandes
multidões. O avivamento metodista que
se seguiu causou impacto em dezenas de
milhares de pessoas de ambos os lados
do Atlântico. Quando morreu, Wesley ti­
nha viajado mais de 400.000 quilómetros,
pregado 42.000 sermões e publicado mais
de 200 livros. A s pequenas sociedades
metodistas que Wesley formou para a
promoção da vida cristã tomaram-se hoje
uma das maiores denominações dentro do
protestantismo. John Wesley foi o primei­
ro clérigo importante a adotar a posição
teológica do holandês Jacó A rm ínio
(m. 1609), que enfatiza a responsabilida­
de da humanidade em aceitar Cristo na
salvação . (V e ja Pecota, “ A Obra
Salvadora de Cristo” , in : Teologia Siste­
mática, editor Stanley M . Horton.) Isto,
em combinação com sua doutrina da per­
feição cristã (a cooperação da vontade
humana c do Espírito Santo que levam à
santificação e santidade crescentes), foi
significativo em estabelecer o fundamen­
to para a santidade e os movimentos
pentecostais de fins do século X IX a prin­
cípios do século X X . Escritos mais impor­
tantes: Os sermões de Wesley, o Diário de
Wesley e Notas sobre o Novo Testamento.
137
138
GREGORY J. MILLER
de Jonathan Edwards estava pensando nesse mesmo sentido. John
Wesley fez contribuições significativas para a história do cristia­
nismo com seus escritos teológicos, a prática de pregar ao ar livre
e o gênio organizacional. Embora conhecido primariamente como
líder de um grande avivamento inglês e fundador do metodismo,
Wesley também era entusiasta da ciência, tecnologia e letras.
As Respostas do Século XIX ao Modernismo
Nos anos seguintes à guerra pela independência americana
(1775-1781), a atividade cristã nos Estados Unidos estava em flu­
xo muito baixo. Uma série de avivamentos, conhecida por Segun­
do Grande Despertamento (c. 1798-1820), inverteu parcialmente
esta tendência. Contudo, o crescente prestígio da ciência e as d ifi­
culdades do ministério na fronteira (princípios do século X IX ) e
nos centros urbanos (fins do século X IX ) deslocou distintamente
os Estados Unidos em direção ao secularismo.
Na Europa, a Revolução Francesa e os vários movimentos de­
mocráticos e socialistas que se seguiram foram ainda mais devas­
tadores para o cristianismo. A fim de abrir alas para a autonomia
da pessoa comum, estruturas tradicionais de autoridade foram ba­
nidas, em muitos casos incluindo as da Igreja.
Na Europa e nos Estados Unidos, as novas perspectivas inte­
lectuais aumentaram o vento para o secularismo. K arl M arx (18181883) argumentou que a religião era só uma máscara para as rela­
ções de poder entre as classes sociais. Em A Origem das Espécies
(1859), Charles Darwin (1809-1882) popularizou uma explicação
para a ordem e estrutura do mundo biológico que não exigia a
atividade de um Arquiteto divino. Junto com os escritos geológi­
cos de Charles Ly e ll, o darwinismo parecia minar a credibilidade
do relato bíblico da criação.
Houve duas respostas distintas dentro do cristianismo para es­
tes desafios do século X IX . Parcialmente sob a influência do ro­
mantismo, muitos cristãos abandonaram a defesa intelectual da fé
e voltaram-se para seus aspectos interiores e subjetivos. Em Sobre
a Religião: Discursos a seus Desprezadores Cultos (1799), o teó­
logo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834) definiu a es­
sência da religião como um “ sentimento de dependência” do “in­
fin ito ” . Ao apelar diretamente para a experiência humana,
Schleiermacher acredita que estava preservando um papel para a
religião em um mundo cada vez mais dependente da razão e da
ciência.
A religião certamente envolve emoções e experiência pessoal.
Porém, os teólogos que seguiram Schleiermacher (geralmente co­
nhecidos por “liberais protestantes clássicos” ) pagaram preço muito
alto por seus ganhos. A ênfase na religião como experiência subjetiva toldou as distinções entre as religiões, tomou grande parte
da doutrina cristã irrelevante e, às vezes, desceu ao panteísmo fran­
co, isto é, não vendo nenhuma distinção entre Deus e o mundo.
OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
Eles afirmavam que era possível conhecer a Deus na sua condição
de imanente, quer dizer, ativo no mundo, mas não como transcen­
dente, ou seja, acima e separado do mundo. Para o liberalismo
protestante clássico, o racionalismo moderno não propôs nenhu­
ma ameaça. O cristianismo simplesmente não tratava da defesa de
doutrinas particulares, mas do sentimento religioso e dos valores
morais.11
Nos Estados Unidos, as igrejas ficaram seriamente divididas
na sua resposta ao modernismo. O liberalismo protestante clássi­
co era atraente a muitos teólogos e líderes eclesiásticos importan­
tes, que estavam buscando acomodar o cristianismo ao mundo
moderno. O min istro congregacional Horace Bushnell (1802-1876)
criticou o avivalism o e estimulou a educação cristã gradual em
vez da conversão dramática. Em Nutrimento Cristão (1847),
Bushnell argumentou que a humanidade poderia superar o mal
pelo treinamento cristão, a in fluência moral de Cristo e a presença
interna do divino.
Idéias semelhantes foram desenvolvidas por Walter Rauschen­
busch (1861-1918). Sua experiência como pastor na famigerada
HelVs Kitchen (Cozinha do Inferno) da cidade de Nova York, deixou-o com uma compreensão sagaz dos aspectos sociais do peca­
do. Em O Cristianismo e a Crise Social (1907), Rauschenbusch
popularizou o entendimento de que o intento dos ensinamentos de
Jesus não era a salvação dos indivíduos, mas a promoção da ju sti­
ça política e económica. Para Rauschenbusch, a verdadeira salva­
ção significava salvação social, quer dizer, a criação de um siste­
ma social justo. De acordo com esta interpretação social do Evan­
gelho, Deus e a humanidade trabalhando juntos destruiriam pro­
gressivamente a tirania do mal social. O evangelho social foi um
esforço corajoso para lidar com os desafios da era industrial e for­
necer um corretivo importante para o egocentrismo na Igreja. Con­
tudo, assim como o liberalismo protestante clássico, ele também
desviou-se do cristianismo ortodoxo negligenciando a doutrina, a
autoridade da Escritura e o sobrenatural.
M ais perturbador para muitos cristãos foi o dano feito à autori­
dade bíblica pela alta crítica. Usando a metodologia da alta críti­
ca, estudiosos alemães como D . F. Strauss e F. C . Baur concluíram
que grande parte do Novo Testamento não era produto autêntico
do século I, mas uma tentativa de líderes eclesiásticos mais recen­
tes de m itificar seu passado. A crença na inspiração verbal da B í­
blia e na realidade dos milagres bíblicos foi vista como uma obs­
trução à erudição genuína. Tanto na Europa como nos Estados
Unidos, muitos teólogos adotaram a alta crítica bíblica como a
aplicação erudita da razão moderna para os estudos bíblicos.
Em oposição ao liberalismo principal com sua aceitação da
nova ciência e da alta crítica, o fundamentalismo cristão emergiu
nos Estad os U nidos em fin s do século X IX . O termo
fundamentalismo é derivado de uma série de folhetos chamados
139
1 4 0
GREGORY J. MILLER
A alta crítica parte da
suposição de que a Bíblia
pode ser analisada como
qualquer outra obra da
literatura. Na prática, a alta
crítica bíblica tendeu a
questionar as visões
tradicionais da autoria,
data, local e contexto
histórico de livros
específicos da Bíblia.
Os Fundamentos (1909-1915), que foram escritos para delimitar
base teológica comum a todos os cristãos conservadores, propor­
cionando um guia breve e de fácil compreensão para a doutrina
cristã essencial. Esses líderes que se reuniram pela causa de Os
Fundamentos, inclusive o fundador do Westminster Seminary, J.
Gresham Machen, e o ex-candidato ao governo presidencial dos
Estados Unidos, W illiam Jennings Bryan, investiram muita ener­
gia na defesa das doutrinas cristãs tradicionais, especialmente a
autoridade da Escritura, a expiação sacrificial de Cristo pelo pe­
cado, e a autenticidade dos milagres bíblicos.
Apesar de a defesa fundamentalista de que a doutrina e a auto­
ridade da Escritura são necessárias tivesse sido absolutamente es­
sencial para a preservação do cristianismo no século X X , ela tam­
bém não ocorreu sem o pagamento de um preço. A retórica
crescentemente severa e, às vezes, o antiintelectualism o radi­
cal conduziram ao isolamento cultural e a uma falta de influên­
cia nacional. Pelos anos de 1920, como ilustrado no famoso
experimento do “ macaco” (evolução) de John Scopes, muitos
americanos acreditaram que a pessoa não podia ser cristã evan­
gélica e “ moderna” ao mesmo tempo. Ou era-se uma pessoa de
fé supersticiosa e retrógrada, ou uma pessoa da razão progressiva
e “ atualizada” .
A Renovação do Pensamento Cristão Protestante Ortodoxo do Século XX
Embora suíço-alemão, K arl res da guerra só podiam ser entendi­
Barth (1886-1968) recusou ser dos em termos de pecado e em neces­
intimidado pela tentativa nazis­ sidade de redenção, e não da ignorân­
ta de dominar a vida religiosa na cia e cm necessidade de conhecimen­
Europa Central. Barth foi influ­ to, como ensinava o liberalism o clás­
ência importan te por trás da for­ sico. A humanidade podia ter espe­
mação da Igreja Confessional rança, mas só com base na obra de
Alem ã, que permaneceu fiel ao Cristo na cruz. A contribuição mais
cristianismo ortodoxo e oposta importante de K a rl Barth para o pen­
a Hitler. Depois da guerra, Barth samento cristão foi uma restauração
continuou ensinando teologia, de uma teologia centrada em Deus
i
muitas vezes nas ruínas das uni­baseada na revelação divina da Pa­
versidades alemãs bombardeadas. lavra de Deus em C risto, Escritura e
Suas pregações, escritos e ensinamen­ pregação. Na opinião de muitos histo­
tos causaram enorme impacto na Eu ­ riadores da Igreja, K arl Barth é o teó­
ropa e nos Estados Unidos. Suas con­ logo protestante mais importante do
ferências e caráter inspiraram espe­ século X X . Escritos mais importantes:
rança em uma sociedade despedaçada Comentário aos Romanos, Dogmas da
e desanimada. Para Barth, os horro­ Igreja, Credo.
'OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
Embora o pós-modemismo tenha ganho força, na maior parte
deste século os pensadores cristãos têm lutado com o velho adver­
sário do modernismo. Esta não é briga fá cil. Para muitos estudio­
sos, dos anos 20 aos anos 60 parecia que o cristianismo ortodoxo
seria derrotado. Em quase toda instituição cultural de influência,
o liberalismo protestante clássico, com sua ênfase na subjetividade humana na religião, foi a voz dominante. Nas principais uni­
versidades, os departamentos teológicos frequentemente desapa­
reciam ou eram substituídos por departamentos de religião. Pela
década de 1960, os teólogos populares estavam discutindo os efei­
tos da “ morte de Deus” na “ cidade secular” moderna.
Contudo, o cristianismo tradicional e ortodoxo estava longe de
acabar. Devido às contribuições de pensadores e líderes da igreja
na Europa, Estados Unidos e nações em desenvolvimento, a cosmovisão cristã (especificamente a cosmovisão cristã evangélica)
fez um retorno notável. Houve muitas contribuições significati­
vas para esta renovação do pensamento cristão, mas três merecem
reconhecimento particular.
Tanto em termos de quantidade quanto de qualidade do seu
trabalho erudito, K a rl Barth (1886-1968) pode ser o teólogo cris­
tão mais importante do século X X . Embora Barth tivesse sido atra­
ído pelo liberalismo protestante clássico no início da carreira, suas
experiências como pastor jovem de 1911 a l 921 levou-o a inver­
ter sua posição teológica. A rejeição de Barth do liberalism o e seu
otimismo alegre sobre a natureza humana foi somente aprofundada
pelo imenso sofrimento da Prim eira Guerra Mundial (1914-1918).
Significativamente influenciado pelos escritos de Martinho Lutero,
Barth voltou-se à revelação divina da Escritura em busca da ver­
dade. Diferente do liberalismo protestante, que via a Escritura nada
mais que sabedoria humana e literatura bonita, Barth enfatizou
que a Escritura continha a revelação de um Deus todo-poderoso e
transcendente. Barth suspeitava das habilidades da razão humana,
e enfatizava a necessidade de o Espírito Santo tornar as palavras
da Escritura em valor espiritual. Junto com outros teólogos, espe­
cificamente Em il Brunner e os americanos Reinhold e Richard
Niebuhr, K a rl Barth enunciou habilmente as doutrinas cristãs tra­
dicionais.12Através do trabalho deles, doutrinas cristãs essenciais,
como a realidade do pecado e a separação de Deus, a importância
da redenção em Cristo e a convicção em um Deus transcendente,
recuperaram credibilidade académica.
Nos Estados Unidos, certo teólogo, mais que qualquer outro,
ajudou a restab elecer a resp eitab ilid ad e in te le ctu a l do
evangelicalismo: Cari F. H . Henry. Apesar de v ir de formação evan­
gélica conservadora, ele estava determinado a não permitir que
isso o impedisse de obter a mais avançada educação disponível.
Os escritos de C ari Henry demonstram pensamento cristão sis­
temático e sério em uma larga variedade de tópicos teológicos,
filosóficos e culturais. Talvez sua maior contribuição tenha sido o
141
O fundamentalismo reagiu
contra os ataques à Bíblia
defendendo a inspiração,
a infalibilidade e a
autoridade da Escritura.
Porém, durante as últimas
décadas, o termo
fundamentalismo
estreitou-se para significar
ou uma confiança exclusiva
na interpretação literal da
Bíblia, ou qualquer posição
conservadora dogmática
e rígida.
142
GREGORY J. MILLER
trabalho na formação de uma comunidade erudita evangélica. Cari
Henry serviu como coordenador de relações públicas e membro
da mesa diretora da Associação Nacional de Evangélicos, presi­
dente da Sociedade de Teologia Evangélica e presidente da mesa
diretora do Instituto para Estudos Cristãos Avançados. Henry edi­
tou e supervisionou numerosos projetos da erudição cristã. Sob
sua liderança, a revista Christianity Today (Cristianism o Hoje)
tomou-se um respeitado foro para notícias, discussão e comentá­
rio evangélicos.
Junto com o apoio do popular radialista evangelista Charles
Fuller, Henry e outros estudiosos da mesma opinião fundaram o
Fuller Theological Seminary (Seminário Teológico Fu ller), em
Pasadena, Califórnia, centro chave para o pensamento evangéli­
co. Como estadista mais velho do “ novo evangelicalismo” , o pen­
samento cuidadoso, trabalho de qualidade e caráter cristão de Cari
Henry demonstraram a crentes e não-crentes que ainda é possível
no mundo moderno adorar a Deus com a mente tanto quanto com
o coração.
Embora C live Staples (C . S .) Lew is (1898-1963) não fosse te-
cw t
C ari Ferdinand H ow ard
j Henry (1913- ), filho de imi,v
i grantes alemães, foi criado numa
|
pequena fazenda em Long
Island, Nova York. Durante os
anos da Depressão, serviu como
editor e escritor para os princi­
pais jornais de Nova York, in ­
clu siv e o New York H erald
Tribune e o New York Daily
News. Em 1933, teve urna expe­
riência de conversão e, dois anos
depois, malricuiou-se no programa de
estudantes universitários em filosoíla
no Wheaton College (Illin o is). Por
volta de 1949, Henry era ministro batista ordenado e tinha recebido um
Mestrado (em Ciências) Humanas
(M .A .) cm Filosofia pela Wheaton
College, um Doutorado em Teologia
(T h .D .) pelo N orthern B a p tist
Theological Seminary e um Douto­
rado em Filosofia (Ph.D .) pela Boston
University. Além do seu trabalho no
Fuller Theological Sem inary, duran­
te o curso de sua carreira Henry tam­
bém ensinou em várias instituições
evangélicas importantes de ensino
superior, e serviu nas mesas diretoras de numerosas organizações. Seus
escritos foram reconhecidos como
contribuições distintas à epistemologia
cristã, ontologia e filo so fia política.
De 1974 a 1986, Henry foi freqiiente preletor e pregador, notavelmente
como conferencista em geral para a
World Vision International. Especi­
alm ente como ed ito r da re v ista
Christianity Today (de 1955 a 1968,
depois como editor era geral), Henry
serviu como o mais importante esta­
dista e porta-voz no evangelicalismo
americano. Escritos mais importantes:
Deus, Revelação e Autoridade, A
C onsciência
Intranquila
do
Fundamentalismo Moderno e sua au­
tobiografia, Confissões de um Teólo­
go.
✓OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
ólogo ou pastor, fez provavelmente mais para restabelecer a res­
peitabilidade popular do cristianismo ortodoxo no mundo de fala
inglesa que qualquer outro escritor deste século. Foi criado na Igreja
Anglicana, mas na época em que começou a frequentar a Oxford
University (1917) tinha se tornado ateu. C . S. Lew is ganhou títu­
los académicos em literatura pela Oxford University e serviu como
tutor e conferencista ali e em Cambridge durante toda a sua car­
reira profissional. Fora de seus escritos religiosos, ele é mais co­
nhecido pelo trabalho erudito sobre a literatura inglesa medieval e
da Renascença. Como ele descreve em 1931, em sua autobiogra­
fia Surpreendido pela Alegria, depois de longa luta intelectual,
Lew is converteu-se ao cristianism o. Talentoso como escritor e
pensador de clareza e estilo significativos, Lew is ficou famoso
por suas explicações racionais sobre a fé cristã. Escreveu mais de
25 livros cristãos, inclusive Cartas do Diabo ao seu Aprendiz, Cris­
tianismo Puro e Simples e a série de ficção para crianças As Cró­
nicas de Namia. O sucesso do film e de 1993 baseado na vida de
C . S. Lew is, Shadowlands, demonstra sua popularidade e influên­
cia permanentes. (Veja o box sobre C . S. Lew is no Capítulo 10.)
Os Movimentos Pentecostais e Carismáticos
Como cosmovisão, o modernismo secular colide com o cristi­
anismo em sua doutrina mais básica: a realidade do sobrenatural.
Nenhuma quantidade de pensamento cristão teria mantido as igre­
jas pelos anos difíceis deste século não fosse por esses crentes que
reconheceram a necessidade da experiência cristã e da realidade
da intervenção direta e sobrenatural de Deus na vida das pessoas.
Mesmo dentro das igrejas, numa cultura que tende a ser dominada
pela racionalidade, um papel absolutamente essencial na forma­
ção da cosmovisão cristã fo i representado por pentecostais e
carismáticos no século X X .
Acentuando a experiência de Deus na conversão e também uma
dotação especial pelo Espírito Santo para o serviço e ministério
cristãos (Atos 2.4; 1 Coríntios 12), os pentecostais trouxeram ener­
gia para o evangelismo e missões mundiais. Juntando impulso e
atenção nacional como resultado de um avivamento contínuo na
Rua A zusa, em Los Angeles (1906-1909), as denominações
pentecostais lideradas pelas Assembléias de Deus, a Igreja de Deus
em Cristo e a Igreja de Deus, ganharam muitos adeptos. De certa
perspectiva mundial, o pentecostalismo foi o movimento de mais
rápido crescimento no cristianismo do século X X .
Impressionado pela vitalidade da vida e culto pentecostais, os
membros de outras denominações também começaram a buscar
experiências legítimas do poder sobrenatural de Deus. A atenção
nacional que cercou o apoio público dos dons carismáticos pelo
sacerdote da Igreja Anglicana, Dennis Bennett, em 1963, incenti­
vou muitos membros de igrejas importantes a buscar os dons do
Espírito Santo. Enquanto alguns destes carismáticos permanece­
143
1 4 4
GREGORY J. MILLER
ram em suas igrejas originais e outros se separaram para formar
denominações independentes, o crescimento deles foi fenomenal.
A renovação carismática católica, nascida de experiências seme­
lhantes em reuniões de oração na Duquesne University, em 1967,
acrescentou milhões de cristãos ao número daqueles que tiveram
um encontro direto com o Deus vivo.
É importante notar que devido à forte ênfase em missões, os
movimentos pentecostais e carismáticos são agora numericamen­
te maiores fora dos Estados Unidos que dentro. Isto não só tem
ajudado a formar a cosmovisão cristã pela “ desocidentalização”
do cristianismo, mas também legou uma fé vibrante e sobrenatu­
ral ao cristianismo global nesta conjuntura importante da história
do mundo.
Conclusão
A história ensina muitas lições. Uma das mais importantes é
que o mundo em que vivemos como cristãos mudou consideravel­
mente. A verdade cristã não muda, mas a audiência que precisa
ouvir essa verdade certamente muda. Contudo, a história do cris­
tianismo pode nos dar confiança quando observamos a Igreja res­
ponder ao seu meio formando e reformando sua cosmovisão. Esta
não é nenhuma chamada insignificante e requer grande seriedade,
trabalho intelectual e maturidade cristã. A essência do cristianis­
mo ortodoxo não pode ser sacrificada, porém, a menos que sua
formulação seja adequada ao seu contexto histórico, perdemos
nossa eficácia no mundo.
Nas últimas décadas, ganhos significativos têm sido obtidos
pelo cristianismo contra o modernismo. Mas o modernismo é uma
cosmovisão que já está em declínio. Como os evangélicos respon­
derão aos novos desafios de nossos tempos?
Há muitas razões para estarmos esperançosos. Como pode­
mos ver pelos capítulos deste livro , os cristãos evangélicos estão
fazendo contribuições importantes em várias disciplinas acadé­
m icas. M uitas in stitu içõ e s educacionais são fo rte s, e o
evangelicalism o tem uma indústria editorial em crescimento.
Estamos aprendendo a integrar nossa fé e nossa aprendizagem
uma vez m ais. Muitos crentes estão associando a chamada de
amar a Deus com a mente e a “pensar como cristãos” . Será gratificante ler o relato dos esforços desta geração em formar um
pensamento cristão. Mas esta é uma história ainda a ser vivida e
escrita.
Revisão e Questões para Discussão
1.
Quem você selecionaria como a(s) figura(s) identificadora(s)
central(is) da Igreja Prim itiva? Da Igreja M edieval? Da Igreja
Moderna? Em que aspectos a Igreja mudou e em que aspectos
permaneceu a mesma durante os últimos dois m il anos?
/OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
2. A cosmovisão cristã foi elaborada na bigorna do conflito.
Na sua opinião, quais os desafios mais importantes enfrentados
pela Igreja em cada um dos três períodos principais?
3. A conversão de Constantino foi um evento vital na história
da Igreja. De que modo você consideraria que isto teve consequ­
ências positivas? Consequências negativas?
4. Em que a Igreja M edieval era mais parecida com a Igreja
Prim itiva? Mais diferente? Qual foi o fator responsável por esta
continuidade e estas mudanças?
5. Os monges medievais consideravam que estavam vivendo a
mais alta forma de vida cristã possível (a imitatio Christi). Qual
era a imitatio Christi que se percebia existir na Igreja Prim itiva?
Na Igreja Moderna? Qual é a imitatio Christi para os dias de hoje?
6. Em que a Igreja Moderna é mais parecida com a Igreja Me­
dieval? M ais diferente? O que é responsável por esta continuida­
de e estas mudanças?
7. M artinho Lutero é reconhecido como o pai da Reform a,
mas a Reform a teria acontecido sem ele? Seria inevitável cedo
ou tarde?
8. Depois dos avivamentos puritano e wesleyiano, por que os
evangélicos geralmente se afastaram da investigação científica e
da vida da mente? Que evidência você vê que esteja ocorrendo
uma renovação do “pensamento como cristão” ?
9. Os movimentos pentecostais e carismáticos são dois dos
eventos mais importantes na história da Igreja do século X X . Por
que estes movimentos cresceram tão rapidamente nos Estados
Unidos? No estrangeiro? O que isto pode nos dizer sobre a socie­
dade humana deste século?
10. Baseado em sua compreensão da cultura contemporânea,
quais são os desafios mais importantes que a Igreja enfrentará nas
próximas décadas? Que aspectos da cosmovisão cristã devem ser
reformados ou reafirmados para responder a estes desafios?
11. Resuma pelo menos três modos nos quais os cristãos têm
historicamente entendido a relação entre a fé e a razão.
Bibliografia Selecionada
G ER A L
B R A U E R , Jerald C ., editor. The Westminster Dictionary of
Church History, Lo uisville: Westminster, John Knox, 1971. Fácil
de acompanhar e de ênfase mais americana, contudo não contém
bibliografia.
C A IR N S, Earle E . Christianity Through the Centuries. Edição
revista e ampliada. Grand Rapids: Zondervan Publishing House,
1981. Um dos mais interessantes de ler.
C H A D W IC K , Henry, e EV A N S, G . R „ editores. Atlas ofthe
Christian Church. New York: Facts on F ile , 1987. A melhor refe­
rência geográfica disponível.
I
145
146
GREGORY J. MILLER
CRO SS, F. L ., editor. The Oxford Dictionary ofthe Christian
Church. Oxford University Press, 1990. Uma obra de referência
padrão.
D O U G LA S, J. D ., editor. Who’s Who in Christian History.
Wheaton, Illin o is: Tyndale House Publishers, 1992. Um dicioná­
rio biográfico bom.
G O N Z A LEZ , Justo L . The Story o f Christianity. 2 volumes.
São Francisco: HarperCollins, 1984. Outro texto muito agradável
de ler.
M cM A N N ERS, John, editor. Oxford Illustrated History of
Christianity. Oxford: Oxford University Press, 1990. Embora con­
trabalançado com perspectivas britânicas e o período moderno,
fornece algumas imagens visuais empolgantes.
Série Pelican da History ofthe Church. 6 volumes. Nova York:
Penguin Books, 1954ss. Cada livro foi escrito por destacado peri­
to em um período principal da história da Igreja. A série não é
técnica, mas faz uso de excelente erudição. O sexto volume, uma
história de missões escrita por Stephen N eill, é uma gratificação.
P E L IK A N , Jaroslav. The Christian Tradition. 5 volumes. C hi­
cago: University of Chicago Press, 1971ss. A combinação da pro­
sa melódica de Pelikan e o seu domínio do material de fonte pri­
mária, fazem esta série indispensável para o desenvolvimento do
pensamento cristão.
R E V IS T A
Christian History. Cada número oferece uma visão geral v ív i­
da de uma pessoa ou idéia da história da Igreja. Embora escrito
para o público em geral, a erudição é excelente e a bibliografia
fornecida torna este recurso lugar excelente para o estudante uni­
versitário começar a pesquisar.
IG R E JA P R IM IT IV A
Ante-Nicene, Nicene, and Post-Nicene Fathers o f the Early
Church. S é rie em 38 volum es. Peabody, M assachusetts:
Hendrickson Publishers, Incorporated, reimpresso em 1994. A tra­
dução em inglês é obsoleta, mas adequada, e contém muitos índi­
ces úteis.
F E R G U S O N , E v e re tt, editor. E ncyclopedia o f Early
Christianity. Nova York: Garland Publishing, Incorporated, 1990.
Obra de referência muito importante.
BRO W N , Peter. Augustine ofHippo. Nova York: Dorset Press,
1967. A melhor biografia deste importante pai da Igreja; proporci­
ona uma janela maravilhosa na vida do Império Romano tardio.
IG R E JA M E D IE V A L
C a th o lic U n iv e rsity o f A m e rica S ta ff. New C atholic
E n c y clo p e d ia . 17 vo lu m es. N ova Y o rk : M cG raw H ill,
Incorporated, 1967ss. Com frequência a melhor fonte para a
/OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO
Tardia Idade M édia, embora escrito de uma perspectiva distinta­
mente católica romana.
OZM ENT, Steven. The Age ofReform, 1250-1550. New Haven:
Yale University Press, 1980. Excelente pesquisa sobre a Tardia Idade
Média, especificamente em relação à Reforma que se seguiu.
S T R A Y E R , Joseph R ., editor. Dictionary ofthe Middle Ages.
Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1982ss. Ú til ferramenta de
referência.
IG R E JA M O D ERN A
BA IN TO N , Roland H . Here I Stand: A Life o f Martin Luther.
N ashville: Abingdon Press, 1950. Um clássico.
B U R G E S S , Stanley M ., e M cG EE, Gary B . Dictionary of
P entecostal and C harism atic M ovem ents. Grand R ap id s:
Zondervan Publishing House, 1988. Esta é a referência padrão
sobre este assunto.
G R E N Z , Stanley J ., e O LSO N , Roger E . 20th Century
Theology: God and the World in a Transitional Age. Downers
Grove, Illin o is: InterVarsity Press, 1992. Na verdade, começa com
o surgimento do liberalismo protestante clássico no início do sé­
culo X IX ; altamente valioso por causa dos seus resumos claros e
concisos do pensamento de teólogos modernos, que às vezes são
difíceis.
M cG RA TH , A lister E . Reformation Thought: An Introduction.
Cambridge: Blackw ell Publishers, 1993. Pesquisa os principais
assuntos intelectuais do período.
N O LL, M ark. The History o f Christianity in the United States
and Canada. Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing
Company, 1992. Esta é a melhor pesquisa do seu tipo.
O BERM AN , Heiko A . Luther: Man between God and the Devil.
Nova York: Doubleday & Company, 1992. Um livro eminente­
mente fascinante.
Notas bibliográficas
1. Como resultado da controvérsia com M árcion, foi escrita a
primeira lista conhecida de escritos cristãos autorizados, o Cânon
Muratoriano. A lista muratoriana inclui a maior parte de nosso
Novo Testamento, embora demonstre que a autoridade de certos
livros (por exemplo, Hebreus, 1 e 2 Pedro, 3 João) ainda estava
em questão, provavelmente porque eram ou pequenos ou ainda
não tinham ganho circulação entre a maior parte das igrejas.
2. Há uma ou duas possíveis exceções. Veja Jaroslav Pelikan,
The Christian Traditions, volume 1, The Emergence ofthe Catholic
Tradition (Chicago: University of Chicago Press, 1971).
3. Deve ser observado que o Taciano da comunidade cristã era
membro dos encratitas, que adotavam o celibato e, talvez, até o
vegetarianismo, como exigência a todos os verdadeiros crentes.
147
148
GREGORY J. MILLER
4. Veja Kerry D . McRoberts, “A Santíssima Trindade” , in: Te­
ologia Sistemática, editor Stanley M . Horton (Rio de Janeiro: Casa
Publicadora das Assembléias de Deus, 1996), pp. 162-168.
5. Note que aqueles que pela primeira vez chamaram M aria de
“Mãe de Deus” , estavam dizendo algo sobre Jesus e não sobre
M aria: Jesus é Deus, é divino.
6. Adaptado de Henry Bettenson, editor, Documents o f the
Christian Church, 2.a edição (Londres: Oxford University Press,
1963), pp. 161-179.
7. Stanley M . Horton, Nosso Destino: O Ensinamento Bíblico
das Ultimas Coisas (Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assem­
bléias de Deus, 1998), pp. 136, 137.
8. Por exemplo, o popular autor devocional Richard J. Foster
foi significativamente influenciado pelos místicos cristãos. Veja
Richard J. Foster, Celebration of Discipline: The Path to Spiritual
Growth, edição revista e ampliada (São Francisco: HarperCollins,
1988).
9. Veja Daniel B . Pecota, A Obra Salvífica de Cristo, in: Teolo­
gia Sistemática, editor Stanley M . Horton, p. 356.
10. Começando com Harvard (fundada em 1636) e incluindo
Yale (1701), Princeton (1746), Dartmouth (1769) e muitas outras.
Veja M ark N oll, A History o f Christianity in the United States and
Canada (G rand R ap id s: W illia m B . Eerdm ans Publishing
Company, 1992), pp. 97-105.
11. Na Inglaterra, uma visão semelhante de Deus compeliu um
grupo influente de clérigos sob a liderança de John Henry Newman
(1801-1890) a deixar a Igreja Anglicana pelo ritual mais elabora­
do do catolicismo romano.
12. Contudo, eles não viam a Escritura como a objetiva Pala­
vra de Deus escrita, mas como escritos humanos que poderiam se
tomar a Palavra de Deus, quando o Espírito falava existencialmente. Os evangélicos consideram esta uma visão deficiente da
Escritura. Veja John R . Higgins, “A Palavra Inspirada de Deus” ,
in: Teologia Sistemática, editor Stanley M . Horton, pp. 112, 113.
4
O Cristão
e a Ciência
Natural
Lawrence T. McHargue
150
LAWRENCE T. McHARCUE
biologia tem sido o trabalho e a profissão de toda a minha
vida. Tenho sido ou estudante ou profissional nesse campo
durante a maior parte de quatro décadas. Em meus anos de
estudo e trabalho, encontrei ampla gama de respostas entre os cris­
tãos para a prática da ciência moderna. Alguns indivíduos, é claro,
são indiferentes. Vivem em uma era de inigualável pesquisa cien­
tífica, mas ignoram a prática da ciência e usufruem desapercebidamente de seus benefícios. Outros são entusiastas imperturbáveis
da ciência. Ou pelo menos adotam entusiasticamente os produtos
que a ciência moderna toma possível. Outros ainda mostram-se
duvidosos, desconfiados, até hostis para com a prática da ciência.
Meditando nestas atitudes, recordo-me de como certos cris­
tãos reagiram diante do caso de um amigo meu, que sentia-se cha­
mado para seguir carreira na ciência natural. Alguns deram pouca
importância. Outros deram apoio e expressaram encorajamento
genuíno, embora, em geral, tivessem pouca idéia do que tal cha­
mada pudesse requerer. Mas alguns demonstraram séria preocu­
pação. Sua fé, exortaram, se acabaria sob a influência secante dos
cientistas ateístas. Será que ele não percebia os riscos envolvidos
em se aventurar em tal carreira? A s dúvidas que aqueles irmãos
demonstraram não fizeram com que aquele rapaz desistisse de seus
estudos, mas lhe causaram um conflito considerável.
A experiência de meu amigo não é única entre os cristãos que
têm interesse pelas ciências naturais. Independentemente de para
onde se voltem, eles encontram questões difíceis e conflitos cen­
tenários supostamente irreconciliáveis entre a ciência modema e a
vida de fé. Não é incomum que se sintam divididos entre dois campos
que parecem determinados a perpetuar uma falsa dicotomia.
Um campo é povoado por certos cientistas agnósticos ou
ateístas. Na ânsia de aplicar rigorosamente o método científico a
um amplo alcance de questões importantes, eles passam dos lim i­
tes do método que governa a pesquisa diária. Para eles, perguntas
que não podem ser respondidas pelo método científico são sem
importância ou irrelevantes. Eles descartam a noção de que o uni­
verso em geral (e a vida humana em particular) é governado por
um propósito último, visto que tal propósito não é encontrável
pelo método científico. Deles é a concepção completamente natu­
ralista do universo. (Veja os Capítulos 1 e 2 para discussões .sobre
o naturalismo.)
O outro campo é ocupado por certos cristãos que, embora na
maioria sinceros em seus propósitos, têm uma compreensão lim i­
tada dos métodos da ciência empírica moderna. Eles juntam a ci­
ência e o naturalismo. Então, na pressa de rejeitar o naturalismo,
fazem declarações equivocadas contra toda a ciência. A s vezes
argumentam que, visto que algumas perguntas importantes (por
exemplo, perguntas sobre questões morais ou sobre a existência
de Deus) não podem ser respondidas cientificamente, a ciência
não deve ser considerada como tendo a chave para qualquer per­
â
O CRISTÃO E A CIÊNCIA NATURAL
151
gunta importante. (Em outras palavras, visto que o naturalismo é
falso, devemos ser céticos sobre o método científico adotado pe­
los naturalistas.)
Ou, considerando que o método científico é silencioso quanto
à questão de se o universo é governado por um propósito último,
estes cristãos às vezes deduzem que as perguntas científicas são
triviais ou perigosas aos nossos compromissos de fé. Em resumo,
visto que sua cosmovisão cristã os leva a rejeitar
as doutrinas básicas do naturalismo, eles acredi­
A tarefa é integrar a vida de fé e a
tam que também têm de afastar-se da prática da
prática da ciência moderna dentro
ciência moderna.
Para aqueles que (como meu amigo) levam
de uma cosmovisão cristã.
a sério a vida de fé e a prática da ciência mo­
derna, a tarefa é integrar os dois dentro da es­
trutura de uma cosmovisão cristã. Trata-se de tarefa d ifíc il, em
parte porque exige um entendimento são da Escritura e da teolo­
gia, e em parte porque requer um conhecimento sólido dos assuntos básicos relacionados à prática da ciência empírica moderna.
Os mais importantes desses assuntos podem ser formulados em
perguntas: Como e por que a ciência moderna se desenvolveu?
Que suposições filosóficas subjazem a prática da ciência natural?
Quais são o âmbito e os lim ites do método científico?
No restante deste capítulo, exploraremos essas questões. Nos­
so propósito é demarcar um caminho que não conduza a nenhum
dos dois campos antagónicos. A ciência empírica moderna não é
nem a fonte exclusiva das respostas às questões importantes da
vida, nem uma barreira para alcançar tais respostas; nem é uma
panacéia para todas as nossas doenças, nem a ferramenta do dia­
bo. E , em última análise, um método extraordinariamente podero­
so, mas limitado, para promover o conhecimento humano. Entendêla e integrá-la com sucesso em uma cosmovisão cristã requer tra­
balho duro e paciência, porque os assuntos são complicados e re­
sistentes a esforços ingénuos para sim plificá-los, e paciência,
porque a tarefa não pode ser concluída em pouco tempo. Não pre­
tendemos completar a tarefa dentro dos lim ites deste capítulo. Não
obstante, começamos na confiança de que considerar alguns dos
assuntos chaves pelo menos indicará o caminho para o tipo de
integração que buscamos.
Os Precursores Gregos da Ciência Moderna
A ciência natural teórica tem uma história que ultrapassa dois
m il e quinhentos anos. Começou como um tema de interesse dos
filósofos gregos que precederam Platão e Aristóteles. Estes filó ­
sofos foram os primeiros a explicar o mundo físico de um modo
racional e analítico. Eles ponderaram a natureza da matéria, as
leis físicas aceitas, a astronomia estudada, começaram a formular
a teoria matemática, introduziram a composição de estruturas para
r
152
LAW R E N C E T. M c H A R C U E
estudar os fenómenos naturais e propuseram a primeira teoria ató­
mica. Estes primeiros filósofos gregos também deram início ao
processo de considerar o que chamamos anteriormente de teoria
de fundo sobre o cosmo. (Veja o Capítulo 1.) Suas considerações
abriram o caminho para os pensadores subsequentes estudarem o
mundo sistematicamente, em vez de atribuir todos os fenómenos
a forças irracionais e im previsíveis, como os deuses e deusas.
A R IS T Ó T E L E S
Aristóteles é considerado o filósofo cujo pensamento mais in ­
fluenciou o desenvolvimento da ciência natural no período clássi­
co (século V ao IV a .C .). Além disso, seus argumentos podem ter
influenciado grandemente as subsequentes visões ocidentais so­
bre a natureza, e o que pode ser conhecido dela. Na verdade, sua
perspectiva filosófica afetou profundamente o pensamento cientí­
fico até a segunda metade do século X V I.
O legado intelectual de Aristóteles é monumental. E le fez con­
tribuições importantes em muitos campos de aprendizagem, in­
clusive filosofia, lógica, física, biologia, astronomia, teoria literá­
ria, ética e teoria política.
Aristóteles admitiu quatro categorias de causas ou fatores
explicativos: a causa material, a causa formal, a causa eficiente e
a causa fin a l.1 Falando toscamente, a causa material é a matéria
do que algo é feito. A causa formal é a essência, natureza ou estru­
tura de algo. Aristóteles acreditava que podemos expressar a cau­
sa formal de um objeto em uma definição. A causa eficiente é o
agente ou processo pelo qual algo é feito. A causa final é o propó­
sito para o qual essa coisa existe, ou o fim (grego, telos) para o
qual a ação é dirigida.
^ c á to te ie d
A ristó te le s (3 8 4 -3 2 2
a .C .), um dos filósofos mais
importantes do antigo mun­
do grego, também é consi­
derado um dos te o ristas
mais importantes da histó­
ria hum ana. N asceu em
Estag ira, cidade na região
da Trácia, norte da G récia.
Com a idade de dezessete anos, foi man­
dado a Atenas para estudar na Academ ia
de Platão, onde permaneceu até vinte anos
depois da morte deste. Em 343 ou 342, o
rei F ilip e I I , da M acedônia, convidou
Aristóteles para ensinar seu filho de treze
anos, Alexandre (m ais tarde, conhecido
como Alexandre, o Grande), posição que
Aristóteles manteve por vários anos. Em
335, Aristóteles voltou a Atenas, onde fun­
dou uma escola chamada Lice u . Ele admi­
nistrou o Liceu até 323, quando forte sen­
timento antimacedônico surgiu em Atenas.
Pelo fato de ter tido ligações existentes há
muito tempo com os macedônios e por te­
m er re p re sá lia de atenienses irad o s,
Aristóteles decidiu deixar Atenas para habi­
tar em Cálcida, na ilha de Eubéia, onde mor­
reu em 322.
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
Por exemplo, considere a fabricação de uma estátua. Se for
feita de mármore, então o mármore é a causa material. M as, claro
que a estátua é mais que apenas um bloco de mármore; tem certa
estrutura, uma forma prescrita. Esta é sua causa formal. Tem esta
forma prescrita, porque o escultor trabalhou no mármore com um
cinzel e um martelo: O atrito do cinzel impactado pelo martelo no
mármore é a causa eficiente da estátua. Mas não devemos esquecer
da razão que o escultor deu para a estátua. Talvez tenha sido destina­
da a comemorar a vida de uma pessoa famosa; este propósito, ou
fim , que explica por que foi feito, é a causa final da estátua.
Aristóteles fez contribuições importantes e duradouras para a
filosofia, psicologia, lógica e vários outros ramos de investigação.
Na biologia, seu esquema de classificação foi essencial para o
desenvolvimento da taxionomia. Seus reinos são maravilhosamente
ordenados, intricados e interrelacionados.2Seu reconhecimento da
ordem é uma suposição básica da ciência moderna. Ele procurou
considerar os fenómenos físicos de modo racional e lógico, base­
ado na percepção da ordem. Entretanto, o legado duradouro que
deixou para as ciências deriva do seu tratamento das causas finais
(como descritas acima).
A visão de que as atividades das coisas na natureza são dirigidas
a um fim , a uma meta, a um propósito, dominou os relatos que ele
fez dos objetos animados e inanimados. O mesmo tipo de raciocí­
nio — chamado explicação teleológica— eventualmente veio a do­
minar a concepção medieval da física nos séculos X II e X H I. Só na
metade final do século X V I é que as explicações teleológicas na prá­
tica da ciência natural foram final e decisivamente substituídas pelas
explicações mecanicistas de causa e do universo físico .3
Os Precursores Medievais Europeus
da Ciência Moderna
Durante os m il anos que hoje são conhecidos como período
medieval (400-1400), a Igreja desfrutou de influência sem parale­
lo no continente europeu. Suas tesourarias estavam cheias. Seus
edifícios eram as estruturas mais impressionantes do continente.
Seus líderes exerciam influência política notável e, em alguns ca­
sos, franco controle sobre as autoridades civis. A maioria da popu­
lação em geral trabalhava longas horas nos campos para afugentar
a fome; só uma minoria escassa tinha acesso à aprendizagem. Não
admira que as cadeiras da aprendizagem estavam principalmente
nas instituições da igreja, como mosteiros e algumas universida­
des existentes.
A erudição da Baixa Idade Média foi profundamente influen­
ciada não só pelos ensinos da Igreja, mas também pela herança
poderosa do Império Romano. Os estudiosos estavam fam iliari­
zados com os poetas e prosadores romanos. O latim era o meio de
discurso para todo escrito e discussão eruditos. O fato de que os
153
Teleologia. Aristóteles
explicou os fenómenos
naturais em termos
teleológicos. A teleologia é
o estudo dos fins, ou
propósitos, das coisas.
Dizer que uma cosmovisão
é teleológica significa que
a cosmovisão entende que
a realidade é dirigida por
propósitos últimos. O
cristianismo pode ser
descrito com o uma
cosmovisão teleológica.
O Movedor Impassível de
Aristóteles. Aristóteles
raciocinou que deve haver
uma causa primeira, ou
movedor impassível, que é
eterno e inalterável e,
portanto, não é feito de
material físico. Ele ensinou
que o movedor impassível
está distante, não ocupa
espaço físico e não é
infinito. O movedor
impassível de Aristóteles
não é o Criador da Bíblia.
Contudo, o movedor
impassível e os propósitos
ordenados (causas finais)
atraíram mais tarde a
atenção dos cristãos. Os
estudiosos medievais, em
particular Tomás de Aquino,
reconciliaram o
ensinamento aristotélico da
filosofia e ciência com o
cristianismo até o tempo de
Galileu.
154
LA W R EN C E T. M c H A R G U E
primeiros pensadores foram afetados por influências cristãs e ro­
manas, significou que frequentemente procuravam reconciliar as
duas tradições.
Visto que o filósofo grego Platão tinha influenciado a filosofia
romana, antigas tentativas em reconciliar o pensamento cristão
com o não-cristão buscava comumente reconciliar os ensinos cris­
tãos com certas características da filosofia de Platão, conforme
era entendida pelos filósofos romanos. A mais
notável destas primeiras tentativas foi feita por
A erudição da Baixa Idade Média
Agostinho (354-430 d .C .). (Veja o box sobre
foi profundamente influenciada
Agostinho de Hipona no Capítulo 3.) Sua in­
pela herança poderosa do Império
fluência foi incomparável até o século X III.
Os estudiosos europeus da B aixa Idade
Romano.
Média foram grandemente influenciados pela
tradição e cultura romanas. Ao mesmo tempo,
quase não tinham nenhum conhecimento direto da extraordinária
herança intelectual e cultural da Grécia clássica. Mas esta herança
era tão rica e variada que pouco a pouco começou a dar nova for­
ma ao pensamento e vida medievais, quando os europeus se de­
ram conta disso. Sua influência veio em duas fases. A primeira
aconteceu nos séculos X II e X III e é conhecida como a Renascen­
ça Medieval. Foi incitada pela introdução na Europa de alguns
manuscritos gregos importantes. A segunda, conhecida hoje por
Grande Renascença, começou na Itália no século X V e, ao final
do século X V I, tinha se espalhado por todas as partes da Europa.
Este grande “ despertamento” representou, em parte, uma resposta
a uma efusão de traduções das obras de antigos poetas, dramatur­
gos, cientistas e filósofos gregos. Vamos fazer uma revisão breve
destes dois despertamentos para melhor entendermos o contexto
cultural, teológico e filosófico do qual o método científico moder­
no emergiu.
A R enascença
M e d ie v a l
A Renascença Medieval dos séculos X II e X III foi principal­
mente desencadeada pelo redescobrimento de textos gregos im­
portantes. Entres eles, incluíam-se a obra de Euclides sobre geo­
metria e a de Ptolomeu sobre astronomia, mas especialmente a de
Aristóteles, sobre lógica e método científico. Até o século X II, os
estudiosos europeus só conheciam estes escritos por reputação.
Seu redescobrimento acrescentou novo impulso e direção à erudi­
ção medieval. Em particular, os escritos de Aristóteles enfatizaram
a importância da observação, experimentação e argumento lógi­
co. Eles representaram um real afastamento do tipo de especula­
ção abstrata típica da antiga tradição romana-platônica.
A influência do pensamento de Aristóteles na Europa não pode
ser superestimada. Agiu como catalisador ao modo de pensar que
uns quatro séculos depois tomaria forma como modelo geral para
a investigação científica moderna. A princípio, contudo, sua influ-
n
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
ência primária foi sentida na teologia. Tão persuasiva era a abor­
dagem de Aristóteles a uma larga gama de assuntos, que os teólo­
gos (ou escolásticos; veja box sobre a Escolástica neste Capítulo)
do século X II foram compelidos a reconciliar a teologia cristã com
as doutrinas chaves da filosofia aristotélica. Neste período, mais
do que durante qualquer outro, eles se sentiram compelidos a de­
monstrar que as declarações de fé eram consistentes com as de­
mandas da razão. O teólogo mais notável em procurar empreen­
der esta tarefa foi Tomás de Aquino. (Veja box sobre Tomás de
Aquino no Capítulo 3.) Poucas décadas depois da sua morte, em
1274, sua obra Suma Teológica tornou-se fonte primária de instru­
ção em teologia.
No século X IV , os estudiosos confirmaram cada vez mais a
legitimidade de buscar explicações racionais não derivadas espe­
cificamente nem ligadas diretamente a considerações doutrinári­
as. O esforço de Tomás de Aquino de demonstrar a harmonia entre
a fé e a razão foi chamado em questão em algumas esferas. Em
particular, Guilherme de Occam argumentou que as reivindica­
ções religiosas devem ser aceitas puramente pela fé. Occam tam­
bém rejeitou a m etafísica m edieval tradicional e a teologia
escolástica. E le asseverou que o conhecimento não-revelado (co-
Os teólogos do período medieval
tardio são conhecidos como
escolásticos. A escolástica é distinti­
va na tradição cristã por seu compro­
m isso com o uso da razão para
aprofundar a compreensão do que se
crê pela fé. Alguns dos pensadores
escolásticos mais proeminentes bus­
caram dar um conteúdo racional à fé.
A escolástica começou com Anselmo
(fins do século X I), que desenvolveu
uma das provas racionais mais famo­
sas e duradouras para a existência de
Deus (o argumento ontológico).
Abelardo enfatizou a abordagem ra­
cional na consideração da questão fi­
losófica mais importante do século
X II, a questão de se as noções uni­
versais como “género humano” e “ca­
valo” são reais (existem à parte do
pensamento e linguagem humanos) ou
se tão-somente são nomes para agru­
par indivíduos de uma categoria.
Mas o sistema teológico de Tomás
de Aquino cuidadosamente debatido
é considerado a maior realização da
época escolástica. E distinto e notável
por sua síntese da fé e da razão. Ou­
tros pensadores escolásticos — parti­
cularmente João Boaventura (12211274), John Duns Scotus (1266-1308)
e Guilherme de Occam (1285-1349)
- rejeitaram a síntese de Aquino da
fé e da razão. A medida que a Gran­
de Renascença começou a expandirse p ela E u ro p a , os m étodos
escolásticos foram conseqiientemente rejeitados nas ciências naturais,
embora continuaram a ser seguidos
na política e no direito.
155
156
L A W R E N C E T. M c H A R G U E
nhecimento encontrado fora da Escritura) deve ser baseado na
experiência. No século X IV , sua abordagem ficou bastante influ­
ente, especialmente nas Universidades de Paris e Oxford. Com
Occam, as disciplinas da ciência e filosofia lentamente, mas com
segurança, começaram a assumir identidades independentes da
teologia. Esta tendência continuou nos tempos modernos.
A G rande R ena scença
A idéia de que a aprendizagem e o conhecimento poderiam ser
independentes das doutrinas da Igreja fixou raiz mais firme du­
rante a Grande Renascença dos séculos X V e X V I. A invenção da
imprensa (1450) e a exploração de novos continentes (começando
na década de 1480) foram desenvolvimentos chaves que aumen­
taram as concepções européias do mundo. Estes desenvolvimen­
tos ocorreram assim pelo estímulo de novo grupo qualificado de
*Jfcctt6enme de Occam
Guilherme de Occam (c. 12851349) era membro da ordem
franciscana e filósofo inglês. Os enj sinos de Occam representam
X-,.
i um afastamento importante
i
| da filosofia medieval anterii or. Ele é mais destacado por
'%
i defender uma posição cha| mada nominalismo , a visão
y
| de que somente dctcrminaJ \ \ | dos objetos perceptíveis (por
j \j exemplo, os seres humanos
! individuais ou os cavalos
singulares) existem. Os uni­
versais (por exemplo, a hu­
manidade ou a cavalhada) não são
reais (não existem de fato) exceto na
mente das pessoas e no idioma. O
nominalismo de Occam estava em
violento contraste com o realismo
aristotélico de Tomás de Aquino, de
acordo com o qual os universais exis­
tem de fato, independentemente da
mente das pessoas e do idiom a.
Occam também é célebre por rejeitar
a evidência por si mesma da noção
aristotélica da causa final. Embora
acreditasse em Deus, ele não cria que
a existência de Deus é evidente por si
mesma ou um assunto a ser demons­
trado. Consistente com esta visão, ele
declarou que a razão não é competen­
te para julgar os assuntos da fc. Conseqiientemenle, ele resolveu fazer uma
distinção clara entre os assuntos da
razão (como o estudo da lógica) e os
assuntos da fé. Esta posição tornou-se
muito importante no desenvolvimen­
to da investigação científica.
Occam é famoso por propor um
p rin cíp io de econom ia chamado
comumente de “navalha de Occam” :
“O que pode ser feito com menos é
leito em vão com mais” . O significa­
do desta declaração é que em qualquer
explicação dos fenómenos naturais, a
explicação ou hipótese mais simples
possível, que seja consistente com os
fatos, deve ser a preferida. Qualquer
explicação que seja incompatível com
os fatos ou observações deve ser re­
jeitada. A navalha de Occam perma­
nece como característica básica do
método científico para os dias atuais.
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
157
profissionais - homens cujo espírito inquiridor os levou para mui­
to além das paredes das instituições eclesiásticas. A medida que
seu número aumentava, começaram a trocar idéias por cartas e a
se visitarem.
Estes novos homens da cultura, conhecidos como humanistas,
saíram à frente na tradução de grande quantidade de obras gregas
clássicas além das de Aristóteles. Também inspiraram nova confi­
ança no intelecto humano e despertaram um novo senso do valor e
dignidade dos seres humanos individuais.
Em parte como resultado da confiança crescente e influência
liberadora de homens instruídos da Renascença, duas revoluções
desabrocharam silenciosamente. A primeira começou dentro da
Igreja e tornou-se pública em 1517, quando Martinho Lutero pre­
gou suas 95 Teses na porta da igreja em Wittenberg. (Veja box
sobre Martinho Lutero no Capítulo 3.) A segunda foi incitada pelo
trabalho de Nicolau Copémico, astrónomo polonês que desenvol­
veu argumentos que demonstravam que a terra girava em volta do
sol. Sua denominada teoria heliocêntrica do movimento planetá­
rio desafiou a crença tradicional de que os planetas e as estrelas
giravam ao redor da terra, ensinado pelo astrónomo alexandrino
Ptolomeu (século II d .C .).
t i
Sxftíonação' alem da Swiofea
M ais ou menos na época em que
Colombo alcançou as índias Ocidentais, a
exploração ampliou grandemente a visão
européia do mundo. Impressionante quanti­
dade de animais e plantas estranhas previa­
mente desconhecidas foi trazida para a Eu­
ropa do hemisfério ocidental, Á frica, índia
e Á sia Oriental. Alimentos como m ilho, fei­
jões, amendoim, pimenta, abóbora, tomate,
batata, batata doce, mamão, manga e abaca­
xi chegaram à Europa pela primeira vez. Os
naturalistas europeus perceberam gradual­
mente que o mundo continha imensamente
mais tipos de seres vivos do que jam ais ti­
nham imaginado, e que seus esquemas de
classificação eram calamitosamente inade­
quados. A necessidade de classificar grande
quantidade de seres vivos foi fator principal
que fez com que a taxionomia, a ciência da
nomeação e classificação, fosse o primeiro
ramo da biologia a ser sistematicamente or­
ganizado. A mesma necessidade levou, em
última instância, ao colapso do conceito de
“ espécies fixas” .
As viagens ao hem isfério sul com suas
estações invertidas e grupos diferentes de
animais e plantas acabaram com a noção
medieval de que era im possível alcançar
as partes m eridionais do mundo. Os euro­
peus observaram os céus do hem isfério sul
com estrelas mais luminosas e mais nume­
rosas do que poderiam ver em suas casas.
A descoberta de terras distantes, a grande
quantidade de anim ais e plantas previa­
mente desconhecidos, os povos cultural­
mente diversos e as visões dos céus m eri­
dionais brilhantes dispersaram a noção de
uma terra auto-suficiente, que tem uma
ordem fix a e relativam ente bem entendi­
da. As velhas maneiras de ver o mundo, a
natureza e a ciência começaram a mudar
para sempre.
158
LAW R E N C E T. M c H A R C U E
eâ&tw&j4me*tto4,
Os principais avanços na as­
tronomia e física influenciaram
profundamente todos os ramos da
ciência à medida que a era moderna
despontava.
Nicolau Copémico
J j
,s, ■
'
(1473-1543), astrô- í
nomo polonês, estaM
r<''■
beleceu o fundamen'■
% to para a astronomia
■
* moderna com sua te_________________ oria heliocêntrica do
movimento planetário. Esta teoria
foi apresentada por ele pela p ri­
/íútn^momía^
m eira vez em cerca de 1512 (tal­
vez mais cedo), numa forma re­
duzida em certo manuscrito iné­
dito intitulado “ Commentariolus” . A ver­
são
m ais
com pleta e
apurada fo i
p u b lic a d a
em 1543 em
seu trabalho
que marcou
a história De n wlui mibus orbium
coelestium.
A concepção tradicional presumia que a terra era o centro do
universo. Até os dias de Copérnico, essa teoria havia sido sancio­
nada pela autoridade combinada de Aristóteles, Tomás de Aquino
e a interpretação comumente aceita da Escritura. No início da dis­
cussão, a evidência empírica disponível não favoreceu decisiva­
mente nem a teoria tradicional nem a teoria de Copérnico. Porém,
a simplicidade matemática da teoria de Copémico comprovou ser
persuasiva. Copérnico cria que Deus tinha imposto a ordem e a
harmonia em sua criação, e cria que essa ordem fora revelada na
linguagem da m atem ática.4 O apoio à teoria revolucionária
coperniana cresceu durante o século X V I. Concorrentemente, a
concepção medieval da física, baseada em grande parte nos escri­
tos de Aristóteles, perdeu sua influência persuasiva sobre os pen­
sadores europeus. No século X V II, foi deposta.
O Aparecimento da Ciência Moderna
Os procedimentos e modelos de pensamento que eventualmente
ordenaram a ciência empírica moderna começou a tomar forma
no século X V com Copémico e continuou no século X V I com
outros astrónomos e matemáticos. A segunda metade do século
X V I viu o começo da era moderna e a firm e substituição da
escolástica aristotélica pela ciência moderna. Esta substituição do
método investigador de Aristóteles pela investigação científica,
culminando com o trabalho de sir Isaac Newton (1642-1727), é
marcada por várias mudanças importantes e profundas:
1.
A observação e o raciocínio quantitativo substituíram a au­
toridade. Até fins do século X V I, uma forma comum do argumen-
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
Johannes Kepler (1571-1630),
luterano ardente, defendeu a teoria
de Copérnico cerca de sessenta
anos depois. Kepler divergia dos as­
trónomos anteriores em sua lealda­
de resoluta aos dados observados.
E le aceitou a validez dos dados
empíricos sobre a teoria prevalecen­
te do mundo antigo. Afirmou que
qualquer hipótese que não buscasse
retratar a verdade é inadequada para
entender o universo de Deus.
Kepler trabalhou nos princípios
do movimento planetário usando da­
dos coletados
por Tycho
Brahe (15461601), astró­
nomo dina­
marquês. Me­
dida e dados
precisos fo ­
ram estabelecidos como a base para
a verdade no reino físico. Kepler
afirmou que as observações do
universo são fidedignas, porque
Deus tinha se revelado na Sua
criação.
to erudito para uma tese era acumular citações apoiadoras rele­
vantes e referências de fontes autorizadas, como textos clássicos e
medievais, especialmente os de Aristóteles ou dos pais da Igreja.
Porém, a astronomia e a matemática requeriam um tipo diferente
de prova, e o seu desenvolvimento foi importante para o processo
de substituição do argumento da autoridade pela observação direta e o raciocínio quantitativo.
Francis Bacon exortou os pesquisadores a rejeitarem os argu­
mentos baseados na autoridade, e a passarem a fundamentar suas
conclusões estritamente na experiência e no estudo direto da natu­
reza. Esta abordagem fomentou o uso da observação empírica e
forneceu forte incentivo para o desenvolvimento do método expe­
rim ental.5Assim , Bacon reconheceu que a aquisição do conheci­
mento científico avançaria incrementadamente, e seria realizada
por muitas pessoas. E le entendia que a experimentação científica
seria necessária para desenvolver e prover sustentação para as
novas idéias na ciência. Bacon defendeu o estabelecimento de um
program a de pesquisa c ie n tífic a . Tam bém esboçou uma
metodologia necessária para produzir resultados práticos, embora
seja justo dizer que ele estava otimista demais sobre a capacidade
do método render resultados contínuos e fidedignos.6
Sua ênfase na observação assinalou mudança significativa no
pensamento ocidental. Embora seu método proposto de adminis­
trar a pesquisa careça de direção quando visto pelos padrões de
hoje, suas propostas para pesquisa abriram o caminho para pes­
quisadores subsequentes abordarem o mundo físico em uma for­
ma empírica mais sistemática, e sem as restrições dos argumentos
da autoridade.
159
1 6 0
L A W R E N C E T. M c H A R C U E
2.
Pensar em termos de analogias qualitativas foi substituído
por argumentar puramente em termos quantitativos. Os estudio­
sos medievais concebiam o universo como um todo hierárquico e
orgânico, com níveis diferentes de coisas existentes - níveis dife­
rentes de existência, por assim dizer. Entre esses níveis de exis­
tê n cia, entre o u niverso m acrocósm ico e a hum anidade
microcósmica, havia afinidades ou correspondências. Dessa ma­
neira, os eventos naturais e sociais eram interpretados como aná­
logos a certos processos no corpo humano ou num organismo vivo.
Assim , por exemplo, as tempestades eram vistas como expressões
da ira divina, e a relação entre o rei e a nação como moldada na
relação entre Deus e sua criação. Durante o século X V I, o modelo
hierárquico e a argumentação analógica que lhe acompanhava fo­
ram substituídos por um modelo quantitativo.
G alileu G a lilei fo i proeminente e influente na tentativa de
quantificar a natureza. De acordo com ele, a ciência devia se pre­
ocupar em ver-se a si mesma exclusivamente com as propriedades
mensuráveis do mundo, como tamanho, forma e movimento. O
conhecimento da natureza, pensou ele, devia estar baseado em
dados que são transformados a partir dos sentidos para a forma
numérica. Na verdade, ele recusou trabalhar com dados que não
pudessem ser reduzidos à forma numérica.7A abordagem quanti­
tativa aos fenómenos naturais feita por Galileu e outros investiga­
dores que sustentavam a mesma opinião não apenas minou a v i­
são hierárquica do universo, mas também acelerou a aceitação de
É creditado a F ra n cis Bacon
(1561-1626) a influência no desen­
volvimento da ciência moderna, por
ele ter enfatizado a observa­
ção a e experiência, em vez
de argumentos baseados em
autoridade. Mas ele também
é conhecido por seu desejo
de alcançar resultados prá­
tico s. Bacon tomou nota
m inuciosa de vários fatos
importantes da vida diária
européia: condições prim iti­
vas de vida, alta taxa de
mortalidade, elevada in ci­
dência de doenças infecciosas e co­
municação e transporte lentos e in­
certos. Preocupava-lhe o fato de que o
conhecimento científico tivesse produ­
zido tão pouco poder, ou controle, so­
bre a natureza. E le acreditava que
Deus tinha dado aos seres humanos
o domínio sobre a natureza, contudo
viu pouco domínio sendo exercido.
B aco n era c rític o da c iê n cia
aristotélica e queria adquirir conhe­
cimento que pudesse ser usado para
restabelecer o domínio que tinha sido
perdido pela hum anidade em
Génesis 3. Ele é creditado com o re­
conhecimento de que uma carência
de conhecimento sobre o mundo na­
tural era fator importante nos proble­
mas da Europa.
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
sua substituição: um modelo cuja linguagem é a matemática. Se­
gundo este modelo, todas as coisas naturais existem no mesmo
nível, sujeitas às mesmas leis físicas e diferindo apenas nos mo­
dos quantitativos. Claro que a aceitação destas mudanças em mo­
delos de pensamento aconteceu no decorrer de longos períodos de
tempo e aos arrancos.
3.
Uma mudança radical ocorreu no modo como os europeus
exp licavam os fenóm enos n atu rais. Desde o p rim eiro
despertamento na Europa no século X II, o relato de Aristóteles de
quatro tipos de fatores explicativos, ou causas (material, formal,
eficiente e final) dominou o pensamento erudito. Destes, a causa
final (explicar coisas em termos dos seus fins ou propósitos) foi
considerada a forma mais fundamental de explicação. Muitos pen­
sadores medievais empregaram a causa final para explicar os even-
a íc íe c c t fa t c le i
Galileu G alilei (1564-1642), as­
trónomo, matemático e físico italia­
no, alterou significativamente a abor­
dagem da ciência com relação ao
mundo físico. Foi ele quem disse que
o conhecimento dos fenómenos na­
turais deve ser baseado em dados que
possam ser reduzidos a uma forma
num érica. Quando tinha apenas
dezenove anos, descobriu o isocronismo — o princípio de que cada os­
cilação de um pêndulo leva o mesmo
tem po, apesar de m udanças na
amplidão. Logo depois tornou-se co­
nhecido por inventar um instrumento
chamado balança hidrostática, e por
ter escrito um tratado sobre o centro
da gravidade dos corpos cadentes. Até
os dias de G alileu, presumia-se que
se uma coisa pesasse o dobro que
outra, então cairia duas vezes mais ra­
pidamente. Ele descobriu experimen­
talmente que isto não ocorria. Os tra­
dicionalistas reagiram com hostilida­
de a esta conclusão, porque contra­
d iz ia o ensinam ento aceito de
Aristóteles. Galileu também desco­
briu que o trajeto de um projctil e uma
parábola, e não uma linha direta. A lém
disso, ele é reconhecido como o cien­
tista que se antecipou às leis de Isaac
Newton sobre movimento. Em i
1609, ele construiu o primeiro i
telescópio astronómico. Sua pes­
quisa com este instrumento levouo à descoberta dos quatro satéli­
tes maiores de Júpiter, como tam­
bém a composição estelar da Via
Láctea. Em 1632, publicou um
trabalho que apoiava a teoria
coperniana em lugar da teoria
ptolemaica tradicional do movi­
mento planetário. Sua investigação
sobre estes assuntos marcou ponto
decisivo no pensamento científico e
filosófico. Mas as autoridades religio­
sas não viram suas descobertas de
modo favorável. Em 1633, foi trazido
diante da Inquisição, cm Roma, onde
foi forçado a renunciar a todas as suas
crenças e escritos que apoiavam a teo­
ria coperniana.
Trabalhos mais importantes: Diá­
logo Relativo aos Dois Principais Sis­
temas do Mundo (1632) e Diálogos Re­
lativos a Duas Novas Ciências (1638).
Ufa
1 61
1 6 2
LA W R EN C E T. M c H A R G U E
Ex nihilo: termo em latim
que significa "do nada".
tos físicos, desde a queda das pedras até às órbitas dos planetas,
em termos do seu propósito divino. Contudo, esta visão teleológica
de explicação pouco a pouco abriu caminho para um relato
mecanicista da causa primeira, e um modelo interpretativo geral
que via tudo do universo físico como uma vasta máquina.
A pessoa que deu expressão mais sistematizada e eficiente ao
modelo mecânico foi S ir Isaac Newton. Por exemplo, para expli­
car o movimento dos corpos celestes como também dos objetos
terrestres, Newton propôs uma hipótese da gravitação universal, e
três leis de movimento dentro da estrutura de um modelo unifica­
do da física. Num afastamento radical da tradição aristotélica, ele
levantou a hipótese de que as leis físicas e os processos são aplicá­
veis uniformemente ao universo inteiro.
O próprio Newton cria que o universo fora criado ex nihilo por
um Deus transcendente, e que as leis que o regulam dão evidência
do desígnio de Deus.8Em outras palavras, embora Newton admi­
nistrasse suas experiências rigorosamente de acordo com os mé­
todos da ciência e sem referência a propósitos últimos (teleologia),
ele subscreveu uma cosmovisão mais ampla do que permitia tais
propósitos. Porém, muitos dos seus seguidores promoveram uma
cosmovisão completamente naturalista, de acordo com a qual o
universo é regulado somente por leis mecânicas impessoais.9Eles
não reconheciam nenhum propósito último, divino ou o que seja.
Pelo contrário, afirmavam que o universo é uma máquina muito
extensa e complicada, cujos movimentos são devidos a leis que
podem ser empiricamente descobertas. Para eles, a realidade esta­
va confinada a fenómenos mensuráveis, como peso, massa, velo­
cidade, altura, largura e força física.
\e&coêenfa&
t7Moden*ta& eta
^M m cw çtz e 'Pentodo* ‘THoderuta ‘la ícó a l
Várias descobertas científicas feitas du­
rante ou logo após a vida de Galileu ajuda­
ram a acabar com a visão medieval da natu­
reza (veja o Item 3, neste Capítulo), sobre­
tudo na ciência física. W illiam Gilbert (15401603) demonstrou que a terra é magnética;
Jean-Baptiste van Helmont, médico cristão,
descobriu o gás e a química pneumática en­
quanto procurava meios de aliviar o sofri­
mento. W illiam Harvey (1578-1657) demons­
trou a circulação do sangue no corpo humano.
Robert Hooke (1635-1703) foi o primeiro a
observar as células. Ele também inventou e
melhorou vários instrumentos científicos.
Gassendi, padre francês, reavivou a teoria ató­
mica de Demócrito, e desta forma influenciou
os cientistas mais recentes. Cada um destes
confiou em cuidadosas observações e expe­
rimentação para chegar às suas conclusões.
Para informação adicional, veja J. D .
Bem al, Science in History, volume 2, The
S c ien lific and In d u stria l R evolution
(Harmondsworth: Penguin Books, 1969), pp.
434-439, 459-464.
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
A prevalência crescente desta interpretação naturalista do uni­
verso representa mudança importante no pensamento ocidental.
Porém, apesar de seu crescente apelo ter ocorrido nos círculos
intelectuais concorrentemente com o surgimento da ciência mo­
derna, não é o resultado direto do pensamento científico. Na ver­
dade representa uma cosmovisão cuja fonte acha-se além do âm­
bito do método científico moderno.10
O Método Científico
Até aqui discutimos certos desenvolvimentos históricos que con­
duziram ao aparecimento da ciência moderna. Também discutimos
algumas das mudanças importantes e profundas que marcaram a tran­
sição dos métodos investigadores empregados pelos pensadores me­
dievais (influenciados porAristóteles) para o tipo de investigação posta
em movimento durante a Renascença e aprimorada nos séculos se­
guintes, conhecido como investigação científica moderna. Mas, em­
bora tenhamos identificado algumas de suas características centrais,
ainda não descrevemos seus princípios governantes e metodologia.
Vamos nos dedicar agora a essa tarefa.
‘Jà a a c ‘V le c u to tt
S ir Isaac Newton (1642-1727) era
m atem ático in g lês e fís ic o . F o i
inquestionavelmente o primeiro cien­
tista de sua era e é considerado uma
das mentes científicas mais sagazes
de todos os tempos. De 1669 até
1701, ensinou m atem ática na
Cambridge University. Em meados da
década de 1660, descobriu o cálculo
concorrentemente com W. G. Leibniz,
mas independente dele. Durante o
mesmo período, também enunciou a
lei da gravitação universal, e desco­
briu que a luz branca é composta de
todas as cores do espectro. Na obra
Princípios Matemáticos da Filosofia
Natural, demonstrou como seu prin­
cípio da gravitação universal explica­
va os movimentos dos corpos celes­
tes e a queda de corpos na terra. A
mesma obra explica a dinâmica (in ­
clusive as três leis de Newton sobre
movimento), a mecânica dos fluidos,
os movimentos dos planetas e seus
satélites, os movimentos dos cometas
e as marés dos oceanos. Em uma pu­
b licação de 1704, Ó ptica,
Newton argumentou que a luz é
composta de partículas. Sua te­
oria dominou o campo da ótica
por mais de um século, até ser
suplantada pela teoria da onda de
luz. (No século X X , ambas teo­
rias foram combinadas na teoria
dos quanta.) Além de suas prin­
cipais realizações física s, ele
construiu o primeiro telescópio
de reflexão, antecipando o cálculo das
variações, e devotou atenção conside­
rável à alquimia, teologia e história.
Serviu como presidente da R o yal
Sociely de 1703 até sua morte.
Trabalhos principais: Philosophiae
naturalis principia mathematica (Prin­
cípios Matemáticos da Filosofia Na­
tural) (1687) e Óptica (1704).
1 6 3
1 6 4
L A W R E N C E T. M c H A R G U E
ntífico requer metodologia consistente e resultaa pouco
rocedimentos pelos quais poderiam obter conhedar constantemente o universo fís ic o . Esta
imada método científico, envolve a integração de
dois elementos distintos, um empírico e um dedutivo. O elemento
empírico requer que os investigadores na verdade examinem os
fenómenos naturais, em vez de somente especular sobre eles. O
elemento dedutivo (consistindo nas regras da matemática e da ló­
gica) coloca restrições formais na pesquisa e explicação, fornece
ferramentas para análise e predição, e constitui a linguagem forcar resultados.11
ientífica não pode nem garantir os resultados esssegurar o progresso em adquirir conhecimento
specíficos. M as, como certo filósofo da ciência
ium cientista competente faz experiências inseníejadas” .12Em outras palavras, a pesquisa científica não é fortuita. É guiada por um corpo acumulado de conheciiade informada dos investigadores, as teorias cilinantes e as restrições do método científico. Os
ssados por uma questão ou problema particular,
:ir primeiro o status atual do conhecimento sobre
;s de administrar qualquer experiência. Sendo astempo considerável lendo jornais, monografias,
í eletronicamente armazenado para averiguar o
;imento atual nas áreas de seu interesse. Então,
tarefa sistematicamente e comunicar aos outros,
• cuidadosamente o problema no qual enfocarão
i tarefa requer nomenclatura precisa para facilitar
:lara e sem ambiguidade. Muitos dos termos e
desta nomenclatura derivam tipicamente de teos nas várias ciências.
tisiderar o que é conhecido sobre o problema sob
e esclarecer a questão exata ser investigada, os
cientistas constroem uma explicação chamada
hipótese. Uma hipótese aceitável tem der sa­
tisfazer ao menos cinco critérios.
Relevância. Nenhuma hipótese é jam ais
proposta para o seu próprio bem. É proposta
como explicação a algum fato ou outro. Por­
tanto, para ser aceitável, deve ser relevante ao
fato que se pretende explicar. A relevância é
determinada por fatores lógicos. “ O fato em questão deve ser
dedutível da hipótese proposta - quer da hipótese em si junto com
as leis causais presumidas como altamente prováveis, ou destas junto
com certas suposições sobre condições iniciais particulares” .13
Testabilidade. A marca registrada de uma hipótese científica
(assim contra uma não científica) é que ela pode ser testada. O
3. Desde a Renascença, os cientistas pouco
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
1 6 5
critério de testabilidade significa que existe a possibilidade de se
compor uma observação que tenderia a confirmar ou refutar a h i­
pótese. Claro que quando dizemos observação, não queremos di­
zer necessariamente observação direta. Com frequência o critério
de testabilidade só pode ser conhecido indiretamente - por exem­
plo, quando uma hipótese é enunciada em termos de tais entida­
des não observáveis, como as ondas eletromagnéticas. Em todo
caso, para uma hipótese qualificar-se como
hipótese científica, deve em última instância
Visto que testar jaz no coração do
estar de algum modo ligada com os fatos da
método científico, o desígnio
experiência.
Compatibilidade com Hipóteses Previa­
mente Bem Estabelecidas. Este critério não só
experimental é criticamente
importante.
é d ifícil de descrever, mas também d ifícil de
satisfazer. No mínimo, compatibilidade signi­
fica compatibilidade lógica. A medida que te: im explicar cada
vez mais fatos da experiência, os cientistas objetivam alcançar um
sistema de hipóteses explicativas. Claro que tal sistema é impos­
sível se as hipóteses são logicamente incompatíveis entre si. A s­
sim, no mínimo, qualquer nova hipótese deve ser compatível com
hipóteses previamente estabelecidas, no sentido de ser logicamente
consistente com elas. Uma nota de atenção está na ordem aqui.
A tarefa da ciência não é simplesmente fazer hipóteses novas
para conformar teorias velhas. A idade de uma hipótese não deter­
mina sua verdade. A menos que isto seja assim, a ciência não ofe­
rece nenhum prospecto de fazer progresso no avanço do conheci­
mento. A presunção a favor de hipóteses mais antigas acha-se so­
mente quando receberam confirmação extensa. Quando uma h i­
pótese mais antiga e uma mais recente têm confirmação extensa, e
quando as duas hipóteses são incompatíveis entre si, a única espe­
rança de uma resolução final do conflito jaz com a prova empírica
contínua.
Poder Explicativo ou Predito. O poder explicativo ou de pre­
dição de uma hipótese refere-se à sua capacidade em apoiar dedu­
ções sobre fatos observáveis. Quanto mais observáveis os fatos
que podem ser deduzidos de uma hipótese, maior é o seu poder
explicativo ou de predição. Este ponto pode ser entendido recor­
dando nossas referências anteriores a Kepler, Galileu e Newton. A
hipótese de Newton da gravitação universal, junto com suas três
leis do movimento, tiveram maior poder explicativo e de predição
do que as hipóteses de Kepler ou Galileu. Tiramos esta conclusão
baseando-nos no fato de que a hipótese de Newton permitiu aos
cientistas explicarem e predizerem tudo o que foi explicado e pre­
dito por Kepler e G alileu, e muito mais.
Simplicidade. Este critério da ciência moderna é diretamente
atribuível ao estudioso medieval Guilherme de Occam (veja box
sobre Guilherme de Occam neste Capítulo.) Em sua versão mo­
derna, o princípio de Occam de economia - a navalha de Occam,
1 6 6
LAW R E N C E T. M c H A R G U E
como é muitas vezes chamado - diz que se duas hipóteses são
igualmente relevantes aos fatos, testáveis e compatíveis com as
hipóteses previamente bem estabelecidas, então a mais simples
das hipóteses deve ser preferida sobre a mais complexa.14
Quando formulada, a hipótese, ou parte dela, é testada experi­
mentalmente. Visto que testar jaz no coração do método científi­
co, o desígnio experimental é criticamente importante. No desíg­
nio experimental mais simples e mais direto, uma experiência ade­
quadamente controlada tem de ter dois sujeitos: um sujeito con­
trole e um sujeito experimental. Todas as variáveis, permanecem
as mesmas para ambos, com exceção de uma variável que é mani­
pulada no sujeito experimental. Os cientistas tomam nota do efei­
to da mudança naquela variável. As melhores experiências são
projetadas de forma que, mudando uma variável, venha a testar a
hipótese. Se os resultados de manipular a variável escolhida são
incompatíveis com a hipótese, a hipótese é rejeitada. É mantida
(embora não necessariamente de todo aceita) se os resultados ex­
perimentais obtidos seguirem um padrão predito para isso. Como
acompanhamento, os cientistas executam experiências adicionais
para testar a validade de uma hipótese.
Antes de concluir nossa breve descrição do método científico,
temos de tratar de dois tópicos adicionais: a lei da natureza e a
teoria científica.
A lei da natureza• A expressão lei da natureza (também cha­
mada lei científica ou lei experimental) é amplamente usada, mas
não tem uma definição técnica precisa. Até os cientistas e filóso­
fos da ciência não chegaram a um consenso sobre seu uso exato.
Entretanto, alguns pontos gerais ainda podem ser feitos. Prim eiro,
concorda-se que a expressão é aplicada a uma considerada classe
de declarações universais, que têm a ver com os eventos na natu­
reza.15Assim , como o nome sugere, as leis da natureza são sobre
os fenómenos naturais e não sobre os fenómenos lógicos ou mate­
máticos. Segundo, uma lei da natureza enuncia alguma ordem sis­
temática em que subjaz os eventos naturais. Em outras palavras,
uma lei da natureza enuncia um padrão que, caso contrário, pode­
ria parecer eventos sem conexão. Terceiro, uma lei da natureza
expressa um padrão que se estende além dos dados imediatos de
uma série de experiências; formula algo universal. Finalmente,
uma lei da natureza é elástica.
O que isto significa pode ser melhor explicado notando que as
leis da natureza ficam incorporadas na estrutura de uma teoria in ­
clusiva. Mas também quando isto acontece, não perdem necessa­
riamente a singularidade ou distinguibilidade do seu poder
explicativo e de predição. Por isso frequentemente sobrevivem ao
desaparecimento da teoria maior e acham lugar dentro da estrutu­
ra da teoria sucessora. Neste sentido, pode-se dizer que são elásti­
cas. Como ilustração, o século X X viu o desaparecimento da teo­
ria newtoniana geral do universo. Ao mesmo tempo, as três leis de
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
1 6 7
Newton sobre movimento ainda são comumente aceitas como vá­
lidas para a maioria das áreas da física.
Teoria. O termo teoria é muitas vezes mal compreendido por
aqueles que têm pouca familiaridade direta com a ciência. Por
exemplo, uma interpretação equivocada comum entre os não es­
pecialistas fora da comunidade científica, é que uma teoria é ape­
nas uma especulação fantasiosa, uma idéia moderna ou a suposi­
ção desapoiada de alguém. De fato, nos círculos científicos, dizer
que uma explicação alcançou o status de uma
teoria é dizer algo bastante significativo a res­
peito. Na ciência, uma teoria possui poder
As pressuposições importantes que
explicativo e de predição muito mais amplo do
subjazem na ciência natural são as
que uma hipótese ou uma lei da natureza. Uma
relacionadas com o método da
teoria científica fornece uma perspectiva vasta
ciência em si.
do mundo natural, que faz muito mais que des­
crever como funciona.
Hipóteses e leis podem ser enunciadas em
uma única proposição ou fórm ula matemática. As teorias, ao
contrário, são normalmente expressas em várias declarações
relacionadas que são mais gerais e inclusivas. A s teorias cien­
tíficas mais inclusivas reúnem considerável variedade de leis
experimentais e dados discrepantes em um todo coerente. Po­
dem fazer isto, porque são modelos essencialmente explicativos
(com frequência, matemáticos) para lig ar as leis da natureza
umas com as outras, e para vastas quantidades de dados que
abrangem dados previamente inexplicáveis. É certo que as teo­
rias científicas estão sujeitas a confirm ar ou descontinuar a evi­
dência em pírica. Mas pelo fato de serem modelos essencial­
mente explicativos que se espera se relacionem com larga vari­
edade de fenómenos, são também julgados com base em sua
com preensibilidade, coerência global e poder de predição.
Pressuposições Básicas que Subjazem na Ciência
Uma pressuposição é algo dado por certo em uma discussão,
argumento ou campo de investigação. Considerando que as pres­
suposições formam os pontos iniciais da argumentação em qual­
quer disciplina, não são em geral os objetos de prova. Contudo,
sua presença é importante porque afetam tanto a maneira na qual
as atividades em uma disciplina são executadas, quanto as conclu­
sões que serão obtidas. A s vezes, na verdade, determinam os re­
sultados dos processos do pensamento em uma disciplina.
As pressuposições importantes que subjazem na ciência natu­
ral são as relacionadas com o método da ciência em si. Estas pres­
suposições são comuns a todos os cientistas, cristãos ou não-cristãos. Aqui mencionaremos com brevidade três das pressuposições
mais importantes que subjazem no método científico.
A ordem na natureza. A aplicação do método científico presu­
168
LA W R E N C E T. M c H A R G U E
me que as coisas no universo comportam-se de um modo ordena­
do. A ordem mostra-se em padrões e regularidades que podem ser
descobertos. Se a suposição da ordem na natureza estiver correta,
a natureza será inteligível e sujeita a investigação. Se estiver incorreta, o empreendimento científico sucumbe.
A uniformidade na natureza. A pressuposição da uniformida­
de significa que as leis da natureza são válidas sobre o universo
inteiro no espaço e no tempo. Por exemplo, presumimos que os
instrumentos enviados para o espaço sideral,
muito distante de nossos ambientes fam iliares
É concepção popular errónea que
na terra, operarão e nos mandarão de volta da­
determinado evento pode ter sido o
dos fidedignos, porque nossos princípios de
resultado de qualquer número de
física e química serão os mesmos para onde
quer que os enviemos. Assim como na pressu­
causas alternativas.
posição da ordem na natureza, a pressuposi­
ção da uniformidade não pode ser estabelecida
conclusivamente. Não obstante, seria impossível administrar es­
tudos significativos, se a natureza fundamental do universo vari­
asse de lugar para lugar.
A singularidade das causas. Trata-se de pressuposição funda­
mental no estudo da natureza que os eventos não ocorrem espon­
taneamente, mas apenas sob certas condições. Um tipo de condi­
ção é a condição necessária: uma circunstância em cuja ausência
o evento não pode acontecer. O oxigénio é uma condição necessá­
ria para a combustão, visto que na ausência de oxigénio não pode
haver combustão. Outro tipo de condição é a condição suficiente:
uma circunstância em cuja presença certo evento tem de aconte­
cer. O oxigénio sozinho não é condição suficiente para que a com­
bustão ocorra. Contudo, quando virtualmente qualquer substância
é elevada a certa temperatura lim iar na presença de oxigénio, a
combustão (ou outra forma de oxidação) ocorre.16
A ssim , a substância que alcança a temperatura lim iar na pre­
sença de oxigénio constitui a condição suficiente para a com­
bustão daquela substância. Claro que é possível haver várias,
até muitas condições necessárias para a ocorrência de um even­
to. Além disso, todas estas condições necessárias devem ser
inclusas na condição suficiente para o evento. Mas o que
tudo isso nos diz sobre as causas e efeitos na natureza? Sim ­
plesmente isto : Se identificam os a causa com a condição su­
ficiente e consideram os a condição suficiente para um even­
to como a conjunção de todas as condições necessárias para
aquele evento, então somos levados à conclusão de que há
uma causa única para cada efeito. C laro que singularidade
não im plica em sim plicidade. A causa pode ser bastante com­
plexa e envolver numerosos fatores. Mesmo assim , a pressu­
posição prevalecente entre os cien tistas é que existe só
um único conjunto de fatores que pode produzir o efeito em
questão.
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
A pressuposição da singularidade das causas parece contraintuitiva para muitos. De fato, é concepção popular errónea que
determinado evento pode ter sido o resultado de qualquer número
de causas alternativas. A morte de alguém, especulamos, poderia
ter sido o resultado de envenenamento, ataque de coração, aciden­
te de automóvel, ferimento produzido por bala. Então, por que
assume uma causa única? Porque, dirão os cientistas, se sujeita­
mos um efeito (a morte do sujeito, digamos) a escrutínio cuidado­
so, e se especificamos esse efeito com precisão, a suposta plu­
ralidade de causas evaporará e encontraremos a causa única.
O Âmbito e os Limites da Ciência Natural
Apresentar razões que sustentam que a ciência moderna nos
afetou de maneira muito profunda, de longo alcance e benéfica, é
fácil. Para começar, desde seu nascimento na Renascença, a ciên­
cia moderna tem introduzido um grau de precisão e foco no co­
nhecimento humano que se desconheciam nos períodos clássico e
medieval. Especificamente, nos proporcionou a capacidade de res­
ponder a certos tipos de questões com grau alto de probabilidade.
Como ilustração simples, podemos indicar os caminhos em que
os cientistas construíram um argumento, pois se sabe que desde
fins da década de 1950 o uso de tabaco é prejudicial ao usuário.
Usado como indicado, pode ser letal. Quando o primeiro relatório
do diretor nacional de saúde americano foi lançado no início da
década de 1960, os representantes da indústria tabaqueira insisti­
ram que as evidências contra o uso do tabaco eram escassas e
equivocadas.17Mas a pesquisa científica contínua, feita durante as
décadas seguintes, levou o debate muito além do âmbito da conjetura e especulação. Hoje até os mais ardentes porta-vozes da in­
dústria tabaqueira não disputam as conclusões científicas sobre os
efeitos prejudiciais do tabaco em seus usuários.
A ciência moderna também permitiu e facilitou aplicações com
as quais dificilm ente alguém poderia ter sonhado. A ficção cientí­
fica das décadas de 1940 e 1950 parece hoje exótica e humoristi­
camente prim itiva comparada com as conquistas e avanços de hoje.
Os progressos na tecnologia dos computadores, a facilidade e se­
gurança das viagens, as redes de comunicação mundiais intensifi­
cadas, o controle e erradicação de muitas doenças transm issíveis,
os melhoramentos dos produtos médicos e farmacológicos, que
prolongam a vida e melhoram sua qualidade - estes e miríades de
outros exemplos demonstram o poder da ciência moderna em afetar amplamente nossas vidas pelo conhecimento específico e a
tecnologia que o torna possível.
O poder da ciência moderna está diretamente relacionado com
a aplicação rígida do seu método, sua abordagem quantitativa à
natureza e seu enfoque tacanho nos processos das causas eficien­
tes (mecânicas) dos eventos na natureza. Mas estas fontes do seu
1 6 9
1 7 0
LA W R E N C E T. M c H A R G U E
poder também implicam em certas limitações notáveis. Mencio­
naremos sucintamente três delas aqui. Todas se relacionam com a
incapacidade da ciência de fornecer a direção última para suas
próprias atividades.
A primeira limitação pode ser obtida considerando a história
da ciência. É tentador ver a história da ciência moderna na quali­
dade de produtora de um corpo de conhecimentos coerente, inter­
ligado e continuamente em expansão. Nossa descrição anterior
dos desenvolvimentos na ciência desde a Re­
nascença
pode até implicitamente apoiar este
O ponto a salientar aqui é que o
quadro. Infelizm ente, o quadro é falho e enga­
método científico não determina noso. O que passa sob o nome de progresso na
na verdade, não pode determinarciência na verdade expõe uma limitação im ­
portante
da ciência. Esta lim itação é captura­
os fins da ação humana.
da sucintamente no ditado de que o insight é
ganho, mas não guiado. Embora haja lógica e
um conjunto de procedimentos para testar as hipóteses científicas,
nada existe para concebê-las.18 A visão confiantemente expressa
por Francis Bacon no início do século X V II de que o progresso na
ciência pode ser quase um processo mecânico é seriamente ilusó­
ria. Quando revisamos o registro histórico, logo descobrimos que
as descobertas científicas - grandes e pequenas - não são todas
produto de alguma abordagem formulativa única. Antes, emergi­
ram tipicamente por um processo no qual as pessoas de julgamen­
to perceptivo adaptaram uma possível explicação e os dados, fize­
ram revisões e modificações onde necessário, e desenvolveram
testes para confirmar (ou não confirmar) suas hipóteses.
Por quase cinco anos, Kepler examinou cuidadosa e atenta­
mente as observações de Tycho Brahe antes de descobrir a forma
de uma elipse em seu diagrama.19 Somente depois de trinta e qua­
tro anos de pesquisa incansável é que Galileu sentiu-se confiante
em sua hipótese sobre aceleração constante.
A segunda lim itação está relacionada com a prim eira, mas
mostra-se mais proeminentemente no modo como as principais
mudanças nas disciplinas científicas acontecem. A limitação em
questão pode ser descrita na qualidade de um tipo de miopia cien­
tífica ou visão afunilada que ocorre numa comunidade de cientis­
tas, que administram sua pesquisa dentro da estrutura de modelos
comumente aceitos para resolver os problemas em sua disciplina.
Claro que a certo nível (o nível das operações cotidianas) pressu­
posições compartilhadas e técnicas compartilhadas de solução de
problemas são benéficas, até necessárias, se os cientistas querem
fazer progresso em seu trabalho.
Mas em outro nível (global), eles também podem propor lim i­
tações e restrição na comunidade de cientistas que vivem e traba­
lham por eles. Por exemplo, eles podem impor uma visão estreita
do problema ou disfarçar possíveis soluções para o problema. Em
tal caso, o progresso na disciplina pode depender de alguém de
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
fora da disciplina desafiando as pressuposições comumente acei­
tas, e oferecendo um modelo radicalmente diferente para continu­
ar a pesquisa no campo.
Numa obra hoje clássica intitulada A Estrutura da Revolução
Científica, Thomas Kuhn descreve divergências radicais dos mo­
delos científicos tradicionais como revoluções científicas.20 Os
modelos em si (inclusive pressuposições, leis, teoria, aplicação e
instrumentação), ele os chama de paradigmas. A migração ou tran­
sição de um modelo consagrado pelo tempo para um modelo
novo, ele chama de troca de paradigma. A transição da física
aristotélica para a física newtoniana no in ício do período mo­
derno pesaria como uma troca de paradigma, à medida que
mudaria o século X X da física newtoniana para a teoria da re­
latividade de A lbert Einstein.
A transição radical de um modelo aceito a favor de um modelo
novo - o que Kuhn chama de revolução científica - não pode ser
predita nem planejada. Esta incapacidade de predizer ou planejar
mostra que a descoberta científica e o progresso científico em ge­
ral, não é um processo tão ordeiro, extremamente preciso ou line­
ar como o leigo poderia supor. E o fato de que a descoberta e o
Albert E in stein ( 1879-1955), ale­
mão de nascimento e naturalizado
cidadão americano (1940), é reconhe­
cido como um dos maiores físicos
teóricos de todos os tempos. Em
1905, escreveu um documento no
qual desenvolveu sua teoria especial
da relatividade, que tratou de siste­
mas ou observadores em movimento
uniforme (não acelerado) em relação
um ao outro. Em 1911, afirmou a
igualdade da gravitação e inércia e,
em 1916, formulou uma teoria geral
da re la tiv id a d e , que in c lu ía a
gravitação como determinador da cur­
vatura de um continuum espaço-tem­
po. Também fez contribuições impor­
tantes para a teoria moderna dos
quanta. Por seu trabalho na física te­
ó ric a , notavelm ente no efeito
fotoelétrico, Einstein foi premiado em
1921 com o Prémio Nobel de Física.
Em 1914, Einstein ocupou a posi­
ção de professor de física e diretor da
fís ic a teórica no K a ise r W ilhelm
Institute, em Berlim . Porque era
judeu, o governo anti-semítico
nazista da Alemanha confiscou
em 1934 sua propriedade e re­
vogou sua cidadania alemã. De
1933 até sua morte em 1955,
manteve um cargo no Instituto
de Estu d o s A vançad os em
P rin c e lo n . Seu tempo em
Princeton foi dedicado em gran­
de parte a desenvolver uma teo­
ria de campo unificada, de acor­
do com a qual ele esperava explicar a
gravitação e o eletromagnetismo com
um conjunto de leis. Não foi bem-su­
cedido em sua tentativa, e hoje m ui­
tos físico s proeminentes acreditam
que, a princípio, tal tarefa não pode
ser realizada.
171
1 7 2
L A W R E N C E T. M c H A R G U E
progresso não são graduais e previsíveis, mas interm itentes e às
vezes arbitrários e acidentais, expõe uma das principais lim ita­
ções no método científico.
A primeira e segunda limitações apontam para uma terceira
lim itação: O método científico não pode nem garantir o progresso
em direção a um corpo completo e compreensivo de conhecimen­
to científico, nem corretamente tratar certos tipos de questões.21
Especificamente, o método científico moderno carece da capaci­
dade de avaliar ou explicar que assuntos devem ser tratados. Nes­
te sentido, a ciência moderna não pesa como uma cosmovisão pelo menos não no sentido densamente estruturado descrito no
Capítulo 1. Por exemplo, não expressa ideologia clara e impressi­
onante. Não nos pode dizer o que é merecedor de atenção, a que
devemos aspirar ou o que esperar, e o que finalmente importa na
vida.
O método científico, por exemplo, não nos pode dizer que ti­
pos de tecnologia desenvolver, nem como aplicar a tecnologia que
já foi desenvolvida. Eu ando com duas pernas artificiais. As cane­
las e os encaixes de minhas pernas artificiais são feitas de um
material de carbono-grafite leve e tecnicamente sofisticado, de­
senvolvido por químicos. Eu estaria impossibilitado de andar como
ando hoje se estivesse vivendo um século antes com os níveis de
tecnologia decididamente mais baixos. Naturalmente, sou grato
porque os avanços na ciência aplicada melhoraram a qualidade de
minha vida pessoal. Mas o método científico em si não ditou a
aplicação do conhecimento para este fim benéfico. Pessoas com
uma visão mais ampla do que é possível e importante desenvolve­
ram produtos que melhoraram minha vida. Dirigidas por motivos
e objetivos diferentes, da mesma maneira elas bem poderiam ter
produzido dispositivos tecnológicos contrários aos meus interes-
ie c itó & r tiO '
A convicção de que podemos alcançar a
verdade última por meio do método científi­
co é conhecida por cientismo ou imperialis­
mo científico. O cientismo afirma que a c i­
ência é o modelo primário da racionalidade.
Muitos defensores do cientismo são franca­
mente hostis à religião em geral, e ao cristi­
anismo em particular.
Para tratamento adicional do cientismo,
consulte as seguintes obras:
J. P. M oreland, Christianity and the
Nalure o f Science (Grand Rapids: Baker
Book House, 1989), pp. 103, 104.
David N. Livingstone, “ Farewell to Arms:
R eflectio n s on the Encounter Between
Science and Faith” , in: Chrislian Faith &
Practice in the Modern World, editores Mark
A . N oll e David F. W ells (Grand Rapids:
W illiam B . Eerdmans Publishing Company,
1988), pp. 239-262.
Mary Midgley, “Can Science Savelts Soul?” ,
New Scientist, volume 135,1992, pp. 24-27.
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
ses ou aos de outrem. O ponto a salientar aqui é que o método
científico não determina - na verdade, não pode determinar - os
fins da ação humana. Tais fins são grandemente determinados pe­
las cosmovisões que os seres humanos, inclusive os cientistas,
subscrevem.
De modo mais geral, o método científico não nos pode dizer
que tipos de políticas sociais devem ser promulgados. Na década
de 1960, o sociólogo George Lundberg fez esta pergunta funda­
mental: A ciência pode nos salvar?22 Sua própria resposta à peígunta foi que o método científico, aplicado a todos os problemas
sociais, representa nossa melhor esperança de alcançar a melhor
sociedade que todos nós desejamos. Na época da publicação, cer­
to comentarista opinou que Lundberg tinha feito as alegações mais
contundentes que jam ais vira em favor de acreditar que a ciência
pode guiar o pensamento e a estrutura política de legisladores,
funcionários e outros que ocupam altos cargos. Apesar do otimismo do período em que o livro foi publicado, há pouca evidência
hoje de que qualquer coisa que a visão de Lundberg aborde seja
possível.23
O insight maior a ser deduzido das três limitações do método
científico discutido aqui é que a ciência não é autodeterminada.
Requer a superintendência de uma perspectiva predominante ou
estrutura de referência. Este tipo de perspectiva maior, como apren­
demos no Capítulo 1, é uma cosmovisão. O próprio método cien­
tífico não é uma cosmovisão. Contudo, empregá-la (ou o conheci­
mento adquirido por ele ou as aplicações ganhas por tal conheci­
mento) a determinados fins, ou metas, inevitavelmente pressupõe
uma cosmovisão.
Conclusão
Fechamos o círculo das reflexões e questões apresentadas no
início deste capítulo. Revisamos alguns dos pontos de toque notá­
veis na história da ciência, desde seu começo na Grécia antiga até
o aparecimento do método científico moderno durante a Renas­
cença e período moderno in icial. Também descrevemos o método
científico moderno e algumas das pressuposições chaves que
subjazem na prática atual das ciências empíricas. Finalmente, exa­
minamos o âmbito e os lim ites da ciência. O que aprendemos que
se relacione com o centenário aparecimento de um conflito entre a
prática da ciência empírica moderna e a vida de fé? E o que apren­
demos que se relacione com o desejo de meu amigo responder a
chamada de Deus para sua vida abraçando uma carreira como ci­
entista?
A história da ciência nos mostra que as ciências clássica e me­
dieval eram teleológicas em orientação. Eram dominadas por um
interesse nos propósitos dos objetos e eventos naturais. Mas os
propósitos não são necessariamente manifestos sem demora nos
1 7 3
"A função de estabelecer
metas e exprimir
declarações de valor
transcende o domínio da
ciência"
— Albert Einstein
1 7 4
L A W R E N C E T. M c H A R G U E
fenómenos naturais, e os pensadores cujas investigações são ori­
entadas no sentido de achar tais propósitos correm o risco de im­
por suas próprias pressuposições e expectativas nas coisas que
investigam. Durante os períodos clássicos e medievais, a preocu­
pação em descobrir propósitos teve o efeito prático de impedir
que a descoberta científica impusesse certas pressuposições filo ­
sóficas e teológicas nos processos da descoberta. As investiga­
ções tenderam a se basear na argumentação dos primeiros princí­
pios (cujas fontes eram filosóficas e teológicas) em vez de nas
análises matemáticas dos dados empíricos.
Os pensadores e médicos europeus, que na Renascença e perí­
odo in icial moderno começaram a enunciar o método moderno da
ciência, eram principalmente pessoas de fé. Mas eles reconhece­
ram que o progresso nas ciências empíricas lhes exigia que remo­
vessem de suas investigações toda a conversa teleológica. Conseqiientemente, buscaram limitar-se a medidas de quantidades como
velocidade, massa e tempo; cálculos baseados em observações e
experiências; e descrições em fórmulas matemáticas generaliza­
das. Em vez de procurar causas finais, eles restringiram suas in­
vestigações às causas eficientes (mecânicas).
Para indivíduos como Newton, a nova ênfase em formular em
termos matemáticos as leis que descrevem os mecanismos da na­
tureza não implicou numa rejeição completa da teleologia, apenas
uma rejeição de sua aplicação na investigação empírica da nature­
za. Nem para eles a nova ênfase na ciência implicou que a ciência
poderia responder a todas as perguntas. A ciência, na avaliação
deles, representou uma perspectiva nos fenómenos naturais. De­
clararam que ela não ofereceu nem a única nem toda explicação
da natureza, mas apenas um modo de explicação (ainda que im ­
portante). Neste sentido, suas reivindicações em favor da ciência
permaneceram relativamente modestas.
Alguns dos sucessores de Newton no século X V III em diante
foram menos resguardados. Eles não só seguiram Newton em obliterar
as explicações teleológicas das investigações empíricas, mas foram
mais longe, obliterando-as de todas as considerações da cosmovisão.
Deduziram que se o método científico não pode descobrir os propósi­
tos, então os propósitos não devem existir (exceto, talvez, na mente
dos seres humanos). Em suma, fundiram suas visões concernentes à
prática da ciência empírica em uma cosmovisão completamente na­
turalista e mecanicista. Como seria evidente de nossa discussão até
aqui, esta fusão não é nem necessária para a ciência, nem inevitá­
vel de um ponto de vista filosófico mais abrangente.
Aqui temos de nos voltar uma vez mais aos conhecidos cris­
tãos de meu amigo, que lhe exortaram a abandonar seus planos de
buscar uma carreira na ciência. De certo modo, eles estavam fa­
zendo o mesmo movimento lógico que os naturalistas do século
X V III: Pelo fato de o método da ciência empírica não nos permitir
investigar os propósitos, esses cristãos inferiram que necessária e ine­
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
175
vitavelmente conduz a uma cosmovisão naturalista. E se a prática da
ciência leva a pessoa ao naturalismo, prossegue a argumentação, en­
tão seguramente os cristãos devem afastar-se disto. Mas este movi­
mento para fundir a ciência empírica e a posição filosófica maior do
naturalismo não está mais garantido para os cristãos de hoje do que
estava para os naturalistas do século X V III.
Quando separamos a ciência empírica de uma cosmovisão na­
turalista, não temos nenhuma razão para considerar a pesquisa c i­
entífica de modo diferente do que trabalhamos
em qualquer outra vocação. O indivíduo sem­
Embora a ciência não possa
pre deve estar em guarda para os modos sutis
desenvolver ou verificar os
que a cosmovisão e a integridade pessoal po­
princípios morais, considerações
dem ser compromissadas. E embora a ciência
não possa desenvolver ou verificar os princípi­
morais nunca podem ser evitadas
os morais, considerações morais nunca podem
pelo cientista praticante.
ser evitadas pelo cientista praticante, porque
os assuntos morais permeiam toda profissão e
todo empenho humano. Tendo dito isto, não
temos razão para considerar a prática da ciência menos nobre do
que qualquer outra vocação. “Do SEN H O R é a terra e a sua pleni­
tude” , e nós somos Seus filhos. Se E le pode chamar alguns para
pregar o Evangelho, construir casas, escolas, templos, atender as
necessidades dos pobres, escrever literatura, poesia e música ex­
celentes, então com certeza E le pode chamar outros para estudar
sua criação.
Mas também, de um ponto de vista moral baseado na Escritura, o
estudo da natureza parece uma busca legítima para o cristão. Talvez
num sentido mais amplo possamos até considerar o estudo da nature­
za como algo de exigência ética para qualquer cristão no mundo de
hoje. Génesis 1.26-30 é frequentemente citado como o mandamento
cultural para exercermos domínio sobre a terra e, assim, sermos fiéis
ao Criador a cuja imagem somos criados.24 De um ponto de vista
moral, o exercício do domínio em todas as suas ramificações requer
mordomia. (Veja o tratamento que Volf deu sobre este assunto no
Capítulo 6.) Dadas as questões ecológicas que nos defrontam em um
ambiente frágil, e dadas as necessidades médicas e nutricionais pre­
mentes de tantas pessoas ao redor do mundo hoje, a mordomia segu­
ramente requer que entendamos o mundo natural sobre o qual deve­
mos exercer domínio. Se isto é assim, quase não deveríamos ficar
surpreendidos que alguns cristãos sejam chamados a profissões como
cientistas de pesquisa, ou que todo cristão tenha um pouco da respon­
sabilidade de pelo menos adquirir uma compreensão científica básica
do mundo natural em que nós humanos habitamos.25
Revisão e Questões para Discussão
1.
Por que é importante o pensamento de filósofos gregos antigos
na área da ciência natural? Por que os estudantes ainda o estudam hoje?
1 7 6
L A W R E N C E T. M c H A R C U E
2. De que modo o pensamento de Aristóteles dominou a ciên­
cia natural na Europa durante a Idade Média?
3. Que fatores ou eventos causaram mudanças importantes no
pensamento europeu sobre a ciência natural?
4. Em que ordem as várias disciplinas que se preocupam com a
realidade física desenvolveram-se até o tempo presente? Por que
seguiram essa sequência de desenvolvimento? Foi por causa da
natureza das disciplinas em si ou por causa de outros fatores?
5. O que os primeiros cientistas modernos pensavam sobre a
terra e o universo? Como a convicção deles em Deus e nas E scri­
turas afetou o trabalho que fizeram?
6. Por que o uso da observação e experimentação por investiga­
dores foi tão importante para formar a base da ciência moderna?
7. Por que Galileu, Bacon e Newton foram tão importantes no
desenvolvimento das ciências empíricas?
8. Como o clim a intelectual do iluminismo do século X V III
afetou a ciência natural? De que modo o pensamento que era tão
dominante durante aquele século ainda hoje afeta a ciência natu­
ral? Explique.
9. O que é método científico? Que implicações os insights de
Thomas Kuhn sobre as revoluções científicas e paradigmas têm
com nossa compreensão do método científico?
10. Desenvolva um argumento a favor ou contra a seguinte
declaração: Havendo tempo e pesquisa suficientes, as ciências
empíricas podem atingir uma explicação completa de todos os
aspectos da realidade.
1 1 .0 que é pressuposição? Quais são algumas das pressuposi­
ções da ciência natural?
12.
Desenvolva um argumento a favor ou contra a seguinte
declaração: As pressuposições básicas da ciência natural estão em
conflito com algumas das pressuposições básicas do cristianismo.
Projetos Sugeridos para Reflexão
1. Galileu foi censurado pelas autoridades da Igreja e forçado
a negar algumas de suas conclusões científicas. Que lições para os
cristãos de hoje podem ser compiladas da confrontação entre
Galileu e os que o censuraram? Antes de responder este tópico,
talvez seja sensato fazer alguma pesquisa na biblioteca de sua c i­
dade e revisar o registro histórico dos eventos dos dias de Galileu.
2. Na última parte deste capítulo, o autor se refere a algo cha­
mado mandamento cultural. Explique este mandamento com mais
detalhes e desenvolva mais acerca de suas implicações para uma
visão cristã das ciências naturais.
3. Escolha um dos seguintes tópicos e explique como o cristão
pode lidar com o tópico escolhido, levando em conta as conside­
rações desenvolvidas neste capítulo: milagres, a teoria da evolu­
ção, a alma humana, o desmatamento das florestas tropicais.
O C R IS TÃ O E A C IÊ N C IA N A T U R A L
Bibliografia Selecionada
B A R B O U R , Ian G. Religion in anAge ofScience. The Gifford
Lectures 1989-1991, volume 1. São Francisco: Harper & Row
Publishers, 1990. Este é um tratamento altamente erudito sobre
teologia e ciência. Os evangélicos podem discordar de algumas
das idéias de Barbour, mas é um tratamento pensativo sobre o
assunto.
B E H E , M ichael J. Darw in’s Black Box: The Biochemical
Challenge to Evolution. Nova York: Free Press, 1996. Esta obra,
escrita por um bioquím ico, argumenta que certos sistem as
bioquímicos são irredutivelmente complexos e, portanto, não po­
dem ter surgido gradualmente de certa maneira neodarwinista. Behe
alega que estes sistemas indicam desígnio inteligente e, por im pli­
cação, um Arquiteto, um Designer.
C L A R K , Gordon H . “The Lim its and Uses of Science” . In:
Horizons o f Science: Christian Scholars Speak Out, editor C ari F.
H . Henry. Nova York: Harper & Row Publishers, 1988. Esta é
obra digna de nota, escrita por um filósofo cristão.
C LO U S ER , Roy A . The Myth o f Religious Neutrality. Notre
Dame: University of Notre Dame Press, 1991. Esta é obra interes­
sante, que considera diversas atividades académicas, inclusive
matemática e física. Clouser conclui que todo pensamento huma­
no é influenciado pelas pressuposições e entendimentos religio­
sos, quer sejam ou não reconhecidos.
D A W K IN S, Richard. The Blind Watchmaker. Nova York:
Norton Publishers, 1986. Dawkins faz alegações contra qualquer
possibilidade de desígnio na natureza. E le é fortemente contrário
a qualquer idéia de criação ou desígnio.
K U H N , Thomas. The Structure o f Scientific Revolutions. 2.a
edição, ampliada. Chicago: University of Chicago Press, 1970.
Este livro é atualmente considerado um clássico sobre a filosofia
da ciência.
LIN D B E R G , David C ., e N U M BER S, Ronald L ., editores. God
and Nature, H istorical Essays on the Encounter between
Christianity and Science. Berkeley, C alifó rn ia: U niversity of
Califórnia Press, 1986.
M O R ELA N D , I . P. Christianity and the Nature o f Science.
Grand Rapids: Baker Book House, 1989. Excelente obra de valor
sobre a filosofia da ciência, escrita por um evangélico.
P E A R C E Y , Nancy R ., e TH A X TO N , Charles B . The Soul o f
Science: Christian Faith and Natural Philosophy. Wheaton,
Illin o is: Crossway Books, 1994. Este livro é excelente e, talvez,
de certa maneira, o melhor desta lista. Foi bem escrito e pode ser
entendido prontamente com certa concentração. Engloba mate­
mática, ciência física e biologia.
R A TZSC H , D el. Philosophy o f Science: The Natural Sciences
in Christian Perspective. Downers Grove, Illin o is: InterVarsity
1 7 7
1 7 8
L A W R E N C E T. M c H A R G U E
Press, 1986. Trabalho proveitoso que considera a ciência de um
ponto de vista cristão.
R O TH SC H ILD , Richard C . The Emerging Religion o f Science.
Nova York: Praeger Publishers, 1989. Esta é obra que todo cristão
tem de discordar profundamente, mas vale a pena ser lida, porque
representa muito bem o pensamento de alguém treinado em ciên­
cia física que crê que não há realidade últim a além dos fenómenos
físicos.
W R IG H T, Richard T. Biology through the Eyes o f Faith. São
Francisco: Harper & Row Publishers, 1989. Livro publicado para
a Christian College Coalition (hoje conhecida por Coalition for
Christian Colleges and U niversities). O trabalho representa esfor­
ço notável em abordar a necessidade do estudante cristão de bio­
logia de alinhar a ciência e a fé.
Notas bibliográficas
1. A discussão primária de Aristóteles de causas ou fatores
explicativos (grego, aitiai) pode ser encontrada em suas obras
Metafísica (Volume V II) e Física (Volume II). Para discussão adi­
cional, veja George Sarton, A History o f Science, volume 1,Ancient
Science through the GoldenAge ofGreece (Nova York: lohn W iley
& Sons, Incorporated, 1964).
2. Lo ren W ilk in so n , ed itora, Earthkeeping, C hristian
Stewardship o f Natural Resources (Grand Rapids: W illiam B .
Eerdmans Publishing Company, 1980), p. 109.
3. Esta declaração aplica-se com precisão ao campo da física.
Na biologia, as explicações teleológicas não foram suplantadas
até o século X IX .
4. Nancy R . Pearcey e Charles B . Thaxton, The Soul o f Science,
Christian Faith and Natural Philosophy (W heaton, Illin o is :
Crossway Books, 1994), pp. 126-128.
5. O efeito deste novo raciocínio foi desm itificar a natureza e
dar permissão para examinar a criação em busca de causas. Para
discussão adicional sobre este ponto, veja Paulos Mar Gregorios,
Science fo r a Sane Society (Nova York: Paragon House, 1987), p.
173. S ir W illiam C ecil Dampier, A History o f Science and Its
Relations with Philosophy and Religion (Cambridge: Cambridge
University Press, 1968), pp. 319, 459.
6. Para Bacon, o objetivo do empenho científico era a conse­
cução de conhecimento que pudesse ser posto em uso prático. O
ímpeto em adquirir conhecimento científico devia exercer poder
sobre a natureza. Veja W ilkinson, Earthkeeping, pp. 131-134.
7. W ilkinson, Earthkeeping, pp. 124-128; M ar Gregorios,
Science fo r a Sane Society, p. 173.
8. Thomas F. Torrance, The Christian Frame ofM ind (Colorado
Springs, Colorado: Helmers & Howard, 1989), p. 46.
9. M argaret C . Jacob, “ C h ristia n ity and the Newtonian
W orldview ” , in : God and Nature, Historical Essays on the
O CRISTÃO E A CIÊNCIA NATURAL
Encounter between Christianity and Science, editores David C.
Lindberg e Ronald L . Numbers (Berkeley: University of Califórnia
Press, 1986), pp. 246-249.
10. Pearcey e Thaxton, The Soul o f Science, p. 93.
11. Durante o tempo do surgimento da ciência moderna, quan­
do a ciência começou a apresentar resultados fidedignos, filóso­
fos e cientistas reconheceram que ambos os elementos eram ne­
cessários. Contudo, não concordaram em exatamente como os dois
elementos contribuem para a formação do conhecimento científi­
co. De fato, os teoristas de hoje ainda não alcançaram nenhum
consenso firme sobre este assunto.
12. Stephen To u lm in , The P hilosophy o f Science, An
Introduction (Nova York: Harper & Row Publishers, 1960), p. 66.
13. Irving M . Copi e C ari Cohen, Introduction to Logic, 10.a
edição (Upper Saddle River, Nova Jersey: Prentice-Hall, 1998),
p. 547.
14. Para uma discussão sobre as dificuldades associadas com o
critério de simplicidade, veja Copi e Cohen, pp. 548-552.
15. Os cientistas do século X IX pensavam que a natureza era
governada pela “le i” . Sua concepção de lei levou-os a crer que sua
tarefa primeira como cientistas era “ descobrir” e registrar todas as
“ leis da natureza” . Centenas destas leis daquele período podem
ser encontradas impressas hoje. A maioria das leis “válidas” está,
atualmente, expressa em “princípios” ou “regras” , e os cientistas
já não acreditam mais que possam chegar a um relato completo e
satisfatório dos fenómenos naturais simplesmente acumulando-se
cada vez mais “leis” .
16. Há exceções a esta regra geral. Algumas substâncias são
inertes à reação com o oxigénio.
17. Investigações em meados da década de 1990 feitas por novas
organizações e comités congressionais indicam que os adminis­
tradores da indústria tabaqueira já tinham há várias décadas fortes
evidências dos males da saúde causados por seus produtos. Suas
declarações públicas durante as décadas de 1950 a 1980 carecem,
em muitos casos, de sinceridade ou eram simplesmente falsas.
18. Charles E . Hummel, The Galileo Connection, Resolving
Conflicts Between Science & The Bible (Downers Grove, Illin o is:
InterVarsity Press, 1986), p. 155.
19. Norwood Hanson, Patterns o f Discovery (Cambridge:
Cambridge University Press, 1961), pp. 72-84.
20. Thomas Kuhn, The Structure o f Scientific Revolutions, 2.a
edição, ampliada. (Chicago: University of Chicago Press, 1970).
21. Del Ratzsch, Philosophy o f Science, The Natural Sciences
in a Christian Perspective (Downers Grove, Illin o is: InterVarsity
Press, 1986), pp. 97-105.
22. George A . Lundberg, Can Science Save Us? 2.a edição
(Nova York: David M cKay Company, 1961).
23. De modo semelhante, Peter Atkins argumentou que pode­
1 7 9
180
LA W R E N C E T. M c H A R G U E
mos obter toda verdade e conhecimento por meio do método cien­
tífico. E le levanta a pergunta fundamental no título de uma de
suas publicações: “W ill Science Ever F a il?” (“A Ciência sempre
Falhará?” ) New Scientist, volume 135, 1833, pp. 321-335, 1992.
Atkins assevera que não há lim ite para se obter conhecimento pelo
uso da razão e do método científico. A tese de Atkins, como a de
Lundberg antes dele, parece otimista demais.
24. Richard T. W right, Biology Through the Eyes o f Faith (São
Francisco: Harper & Row Publishers, 1989), p. 169.
25. M ichael Palmer ajudou na organização e desenvolvimento
deste capítulo. Gary Lid d le, Professor Associado de Estudos B í­
blicos na Evangel U niversity, e Turner C o llin s, Professor de
Biologia na Evangel U niversity, leram e fizeram comentários
sobre o texto.
5
Uma
Perspectiva
Sobre a
Natureza
Humana
Billie Davis
1 8 2
BILLIE D A V IS
que toma as pessoas reais?”
“O que há com você? — perguntou papai em resposta à
minha pergunta.” “O que é que você quer dizer com ‘pessoas
reais’ ?”
“Pessoas que moram em casas — tentei explicar. — Pessoas
que ficam juntas nas cidades.”
Eu tinha expressado da maneira mais simples que uma criança
poderia expressar o quebra-cabeça humano básico.
Minha fam ília estava entre os americanos sem-teto originais,
hoje chamados trabalhadores migrantes. Nasci nos campos de lú ­
pulos do Oregon, e com as estações e os anos seguíamos as rotas
da colheita de frutas e verduras mais tarde conhecidas por “fluxos
de migrantes” . Vivíamos em tendas à beira dos campos, ou em
fila s de barracas de um compartimento só, fornecidas pelos
plantadores, ou às vezes em acampamentos governamentais estri­
tamente supervisionados. Sendo o primogénito e vivendo nestes
confins exíguos, conheci os detalhes mais íntimos da vida e eco­
nomia fam iliares. V i crianças nascendo, em geral sem a supervi­
são de atendentes. Lá em casa havia oito crianças além de mim, e
duas delas morreram bem diante dos meus olhos.
Eu sabia tudo sobre a Grande Depressão. Sabia que o suborno
corria solto no governo; que os ricos fazem os pobres trabalharem
até o lim ite da morte, e depois os chutam na boca; e que os pobres
de *7 M*viyirtatcd&de
Enquanto a necessidade de estar em as­
sociação com outros é básica para a nature­
za humana, algumas pessoas vivem em con­
dições sociais que as fazem sentir-se sepa­
radas de qualquer grupo. Para descrever este
tipo de alienação, Robert Park (1864-1944)
contribuiu com o termo marginal. Park foi
figura chave na faculdade de sociologia de
Chicago e co-autor, com Ernest W. Burgess,
do primeiro livro didático importante sobre
sociologia, Uma Introdução à Ciência da
Sociologia, 1921. Conforme seu interesse
permanente nas relações entre as raças, ele
manteve um cargo na Fisk , uma universida­
de de negros. Suas observações sobre as si­
tuações interculturais o levaram a caracteri­
zar como marginal a pessoa cuja experiên­
cia a impedia de ajustar-se completamente
em qualquer grupo social. Tais pessoas sem­
pre se acham na “ margem” , em vez de esta­
rem confortavelmente integradas. Podem se
sentir como estrangeiras em todos os lu ­
gares. O aspecto positivo de ser marginal
é que se pode observar os próprios e ou­
tros grupos com considerável objetividade. Por causa da separação pessoal, tais
indivíduos podem aprender a aceitar dife­
renças, desenvolver avaliações abrangen­
tes e fazer ajustamentos maduros. Alguns
estudiosos cristãos têm comparado isto a
“ estar no mundo e, contudo, não ser dele” .
Em bora os cristãos tenham um forte senso
de pertencer ao Corpo de Cristo (a Igreja
universal), eles têm de manter uma sepa­
ração crítica dos valores sociais que cons­
tantemente estão mudando.
O conceito de marginalidade foi inteira­
mente desenvolvido por um dos alunos de
Park, Everett Stonequist, no livro O Homem
Marginal ( 1961).
U M A PERSPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A 1 8 3
não têm nenhuma chance. Às vezes papai dizia que estava farto de
fazer o trabalho sujo dos ricos, por isso fabricávamos cestas de
salgueiro e flores de papel para vender. A primeiríssim a coisa da
qual me lembro é de estar vendendo cestas e flores. Papai diziame para começar por um lado da rua e voltar pelo outro depois de
percorrer toda a cidade, batendo de porta em porta e entrando em
todo estabelecimento comercial, dizendo: “ Gostaria de comprar
uma cesta? São 25 centavos cada” .
Mascatear cestas me fez ciente do padrão d e1 '
munidade povoada e o contraste entre isto e o ■
meu estilo de vida, vestuário, linguagem e con- ■ Meu modo de vida me fez ter o
dição global. Eu ouvi as pessoas nos chama- I
que os estudantes da sociedade
rem de “ciganos” , “migrantes” , “ andarilhos das
I
descrevem como experiência
frutas” , “peões” , “ errantes” e “ oakies” . A seI
paração era tão óbvia que comecei a conceber I
marginal.
a gente das cidades como pessoas reais.
■
Mascatear pelas ruas me deu consciência dos
—
edifícios e instalações especiais no padrão da cidade. Pouco a pouco
fui tomando conhecimento de uma vida onde havia escolas, igre­
jas, bibliotecas e parques, e comecei a entender que alguns eram
abastecidos pela cooperação da comunidade.
Perguntei: “O que toma as pessoas reais?” , porque eu tinha
sentido, provavelmente de modo mais profundo e depressa que a
maioria das crianças, os conceitos vitais de ser e pertencer a um
grupo. Meu modo de vida me fez ter o que os estudantes da soci­
edade descrevem como experiência marginal. Mudei-me para vá­
rios mundos e pude ver contrastes que estavam ocultos àqueles
cujas vidas eram mais ordenadas e previsíveis. Ficava a me per­
guntar por que eu era diferente das crianças da cidade e como as
pessoas se reuniam nas cidades. Eu era impelido a expressar como
premissa menor sincera o que filósofos e teólogos sempre ponde­
raram: Por que sou como sou? Quem sou eu? Por que estou aqui?
Eu pertenço a algum lugar? Como me relaciono com os outros? O
que é pessoal Das tentativas em responder perguntas como estas é
que se desenvolveram os estudos, as descobertas e as teorias da
psicologia e da sociologia.
O que significa ser Humano?
Conforme já vimos, um relato ou perspectiva sobre a natureza
humana é um elemento de toda cosmovisão. Pode ser o elemento
mais pessoalmente significativo para nós, porque o que substanci­
almente cremos sobre a natureza humana controla como tratamos
as pessoas e o que esperamos delas. Nosso sucesso e felicidade na
amizade, educação, profissão, matrimónio, paternidade e até reli­
gião dependem em grande parte do que acreditamos sobre nós
mesmos e os outros.
Embora aprendemos muito da experiência pessoal e da m ídia,
a maioria de nosso conhecimento formal sobre a natureza e com­
portamento humanos vem dos campos da psicologia e sociologia.
O propósito deste capítulo é ajudá-lo a entender e avaliar as idéias
eruditas e populares à luz da verdade cristã. Os resultados práticos
devem ser, primeiro, o conhecimento de você mesmo que lhe dá a
confiança e controle em sua vida pessoal e, segundo, avaliações e
insights que realcem todas as suas relações sociais.
No mundo académico e na vida cotidiana, a natureza do géne­
ro humano é uma questão chave. A psicologia e sociologia basei­
am a reivindicação de serem ciências na pressuposição de que os
elementos da natureza humana podem ser isolados, como os ele­
mentos em química, pela observação e experimentação. Mas ne­
nhum método pode ser aplicado à natureza humana sem primeiro
presumir algo a esse respeito. É por isso que as histórias destas
disciplinas parecem girar em círculos. Inicialmente, os estudiosos
procuraram separar-se das abordagens filosóficas e teológicas para
que pudessem estudar os seres humanos como objetos de investi­
gação científica.
Eventualmente, muitos deles perceberam que não podiam evi­
tar o fato de que a pessoa é um ser inteiro e tem qualidades inter­
nas que as teorias científicas precisas não podiam explicar com­
pletamente. Vemos, então, por que é especialmente importante
abordar a psicologia e sociologia com uma cosmovisão cristã: Estas
disciplinas tratam os assuntos da personalidade, comportamento
humano e relacionamentos pelos quais a Escritura é a primeira e
mais alta autoridade.
Perspectivas Psicológicas
A psicologia pode ser uma das mais importantes idéias do
mundo, não obstante, o significado preciso do termo no modo como
se aplica à disciplina é enganoso. Ouvi a palavra dita pela prim ei­
ra vez em 1938 por meu professor de estudos sociais no secundá­
rio. E le era perito em definições. “Psico”, explicou ele, “vem de
uma palavra grega que inicialmente significava ‘respiração’ , e
depois desenvolveu-se para ‘alma’ e ‘espírito’ . Em inglês, a usa­
mos para dizer ‘mente’ .1Logia também vem do grego, e quer di­
zer ‘palavra’ ou ‘fala’ . Leva a idéia de ‘discurso’ , ‘expressão’ e
veio a incluir ‘estudo’ e ‘ciência’ . O termo psicologia, significan­
do ‘ciência da mente’ , foi registrado primeiramente em 1693 e
começou a ser aceito amplamente na década de 1830.”
Meu primeiro professor de faculdade usou o termo ajustamen­
to para definir psicologia. E le disse que isto é mais consernente
com o modo como os indivíduos respondem aos vários estímulos.
Os dicionários modernos definem psicologia como “A ciência que
trata dos processos mentais e dos comportamentos” .2 Os mais re­
centes livros didáticos aludem à falta de uma definição única ge­
ralmente aceita de psicologia, e relacionam numerosos ramos e
U M A PERSPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A
especialidades. Contudo, os dois conceitos principais, os proces­
sos mentais e o comportamento, indicam os dois principais assun­
tos dos psicólogos. O primeiro é relacionado com a filosofia e lida
com a argumentação, pensamento, sentimento e percepção. O se­
gundo diz respeito à fisiologia e estuda o comportamento como
função do sistema nervoso.
A Im portante Q u estã o
da
M
e t o d o l o g ia
A psicologia começou com questões sobre pessoas e logo desenvolveu-se em questões sobre como estudar as pessoas. Ao lon­
go da história registrada, as pessoas desejaram conhecer as rela­
ções entre a mente e o corpo, o pensamento e o sentimento. A
teologia e a filosofia eram as fontes do conhecim ento e das teori­
as. A psicologia como estudo ou ciência distinta posteriormen­
te desenvolveu-se do mesmo tipo de autoconsciência humana
que tinha levado à especulação filo só fica. Os pensadores pro­
puseram teorias e sugeriram explicações sobre a consciência,
razão, percepção, memória e os motivos que determinam o com­
portamento. Inevitavelm ente alguém perguntaria: Como pode­
mos realmente saber? Qual é a melhor maneira de achar as res­
postas às nossas perguntas?
Nos séculos X V III e X IX , quando o mundo estava se empol­
gando com os avanços da ciência natural, o caminho parecia cla­
ro. Os fenómenos humanos podiam ser observados e analisados
da mesma maneira que os outros aspectos da natureza. Os pensa­
dores sociais decidiram que as perguntas dos filósofos e teólogos
deveriam ser redeclaradas a fim de afastarem-se da religião.3 Os
estudiosos deveriam encontrar base diferente para pensar sobre a
mente humana e o comportamento. A psicologia deveria ser uma
ciência independente.
Os historiadores geralmente dão crédito ao filósofo alemão,
fJ o A a m
t 0? n ie c O U c 6 , 0Ç ¥ e n & z n t
W
Johann Friedrich Hcrbart (17761841) foi filósofo alemão. Alguns es­
tudiosos o chamam de “pai da psico­
logia'’, porque ele deu nome aos es­
tudos e declarou que eles deveriam
ser desenvolvidos corno uma verda­
deira ciência. Outros dizem que ele
deveria ser chamado de “ avô da psi­
cologia” , porque ele não fez nada
mais que propor a idéia na qual ou­
tros basearam a pesquisa que criou
uma ciência da psicologia indepen­
dente. Seus escritos não estavam
baseados na investigação empírica,
mas era o que os cientistas moder­
nos chamam de especulação de divã.
Em dois livros ele discutiu a favor da
separação da psicologia de outras dis­
ciplinas: A Textbook o f Psychology
(Um Livro Didático de Psicologia) e
Psychology as a Science (A Psicolo­
gia como Ciência).
1 8 6
BILLIE D A V IS
Johann Friedrich Herbart (1776-1841), por direcionar os psicólo­
gos subsequentes a uma abordagem empírica, em vez de filosófi­
ca, ao estudo das questões psicológicas. Quer dizer, ele propôs
que a experiência direta e a observação objetiva eram métodos me­
lhores para a psicologia do que tentar analisar pensamentos e senti­
mentos. Wilhelm Wundt (1832-1920), que estabeleceu o primeiro
laboratório para experiências, foi treinado como médico. Seu livro
Os Princípios da Psicologia Fisiológica, publicado em 1873, muito
contribuiu para estabelecer a psicologia como ciência distinta.
Mas, com suas raízes na filosofia e fisiologia, a psicologia ti­
nha um problema. Certos filósofos já tinham convencido muitos
estudiosos das teorias dualistas da natureza humana. A mais influ­
ente foi a tese de René Descartes de que um ser humano represen­
ta uma união entre uma mente psicológica e um corpo mecânico.4
Seu pensamento dualista abriu caminho para três concepções prin­
cipais: 1) Os psicólogos que consideraram a psicologia uma ciên­
cia mental, acreditavam que o conhecimento podia ser ganho pela
introspecção. 2) Outros declararam que para tornar a psicologia
uma verdadeira ciência deveriam ser usados somente dados objetivos, quer dizer, fenómenos sensoriais observáveis. Eles tende­
ram a observar não só o comportamento dos adultos, mas também
de crianças e animais inferiores, incapazes da observação do ego.
Observar o comportamento, argumentaram, é o melhor meio de
M
e ím
W ilhelm Wundt (1832-1920)
foi estudioso alemão, filho de
pastor luterano. Wundt estudou
medicina e ensinou fisiologia na
U niversidade de Heidelberg.
Enquanto esteve ali, seu interes­
se se voltou à psicologia e esta­
beleceu um laboratório particu­
lar para experiências. Em 1879,
como professor de filo so fia e
psicologia na Universidade de
Leipzig, desenvolveu o primei­
ro laboratório universitário. Seu in­
teresse foi além das investigações ex­
perimentais, incluindo estudos impor­
tantes relativos à influência da cultu­
ra na mente humana. Wundt é mais
verdadeiramente o pai da psicologia,
porque seu trabalho tomou-se o mo­
‘W
u a c ti
delo para a d iscip lina. Estudantes do
mundo inteiro iam a Leipzig para apren­
der sobre a nova ciência. Muitos deles
levaram suas idéias e métodos aos seus
respectivos países, onde tomaram-se a
fundação na qual a psicologia se desen­
volveria.
W undt publicou em 1873 o liv ro
Principies o f Physiological Psychology
(Princípios de Psicologia Fisiológica).
Seu trabalho mais ambicioso é um tratamen­
to em dez volumes da psicologia cultural ou
do povo, em alemão, Volkerpsychologie. O
último volume foi publicado em 1920. As
traduções em inglês dos trabalhos de Wundt
incluem An Introduction to Psychology
(U m a Introdução à P sic o lo g ia ) e
Elernents o f Folk Psychology (Elemen­
tos da Psicologia do Povo).
r
U M A PER SPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A
entender a natureza e os processos mentais. 3) Outros ainda sus­
tentaram que a psicologia deveria ser um estudo da mente e do
comportamento. Esta escola nunca concordou plenamente com um
sistema científico, mas hoje a definição mais frequentemente cita­
da da psicologia inclui os processos mentais e o comportamento.
A história da psicologia, portanto, é uma história de esforços
em reconciliar as rígidas prescrições da investigação científica com
a dinâmica da humanidade. Um historiador reclama especifica­
mente que a história do desenvolvimento teórico é d ifícil, porque
*De&cante&
René Descartes (1596-1650), f i­
lósofo e literato, é geralmente consi­
derado na tradição intelectual ociden­
tal como o pai do período moderno
(séculos X V II a X IX ). Nasceu em La
Haye (hoje Descartes) na região da
Touraine, França. Sua primeira edu­
cação, da qual tinha bastante orgulho,
aconteceu na faculdade jesuíta em La
Fléche, na região de Anjou. M ais tar­
de, em 1616, obteve título académi­
co em Direito pela Universidade de
Piotiers. Não satisfeito com sua car­
reira em Direito, Descartes resolver
viajar. Esta decisão levou-o a unir-se
ao exército holandês em 1618. Certo
dia, em novembro de 1619, enquanto
fazia uma excursão m ilitar na Alema­
nha, sentou-se sozinho em uma pe­
quena sala aquecida a fogão e passou
a refletir num novo sistema filo só fi­
co que unificaria todos os ramos da
aprendizagem e lhes daria a exatidão
da matemática. Naquela noite, teve
três sonhos que, segundo ele, o ins­
piraram a construir este novo siste­
ma de conhecimento e que parecem
ter permanecido uma motivação per­
manente em todos os seus trabalhos
filosóficos, científicos e matemáticos
posteriores. A medida que a reputa­
ção de Descartes crescia no decorrer
dos anos, ele foi convidado pela rai­
nha Cristina da Suécia a ir a Estocol­
mo para ensiná-la filosofia. Depois de
muita hesitação, no outono de 1649,
ele aceitou o convite com relutância.
O inverno severo de 16491650, combinado com o horá­
rio rigoroso imposto pela rai­
nha (por exemplo, lições de filosofia às cinco da manhã),
afetou adversamente sua saú­
de. Em fevereiro de 1650 con­
traiu pneumonia e morreu.
Dada a brevidade relativa
de sua vida, o corpo dos escri­
tos de Descartes é bastante im­
pressionante. Escreveu sobre
assuntos que variavam de matemática
a ótica, física e filosofia. Mais impres­
sionante do que a quantidade de escri­
tos que produziu foi a influência que
causou em filósofos mais recentes e o
público em geral. Seus escritos mais
famosos são dois trabalhos filosóficos:
Discourse on lhe Method o f Righíly
Conducting One ’s Reason andSeeking
the Truth in the Sciences (Discursos
sobre o Método de se administrar corretamente a Razão e buscar a Verdade
nas Ciências, 1637) e Meditations on
F irst P hilosophy in W hich Are
Demonstrated the Existence o f God
and the Immortality o f the Soul (M e­
ditações sobre a Prim eira Filosofia na
qual é demonstrada a Existência de
Deus e a Imortal idade da Alma. 1640).
187
1 8 8
BILLIE D A V IS
os primeiros fundadores da psicologia teimavam em lidar com tais
tópicos como o significado e o propósito da existência humana!5
Sua observação nos dá uma pista de como as questões da
metodologia podem levar a algumas visões não-cristãs da nature­
za humana, desembocando no antagonismo entre a psicologia e a
religião. Um exame breve dos principais ramos da psicologia nos
ajudará a entender melhor como as teorias e métodos sempre en­
volvem pressuposições sobre a natureza humana.
P s ic o l o g ia E x p e r im e n t a l
Os primeiros psicólogos que consideraram a psicologia uma
ciência da mente desenvolveram uma técnica para estudar a cons­
ciência consciente. Pedia-se a pacientes que descrevessem o que
experimentavam em várias situações de laboratório. Chamaram a
isto de método de introspecção. Alguns estudiosos acharam que
os resultados de tais experiências eram incertos. Sigmund Freud
foi um que afirmou que não era possível uma pessoa observar
com precisão sua própria vida mental. E le introduziu na psicolo-
c q m o c rtd 0? % e tc d
Sigmund Freud (1856-1939)
nasceu em Freiburgo, Morávia
(no império austro-húngaro), e
era filho de comerciante judeu.
Morou a maior parte da vida em
Viena. Freud estudou na facul­
dade de medicina da Universi­
dade de Viena, e resolveu espe­
cializar-se em neurologia clín i­
ca. Sua observação de pacientes
levou-o à convicção de que a
_j mente consiste em três compar­
timentos: consciente, pré-conscientc
e inconsciente. Ele tinha de encontrar
um método para observar os proces­
sos inconscientes a fim de apoiar suas
teorias. Assim , a psicanálise foi de­
senvolvida como uma estratégia para
recobrar evidências do inconsciente
do paciente.
A vida de Freud foi repleta de dor
e tragédia. Sua fam ília foi persegui­
da por causa de sua herança judaica,
quatro irmãs foram executadas nos
campos de concentração, seus livros fo­
ram queimados publicamente e ele sofreu
horrivelm ente com câncer na boca.
Indubitavelmente um gênio, sua influên­
cia ultrapassa os campos da medicina e
psicologia para significativamente cau­
sar impacto em nossa cultura. As idéias e
terminologia distintiva freudianas im ­
pregnaram todas as áreas relativas à na­
tureza e ao comportamento humanos: re­
ligião, filosofia, literatura, artes visuais e
de representação.
O
livro Estudos sobre a Histeria, em
co-autoria com Josef Breuer em 1895,
marca o começo da psicanálise. A Inter­
pretação dos Sonhos (1900) é considera­
do seu trabalho m ais brilhante. The
Standard Edition o f the Complete Works
o f Sigmund Freud (A Edição Padrão das
Obras Completas de Sigmund Freud) foi
traduzida do alemão para o inglês sob a
editoria geral de J. Strachey, em colabora­
ção com Anna Freud e publicada por
I-Iogarth Press, em Londres, de 1953 a 1956.
r
U M A PERSPEC TIVA SOBRE A N A T U R E Z A H U M A N A 1 8 9
gia o conceito do inconsciente. A proposição principal de sua teo­
ria é que as pessoas podem não ter completa consciência das for­
ças que controlam seus pensamentos, sentimentos e ações.
Outros primeiros líderes no campo tentaram afastar a psicolo­
gia dos estudos da consciência interior. A escola conhecida como
behaviorismo desenvolveu-se a partir de esforços em fazer da psi­
cologia um estudo de comportamento observável. Termos como
mente e vontade foram eliminados, porque não podiam ser obser­
vados. Foram considerados estados mentais que devem ser dedu­
zidos do modo como a pessoa age. O behaviorismo presume que
as pessoas podem ser estudadas como objetos de certa maneira
estritamente empíricos. As pessoas são organismos que respon­
dem de modos mecânicos a estímulos. Suas ações são controladas
pelas leis previsíveis.
B.
F. Skinner, importante behaviorista, disse que é inútil fazer
teorias sobre os processos mentais que não possam ser observa­
dos. E le acreditava que os psicólogos deveriam se dedicar a ob­
servar o comportamento e descrever como os estímulos provocam
resultados observáveis. Do seu trabalho veio o conceito de refor-
"pted&tic Sáétttt&t
Burrhus Frederic Skinner (19041990) nasceu em Susquehanna,
Pensilvânia, de fam ília de classe mé­
dia convencional. Como estudante
universitário, Skinner especializou-se
em inglês com o intento de tornar-se
escritor. Seus biógrafos dizem consistentemente que ele era um jovem
brilhante e rebelde. Desenvolveu uma
técnica para controlar seu próprio
comportamento, mas rccusou-se a
respeitar idéias aceitas, que ninguém
ousava questionar no campus da fa­
culdade, ou conformar-se a regula­
mentos impostos. Impossibilitado de
ganhar reconhecimento por seus es­
critos e intrigado com a questão do
comportamento, m atriculou-se no
programa de pós-graduação em psi­
cologia de Harvard. A li, tornou-se
estudioso dedicado, concluindo seu
trabalho com uma proposta de tese
doutoral para pesquisas sobre O Com­
portamento dos Organismos. A publi­
cação em 1938 de um livro com esse
títu lo lançou sua c a rre ira no
behaviorismo, e fez com que ele i
ganhasse aceitação como líder no
campo da psicologia. Foi profes­
sor popular primeiro na Univer­
sidade de Minnesota, depois na
Universidade de Indiana e, final­
mente, em Harvard. Skinner era
imaginativo e foi extremamente
ativo em toda sua vida. Além de
escrever livros eruditos e popu­
lares, in ventou máquinas pedagó­
gicas e desenvolveu sistemas de controle
de comportamento para (educação de
criança) e auto-administração.
Entre suas muitas obras estão Ci­
ência e Com portamento Humano
(1953), Contingências do Reforço:
Uma Análise Teórica ( \ 969), Além da
Liberdade e Dignidade (1971) e So­
bre o Behaviorismo (1974).
190
BILLIE D A V IS
ço, uma técnica para aplicar estímulos a fim de obter os resultados
desejados em áreas como educação e paternidade. Em sua forma
mais pura, o behaviorismo vê a pessoa como uma máquina e o
comportamento em si como sendo, no final das contas, determi­
nado por forças além do controle pessoal.
P s ic o l o g ia C l ín ic a
Como uma subespecialidade no campo, a psicologia clínica é
definida como a prática de terapia e técnicas de aconselhamento,
especialmente para lidar com problemas mentais e emocionais. A
psicologia clínica tem seu início com o tratamento de Sigmund
Freud de pacientes por um método que ele chamou de psicanáli­
se. O termo deriva da idéia de que as experiências do indivíduo
resultam de sentimentos interiores desconhecidos que podem ser
trazidos à consciência através de análise. A visão de Freud é que
as pessoas são controladas por impulsos sob o nível da consciên­
cia. Muitos destes são impulsos sexuais e agressivos, frequente­
mente relacionados com experiências da primeira infância. A psi­
canálise tem como objetivo descobrir as causas ocultas de com­
portamento e lidar com a vida em um nível consciente.
Hoje a psicologia clínica tem o que Gary Collins chama de
imagem profissional “ obscura” . Afastando-se do determinismo de
Freud, os profissionais modernos não têm um senso unificado de
direção. Eles estão divididos em uma variedade de teorias, técni­
cas e opiniões. “Um psicólogo clínico aceita o método empírico” ,
afirma Collins, “mas também pode admitir que coisas difíceis de
ser observadas, como esperança, significado, valores, motivos ou
I
Abraham H . Maslow (1908- com valores e princípios éticos. Seu mé­
1970) era um de sete filhos de
todo principal em desenvolver a Hierar­
uma fa m ília im ig rante no quia das Necessidades, obra pela qual
Brooklyn. Os biógrafos sugerem é mais conhecido, fo i estudar pessoas
que pelo fato de ter se sentido específicas que ele considerava serem
socialmente isolado na escola, “ auto-realizadas” . Desta forma espera­
Maslow foi motivado a ser bem- va descobrir “im perativos m orais” que
sucedido academicamente para fossem responsáveis por mover as pes­
im pulsionar sua auto-estim a. soas além da mera sobrevivência para
Sua introspecção levou-o a a realização sig nificativa na vida. Seus
questionar a natureza e os va­ livros mais frequentemente citados são:
lores humanos e a fazer perguntas di- The Psychology o f Science (A Psicolo­
retas acerca da motivação. M ais que gia da C iência, 1966) e Motivation and
qualquer outro teorista famoso cm Personaliiy (M otivação e Personalida­
psicologia, M aslow preocupou-se de, 1970)/
I
U M A PERSPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A
metas, realmente existem e influenciam o comportamento.” 6
P s ic o l o g ia H u m a n is t a
A concepção humanista de pessoas enfatiza a liberdade do in­
divíduo em escolher o que fazer e ser. Incorpora a idéia de que o
indivíduo deve ser encorajado a perceber seu próprio potencial.
Alguns chamam o desenvolvimento potencial de auto-realização.
As pessoas são responsáveis por suas vidas, e a responsabilidade
não pode ser transferida a forças exteriores. O enfoque está prin­
cipalmente no ser humano normal em vez de nas patologias ou
problemas. A plicar métodos de pesquisa com animais em huma­
nos é desestimulado.
Neste contexto, o termo humanista im plica um conceito de
homem ou m ulher que reconhece cada qual como pessoa,
irredutível a níveis mais elementares, e seu valor singular como
seres potencialmente capazes de julgamento e ação autónomos.
Os humanistas seculares omitem o fato da criação de Deus e de­
fendem a idéia da capacidade humana de transcender as condi­
ções materiais e sociais em maneiras que sejam únicas aos seres
humanos. “ O enfoque da psicologia humanista está sobre a
especificidade do homem, sobre aquilo que o separa de todas as
outras espécies. Difere de outras psicologias, porque vê o homem
não somente como organismo biológico modificado pela experi­
ência e cultura, mas como pessoa, uma entidade simbólica capaz
de ponderar sua existência, de dar-lhe significado e direção.” 7
A psicologia humanista chegou a ser chamada Terceira Força
da Psicologia, porque começou na resistência às primeiras duas
forças: a experimental e a psicologia clínica. Dois líderes muitas ve­
zes citados neste contexto são Abraham H. Maslow e Cari Rogers.
A psicologia definida como o estudo científico do comporta­
mento e processos cognitivos minim iza o papel da escolha e do
livre-arbítrio e enfatiza as determinantes ambientais, fisiológicas
e naturalistas do comportamento. Por outro lado, a Terceira Força
da Psicologia acentua a natureza humana e é mais filosófica e
especulativa que experimental ou clínica. Algumas de suas pres­
suposições teóricas básicas podem ser resumidas assim:
1. Os seres humanos são agentes livres, que têm controle sobre
seus destinos. O ambiente desempenha uma parte, mas nós fazemos
escolhas significativas que podem nos mudar para pessoas melhores.
2. Em geral, uma pessoa melhor é aquela que é auto-realizada,
que percebe seu próprio potencial.
3. Podemos entender o comportamento de outra pessoa na
medida que podemos nos identificar com aquela pessoa ou com­
partilhar sua cosmovisão de mundo, um ponto de vista muito dife­
rente de tentar entender o comportamento com base em análise de
estímulo-resposta.
4. A utilidade de grande parte da pesquisa empírica é questio­
nada. Devemos tentar entender os indivíduos em vez das leis que
192
BILLIE D AVIS
governam o comportamento da espécie.
5.
O aqui e agora é acentuado em vez do passado ou futuro.
Devemos enfatizar as escolhas deste momento e não enfatizar as
causas do passado.
A hierarquia de Maslow das necessidades que motivam o com­
portamento representa contribuição importante para a Terceira
Força da Psicologia. Maslow diz que os humanos são únicos entre
os animais, porque exercem uma medida de controle sobre a pró­
pria vida e, através da escolha, alcançam ou não o seu potencial
mais alto. Na visão de Maslow, as experiências de auto-realização
(ou seja, realizações do potencial) dão significado à vida.8
O P e n s a m e n t o C r is t ã o S o b r e P s ic o l o g ia
Em sua determinação de fazer a psicologia ajustar-se ao mode­
lo da ciência natural, os psicólogos rejeitam as explicações religi­
osas. Dos livros didáticos seculares, os estudantes têm a impres­
são de que a religião e a ciência são flagrantemente incompatí­
veis. Mas os teólogos nos lembram de que o
relato
da criação inclui o mandamento de Deus
Dos livros didáticos seculares, os
para o povo cuidar da terra e de todas as cria­
estudantes têm a impressão de que
turas que nela há (Génesis 1.26-28). Menzies
a religião e a ciência são
e Horton, por exemplo, interpretam o manda­
mento como incentivo bíblico para o desen­
flagrantemente incompatíveis.
volvimento da ciência física “ que ajudaria as
pessoas a aprender sobre a terra e como usá-la
corretamente” . “Era a permissão para avançar” , declaram eles, “em
prol de uma ciência biológica que ajudaria as pessoas a aprender
sobre todos os organismos vivos e como tratar deles” .9Em parte, a
afirmação dos teólogos de que a criação de Deus é ordeira e con­
sistente (em contraste com a imaginação irracional e o m isticis­
mo) estabeleceu um fundamento para o desenvolvimento da ciên­
cia moderna.
Pensamento semelhante é revelado por Myers e Jeeves, que
explicam que é provável que os cristãos que estudam os mecanis­
mos do cérebro vejam a ciência e a fé como complementares. “A
ciência explora os processos naturais em que subjazem tais fenó­
menos, enquanto que a fé ajuda a entender o significado de todo o
sistema humano.” 10Por outro lado, os cristãos que estudam psico­
logia geral ou treinam para trabalhar como psicólogos com pesso­
as perturbadas vêem como as perspectivas (ou cosmovisões) da
psicologia secular podem torcer o entendimento sobre a natureza
humana. Assim , enquanto advertem os estudantes para estar cien­
tes dos valores e pressuposições ocultas nos escritos seculares,
também descrevem alguns “paralelos impressionantes entre o que
os investigadores estão concluindo e em que os cristãos crêem” .11
Em resposta à pergunta da necessidade de uma psicologia cris­
tã, a maioria dos estudiosos cristãos oferece em vários termos o
U M A PERSPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A
193
conceito expresso no título do livro de Myers e Jeeves: Psychology
Through the Eyes o f Faith (Psicologia pelos Olhos da Fé). Quer
dizer, temos de examinar a verdade psicológica à luz da verdade
cristã e não à parte dela. Podemos encontrar toda verdade neces­
sária na B íb lia, mas ela não é um livro didático de psicologia.
Deus nos dá princípios fundamentais que guiam nosso pensamen­
to, mas E le deixa a nosso cargo pensar e aplicar o conhecimento.
Os psicólogos cristãos notam que todo achado básico nos estu­
dos científicos do comportamento humano re­
flete um pouco da verdade bíblica ou teológi­
Podemos encontrar toda verdade
ca. Já declarei, mais grosseiramente, que os
necessária na Bíblia, mas ela não é
psicólogos seguem atrás dando pancadinhas
um livro didático de psicologia.
leves nas costas da B íb lia . Um exem plo
ilustrativo aparece em uma declaração de cer­
to livro didático de teorias de aconselhamento.
O autor diz que é “ empolgante” sua descoberta de que as pessoas
respondem melhor quando acreditam que a vida tem significado
— chegando ao ponto de acreditar que o sofrimento tem um pro­
pósito.12 Não acho que tal idéia seja nova. Ouvi-a pela primeira
vez quando era criança na Escola Domin ical.
Os psicólogos cristãos concordam consistentemente que as
principais teorias da personalidade estão relacionadas de perto com
os temas religiosos. Muitos dos primeiros teoristas estava, ao lon­
go da vida, pessoalmente envolvidos com a religião, sobretudo
com o cristianismo. Embora muitas de suas palavras e ações pare­
çam hostis ao cristianismo, suas teorias foram influenciadas por
ele. Um exemplo é a teoria psicanalítica que fornece diretrizes
para tratar as pessoas que sofrem de sentimentos de, por exemplo,
culpa, fracasso, inadequabilidade ou inclinações más. As mesmas
condições são tratadas na religião pelos conceitos de pecado, per­
dão e graça.
Paul C . V itz, professor de psicologia e autor de muitos artigos
de jornal, lembra-nos que as principais teorias da personalidade
estão relacionadas de perto com a religião. E le menciona Freud,
Jung, Adler e Rogers como teoristas que estavam pessoalmente
envolvidos com religião. V itz afirm a que muito da psicologia
humanista de C ari Rogers pode ser entendida claramente como
traduções de conceitos cristãos provenientes do mundo transcen­
dente da teologia para o mundo natural da psicologia. “Declaro
que há um campo da psicologia cristã” , explica V itz, “ cujo propó­
sito é desempacotar a psicologia oculta encontrada nas Escrituras
e coordená-la com o conhecimento psicológico válido tanto para
o campo científico quanto para o não científico.” 13
Outro forte proponente de uma psicologia cristã, Gary R .
C ollins, assevera ousadamente a esperança de que a psicologia
pode ser reconstruída nos fundamentos da verdade cristã. E le projeta uma psicologia imediatamente consistente com a verdade bí­
blica revelada e a verdade descoberta por métodos científicos. Ele
1 9 4
BILLIE D A V IS
prossegue com base em quatro premissas. Prim eiro, a psicologia é
valiosa como ferramenta para entender a mente humana e o com­
portamento humano e para desenvolver aplicações no tratamento
dos problemas humanos. Segundo, as principais fraquezas têm
como resultado a psicologia secular, porque suas teorias não ex­
plicam as realidades humanas adequadamente. Não podem, por­
que são construídas em pressuposições erradas sobre a origem e
natureza das pessoas. Terceiro, os métodos da ciência não podem
responder as questões essenciais, como as relativas a significado,
propósito e condições espirituais dos seres humanos. Quarto, se
Deus existe e revelou fatos cruciais sobre os seres humanos, então
ou temos de incorporar tal revelação em nossas investigações, ou
nunca formaremos uma visão completa da natureza humana.
Collins conclui que precisamos reconstruir a psicologia, porque
“Nenhuma outra visão mundial é tão lógica, interiormente consis­
tente ou capaz de dar significando” como a da religião cristã.14
A palavra sociologia foi
cunhada em 1830 pelo
filósofo francês Augusto
Comte (1798-1857), que foi
o primeiro a brincar com a
noção de física social para
designar uma abordagem
científica ao estudo das
associações humanas.
Perspectivas Sociológicas
Definimos singelamente sociologia como um estudo da socie­
dade. A palavra social nos vem de um termo em latim que signifi­
ca “ seguir” . Inclui a idéia de pessoas que estão ligadas, relaciona­
das umas às outras em padrões. Então, é mais significativo dizer
que a sociologia é um estudo das instituições - as estruturas e
Wm
Augusto Comte (1798-1857)
nasceu em M ontpellier, França.
Fo i o secretário e filho adotivo
de Claude Henri Saint-Sim on,
que o inspirou a tomar-se filó ­
sofo de carreira. Pelo fato de ter
tido pouca educação form al,
Comte não pôde ocupar as posi­
ções pedagógicas que desejava.
Contudo, perseverou em estudar
e escrever e, com um cargo se­
cundário de conferencista, pôde
atrair estudiosos para as suas idéias.
Hoje é geralmente reconhecido como
fundador da escola filo só fica do
positivismo, que presume que o co­
nhecimento válido só.pode ser obti­
do por meio de métodos científicos.
Foi ele que cunhou o termo sociolo­
gia, com o que queria dizer um tipo de
“ física social” , que revelaria as leis cien­
tíficas da sociedade. Sua teoria era que
se as instituições sociais, como o gover­
no, fossem construídas em princípios c i­
entíficos, as pessoas viveriam em harmo­
nia em vez de discutirem sobre afirm a­
ções disputadas de filosofia, m etafísica e
religião. Os escritos pelos quais é mais
conhecido são The Positive Philosophy
(A Filosofia Positiva), em seis volumes,
publicada em 1842, e System o f Positive
Philosophy (Sistema da Filosofia Positi­
va), em quatro volumes, 1851. Uma ex­
celente fonte em inglês éAuguste Comte
and Positivism: The Essenlial Writings
(Augusto Conte e o Po sitivism o: A s
Obras Essenciais) Gertrud Lenzer, editor,
Nova York: Harper Torchbooks, 1975.
U M A PER SPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A
processos formados por pessoas em associação. As instituições
são construídas e perpetuadas, reproduzidas e mudadas, à medida
que as pessoas agem juntas, em cooperação ou conflito, para sa­
tisfazerem necessidades reais. A s instituições usualmente tratadas
pelos sociólogos incluem a fam ília, o governo, a economia, edu­
cação e religião. Recentemente a saúde e, às vezes, o esporte e a
recreação foram acrescentados à lista.
Durante grande parte da história humana, as pessoas viveram
em organizações sociais tidas como certas. Quer dizer, a maioria
das pessoas não questionava sua ordem social. Por exemplo, nas
antigas eras medievais do Oriente Próximo e Europa, poucas pes­
soas questionaram a posição social de reis, governantes, mordomos,
escravos, criados, ricos, pobres e a hierarquia dos sacerdotes. A po­
pulação mundial era pequena e dispersa. Havia pouca razão para muitas
das pessoas suporem que seu estilo de vida não era natural. Então, no
século X IX , o mundo entrou num período de mudanças sempre cres­
centes. A s revoluções políticas transtornaram a ordem tradicional.
A Revolução Industrial, com seus avanços tecnológicos, o pro­
digioso crescimento da população e a multiplicação das cidades
foram fatores importantes que radicalmente mudaram as relações
humanas. As mudanças resultantes tomaram as pessoas mais cons­
cientes, mais prontas a fazer perguntas, como nunca antes.
A sociologia desenvolveu-se durante esse período de mudan­
ça, tanto quanto a psicologia. Os filósofos e teólogos fizeram as
perguntas primeiro: O que faz a sociedade ser como é? Por que e
como as pessoas associam-se em padrões e formam instituições? Que
forças mantêm os padrões sociais estáveis? Como e por que mudam?15
Influenciados pelo sucesso das ciências naturais em explicar o mun­
do material, alguns estudiosos decidiram aplicar os mesmos mé­
todos para um estudo da sociedade. Eles criam que se a ciência
natural pudesse descobrir leis universais em que subjazam os fe­
nómenos que eles estudavam, então uma ciência da sociedade de­
veria poder descobrir e explicar padrões na associação humana.
Os fundadores da sociologia como ciência expressaram mais
que um desejo em analisar a sociedade. Percebendo o tumulto e
desarranjo da moralidade e dos valores tradicionais, eles pensa­
ram que a sociedade poderia ser melhorada se suas estmturas e
processos pudessem ser entendidos. O conhecimento de padrões
sociais deveria ajudar os estudiosos a definir “ leis” sociais seme­
lhantes às leis na natureza, como a lei da gravidade. Argumenta­
ram que para resolver os problemas sociais poderiam se basear só
no conhecimento científico.
Tal pensamento conduziu a várias teorias que justificam as
políticas e programas sociais. De interesse aqui é o fato de que
definir um problema social envolve pressuposições sobre a natu­
reza humana. Quando definimos um problema como social, im­
plicamos que ele é causado principalmente por forças fora do in­
divíduo. Uma pessoa fica desempregada por que é preguiçosa ou
195
196
BILLIE D A V IS
por condições económicas adversas? Até que ponto o divórcio, a
falta de moradia e a maternidade de mães solteiras devem, por
exemplo, ser definidos como problemas sociais?
Melhorar a sociedade motivou Ém ile Durkheim a estudar os
fenómenos sociais. Muito de sua pesquisa objetivou demonstrar
que as estruturas e processos sociais poderiam ser tratados como
objetos de investigação científica. Nesta conexão, ele usou o ter­
mo fatos sociais. Por exemplo, a fam ília existe como uma relação.
E um fato social. Durkheim viu o fator de relação, ou sociedade,
como forma distinta da realidade. Por exemplo, o conceitofamília
é diferente do conceito de várias pessoas. E le ilustrou este ponto
pela referência à água.
Quando os elementos físicos do hidrogénio e oxigénio associ­
am-se em proporções adequadas e sob certas condições, surge um
produto distinto (a água). A água tem características que não po­
dem ser atribuídas a qualquer um dos seus elementos constituin­
tes. Nem o oxigénio nem o hidrogénio, por exemplo, podem apa­
gar o fogo, mas a água pode. Semelhantemente, quando as pesso­
as interagem para formar uma sociedade (por exemplo, fam ília,
organização, estado) normas, crenças e valores coletivamente com­
partilhados desenvolvem-se ou surgem.16
191.7), filósofo francês que seguiu Comte, descendia de longa
linhagem de rabinos judeus. Criado para ser rabino, rejeitou a
religião pessoal para estudá-la
como fenómeno social. Embora
Durkheim seja conhecido por
seu agnosticismo, foi seu interesse pelos valores morais existentes na sociedade que o dirigiu
o campo da sociologia. Preocupava-lhe a degeneração moral na sociedade francesa. Seu campo pedagógico na Universidade de Bordeaux
incluía educação moral para professores escolares. Seu interesse no método científico surgiu por ele acreditar, como Comte, na possibilidade de
poder-se acabar com a desordem
moral descobrindo-se princípios mo-
deriam ser aplicados às condições sociais, o racismo, por exemplo, da mesma
maneira que o conhecimento da ciência
natural é aplicado para melhorar as condições da vida física. Comte tinha nomeado a sociologia. Durkheim legitimou-a
no mundo académico e tornou-se o primeiro a receber o título de professor de
sociologia. Seu trabalho teve influência
profunda na sociologia como ciência,
uma disciplina académica e uma ferramenta na reforma social. Ele desenvolveu metodologia precisa e demonstrou-a
em estudos que ainda são modelos para a
teorização e investigação sociológicas,
Trabalhos notáveis: As Regras do Método Sociológico (1893), Da Divisão do
Trabalho Social (1 8 9 5 ), O Suicídio
(1897)e As Formas Elementares da Vida
Religiosa (1915).
U M A PERSPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A
A preocupação de Durkheim pela ordem social o levou a estu­
dar a origem e o papel da religião. E le propôs que a função da
religião é unir a sociedade e assegurar que os indivíduos ajam em
consenso com o bem comum. Portanto, a religião é criada pela
sociedade para este propósito. Embora tivesse reconhecido a exis­
tência de um Ser sobrenatural, ele afirmou que a religião é univer­
sal, porque as pessoas devem ter compartilhado valores morais
para sobreviver como sociedade.
O trabalho de Durkheim foi muito importante para o estabele­
cimento da sociologia como estudo singular dos seres humanos
que não podem ser reduzidos ao estudo da psicologia. Sua maior
contribuição para as explicações da natureza humana é a idéia de
um “ estado de consciência” , que não é estritamente individual.
Este estado de consciência, diz ele, vem da sociedade, transfere a
sociedade para nós e nos conecta com algo que nos ultrapassa e
nos dirige em direção aos “fins que mantemos em comum com as
outras pessoas” .17
A sociologia moderna é dividida em muitas escolas de pensa­
mento; a maioria incorpora de algum modo a visão de Durkheim
de sociedade como força determinante na vida dos indivíduos. Os
sociólogos estão divididos na questão de como as pessoas criam a
sociedade e, depois, são criadas por ela. Suas teorias diferem uma
da outra mais no grau e características da influência social. Os três
modelos apresentados a seguir formam em geral a base de funcio­
namento para a investigação sociológica moderna. Note que cada
um envolve algumas presunções sobre a natureza humana.
M
odelo
F u n c io n a l - e s t r u t u r a l
O modelo funcional-estrutural está baseado na visão da socie­
dade como um sistema de partes que trabalham para formar um
todo relativamente estável. A sociedade é composta de duas par­
tes: estrutura e função. A estrutura refere-se a padrões persisten­
tes, como fam ília, religião, governo ou sistemas económicos. Cada
estrutura tem funções necessárias para a estabilidade e continua­
ção da sociedade em sua forma atual. Uma função é determinada
encontrando-se as necessidades que estão dentro do sistema intei­
ro. As instituições desenvolvem-se a partir da necessidade da so­
ciedade por controle. O corpo humano é usado como ilustração.
Cada parte tem estrutura e funções específicas que contribuem
para a existência do todo.
Na sociedade, as instituições separadas são mutuamente de­
pendentes, como os órgãos do corpo, e trabalham juntas para manter
a organização social e a ordem. Os teoristas funcionais-estruturais
concentram-se em como a sociedade é unificada e estabilizada.
(Deixam de questionar o conflito e a mudança social.) Este mode­
lo originado do trabalho de Comte e Durkheim foi mais tarde de­
senvolvido nos Estados Unidos, sobretudo por Talcott Parsons e
Robert K . Merton.18
197
198
BILLIE D A V IS
M
odelo d e
C o n f l it o
As teorias de conflito enfatizam o conflito como fator contí­
nuo na vida social. Conflito, não unidade, é o processo que mais
influencia o caráter da sociedade e causa mudança. A sociedade é
vista como fragmentada, não integrada como um corpo. Tópicos
principais de consideração incluem as desigualdades de classe e a
distribuição desigual de recursos e oportunidades. As pessoas se
dividem em grupos de interesse. Praticamente todos os padrões
sociais favorecem algumas pessoas em detrimento de outras, as­
sim a sociedade está em luta constante.
Posso ilustrar de minha experiência de infância como a teoria
funcional e a teoria de conflito diferem de ponto de vista. O traba­
lho migratório é funcional para a comunidade da agricultura, à
medida que as plantações em vários lugares ficam maduras para a
colheita. Mas promove um sistema de classe que deixa algumas
pessoas da comunidade ou cidade sem benefícios e privilégios.
K arl M arx é a figura mais importante na origem e desenvolvi­
mento da teoria de conflito. M arx não se considerava sociólogo
académico, com a meta de estudar a sociedade, mas, antes, um
/ eonye ^¥enãent ‘T ttead
George Herbcrt Mead (18631931), nascido em South Hadley,
Massachusetls, foi treinado em
filosofia e psicologia social, e
tornou-se líder no desenvolvi­
mento do interacionismo simbó­
lico . Depois de colar grau de
bacharel pela Faculd ad e de
Oberlin, onde seu pai era profes­
sor, ele ensinou na educação se­
cundária, depois estudou em Harvard
e nas Universidades de Leip zig e
Berlim . Embora nunca tivesse cola­
do grau universitário, ele ensinou por
pouco tempo na U niversidade de
M ichigan e, depois, pelo resto da
vida, na Universidade de Chicago.
Mead era mais conhecido por sua ca­
pacidade pedagógica. Os estudantes
raramente perdiam suas aulas, e sob
sua influência alguns se tornaram so­
ciólogos importantes.
Ao tratar o conceito do ego, Mead,
mais direta e precisamente que outros
teoristas, abordou a questão do que faz
as pessoas serem o que são. O ego é a
única capacidade humana capaz de ser ao
mesmo tempo sujeito e objeto. Conseqiientemente, ele pressupõe um processo
social: a comunicação entre os seres hu­
manos. O ego não pode se desenvolver
sem contato social, mas quando desen­
volvido, pode continuar existindo como
mente consciente de si mesma. A pessoa
comunica, ouve e responde a si mesma.
Mead não produziu trabalhos escritos
no mesmo nível que outros teoristas impor­
tantes. O trabalho que esboça seu pensa­
mento e tem influenciado grandemente a
sociologia e a psicologia social, 1’oi resul­
tado da reunião de suas notas e documen­
tos, completados em 1934. Trata-se de
Mind, S e lf and Society: Frorn the
Standpoint of a Social Behaviorist(A Men­
te, o Ego e a Sociedade: Do Ponto de Vista
de um Behaviorista Social, 1962).
U M A PERSPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A 1 9 9
ativista, procurando meios de mudar e melhorar a sociedade. (Veja
box sobre K arl M arx no Capítulo 1 e no Apêndice 3.) Teoristas
mais recentes basearam-se no trabalho de M arx para enfatizar como
as partes da sociedade contribuem para a mudança em vez da es­
tabilidade, para o conflito em vez do acordo sobre valores e leis.
M
odelo d e
I n t e r a ç ã o S im b ó l ic a
O “ interacionismo simbólico” desenvolveu-se na Universida­
de de Chicago, na década de 1920.0 nome foi cunhado por Herbert
Blum er, num ensaio de 1937.19 Embora exista uma grande varie­
dade de perspectivas e várias bases sejam citadas por estudiosos
no campo, muitas fontes nomeiam George Herbert Mead como o
contribuinte mais in fluente para o modelo básico.
As teorias da interação simbólica diferem do modelo estrutu­
ral, funcional e de conflito, de um modo distintivo: a consideração
sobre como as pessoas experimentam a sociedade mais que com
descrições da sociedade como um todo. Este
modelo fornece base para o desenvolvimento
Eis a questão subjacente da
de teorias na psicologia social: o estudo de
nvestigação sociológica: Até que
como as pessoas se relacionam, afetam umas
ponto criamos a sociedade e até
às outras e são afetadas pelas pessoas e gru­
pos. Os estudiosos que o articularam estavam
que ponto a sociedade nos cria?
buscando meios de evitar a idéia de que as
ações individuais ou são diretamente determinadas pelos estados psicológicos internos, ou por forças estrutu­
rais da sociedade. Ao invés disso, a pessoa experimenta a socieda­
de por contatos com os outros.
Os gestos e o idioma - símbolos significantes - tomam a co­
municação possível. A mente e o ego emergem desses contatos. A
habilidade de ver a si mesmo do ponto de vista dos outros é essen­
cial para formar o ego e organizar atividades de grupo. A medida
que as pessoas interpretam os significados de símbolos e agem de
acordo com suas interpretações, padrões de interação formam a
sociedade. Mais uma vez vemos a questão subjacente que toma a
investigação sociológica importante para todos nós: Até que pon­
to criamos a sociedade e até que ponto a sociedade nos cria?
D
uas
T r a d iç õ e s F o r m a m
a
S o c io l o g ia M
oderna
Os primeiros sociólogos americanos estavam divididos em suas
respostas a questões sobre a natureza humana e as qualidades es­
senciais da sociedade. Segundo Comte e Durkheim, alguns se ape­
garam ao conceito de sociedade como uma coisa em si mesma
(separada da pessoa individual) a ser estudada objetivamente. Deste
pensamento desenvolveu-se a sociologia naturalista (às vezes
chamada positivista ). Os sociólogos estudam o comportamento
humano da mesma maneira que os cientistas naturais estudam as
propriedades e interações físicas. Eles acreditam que os seres hu­
200
BILLIE D A VIS
manos individuais estão sujeitos a leis que determinam a ação, e
esperam enunciar leis da sociedade - algo muito parecido com os
cientistas naturais que enunciam leis da física e da química. As
pessoas são, a certo nível significativo, socialmente determina­
das, e representam as demandas e expectativas da sociedade. A
categoria naturalista inclui tanto a teoria estrutural na sociologia
quanto o behaviorismo na psicologia.
Outros estudiosos pensaram mais como K a rl M arx e M ax
Weber, no sentido de que a sociedade é composta de pessoas
interagindo em um complexo dinâmico de relações. Esta aborda­
gem conduz à sociologia humanista. Rejeita a idéia de que a soci­
ologia tem de seguir exatamente o padrão da ciência natural. In ­
vestigar os problemas sociais é mais importante que as estruturas
ou a metodologia. As pessoas não são objetos passivos das forças
sociais, mas têm vontade e escolha. (Esta visão aparece na análise
de M arx de que a economia não é tanto uma estrutura quanto o
efeito da luta de classes) As pessoas são potencialmente boas e
capazes de influenciar seu ambiente se estiverem cônscias das
condições e possibilidades. A reforma social é uma consideração
principal para o teorista de conflito. Além disso, um propósito prin­
cipal do conhecimento sociológico é dar às pessoas ferramentas
para projetar um mundo melhor.
Recentes comentaristas citam o desenvolvimento contínuo dos
dois conceitos, naturalista e humanista, como um problema para o
‘We&eti
M ax Weber (1864-1920), so­
ciólogo alemão, é considerado
pela maioria dos historiadores de
sociologia o indivíduo que, mais
que qualquer outro, influenciou
o desenvolvimento da sociologia
ocidental. O pai de Weber é des­
crito como burocrata bem-suce­
dido, ligado ao meio político e à
vida de prazeres mundanos da
sociedade de classe média. Sua
mãe era calvinista devota que prefe­
ria um estilo de vida ascético. A ten­
são entre os dois indubitavelmente
influenciou Weber à medida que ele
tentava reconciliar o positivismo de
Durkheim, as teorias de conflito de
M arx e a influência na sociedade de
idéias, como a religião protestante.
Diferente de Durkheim , ele rejeitou a
idéia de um conjunto de leis que explica­
riam o comportamento social. Diferente
de M arx, ele rejeitou a idéia de que o sis­
tema económico é o fator determinante
primário do pensamento e das relações
humanas. Ele buscou desenvolver uma
sociologia que responderia pela natureza
complexa da vida social. E le está entre
Durkheim e M arx como humanista, po­
rém mais erudito que revolucionário.
Weber produziu escritos volumosos
dos quais o seguinte é representativo:
Essays in Sociology (Ensaios sobre So­
ciologia, 1946); The Protestam Ethic and
the Rise o f Capitalism (A Ética Protes­
tante e o Surgimento do Capitalism o,
1904-1905; 1958); Econorny and Society
(Economia e Sociedade, 1978).
U M A PERSPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A
201
futuro da disciplina. A sociologia moderna não é nem uma ciência
pura da vida, como a biologia, nem simplesmente um movimento
de reforma social impulsionado pela pesquisa. Alguns vêem uma
crise de identidade para a disciplina. Eles estão desapontados com
o fracasso de a sociologia cumprir as expectativas de seus funda­
dores. Em seu estado presente, ela não é uma ciência exata e não
tem mudado o mundo até o ponto em que alguns dos seus primei­
ros proponentes tinham esperado.20
O P e n s a m e n t o C r is t ã o S o b r e S o c io l o g ia
Os cristãos que estudam sociologia vêem que as divisões e dis­
putas entre os teoristas são o resultado principalmente de sua in­
terpretação equivocada da natureza e origem humanas. Tanto a
tradição naturalista quanto a humanista, das
quais a sociologia moderna se desenvolveu, são
As divisões e disputas entre os
limitadas em suas tentativas de descrever a re­
alidade, porque omitem a verdade da criação e
teoristas são o resultado
são incapazes de entender o propósito da hu­
principalmente de sua
manidade. Poderíamos dizer, ironicamente, que
interpretação equivocada da
o que foi demonstrado na história da sociolo­
natureza e origem humanas.
gia é que a ciência não pode substituir a reli­
gião, e que os seres humanos são atores volun­
tariosos . Vários estudiosos cristãos tiraram proveito da fenda entre a sociologia naturalista e a sociologia
humanista para sugerir modelos baseados em pressuposições
bíblicas sobre a natureza humana.
Margaret M . Paloma declara: “É a questão da natureza deter­
minada da pessoa que tem a chave para analisar as diferentes pers­
pectivas teóricas” . E la esboça pressuposições sobre a pessoa tanto
da sociologia naturalista quanto da humanista, e postula uma sín­
tese que admite as verdades bíblicas. Uma teoria naturalista, como
a de Durkheim, contém duas pressuposições im plícitas: 1) que as
pessoas são criaturas caídas cuja redenção pode ser possível por um
mundo ordeiro e 2) que as pessoas são determinadas por estruturas
sociais e normas. As principais pressuposições da sociologia humanista
são: 1) que as pessoas, por natureza, são mais boas que ruins, e 2) que
o mal presente pode ser eliminado libertando as pessoas de constran­
gimentos opressivos. As pessoas não são determinadas absolutamen­
te pela sociedade, mas devem ser estimuladas a uma conscientização
de sua situação, de modo que possam fazer mudanças.
Paloma acredita que cada uma destas perspectivas concorda
parcialmente com a imagem bíblica da pessoa. As pressuposições
naturalistas são compatíveis com o conceito do pecado original,
mas não com as doutrinas da criação e do livre-arbítrio. A s pres­
suposições humanistas são compatíveis com a visão da humani­
dade criativa, mas não com a verdade da natureza caída e a inca­
pacidade humana de prover sua própria redenção. E la sugere um
modelo sociológico cristão que responde: 1) pela realidade da
202
BILLIE D A V IS
humanidade caída, moldada pela estrutura social, e 2) pela pessoa
redimida que experimenta a salvação em Cristo e depois age como
agente, pelo poder do Espírito Santo, para influenciar a sociedade
conforme o plano de Deus.21
“ Sempre obtenho um senso de prazer pessoal na conclusão de
que estes princípios bíblicos foram determinados por Deus muito
tempo antes que algum sociólogo moderno topasse com eles na
pesquisa.” E deste modo que Russell Heddendorf começa seu li­
vro Hidden Threads (Linhas Ocultas). Como suas palavras e o
título implicam, ele opina que as verdades essenciais sobre as pes­
soas e a sociedade podem ser encontradas na
B íb lia. Os sociólogos têm descoberto parte
Com frequência os cristãos se
desta verdade. Usualm ente inconscientes
de sua fonte original, eles tentam explicá-la
sentem ameaçados pela sociologia,
nas
condições hum anas. A ssim , afirm a
porque seu método é analítico.
Heddendorf, podemos encontrar “linhas ocul­
tas” nas Escrituras à medida que estudamos
sociologia. Esta abordagem nos ajuda a apreciar o trabalho de refle­
xão de estudiosos, mesmo que nos lembremos de que as falhas e con­
tradições podem ser o resultado de suas pressuposições não bíblicas.22
Outro defensor de aprender a ver a verdade humana de uma
perspectiva cristã é Richard Perkins, autor de Looking Both Ways
— Exploring the Interface Between Christianity and Sociology
(Olhando para ambos os Lados — Explorando a Interface entre o
Cristianismo e a Sociologia). Estudar sociologia, explica ele, pro­
move o desenvolvimento potencial humano pela reflexibilidade a habilidade de observar-se a si mesmo e olhar a vida de mais de
uma perspectiva. Com frequência os cristãos se sentem ameaça­
dos pela sociologia, porque seu método é analítico.
Em vez de olhar o comportamento humano da perspectiva das
diferenças individuais, a sociologia teima em considerar muitos
fatores sociais. Por exemplo, tendemos a pensar nas pessoas que
fracassam academicamente como menos inteligentes ou menos
ambiciosas; pobreza é fracasso pessoal; crime é pecado. Os soció­
logos sugerem que o fracasso escolar e a pobreza podem ser o
resultado da injustiça social; aquele crime poderia ser proveniente
da pobreza como também da imoralidade pessoal.
Perkins acredita que a sociologia pode ajudar os cristãos a se
tornarem mais cheios de insights. Ele usa o termo marginal como
eu uso ao pensar em minha experiência migratória. Se aprender­
mos a pensar como sociólogos cristãos, poderemos olhar para
ambos os lados. Nossa tendência a pensar somente na religião como
salvação pessoal e fé pode ser corrigida à medida que formos com­
preendendo as implicações sociais da vida e ensinamentos de Je­
sus. “Precisamos da reflexibilidade que o Cristianismo bíblico e a
sociologia podem prover - não apenas cada perspectiva aprendi­
da, mas ambas as perspectivas combinadas, de forma que uma
possa agir como desafio para a outra.” 23
U M A PERSPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A 2 0 3
David A . Fraser e Tony Campolo concluem seu livro Sociology
Through the Eyes o f Faith (Sociologia pelos Olhos da Fé) com
sugestões para combinar as verdades da sociologia com o pensa­
mento cristão. Eles expressam pesar pelo fato de alguns cristãos
mal informados rejeitarem completamente a sociologia, e a cha­
marem de “nada mais que humanismo secular” . Esses sociólogos
cristãos recomendam com insistência que os estudantes não ne­
gligenciem o que a disciplina tem a oferecer. De maneira oposta,
alguns são levados pelas explicações seculares a acreditar que os
fenómenos religiosos são “nada mais que a operação de princípi­
os sociais e psicológicos” .
Fraser e Campolo usam a expressão “parceria pela verdade”
para descrever o modelo para evitar extremos. Os cristãos podem
tirar proveito do conhecimento sociológico útil e, ao mesmo tem­
po, ajudar outros a compreender as verdades bíblicas. A aborda­
gem deles representa uma estratégia que cria os parceiros do diá­
logo numa conversa cuja meta é descobrir e expressar a verdade.
“A maior premissa é que a verdade de Deus na B íb lia e a verdade
das realidades sociais são compatíveis, mesmo quando essa com­
patibilidade nem sempre é imediatamente óbvia.” 24
Alguns Princípios da Personalidade
Um dos meus professores de faculdade pediu que os alunos
deixassem todos os pertences no corredor durante as provas. Lem ­
bro-me de ter olhado as pilhas de livros e roupas e pensado: Ele
não gosta de nós. Ele pensa que todos nós somos trapaceiros.
O que cremos ser verdade sobre as pessoas afeta em geral o
modo como tratamos indivíduos e grupos. Desde os mais prim iti­
vos registros do pensamento humano ficamos sabendo que as pes­
soas procuraram analisar a natureza humana, a -----------------fim de planejar relações e estabelecer a ordem
Os cristãos podem tirar proveito do
social. Im plícito nos escritos antigos de todas
as civilizações está o conceito de que a bonda­
conhecimento sociológico útil e,
de humana está, de alguma maneira, compro­
ao mesmo tempo, ajudar outros a
metida. Grandes pensadores sentiram o poten­
compreenderem as verdades
cial para o bem e ficaram perplexos com a in­
capacidade das pessoas viverem no potencial
bíblicas.
delas.25 Uma idéia comum passa por todos os
filósofos sociais: O comportamento humano é
dirigido por uma sensação de necessidade que deve ser satisfeita,
contida ou dirigida.26
Esforços em aplicar o conhecimento da psicologia e sociolo­
gia conduziram a uma estratégia e conclusão semelhantes. Para
saber como aproximar-se das pessoas e provocar mudanças dese­
jadas, psicólogos, assistentes sociais e pedagogos tiveram de per­
guntar: Como as pessoas realmente são? Muitos deles responde­
ram descrevendo os seres humanos em termos de necessidades.
2 0 4
BILLIE D A V IS
Durante meus anos nos campos de colheita, os estudiosos usa­
ram vários termos, como desejos e impulsos, para descrever o que
a maioria deles hoje chama de necessidades. Engendraram várias
listas e teorias que explicam como a satisfação das necessidades
relacionam-se com o comportamento. Em um princípio eles con­
cordam: Todos os seres humanos, de algum maneira, tentam satis­
fazer suas necessidades. O comportamento negativo é resultado
de não se saber quais são as necessidades reais ou de procurar
satisfazer as necessidades reais de maneira errada. As personali­
dades individuais desenvolvem-se do modo como as pessoas per­
cebem suas necessidades e procuram satisfazê-las.
T e o r ia s
de
S a t isf a ç ã o
de
N e c e s s id a d e
A Hierarquia de Maslow
A hierarquia de necessidades elaborada por Abraham Maslow
é o melhor modelo conhecido de teoria de satisfação das necessi­
dades. E le relaciona cinco necessidades, começando com as que
ele considera muitos básicas. Sua teoria sugere que não somos
motivados a satisfazer as necessidades
superiores até que as inferiores sejam sa­
tisfeitas. Por exemplo, um homem com
fome procuraria arranjar comida antes de
sentir-se em segurança. Uma mulher pre­
ocupada com sua segurança se importaria
menos com o que as pessoas pensam dela.
Em suma, esta é a hierarquia:
A hierarquia de
necessidades de
Maslow
1. Necessidades fisiológicas - sobre­
vivência, funcionamento físico do corpo.
2. Necessidades de segurança - proteção, estabilidade, liberdade do medo.
3. Aceitação e amor - afeto, aceitação
dos outros.
4. Necessidades de estima - amor-próprio, sensação de domínio e realização.
5. Auto-realização - a necessidade de
desenvolver o pleno potencial.27
O Modelo de Brill
Naomi I. B rill propõe um modelo no qual duas categorias prin­
cipais de necessidades — a necessidade de segurança e a necessi­
dade de oportunidade para crescer — estão relacionadas com cin­
co aspectos da personalidade humana: o aspecto físico, o aspecto
emocional, o aspecto intelectual, o aspecto social e o aspecto es­
piritual.28
Diferente do modelo de Maslow, o de Naomi não coloca as
necessidades numa hierarquia. Cada categoria de necessidade in­
terage com cada aspecto da personalidade.
U M A PERSPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A 2 0 5
A primeira necessidade primária é de segurança. O aspecto
físico da personalidade expressa a necessidade de bens materiais.
O aspecto emocional, a necessidade de amor e aceitação. O aspec­
to intelectual, a necessidade de saber, entender e dominar o co­
nhecimento e as habilidades. O aspecto social, a necessidade de
relacionamentos significativos. Finalmente, o aspecto espiritual
expressa a necessidade de ter satisfações internas.
A segunda necessidade primária é de oportunidade para cres­
cer. A s pessoas precisam de algo mais que segurança. Precisam da
oportunidade de crescer, desenvolver a maturidade e alcançar o
potencial em cada um dos cinco aspectos da personalidade.
P e r s p e c t iv a s H u m a n is t a s
O que torna as pessoas reais? Embora muitos estudiosos ten­
tem evitá-la, até certo ponto todas as suas teorias dependem desta
questão. Minhas pesquisas indicam que alguém em cada geração
tentou caracterizar a natureza humana - descrever qua­
lidades e comportamentos específicos que põem
as pessoas de lado de todas as outras naturezas. Pesquisas nas ciên cias so ciais e
comportamentais concentram-se muitas
vezes nas semelhanças entre os seres
humanos e os animais inferiores. Por
exemplo, os antropólogos enfatizam
que os seres humanos e os animais
inferiores têm a habilidade de apren­
O
der, fazer ferramentas, comunicar-se
IN DIVÍDUO
e formar relações sociais. Além de
ASPECTO S
TO TA L
ASPECTOS
concordarem nestas habilidades, os
ESPIR ITU A IS
IN TELEC TU A IS
antropólogos têm obtido pouco con­
senso. Por exemplo, discordam sobre
quais características são diferentes ape­
ASPECTO S
nas em grau e quais são diferentes em tipo.
SO CIAIS
Uma exposição ambiciosa da
psicologia humanista arrola as
características humanas em duas
SEG U R A N Ç A —
O PO RTU N ID AD E D E
categorias: as características
Amar e ser amado, reC R ESC IM EN TO —
comportamentais, que são aces­
lacionar-se com os ou­
Desenvolver a maturida­
síveis à observação direta, e as
tros, ter as necessidades
de e a realização do po­
características experienciais, que
materiais satisfeitas.
tencial máximo.
requerem relatórios subjetivos,
A Hierarquia de necessidades de Brill
inferências e interpretação. Entre
as características comportamentais estão: idioma que seja organiza­
do e governado por normas; fabricação de ferramentas no sentido
mais abrangente, incluindo o uso de fogo e as ilimitadas invenções e
tecnologia; e produção de cultura, significando a variedade infinita
das adaptações humanas, costumes, leis, religião e todas as atividades
desenvolvidas para satisfazer as necessidades não biológicas.
As características experienciais incluem a consciência refle­
xiva, a consideração ética, os desejos estéticos, a consciência his­
tórica e a preocupação m etafísica. A consciência reflexiva referese à habilidade de saber e saber que sabe, para engajar-se na ima­
ginação, autocrítica, formulação de hipóteses, especulação filosó­
fica e o desenvolvimento do conceito de si mesmo. A considera­
ção ética significa um senso de certo e errado, de bom e de mau, e
muitos valores transcendentes que não podem ser responsabilizados
pelo condicionamento social. Os desejos estéticos são os expres­
sos nas atividades que servem somente para o propósito do prazer
sensório ou simbólico, destituído da preocupação utilitária.
A consciência histórica, ou uma sensação de tempo, diz respei­
to à capacidade de olhar para trás e planejar para frente, e estar ciente
da morte. Finalmente, a preocupação metafísica leva a fazer pergun­
tas últimas, a capacidade de lidar com o infinito, a eternidade, as
origens e os propósitos últimos e a expressão da religião.29
Perspectivas Bíblicas
Duas idéias emergem de todos os estudos e controvérsias so­
bre a natureza humana. Uma é que a religião é comportamental e
experiencialmente universal. A outra é que todos os cientistas e
estudiosos reconhecem uma qualidade humana que mantém-se
significativamente à parte, e com a qual todas as outras caracterís­
ticas humanas estão relacionadas. É a nossa capacidade extraordi­
nária de lidar com símbolos.30Quando os investigadores seculares
declaram que o idioma é um instinto humano sem igual, meu res­
peito pela erudição se eleva. Acredito que descobriram por estudo
diligente e meditação aquilo que aprecio como a verdade básica
da relação divina-humana. Deus nos criou com a capacidade de
entender e criar o idioma, ou nunca poderíamos ter conhecido o
Verbo ou sabido que o Verbo se fez carne (João 1.14).
As crianças nascem religiosas? Interpretando o religioso como
uma força em direção ao relacionamento com Deus, creio que sim.
Baseio meu raciocínio em duas outras questões: As crianças nas­
cem com fome? Por quê?
A psicologia e a sociologia nos dão muitas informações valio­
sas, mas deixam de explicar adequadamente como e por que nos­
sas ações são o resultado de nossas necessidades. Seus esforços
em explicar deixam a desejar, porque omitem o fato do propósito
humano. Antes de respondermos a pergunta do que faz as pessoas
serem o que são, temos de enfrentar a pergunta maior: Para que
são as pessoas? Só nas Escrituras podemos achar uma explicação
adequada. Deus formou os seres humanos para que estes cumpris­
sem o propósito dEle. Se não entendermos esse propósito, nada
fará sentido completo. Esse propósito é glorificar a Deus, amar e
ser amado por E le , e desfrutar para sempre da interação com E le e
sua criação.
U M A PERSPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A 2 0 7
Pense no relato do Génesis. Deus criou Adão e Eva à sua ima­
gem. Ele convidou Adão a unir-se na criação dando nomes aos
animais. Sua primeira reflexão sobre Adão foi que ele precisava
de uma companheira. Poder-se-ia dizer que a primeira interação
de Deus com os seres humanos foi uma sessão pedagógica: Ele
lhes disse para se reproduzirem e encherem a terra. Ordenou-lhes
que cuidassem de sua criação. E não menos importante, ao determinar-lhes que não comessem de certa árvore,
estava lhes dizendo para conterem seus impul­
Suponha que você fosse Deus.
sos e serem obedientes à sua autoridade.
Diante de propósitos declarados,
Não podemos ir longe ao fazermos pergun­
tas sobre a natureza humana sem emitirmos a
que tipo de pessoa você criaria?
declaração básica de que somos criados por
Deus para seus próprios propósitos. Compar­
tilhamos sua imagem mas, como parte da criação, estamos sujei­
tos às leis naturais. As vezes, choco meus estudantes ao dizer:
“ Suponha que você fosse Deus. Diante dos propósitos declarados,
que tipo de pessoa você criaria? Que qualidades essenciais você
lhe daria para tomar possível a realização desses propósitos?” A
resposta é que você formaria dentro da natureza de sua criatura,
junto com o potencial para o desenvolvimento, necessidades fortes desejos ou apetites. Assim Deus criou as pessoas com ne­
cessidades. Deu-lhes fome para que comessem e sobrevivessem.
Deu-lhes desejos sexuais que incentivassem a intimidade humana
e assegurassem o acasalamento e a procriação.
Então, será que Ele as deixaria sem um apetite espiritual para
incitá-las à razão última delas existirem ? Não. Ele as criou com
uma necessidade de Deus, à qual seu Espírito falaria, atraindo-as
a Ele. As necessidades poderosas de amor e aceitação movem as
pessoas para formar relações atenciosas com Ele e outros seres
humanos.
Porque o propósito básico da humanidade é estar com Deus,
nossa necessidade primária é estar em harmonia com E le . Esta
necessidade leva-nos a procurar e aprender e, assim, desenvolve­
mos as qualidades da imagem de Deus. Nossa necessidade de pen­
sar e escolher, criar e ser tudo a que fomos designados ser, faz-nos
potencialmente compatíveis com nosso Criador. A B íb lia começa
com Deus criando os seres humanos e dando-lhes instruções
concernentes ao seu propósito para as pessoas e a natureza. Do
relato da criação do Génesis à Grande Comissão registrada no
Evangelho de Mateus, a B íb lia é uma história de como Deus tra­
balha nas pessoas para gerar e manter seu propósito.
Nosso propósito é o propósito de Deus. O pecado entrou na
nossa natureza quando este potencial de ser como Deus foi explo­
rado de modo abusivo. A Queda de Adão e Eva é a demonstração
original de como todos os males e dificuldades são provenientes
de não entendermos as necessidades reais humanas, ou de tentar­
mos satisfazê-las de maneira errada.
2 0 8
BILLIE D A V IS
O C o n c e i t o P e ss o a I n c l u i R e l a c i o n a m e n t o s
Considere as seguintes declarações sobre você e os outros. Você
compartilha com os outros algumas necessidades e metas. Você
interage com essas pessoas e trabalha com elas de vários modos
para satisfazer suas necessidades e alcançar suas metas. Você re­
conhece um padrão em seus relacionamentos, inclusive liderança,
papéis individuais e responsabilidades. Você
sente a lealdade e uma sensação confortável
de
afeto para com essas pessoas. Em essência,
As Escrituras indicam claramente
estas declarações definem a sociedade grupai.
que aceitação e união são o estado
Você é aceito.
natural dos seres humanos.
Se você meditar seriamente no conceito de
aceitação, talvez fique surpreendido ao perce­
ber que quase toda atividade significativa de
sua vida requer algum tipo de associação. Pense em seu nome,
endereço, nacionalidade, classe, profissão. Você é o que é e faz o
que faz num contexto de aceitação. Considere suas necessidades
mais profundas e seus objetivos mais sublimes. O que é importan­
te para você? O que é agradável e satisfaz? Na maioria dos casos
você se achará pensando em termos de relacionamentos: fam ília,
amigos, grupos na igreja, grupos no trabalho.
Muitas das necessidades são satisfeitas e metas são atingidas
no contexto das interações interpessoais. Isto é tão natural aos se­
res humanos que frequentemente nem é percebido. Os prazeres
mais elevados vêm do compartilhamento. E no lado negativo, as
decepções mais dolorosas e os problemas mais angustiantes sur­
gem dos relacionamentos interpessoais, comunicação defeituosa
e rejeição real ou percebida - a não aceitação.
As Escrituras indicam claramente que aceitação e união são o
estado natural dos seres humanos. Deus disse: “Façamos o homem
à nossa imagem” (Génesis 1.26). Aqui a idéia do plural e a idéia da
natureza humana são introduzidas simultaneamente. As declarações
criativas de Deus até este ponto são traduzidas como mandamentos
impessoais: “Haja luz” , “Produza a terra erva verde” . A seguir, o
estilo de expressão muda completamente com a criação dos seres
humanos. Não é mais passivo e impessoal, mas íntimo e plural. Tam­
bém notamos que o registro não mostra Deus preocupado com a com­
panhia dos animais inferiores. Mas Ele disse que não era bom que a
pessoa ficasse só. E isto apesar do fato de que Deus é todo-poderoso e
poderia dar a Adão qualquer tipo de ajuda. Ele introduz o impressio­
nante conceito de que Adão precisa de uma ajudante!
Rejeitar as teorias naturalistas que apresentam as pessoas como
produtos da sociedade, pode, às vezes, nos levar a depreciar a de­
pendência e a cooperação. Dando forte ênfase na salvação pesso­
al, os evangélicos tendem a promover o individualismo e podem
até negligenciar a responsabilidade social. Mas as Escrituras ensi­
nam que a aceitação permite a pessoa fazer contribuições signifi­
cativas. A pessoa cristã é membro do Corpo de Cristo.
U M A PERSPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A 2 0 9
Jesus disse: “Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, [...] o pão
nosso de cada dia dá-nos hoje. Perdoa-nos as nossas dívidas, as­
sim como nós perdoamos aos nossos devedores. E não nos deixeis
cair em tentação, mas livra-nos do mal” (Mateus 6.9-13). A ora­
ção que Jesus nos ensinou a fazer é uma oração de grupo. Talvez
nossa tendência a pensar em religião como experiência completa­
mente individual nos cegue para o fato de que Jesus pensou nos
discípulos como um grupo de pessoas mutua­
mente dependente. Se isto é assim, então po­
demos concluir com precisão que a vontade
Os cristãos não podem achar
dEle é que cuidemos uns dos outros. Quem
respostas completas se não
poderia dizer com sinceridade: “ O pão nosso
tratarem da questão da
de cada dia dá-nos hoje” e não se importar que
influência cultural.
outras pessoas estejam passando fome? Quem
poderia falar sinceramente: “E não nos deixeis
cair em tentação, mas livra-nos do mal” e não
ligar para aqueles que estão sendo enganados por sistemas de va­
lor mundanos e pelas pressões sociais?
Em ambos os Testamentos alguns termos que se referem a uma
pessoa ou ao povo de Deus são intercambiáveis. As Escrituras des­
crevem o comportamento, como o pecado, tanto individual (por exem­
plo, 1 Samuel 25.17) quanto coletivo (por exemplo, 1 Samuel 15.18).
Outrossim, as evidências bíblicas inequivocamente implicam que as
pessoas são designadas a relacionar-se umas com as outras: cuidar
umas das outras, interagir, cooperar e compartilhar experiências e res­
ponsabilidades (por exemplo, 2 Coríntios 1.3-7). De fato, é impossí­
vel ou ser completamente humano ou ser somente cristão.31
As M
udanças
S o c ia is A f e t a m O s R e l a c io n a m e n t o s
Assim como a psicologia e a sociologia não podem dar respos­
tas completas caso não abordem o propósito da humanidade, as­
sim os cristãos não podem achar respostas completas se não trata­
rem da questão da influência cultural. Os estudos nas ciências
comportamentais ajudam-nos a entender que os relacionamentos
entre as pessoas são determinados mais pelos costumes e atitudes
socialmente construídos do que pela natureza humana ou traços
de personalidade individuais.
Na primeira aula de sociologia que assisti, aprendi uma pala­
vra nova: coorte. Significa um grupo de pessoas nascidas em cer­
to período de tempo, crescendo sob influência das mesmas condi­
ções sociais e económicas, afetadas pelos mesmos eventos histó­
ricos. “A s gerações não são tão diferentes umas das outras, por­
que as pessoas são jovens ou velhas” , explicou o professor. “Não
há tanta mudança na maneira como as pessoas pensam, à medida
que passam da adolescência para a maioridade. São diferentes
porque pertencem a coortes diferentes.”
Recentemente a idéia de coorte foi popularizada. Nos Estados
Unidos, damos nomes às gerações chamando-as, por exemplo, de
210
BILLIE D A V IS
Baby Boomers,32 Baby Busters33 e Geração X . Assim , não é sim­
plesmente porque sejam velhos que os pais e avós pareçam pensar
tão diferentemente dos filhos e netos. Pensam diferentemente,
porque pertencem a um coorte diferente. Foram influenciados por
políticas governamentais, estilos, modas, idéias, mídia e tecnologia
diferentes.
O modo como as pessoas percebem suas próprias situações
hoje e como interpretam as ações dos outros, normalmente refle­
tem mudanças no modo como a sociedade vê os papéis do homem
e da mulher, o divórcio, os comportamentos sexuais, a maternida­
de de mães solteiras. A s pessoas sentem-se ofendidas, oprimidas
ou vítimas de diferentes maneiras por causa dos valores e costu­
mes variáveis. Palavras e ações que outrora eram consideradas
normais, hoje formam a base para processos judiciais. Palavras e
ações que antigamente eram consideradas más e ofensivas, hoje
são aceitas como normais.
Rememore as mudanças que moldaram sua vida: Os avanços
técnicos que o colocaram fora do compasso com pessoas mais
velhas em um mundo que veio do rádio para a televisão ,
videocassete, computadores interativos. Avan­
ços. Divórcio. Estilos de música, vestuário e
O modo como nos relacionamos
datação. Mudanças económicas e programas
governamentais. Considere como estes fenó­
com aqueles que nos cercam é
menos mudam o modo como nos relaciona­
influenciado pelos valores e
mos com as pessoas. Muito de nosso tumulto
costumes mutáveis de nossa
interpessoal não é inteiramente pessoal. O
sociedade.
modo como nos relacionamos com aqueles que
nos cercam - membros da fam ília, amigos,
cônjuge, chefes, vizinhos, companheiros de
viagem em ônibus e aviões, as pessoas de várias formações raciais
e os pobres - é influenciado pelos valores e costumes mudáveis de
nossa sociedade.
A história nos mostra que as mudanças sociais e económicas
influenciam como as pessoas se relacionam umas com as outras.
Nas sociedades p rim itiv a s, as pessoas entendiam sua
interdependência. Elas sabiam que todos iriam sobreviver ou pas­
sariam fome juntas. Por isso, o que quer que tivessem era compar­
tilhado. Os indivíduos relacionavam-se de perto com o grupo in­
teiro. No período do Antigo Testamento, as leis de Deus fizeram
do cuidar dos outros uma obrigação religiosa. O Senhor ordenou
que as sociedades hebraicas provessem sistematicamente a subsis­
tência dos pobres. Deixar de fazê-lo era pecado lastimoso, assunto da
repreensão e advertência dos profetas.34As famílias de várias gera­
ções eram responsáveis umas pelas outras, como também pelos em­
pregados e estrangeiros que precisavam de hospitalidade. Jesus
exemplificou e ensinou a igualdade absoluta no status social.
O mundo de hoje acha-se em nítido contraste com o mundo do
Antigo Testamento. Nas sociedades industriais modernas exigi­
U M A PERSPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A
mos direitos individuais, enfatizamos as possessões particulares e
competimos por posições de status. A s pessoas muitas vezes não
sentem nenhuma obrigação em compartilhar o que têm. Se com­
partilham, consideram em geral como ato de caridade e colocam
as pessoas necessitadas num nível social mais baixo que elas. A
falta de habitação e a pobreza das mães solteiras têm origens em
atitudes relativamente recentes sobre a coesão e responsabilidades fam iliares.
A maneira como as pessoas percebem umas às outras, com re­
sultados positivos ou negativos, é afetado ou até ditado pelas in­
venções sociais. Um exemplo de mudança que pode ter efeito sig­
nificativo no modo como as pessoas pensam e agem em relação
umas com as outras, é a lei americana que requer acesso igual aos
deficientes físicos nas escolas e repartições públicas. Antes da le­
gislação americana, carregávamos as pessoas de cadeiras de rodas
por obras de cantaria e escadas. Hoje ouço as pessoas com incapa­
cidade física reclamarem da indignidade im plícita por algum tra­
tamento diferente, só porque eles se movem sobre rodas e não
com as pernas.
As leis americanas dos direitos civis mudaram as relações interraciais. Como prova de quão consequente algumas mudanças po­
dem ser, precisamos apenas considerar a mudança oficial na des­
crição dos psicólogos do termo homossexualidade, de uma “pato­
logia” a um “ estilo de vida alternativo” .
Quando entendermos o quanto as mudanças sociais podem afetar nossas atitudes e relacionamentos, então seremos mais capa­
zes de evitar resultados negativos. As Escrituras, iluminadas pelo
Espírito Santo, ajudam-nos a ver a nós e aos outros segundo a
perspectiva de Deus. A fé cristã nos dá insights e nos faz menos
sujeitos à influência dos fatores sociais. O apóstolo Paulo dá este
conselho: “E não vos conformeis com este mundo [- com esta era,
moldada e adaptada de acordo com seus costumes externos e su­
perficiais —], mas transformai-vos pela [inteira] renovação [mudan­
ça] do vosso entendimento [- mediante seus novos ideais e suas no­
vas atitudes], para que experimenteis [por vós mesmos] qual seja a
boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Romanos 12.2, amplia­
ções extraídas de A Bíblia Amplificada, versão em inglês).
O Ser Humano das Escrituras
Voltemos à pergunta com a qual abrimos este capítulo: O que é
um ser humano real? Os teólogos explicam a natureza do género
humano pela referência à linguagem bíblica. Por exemplo, Deus
criou Adão da terra e Eva do corpo de Adão, separados de si mes­
mo e dos animais previamente criados. Além do mais, os seres
humanos são parte da natureza como a mais alta criação de Deus,
ainda que distintos da natureza criada à imagem de Deus. Os ter­
mos usados ao longo do Antigo e Novo Testamentos indicam que
211
212
"O
BILLIE DAVIS
as palavras Adão e homem incluem macho e fêmea, e distinguem
os seres humanos do próprio Deus, dos anjos e dos animais. Todas
as pessoas descenderam de Adão e Eva e, portanto, todos somos
de uma raça humana.
A questão da natureza humana logo conduz a outra pergunta:
Que componentes compõem a pessoa e como estes componentes
estão mutuamente relacionados? Como não seria diferente, as di­
ferenças de opinião surgem à medida que diversos estudiosos dis­
cutem os componentes que compõem uma pessoa inteira. A B íb lia
usa palavras traduzidas por corpo, coração, mente, vontade, alma,
espírito e por várias outras partes do corpo, como rins e entra­
nhas. Reparando que o uso destes termos é ambíguo, o teólogo
Timothy Munyon questiona se é possível incorporar todos eles
em um único modelo coerente da pessoa humana. E le , juntamente
com a maioria dos estudiosos bíblicos, identifica três posições:
Tricotomia. Esta interpretação vê os seres humanos compos­
tos de três partes: corpo, alma e espírito. O corpo refere-se à exis­
tência física e liga o ser humano a todas as outras criaturas vivas.
A alma é o princípio da personalidade, incluindo os sentidos e as
emoções. O espírito é o poder mais alto que
diferencia os seres humanos de todas as outras
corpo é tanto quanto a 'pessoa'
formas de vida, e capacita a pessoa a ter co­
munhão com Deus.
é a alma".
Dicotomia (ou dualismo). Esta interpreta­
— Vincent Rush
ção considera os seres humanos em duas par­
tes: material e im aterial, distinguindo o corpo
físico das qualidades mentais e emocionais não físicas. Historica­
mente, esta interpretação tem sido a visão mais amplamente acei­
ta entre os teólogos evangélicos.
Monismo. Esta interpretação vê os seres humanos como uma
unidade indivisível.35 A pessoa é um ser unificado, em vez de ter
tantos componentes. Muitos estudiosos modernos preferem esta
interpretação do registro bíblico. Advertem, entretanto, que a pes­
soa é uma unidade condicional, significando que corpo, alma e
espírito são aspectos do todo, não um acoplamento das partes se­
paradas.36
Os estudiosos cristãos nos campos da psicologia e sociologia
lembram-nos constantemente de que a B íb lia não é um livro de
ciência. E um relato de Deus e seu relacionamento com a criação.
E um livro de histórias, ensinos e exemplos de vida. Muitos destes
estudiosos traduziram e interpretaram passagens bíblicas para com­
por descrições da natureza humana. Porquanto não tenham alcan­
çado unanimidade, parecem estar convergindo para as seguintes
conclusões:
Para começar, a B íb lia oferece um modelo psicossocial (ou
seja, pessoal e relacional) geral do ser humano. A natureza huma­
na é uma unidade psicofísica (ou seja, carne animada pela alma).
As referências ao corpo e à pessoa interior não indicam partes
UMA PERSPECTIVA SOBRE A NATUREZA HUMANA 2 1 3
separadas; antes parecem referir-se a certas funções da natureza
humana. O corpo é o aspecto do nosso ser consciente do mundo.
Foi criado por Deus e não deve ser considerado mau em si mes­
mo. Não temos corpo. Somos corpo. Como Vincent Rush desta­
cou: “O corpo é tanto quanto a ‘p essoa’ é a alma”?1
Segundo, a palavra traduzida por alma é usada de várias ma­
neiras. Significa criatura vivente, uma pessoa fisicamente viva,
tangível e real. O conceito de alma refere-se frequentemente ao
intelecto, emoções e vontade. Nossa alma define nosso ser, define
quem somos. Não temos alma. Somos alma.
Terceiro, mente e emoções não estão separadas do corpo. Tudo
está indissoluvelmente unido como pessoa.
Quarto, o espírito diz respeito à nossa relação com o mundo
espiritual que não vemos. É a nossa consciência de Deus. Paulo
muitas vezes usa os termos espírito e carne não para se referir a
duas partes da pessoa, mas a duas atitudes e estilos de vida.
Finalmente, a vida terrestre para os cristãos será seguida por
um corpo ressuscitado e uma renovação de vida. Não sabemos os
detalhes exatos. A imagem do Novo Testamento é de uma unidade
corpo-mente restaurada e aperfeiçoada.38
A Im agem
de
D eus
M uitos cristãos estudiosos em filo so fia e nas ciências soci­
ais e comportamentais são compelidos a abordar o conceito
imagem de Deus, porque toda teoria envolve a questão da natu­
reza humana. O que significam exatamente as palavras bíblicas?
Uma resposta generalizada é que se referem ao modo como a
natureza humana reflete algo da natureza de Deus. Dizem res­
peito aos elementos da personalidade e individualidade, a exis­
tência do potencial, a possibilidade de desenvolvimento, a li ­
berdade de escolha, a responsabilidade m oral, a habilidade c ri­
ativa, a capacidade de amar e ser santo.
C . Stephen Evans declara: “ A imagem de Deus consiste na­
quele complexo de atividades que são distinta e exclusivamente
humanas” . Então, ele propõe uma lista para ampliar seu significa­
do. O primeiro item na lista é o conceito de ação. Deus toma deci­
sões, faz planos e tem propósitos, e age segundo eles. A seguir, está o
conceito de agente, uma pessoa inteira, propositada, apreciada, racio­
nal, moralmente responsável, social, apaixonada e criativa.39
É característico dos sociólogos cristãos verem no conceito de
imagem de Deus não só substância, mas também relacionamento.
Pelo fato de termos sido feitos à imagem do Deus trino, somos
feitos para ser interpessoais e relacionais. Além de termos as qua­
lidades e capacidades divinas, os seres humanos refletem a ima­
gem de Deus quando respondem ao amor de Deus e quando se
relacionam de maneira santa em seu mundo. As habilidades e ca­
pacidades refletem a natureza de Deus. Os relacionamentos são a
expressão dinâmica de sua natureza.40
2 1 4
BILLIE DAVIS
O P e n s a m e n t o S o c ia l
no
A
n t ig o
T esta m en to
A forma plural no idioma bíblico (como no uso que Deus faz
de nós e nos em referência a Ele ) im plica uma associação, seme­
lhante ao conceito inglês de social. Elohim, o nome usado nas
Escrituras mais que qualquer outro, exceto Javé, é uma forma plu­
ral. Javé é o nome que está relacionado a guardar o concerto de
Deus. Está ligado com a promessa: “Eu serei contigo” . A socieda­
de hebraica começou na qualidade de povo nómade firmemente
unido, empenhado em se distanciar das relig i­
ões de múltiplos deuses dos outros povos e não
Os profetas Amós, Oséias e
tendo nenhum Deus senão Javé. O código do
Miquéias apareceram e clamaram
concerto original (os Dez Mandamentos e as
exposições adicionais das instruções de Deus,
contra as injustiças sociais e o
registradas em Êxodo 20 a 23) tem dois temas
declínio espiritual.
principais. Um é o relacionamento entre Deus
e a pessoa. O outro é o regulamento da organi­
zação social e os relacionamentos entre as pessoas. As fam ílias
extensas tinham de prover a subsistência dos seus membros sob a
liderança de um pai. A comunidade devia cuidar das pessoas em
condições desfavoráveis e estender hospitalidade para abranger
os estrangeiros. Esperava-se que aqueles que tinham mais bens
materiais compartilhassem com os que tinham menos.
Subsequentemente, à medida que os hebreus povoavam a Pa­
lestina e desenvolviam uma economia florescente, extremas d ivi­
sões de classe foram surgindo como resultado. Os ricos viviam
em extravagância. Eles violavam o código do concerto, ignorando
as situações difíceis dos pobres. No meio desta conjuntura, os pro­
fetas Amós, Oséias e Miquéias apareceram e clamaram contra as
injustiças sociais e o declínio espiritual. Estes profetas do século
V III a.C. reafirmaram os valores da fraternidade e denunciaram a
estratificação social. Enfatizaram o aspecto ético do servir a Deus,
e estabeleceram para o futuro Cristianismo a verdade de que nos­
sa religião deve ser praticada nos relacionamentos humanos. Como
os sociólogos cristãos mais recentes têm dito, Deus odeia a idola­
tria e a injustiça.41
O P e n s a m e n t o S o c ia l
no
N
ovo
T estam ento
Provavelmente a lição mais negligenciada sobre a preocupa­
ção social está incorporada no relato que Lucas fez do ministério
de João Batista. Muitos resumem esta passagem como pregar o
arrependimento e proclamar o caminho da salvação. Eles se es­
quecem de como João respondeu àqueles que lhe perguntaram o
que deveriam fazer se sua tradição como filhos de Abraão não
fosse suficiente. João respondeu abruptamente, em palavras dis­
tantes do ritual religioso: “ Quem tiver duas túnicas, que reparta
com o que não tem, e quem tiver alimentos, que reparta da mesma
maneira” . E le lhes disse que fossem justos e honestos em todos os
seus procedimentos com as pessoas, como indivíduos e represen­
UMA PERSPECTIVA SOBRE A NATUREZA HUMANA 2 1 5
tantes da sociedade. Sua mensagem não parou com uma advertên­
cia ao arrependimento. Em cada relato do ministério seu ponto era
que deviam se arrepender e produzir “ frutos dignos de arrependi­
mento” . Os detalhes acrescentados por Lucas mostram que este
fruto inclui cuidar das pessoas e fazer justiça social.
Embora os ensinos de Jesus enfatizem o valor dos indivíduos
como almas eternas, sua vida é um modelo para as relações huma­
nas aqui e agora. Por suas palavras e ações, E le apresenta o indiví­
duo como filho de Deus, escolhido para estar
em companheirismo com E le . Cada pessoa é
infinitamente preciosa, sem considerar barrei­
Nunca devemos apoiar de
ras naturais e diferenças, como raça, naciona­
qualquer forma a perpetuação
lidade ou posição social. Em Jesus, entende­
de qualquer coisa que prejudique
mos o verdadeiro significado da auto-estima,
uma apreciação do ego no contexto cristão, sem
as pessoas.
o individualismo da satisfação excessiva dos
próprios desejos.
Jesus afastou-se dos movimentos de reformas sociais, porque
seu propósito singular era demonstrar que os valores do Reino de
Deus são distintos dos valores dos sistemas humanos políticos e
económicos. Embora Seus ensinamentos não advoguem uma luta
contra a opressão social, eles exigem que aqueles que têm vanta­
gens compartilhem com os necessitados. Ele não hesita em falar con­
tra a hipocrisia. Ele apóia a santidade do casamento veementemente.
Seu modo de vida é a fam ília, a fraternidade e a comunidade.
Paulo e os outros apóstolos continuaram com os ensinos de
Jesus sobre a igualdade dos indivíduos diante Deus. Eles reconhe­
ceram as desigualdades inevitáveis do mundo caído, e ensinaram
que os cristãos deviam estar dispostos a aceitar e adaptar-se a al­
gumas delas. Até este ponto, a aceitação das condições sociais
existentes era vista como submissão a Deus e à sua vontade. Con­
tudo, a submissão nunca é desculpa para os cristãos serem apáti­
cos. Nunca devemos apoiar de qualquer forma a perpetuação de
qualquer coisa que prejudique as pessoas. Devemos monitorar nos­
sas atitudes e ações, e falar contra todas as formas do mal. Os
ensinos apostólicos sobre amor, igualdade e justiça lançaram fun­
damentos para uma ação social posterior. Hoje, os cristãos que
pensam e escrevem sobre assuntos sociais estão convencidos de
que os ensinamentos do Antigo e Novo Testamentos são claros
neste ponto: As pessoas são seres sociais e não podemos ser tudo
o que Deus nos designou ser como humanos individuais, a menos
que entendamos o fato de que somos seres sociais - isto é,
relacionais - e aceitemos nossas responsabilidades sociais.
O que Aprendemos das Respostas?
Os estudiosos modernos e os pensadores sociais reclamam que
as disciplinas da psicologia e sociologia estão fragmentadas em
escolas de pensamento, teorias contraditórias e especializações
diversificadas. Eles afirmam que há muita razão para se duvidar
que qualquer teoria única possa explicar os aspectos biológicos
dos processos mentais e a introspecção, emoções e motivações hu­
manas. Não emergiu nenhum corpo de respostas unificadas e fide­
dignas a perguntas sobre a natureza humana e o comportamento.
A divisão entre, de um lado, os médicos clínicos e os ativistas
sociais e, do outro, os cientistas académicos, amplia-se cada vez
m ais.42 Enquanto isto possa ser um problema para os teoristas se­
culares, que querem pacotes bem-feitos para ajustar-se ao modelo
da ciência natural, pode ser fonte de reforço para os estudiosos
cristãos nas ciências comportamentais. Como Heddendorf disse
sobre as linhas ocultas, fico emocionado quando os cientistas se­
culares admitem suas limitações. Há alegria em conhecer as ver­
dades unificadoras e dominantes que formam a base de qualquer
busca adequada da verdade total.
Este insight nos traz para nossa conclusão principal: Ouvir os
estudiosos é sábio e proveitoso se mantivermos nossa perspectiva
cristã. Se nos lembramos de que o erro básico em todas as ciênci­
as sociais e comportamentais acha-se no seu fracasso em lidar com
o propósito humano como criação de Deus, podemos estudá-las
vantajosamente e, no processo, aprender muito sobre nós mesmos e
os outros. As fontes do nosso comportamento são muitas e comple­
xas. Podemos resumir que a psicologia e a sociologia explicam em
geral a natureza humana nomeando três fontes de comportamento.
Biológico. Como seres humanos e como indivíduos nascemos
com características físicas e condições que afetam como respon­
demos aos estímulos (ou seja, aprendemos), e como nos desen­
volvemos como pessoas.
Psicológico. As pessoas percebem seu mundo de maneira seletiva, por causa de suas experiências. Elas tomam decisões e agem com
base na informação que têm ou pensam que têm. Cada experiência
afeta outras percepções, sentimentos, emoções, atitudes e motivações.
Socialização e determinismo social. A s pessoas adquirem as
crenças, costumes, valores e atitudes do seu grupo social e da cul­
tura. Elas aprendem o que se espera que façam e digam, a quem
respeitar e temer. Suas escolhas de estilo de vida podem ser restritas
severamente pelos fatores ambientais. Suas ações podem refletir in­
fluência e situações sociais mais que refletir suas próprias decisões.
Os princípios incorporados nesta explicação secular do com­
portamento são basicamente verdadeiros, por isso, as teorias são
úteis. Mas são incompletas e, por conseguinte, enganosas no sen­
tido de que implicam explicações totalmente humanas. Elas omi­
tem duas fontes fundamentais do comportamento: o impacto do
pecado e a direção do Espírito Santo.
Um grande mal-entendido entre os cristãos e os psicólogos nãocristãos envolve o significado do pecado. Os terapeutas e os assis­
tentes sociais são especialmente desastrosos com a palavra, por­
T
UMA PERSPECTIVA SOBRE A NATUREZA HUMANA 2 1 7
que pensam nela como um termo depreciativo dirigido às pessoas
em referência ao comportamento específico. A verdade bíblica é
que o pecado é a natureza caída da humanidade. Como resultado
da queda, o pecado é o nosso primeiro estado e a fonte primária do
comportamento humano. Todos sofremos as consequências do peca­
do de Adão, dos nossos próprios pecados e dos pecados dos outros.
A direção do Espírito Santo é a principal fonte ideal do com­
portamento cristão. O Espírito Santo nos atrai para a consciência
do amor de Deus e nos toma conscientes do pecado. E le desperta
nossas necessidades de propósito e significado de vida. A obra do
Espírito Santo é abrir a porta pela qual podemos entrar e ter segu­
rança e aceitação, como pessoas na comunidade cristã.
Minha Primeira e Melhor Resposta
Comecei este capítulo contando como vim a fazer a pergunta
que, mais tarde, descobri estar entre as investigações mais desafi­
adoras jam ais expressadas pelos seres humanos. Quando eu tinha
cerca de sete anos, descobri a chave que me levaria à resposta.
Aconteceu assim:
Em algum lugar enquanto seguíamos o fluxo migratório para
outra colheita, armamos nossa tenda ao lado de um rio. Naquela
época, podia-se deixar a auto-estrada e encontrar uma área para
acampamento satisfatória, onde se podia fazer fogueira, cozinhar uma
panela de feijão e usar a água do rio para lavar pratos e roupas.
“Este é um bom lugar” , meu pai dizia. “Ficaremos aqui até
domingo.”
De manhã, v i crianças atravessando a ponte. “ Onde será que
elas vão, todas tão arrumadas assim?” Pessoas reais. Incrível quanto
possa parecer às pessoas de classe média dos dias de hoje, eu esta­
va mais curioso do que amedrontado. Eu já tinha estado naquela
região antes, vendendo cestas. Segui-as até chegar a uma igreji­
nha nos lim ites do povoado e, por fim , vi-me dentro de uma classe
de Escola Dom inical.
L á eu ouvi a primeira resposta direta à pergunta do meu coração.
“ Vocês são filh os de Deus” , disse a professora, encarando-nos
a todos com um pequeno gesto muito expressivo. Foi como se ela
tivesse estendido o braço, qual fada com sua vara de condão, e me
dado identidade. Eu era filho de Deus.
Muitos sentem-se, às vezes, como migrantes, perdidos e con­
fusos. Alguns sentem-se culpados e culpando-se a si mesmos por
causa de atitudes, situações, fracassos. Outros acham que são re­
jeitados pelos outros. Alguns não se sentem realizados, e sim pres­
sionados em papéis ou obrigações que parecem sem sentido, ou
apanhados por forças desconhecidas em condições que não po­
dem explicar. Estão procurando significado, propósito, um lugar
onde sejam aceitos, e perguntam: Por que sou assim? Quem real­
mente sou? O que faz as pessoas serem o que são?
Depois de 60 anos de estudo, pesquisa e ensinamento nas ciên­
cias comportamentais, sei que a primeira resposta que recebi foi
vital, uma da qual depende todas as outras verdades sobre a natu­
reza humana. Se mantivermos isso em mente, podemos obter
insights e sabedoria da psicologia e da sociologia e de todos os
outros universos de conhecimento. É isto, em parte, o que quere­
mos dizer por cosmovisão cristã.
Revisão e Questões para Discussão
1. Explique por que os estudiosos têm dificuldades em definir
psicologia.
2. Por que a metodologia depende de algumas suposições so­
bre a natureza humana?
3. Descreva as diferenças básicas entre psicologia experimen­
tal, psicologia clínica e psicologia humanista.
4. O material apresentado aqui sobre psicologia humanista o
esclareceu sobre o conceito humanismo conforme ele é usado nas
ciências comportamentais? Explique. Você acha que podemos ser
humanistas cristãos?
5. Escreva uma definição completa de sociologia. Quais são os
dois principais objetivos da sociologia? Como o conhecimento em
ambas as áreas pode ser aplicado à vida e serviço cristãos?
6. Explique por que deixar de considerar o propósito humano é
a principal falha nas teorias psicológicas e sociológicas.
7. Margaret M . Paloma acredita que as suposições naturalistas
e humanistas são parcialmente compatíveis com a imagem bíblica
de pessoa. Explique o raciocínio dela.
8. Russell Heddendorf introduz a idéia de “linhas ocultas” da
verdade bíblica nas teorias académicas. Examine os modelos de ne­
cessidades de Maslow e B rill e destaque algumas linhas ocultas.
9. A autora sugere que ser uma “pessoa marginal” a ajudou a
procurar respostas e obter insights relativos à natureza e relacio­
namentos humanos. Como podemos aplicar este conceito para obter
o máximo das experiências académicas e cristãs?
10. Enumere algumas maneiras em que nossa visão da nature­
za humana afeta o conceito de nós mesmos e nossas atitudes e
relacionamentos sociais.
Projeto Sugerido para Reflexão
Quando estiver estudando para cursos em quaisquer das ciên­
cias sociais e comportamentais (psicologia, sociologia, antropo­
logia, assistência social, aconselhamento, governo, história), pro­
cure as “linhas ocultas” que ou apóiem a verdade bíblica ou lhe
sejam contrárias. Nos cultos da igreja e classes de Escola Domini­
cal, busque idéias, conceitos, suposições sobre a natureza humana
que ou sejam compatíveis com os estudos humanos, ou o levem a
questionar o ensino secular. Manter-se alerta nestas áreas lhe aju­
dará a obter o máximo da educação secular e da religião.
UMA PERSPECTIVA SOBRE A NATUREZA HUMANA 2 1 9
Bibliografia Selecionada
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Notas bibliográficas
1. Em português, usamos a palavra “psique” com o mesmo
sentido, ou seja, mente, alma, espírito (N. do T .).
2. American Heritage Dictionary ofthe English Language, 3.a
edição, no verbete “Psychology” .
3. Gary R . Collins, The Rebuilding o f Psychology (Wheaton,
Illin o is: Tyndale House Publishers, 1976), p. 137,
4. Howard H . Kendler, Historical Foundations o f Modern
Psychology (Chicago: The Dorsey Press, 1987), pp. 6-13. Consul­
te também Rene Descartes, Meditations on First Philosophy,
Meditation Two.
5. Ib id ., p. 20.
6. Collins, The Rebuilding o f Psychology, p. 48.
7. G. Marian Kinget, On Being Human — A Systematic View
(Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1975), Prefácio, p. v.
8. M . Ray Denny e Robert H . Davis, Understanding Behavior
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— Foundations and Applications (Genebra, Illin o is: Paladin House
Publishers, 1981), pp. 228, 407.
9. W illiam W. Menzies e Stanley M . Horton, fíible Doctrines
(Springfield, M issouri: Logion Press, 1994), p. 79.
10. David G. Myers e M alcolm A . Jeeves, Psychology through
the Eyes ofFaith (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1987),
P- 1111. Ibid ., p. 17.
12. Lester N. Downing, Counseling Theories e Techniques:
Summarized and Critiqued (Chicago: Nelson-Hall, 1975).
13. Paul C . V itz, “A Christian Theory of Personality: Covenant
Theory” , in: Thomas J. Burke, editor, Man an Mind: A Christian
Theory o f Personality (H illsdale, M ichigan: The H illsdale College
Press, 1987), pp. 199-202.
14. C ollins, The Rebuilding o f Psychology, p. 138.
15. No século IV a.C ., o filósofo grego Aristóteles explorou
algumas destas questões (além de outras) em sua obra Política.
No século X III d .C ., o teólogo cristão Tomás de Aquino examinou
as questões sobre a natureza dos seres humanos e as leis (naturais
e civis) que os governam nas Questões 90 a 92 de sua obra Suma
Teológica.
16. David Ashley e David M ichael Orenstein, Sociological
Theory: C lassical Statem ents (B o sto n : A lly n & B aco n ,
Incorporated, 1985), p. 95.
17. Ib id ., p. 117.
18. George Ritzer, Sociological Theory, 3.a edição (Nova York:
M cG raw -H ill, 1992), pp. 239-262.
19. Herbert Blum er, “ Social Disorganization and Personal
Disorganization” , American Journal o f Sociology, volume 42, maio
de 1937, p p .871-877.
20. Joshua Glen, “ Sociology on the Skids” , Utne Reader (No­
vembro/Dezembro de 1995), p. 28.
21. Margaret M . Paloma, “ Theoretical Models of Person in
Contemporaiy Sociology: Toward Christian Sociological Theory” ,
in: A Reader in Sociology: Christian Perspectives, editores Charles
P. De Santo, C alvin Redekop e W illiam L . Smith-Hinds (Scottdale,
Pensilvânia: Herald Press, 1980), pp. 202-210.
22. Russell Heddendorf, Hidden Threads: Social Thought fo r
Christians (D allas: Probe Books, 1990), p. 14.
23. Richard Perkin s, Looking Both Ways: Exploring the
Interface Between Christianity and Sociology (Grand Rapids:
Baker Book House, 1987), p. 170.
24. David A . Fraser e Tony Campolo, Sociology Through the
Eyes ofFaith (São Francisco: Harper/San Francisco, 1992), p. 300.
25. O tratamento clássico deste assunto aparece na obra de
Aristóteles Ética a Nicômano, Livro V II, onde Aristóteles discute
a questão da fraqueza moral (grego, akrasia).
221
26. Howard Becker e Harry Elm er Bames, Social Thoughtfrom
Lore to Science (Nova York: Dover Publications, Incorporated,
1961), volume 1, pp. 78, 79.
27. Abraham H . M aslow, Capítulo 4, in : M otivation and
Personality (Nova York: Harper & Row, 1970).
28. Naomi I. B rill, Working With People: The Helping Process
(Nova York: Longman, 1985), p. 27.
29. Kinget, On Being Human, pp. 3, 4.
30. Veja Steven Pinker, The Language Instinct (Nova York:
W illiam Morrow & Company, 1994). O argumento de Pinker apóia
a existência de um instinto de idioma. Embora para ele “instintos”
sejam qualidades biológicas desenvolvidas pela evolução, eu aceito
os fatos de sua pesquisa como apoio ao fato de Deus ter criado
tudo com um propósito.
31. Algum material desta seção foi adaptado de B illie D avis,
The Dynamic Classroom, 1987, e Renewing Hope (Springfield,
M issouri: Gospel Publishing House, 1995).
32. Acentuada subida na taxa de natalidade ocorrida nos Esta­
dos Unidos, imediatamente após o fim da Segunda Guerra Mun­
dial (1946 a 1964). (N . d o T.)
33. Acentuado declínio na taxa de natalidade nos Estados U ni­
dos ocorrido entre os anos de 1965 e 1985, num efeito bumerangue
à anterior geração de Baby Boomers. (N . do T .)
34. A preocupação pelos pobres é expressa 134 vezes no A nti­
go e Novo Testamentos.
35. A visão apresentada aqui como monismo, às vezes também
é conhecida pelo nome de hilomorfismo. Veja Vincent Rush, “What
Is It To Be Human?” , Capítulo 2, in: The Responsible Christian
(Chicago: Loyola University Press, 1984), pp. 25-73.
36. Timothy Munyon, “A Criação do Universo e da Humani­
dade” , in: Teologia Sistemática, editado por Stanley M . Horton
(Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1996),
pp. 238-245.
37. Rush, The Responsible Christian, p. 29.
38. Veja Menzies e Horton, BiblesDoctrines, pp. 84, 85; Myers
e Jeeves, Psychology, pp. 24-30.
39. C . Stephen Evans, Preserving the Person (Downers Grove,
Illin o is: InterVarsity Press, 1977), pp. 144, 145.
40. Fraser e Campolo, Sociology Through the Eyes o f Faith,
pp. 250-252.
41. Ib id ., pp. 238.
42. Morton Hunt, The Story o f Psychology (Nova Yo rk:
Doubleday, 1993), pp. 641-643.
6
Trabalho
Miroslav Volf
2 2 4
MIROSLAV VOLF
á um famoso personagem na literatura russa, o conde
Oblomov, que sofria de um tipo peculiar de enfermidade:
era preguiçoso. Enquanto a maioria de nós é ocasional­
mente afetado por esta enfermidade, nele tinha se tomado cróni­
ca. Ele desenvolveu um desgosto geral por toda atividade. V ivia
do rendimento de grandes propriedades, mas até isso lhe era mui­
to trabalhoso. Havia a necessidade de supervisionar a administra­
ção dos seus bens, visitar pessoas, levantar-se e vestir-se, masti­
gar a comida e engolir. Numa palavra, ele tinha de viver. Mas sua
preguiça monumental rebelou-se contra todos os privilégios. Por­
tanto, decidiu retirar-se em completa apatia — desistiu de super­
visionar suas possessões, recusou-se a ver a quem quer que seja,
não abriu a correspondência e até deixou as janelas fechadas para
que a luz do dia não entrasse. Porém, tudo isso foi em vão. Ainda
havia movimento demais em sua inatividade, sentia Oblomov.
Mesmo quando resolveu não fazer absolutamente nada, ainda res­
tava uma coisa que ele não podia deixar de fazer, um assunto que
nunca podia deixar de atender, um fardo que não podia deixar de
carregar, que é o assunto e o fardo de sua própria existência. Como
A lain Finkielkraut, de quem tomei emprestado esta história, es­
creveu em seu livro Wisdom ofLove (Sabedoria de Am or): “ Podese fazer greve contra tudo, mas não contra a própria existência.
Oblomov remove todos os obstáculos que ficam no caminho de
sua preguiça, apenas para bater contra esta barreira im óvel. Sua
preguiça não é senão um suspiro inútil” .1 Dá trabalho só existir.
Sem trabalho, sem vida — isto resume a lição que aprendemos da
tentativa fú til de Oblomov de não fazer absolutamente nada.
Contudo, para muitos de nós hoje a questão não é o quão pre­
guiçoso se pode ser sem deixar de viver, mas o quanto se pode
trabalhar sem desmoronar. Alguns são viciados em trabalhar, mas
a maioria sente que é forçado a trabalhar; outros precisam do tra­
balho para obter coisas, mas a maioria tem de trabalhar para so­
breviver. E , assim, trabalhamos um dia sim o outro também. No
livro The Overworked American (O Americano Sobrecarregado
de Trabalho), Juliet B . Schor destaca que as pessoas nas socieda­
des industrializadas estão presas no “ ciclo insidioso de ‘trabalhar
e gastar’ ,” 2E la escreve: “ Os empregadores pedem horas extras. O
pagamento cria um alto nível de consumo. As pessoas compram
casas e entram em dívida; luxos tornam-se necessidades; procurase ter um padrão de vida igual ou melhor que os vizinhos. A cada
ano, o ‘progresso’ , na forma de aumentos de produtividade anual,
é repartido por empregadores como renda extra em vez de dias de
folga. Trabalhar e gastar tomou-se poderosa dinâmica para nos
afastar de um nível de vida mais descontraído e tranquilo” .3 Nos­
so “ter” está numa corrida com o nosso “ querer” , mas o nosso
“ querer” é mais rápido que o nosso “ ter” . E assim parecemos as
vítimas da maldição de Lew is Carroll: “Então, veja bem, é preciso
toda essa lufa-lufa para você ficar no mesmo lugar” . Como afir­
H
f
mou John Kenneth Galbraith em seu clássico A Sociedade A flu­
ente, nossa luta em satisfazer os desejos é como o esforço “ do
esquilo em manter-se em dia com a roda que é propelida pelos
próprios esforços” .4
Se Oblomov quase “ se espreguiçou” até à morte, muitas pes­
soas estão hoje, nas palavras de Schor, “ literalmente trabalhando
até à morte — à medida que os empregos contribuem para as do­
enças do coração, hipertensão, problemas gástricos, depressão,
esgotamento e uma variedade de outras enfemidades” .5 Muito
pouco trabalho e não podemos sobreviver; muito trabalho e a vida
é sugada de nós. O trabalho é a nossa bênção e o trabalho é a nossa
maldição.
Pegos entre o trabalho como bênção e o trabalho como maldi­
ção, como viveremos? Que ajuda a B íb lia pode nos dar enquanto
nos esforçamos diariamente em nosso trabalho? Como o trabalho
se relaciona com quem Deus nos criou para ser? Qual é o lugar do
trabalho nos propósitos de Deus para nossa vida? Que tipo de tra­
balho está abaixo de nossa dignidade humana? Que tipo de im ­
pacto o trabalho cumulativo da humanidade causa em nosso am­
biente? Estas são perguntas importantes, mas geralmente ninguém
as faz. E , não obstante, a m aioria das pessoas gasta muito do seu
tempo trabalhando. Antes de eu tentar responder essas perguntas,
deixe-me declarar brevemente o que quero dizer por trabalho.
O que é Trabalho?
“ Se ninguém me perguntasse, eu saberia; se quero explicar a
quem me pergunta, não sei.” Era assim que Agostinho expressava
sua dificuldade em definir “tempo” . O mesmo parece verdade com
“trabalho” . Pensamos que sabemos o que é trabalho, mas, quando
tentamos pôr em palavras o que pensamos que sabemos o que é
trabalho, gaguejamos.
Começarei explicando o que é trabalho destacando algumas
coisas. Prim eiro, embora muito estrénuo, trabalho não é simples­
mente labuta e fadiga, como alguns tendem a pensar, interpretan­
do Génesis 3 em parte incorretamente. Na verdade, muitos gozam
do trabalho que fazem e os que fazem são os melhores trabalhado­
res. Não seria estranho dizer que os melhores trabalhadores não
trabalham? Segundo, trabalho não é simplesmente emprego re­
munerado. Em bora a m aioria das pessoas nas sociedades in ­
dustrializadas esteja empregada pela remuneração que perce­
bem, muitos trabalham duro sem receber pagamento. Pegue,
por exemplo, as donas de casa (raramente donos de casa) que
gastam quase todas as horas em que estão acordadas mantendo
uma casa em ordem e criando os filhos. Muitas delas com razão se
ressentem quando as pessoas insinuam que não trabalham; isto é
acrescentar um insulto (“você não trabalha” ) a uma injúria (elas
não recebem pagamento).
2 2 6
MIROSLAV VOLF
Precisamos de uma definição abrangente de trabalho, uma que
inclua o trabalho desfrutado e o trabalho sofrido, o trabalho remu­
nerado e o trabalho voluntário. Uma definição muito simples de
trabalho seria “uma atividade que serve para satisfazer as necessi­
dades humanas” : Você prepara uma refeição para ter algo que co­
mer; você digita manuscritos para receber um cheque. Em con­
traste, o propósito de jogar é jogar: Você joga futebol, porque gos­
ta de jogar futebol; você lê um livro , porque gosta de ler livros.
Claro que cozinhar pode ser seu passatempo; então você cozinha,
porque gosta de cozinhar, e encher estômagos vazios é, nesse caso,
um benefício colateral. Semelhantemente, jogar futebol (se você
é jogador profissional) ou ler livros (se você é aluno ou professor)
pode ser seu trabalho; então você joga, porque precisa de dinheiro
ou reconhecimento, e lê livros, porque precisa passar nos exames
ou preparar uma conferência; a pura diversão de jogar ou ler é,
então, uma coincidência feliz. Portanto, trabalhar é uma atividade
instrumental: Não é feito para o seu próprio bem, mas para satis­
fazer necessidades humanas.
Por que Trabalhamos?
Lembrando as tentativas fúteis de Oblomov para não fazer nada,
uma resposta rápida à pergunta, Por que trabalhamos?, seria: Por­
que não sobrevivemos sem trabalhar. Esta resposta, embora corre­
ta até certo nível, não diria muito sobre a razão de trabalharmos
no que tange ao propósito de nosso trabalho. Assim , voltarei a
abordar o trabalho como meio de “ manter corpo e alma juntos” na
próxima seção, O Propósito do Trabalho. Para os cristãos, a per­
gunta, Por que trabalhamos?, tem uma resposta mais profunda.
Prim eiro, Deus criou os seres humanos para trabalhar. Considere os dois relatos da criação nos primeiros capítulos de Génesis.
Em Génesis 1.26, lemos que Deus criou os seres humanos como
macho e fêmea para “ dominarem” sobre toda a terra. Dois
versículos mais adiante, Deus abençoou o primeiro casal humano
e ordenou-lhe que “ sujeitasse” a terra e “ dominasse” sobre todos
os seres vivos (o que, a propósito, não lhe deu licença para des­
truir o meio ambiente, assunto que abordarei mais tarde). O “ do­
mínio” , que só pode ser exercido pelo trabalho, é o propósito para
o qual Deus criou os seres humanos (não o único propósito, mas
um propósito). Que isso esteja mencionado aqui explicitamente é,
sem dúvida, significativo. O trabalho, podemos concluir, pertence
essencialmente à própria natureza dos seres humanos conforme
originalmente criados por Deus. Isto é porque encontramos reali­
zação pessoal no trabalho significativo, e, por outro lado, se não
podemos trabalhar achamos que nossa vida é vazia e sem sentido.
A mesma idéia é enfatizada até com mais vigor no segundo
relato da criação (Génesis 2.4b— 3.24). Quando lemos este texto é
frequente nos concentrarmos nas lições “ espirituais” importantes
r
TRABALHO 2 2 7
e negligenciarmos o fato de que o trabalho é um dos seus temas
centrais. O relato começa com a observação de que não havia nin­
guém para lavrar a terra (Génesis 2.5) e conclui com a declaração
de que Deus expulsou o homem do jardim do Éden para “lavrar a
terra, de que fora tomado” (Génesis 3.23). Dentro desta estrutura
a narrativa fala, de um lado, do trabalho e responsabilidade de
Adão cuidar do jardim (Génesis 2.15) e, do outro, do trabalho no
suor do seu rosto fora do jardim (Génesis 3.17-19). Conforme ar­
gumentou Goran A grell em Work, Toil and
Sustenance (Trabalho, Labuta e Sustento), o
modo como o trabalho paradisíaco no Éden se
"O trabalho pertence
tornou em labuta exaustiva fora do Éden é um
essencialmente à própria natureza
tema principal da narrativa.7
dos seres humanos criados por
Para o nosso intento aqui, é importante no­
tar que, depois da criação do homem, Deus o
Deus."
colocou no jardim do Éden com um propósito
explícito: “Para o lavrar e o guardar” (Génesis
2.15). A idéia hebraica de que a humanidade tinha a obrigação de
trabalhar no paraíso está em nítido contraste com as imagens gre­
gas de paraíso. Por exemplo, em Works and Days (Trabalhos e
D ias) o poeta grego Hesíodo insiste que no paraíso os seres huma­
nos deviam viver como deuses, “livres de trabalho e labuta” , que
a terra abundante devia de si mesma prover-lhes a subsistência
com seus frutos. Não é assim na B íb lia. Desde o começo, os seres
humanos foram criados para trabalhar. Além da vida sem trabalho
não ser possível, a vida sem trabalho para todos os que são física e
mentalmente capazes de trabalhar não seria significativo. De fato,
tal vida não seria adequadamente humana. O trabalho pertence à
própria natureza da humanidade. Naquilo que o ser humano “ sai
[...] para o seu trabalho” (Salmos 104.23), ele cumpre o plano ori­
ginal do Criador para a sua vida.
Para os gregos, viver como deuses significava viver sem traba­
lho. Para os hebreus, viver como Deus significava ter trabalho
significativo. A característica mais notável no relato da criação
apresentada no Antigo Testamento não é tanto que os seres huma­
nos são designados a trabalhar, mas que Deus trabalha.8 A p ri­
m eira vez que a idéia de trabalho ocorre na B íb lia não se refe­
re ao trabalho humano, mas ao trabalho divino: “ E , havendo
Deus acabado no dia sétimo a sua obra [trabalho], que tinha
feito, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha
feito” (Génesis 2 .2 ). A mesma palavra aqui traduzida por obra
(hebraico, mela ’khto, “ trabalho” ) para descrever a atividade de
Deus, descreve o trabalho humano ordinário, por exemplo, de
José, que “veio à casa para fazer o seu serviço [hebraico, nfia ’khto,
‘trabalho’]” (Génesis 39.11). Porque o Deus da B íb lia é trabalha­
dor, o trabalho tem dignidade humana e não apenas valor econó­
mico. Os seres humanos, criados à imagem de Deus, trabalham
porque o Deus deles trabalha.
2 2 8
MIROSLAV VOLF
Segundo, nós trabalhamos porque Deus nos dota e nos chama
a trabalhar. É de se esperar que o Deus que criou os seres huma­
nos para trabalhar, também lhes desses talentos para realizar as
várias tarefas e os chamasse para estas tarefas. E é exatamente isto
que encontramos no Antigo Testamento. O Espírito de Deus ins­
pirou os artesãos e artistas que projetaram, construíram e adorna­
ram o Tabernáculo e o Templo. “E is que o SEN H O R tem chama­
do por nome a Bezalel. [...] E o Espírito de
Deus o encheu de sabedoria, entendimento e
ciência em todo artifício. [...] Também lhe tem
"Porque o Deus da Bíblia é
disposto o coração para ensinar a outros”
trabalhador, o trabalho tem
(Êxodo 35.30-34). “E deu D avi a Salomão, seu
filho, [....] o risco de tudo quanto tinha no seu
dignidade humana e não apenas
ânimo, a saber: dos átrios da Casa do S E ­
valor económico".
NHO R” (1 C r 28.11,12). Além disso, a Bíb lia
diz frequentemente que os juizes e reis de Is ­
rael faziam suas tarefas sob a unção do Espírito de Deus (veja
Juizes 3.10; 1 Samuel 16.13; 23.2; Provérbios 16.10).
Quando chegamos no Novo Testamento, a primeira coisa que
notamos é que todo o povo de Deus é dotado e chamado para fazer
várias obras pelo Espírito de Deus (veja Atos 2.17; 1 Coríntios
12.7), e não apenas as pessoas especiais como os artesãos do Tem­
plo, reis ou profetas. Colocado no contexto do novo concerto, as
passagens do Antigo Testamento citadas há pouco provêem ilu s­
trações bíblicas para uma compreensão carismática de todos os
tipos básicos de trabalho humano: Todo o trabalho humano, quer
seja complicado ou simples, é possibilitado pela operação do E s ­
pírito de Deus na pessoa que trabalha. Como poderia ser diferen­
te? Se a vida inteira do cristão é por definição uma vida no E sp íri­
to, então o trabalho não pode ser exceção, quer seja trabalho re li­
gioso ou trabalho secular, trabalho “espiritual” ou trabalho munda­
no. Em outras palavras, trabalhar no Espírito é uma dimensão do
andar cristão no Espírito (veja Romanos 8.4; Gálatas 5.16-25).
Deus deseja que todos os cristãos utilizem pelo trabalho que
fazem os vários dons que Deus lhes deu. Deus chama os indivídu­
os para entrar no seu Reino e viver uma vida de acordo com as
suas demandas. Quando eles respondem, Deus os capacita a dar o
fruto do Espírito e os dota cada um com os múltiplos dons do
Espírito. Na qualidade de pessoas dotadas pelo Espírito e guiadas
pelas demandas do amor, os cristãos devem fazer seu trabalho na
obra de Deus e da humanidade.
Se Deus criou as pessoas para trabalhar e se Deus as dota de
dons para realizar as várias tarefas, seguem-se então duas conse­
quências importantes. Prim eiro, o trabalho não é meramente um
meio para alcançar um fim . Não é apenas uma tarefa a ser supor­
tada em consideração ao atendimento de necessidades e à satisfa­
ção de desejos. Se você recorda nossa definição de trabalho, sabe­
rá que trabalho sempre será um instrumento, sempre será um meio.
TRABALHO 2 2 9
Contudo, isto não é tudo o que o trabalho é e não é o que o melhor
trabalho é. Pelo fato de o trabalho ser essencial para a nossa hu­
manidade, trabalhar também tem um valor intrínseco.
Segundo, todos os tipos de trabalho têm dignidade igual. O
trabalho religioso (como pregar ou ensinar num seminário) não é
melhor que o trabalho secular (como assar pão ou construir pon­
tes); ambos são igualmente bons se forem fei­
tos em resposta ao dom e chamada do Espírito
"Todo tipo de trabalho
de Deus. A igualdade de todos os trabalhos era
um dos insights básicos do grande reformador
executado pelos cristãos, não
protestante Martinho Lutero. Junto com a idéia
apenas o serviço religioso, pode
de que a pessoa é justificada somente pela fé,
ser uma chamada".
ele descobriu que o trabalho cotidiano deveria
ser feito em resposta a uma chamada de Deus.
Todos os cristãos, não só os monges, insistia ele, tinham uma “ cha­
mada” , e todo tipo de trabalho executado pelos cristãos, não ape­
nas o serviço religioso, pode ser uma chamada. E le tinha razão.
Pois Deus não é somente o Deus da redenção, mas também o Deus
da criação; não simplesmente o Deus de nossa alma, mas também
o Deus de nosso corpo; não simplesmente o Deus dos céus, mas o
Deus dos céus e da terra.
O Propósito do Trabalho
Trabalhamos, argumentei, porque somos criados e dotados por
Deus para trabalhar. A razão por que trabalhamos jaz na mesma
natureza de quem somos como seres humanos e de qual é o nosso
propósito nesta terra. E o propósito do trabalho?
Primeiramente, o propósito do trabalho é atender as necessi­
dades da vida. De acordo com o apóstolo Paulo, os cristãos de­
vem trabalhar com sossego e comer o seu próprio pão (2 Ts 3.12);
devem trabalhar para que não necessitem de coisa alguma (1 Ts
4.12b). Como K arl Barth afirmou, o primeiro item em questão em
todas as áreas do trabalho humano é a necessidade dos seres hu­
manos “ ganharem o pão cotidiano e um pouco mais” .
A necessidade de trabalhar para prover as necessidades da vida
acha-se por trás do dever de trabalhar. Para Paulo, este dever é de
importância primária, tanto que fazia parte da instrução original
que Paulo deu aos tessalonicenses quando pela primeira vez os
evangelizou: “ Quando ainda estávamos convosco, vos mandamos
isto: que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também” (2
Ts 3.10) — texto da B íb lia que foi citado até na Constituição da
antiga União Soviética! Além disso, não temos nenhuma razão
para pensar que os tessalonicenses eram exceção a este respeito.
Outras igrejas paulinas receberam instrução semelhante. Pois isto
fazia parte do ensino ou “tradição” (2 Ts 3.6) sobre o estilo de
vida cristão.
O segundo e estreitamente relacionado propósito do trabalho é
prover subsistência aos necessitados. Em Efésios, os cristãos são
exortados a trabalhar, “fazendo com as mãos o que é bom” , para
que tenham o que “repartir com o que tiver necessidade” (E f 4.28).
A exortação repercute a crença e experiência da Igreja Prim itiva
de que não deveria haver “ entre eles necessitado algum” (A t 4.34),
um ideal inspirado, sem dúvida nenhuma, pelo ensino de Jesus e
as promessas do Antigo Testamento (veja Deuteronômio 15.4).
Semelhantemente, no discurso de despedida de Paulo em M ileto,
o propósito primário do trabalho é ajudar os economicamente fra­
cos: “Tenho-vos mostrado em tudo que, trabalhando assim, é ne­
cessário auxiliar os enfermos e recordar as palavras do Senhor Je­
sus, que disse: Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber” (A t
20.35). Este versículo é radical. Ordena mais que somente ajudar os
pobres se pudermos; ordena labutar estrenuamente (que é o significa­
do de kopiôntas, a palavra grega usada) para ter os meios necessários
para ajudar. Além disso, apoiar os necessitados pelo trabalho diligen­
te não era simplesmente um ato de generosidade; era preferencial­
mente um mandamento de justiça. Por exemplo, Paulo é explícito em
chamar a ajuda financeira dos cristãos gentios, dada aos cristãos ne­
cessitados da Palestina, de “justiça” ou “retidão” (grego, dikaiosunê\
2 Co 9.9). Isto ressoa a visão do Antigo Testamento de que a esmolaria
não é apenas caridade, mas justiça. Como lemos no Salmo do justo,
ele “é liberal, dá aos necessitados; a sua justiça permanece para
sempre” (S I 112.9).
O terceiro propósito do trabalho é o desenvolvimento da cultu­
ra. Superficialmente, este propósito do trabalho não é tão óbvio
quanto os outros dois. Contudo, não é menos importante. O me­
lhor modo de entendê-lo é contrastar o que o Antigo Testamento
diz sobre o trabalho humano e o que os mitos mesopotâmicos da
criação dizem. Na epopéia de Atra-Hasis, a história da criação
humana começa com uma descrição de um episódio na vida dos
deuses, dentre eles os deuses inferiores chamavam-se Igigi e os
deuses superiores, Anunaki:
Quando os deuses eram como os homens,
Suportavam o trabalho e sofriam a labuta,
A labuta dos deuses era grande,
O trabalho era pesado, o sofrimento era muito.
O Sete grandes Anunaki
Estavam fazendo os Igigi padecerem o trabalho.9
Os deuses Igigi estavam, claro, infelizes com sua sorte; esta­
vam “ reclamando” e “ maldizendo” . Até resolveram se rebelar —
meteram fogo em suas ferramentas e começaram a sitiar o templo
do grande deus E n lil. Mediante negociações foi encontrada uma
solução: a criação dos seres humanos. Os seres humanos deveri­
am “suportar o jugo” e “ levar a labuta dos deuses” . Assim a deusa
Mami criou os seres humanos. Depois de terminar o trabalho, ela
se dirigiu aos deuses:
Eu rem ovi seu trabalho pesado,
Eu impus sua labuta nos homens.
Vocês elevaram um clamor pelo género humano,
Eu vos livrei do jugo, estabeleci a liberdade.10
Os seres humanos foram criados para liberar os deuses do tra­
balho estrénuo; os seres humanos são uma solução ao problema
criado pelos deuses inferiores que estavam em greve.11 Quando os
seres humanos trabalham, eles servem aos deuses fazendo o tra­
balho que os deuses deviam fazer. O trabalho humano está imedi­
atamente relacionado com o serviço dos deuses. O trabalho é uma
atividade cúltica.
Compare isto com o relato que o Antigo Testamento faz sobre
a criação. Longe dos seres humanos serem criados para liberar os
deuses de trabalho estrénuo, em Génesis 2 é Deus quem trabalha
para os seres humanos: Deus planta o jardim para provisão huma­
na (Gn 2.8). Além disso, em Génesis 1, o propósito da criação
humana concerne muito a coisas mundanas: Tem a ver com domi­
nar os animais e sujeitar a terra. O trabalho humano está, se lhe
aprouver, “ desmitificado” : está divorciado de sua conexão imedi­
ata com o culto e posto à serviço da cultura.12 O trabalho não é
uma atividade cúltica, mas cultural.
O quarto propósito do trabalho é cooperação com Deus.13
Gn 2.5 sugere que há uma dependência mútua entre Deus e os
seres humanos na tarefa de conservar a criação. O trabalho de Deus
e o trabalho dos seres humanos estão relacionados no texto quan­
do é dada a razão porque no princípio “ toda planta do campo ain­
da não estava na terra, e toda erva do campo ainda não brotava;
porque ainda o SEN H O R Deus não tinha feito chover sobre a ter­
ra” (Gn 2.5). A razão era dupla: primeiro, “o SEN H O R Deus não
tinha feito chover sobre a terra” e, segundo, “não havia homem
para lavrar a terra” (Gn 2.5). São necessários a cooperação de Deus,
que envia a chuva, e os seres humanos, que lavram a terra, para
que as plantas cresçam. Por conseguinte, longe de serem bestas de
carga para os deuses como nos mitos mesopotâmicos, na Bíblia, os
seres humanos são colaboradores de Deus. Por um lado, os seres hu­
manos são dependentes de Deus, pois “Se o SENHOR não edificai-a
casa, em vão trabalham os que edificam” (SI 127.1). Por outro lado,
Deus fez os seres humanos trabalharem como meio pelo qual reali­
zam o trabalho deles no mundo. Como Lutero declarou, o trabalho
humano é “ a máscara de Deus atrás da qual Ele se esconde e rege
tudo no mundo magnificentemente” .
Em Issues Facing Christians Today (Assuntos que os Cristãos
enfrentam Hoje), John Stott conta uma história que ilustra bem a
cooperação entre Deus e os seres humanos no trabalho mundano.
2 3 2
MIROSLAV VOLF
“Um jardineiro londrino mostrava a um pastor a beleza do seu
jardim , com suas bordas herbáceas em plena flo r de verão. Ade­
quadamente impressionado, o pastor irrompeu em louvores es­
pontâneos a Deus. O jardineiro, porém, não ficou muito contente
que Deus recebesse todo o crédito. ‘Você devia ter visto o jardim
antes’ , disse ele, ‘quando Deus tinha tudo a seu cargo’ .”
“Ele tinha razão” , continua Stott. “ Sua teologia estava inteira­
mente correta. Sem um cultivador humano,
todo o jardim depressa viraria um deserto.” 14
Há ainda outro propósito do trabalho hu­
"O trabalho humano é 'a máscara
mano que podemos abordar aqui apenas bre­
de Deus atrás da qual Ele se
vemente: E a cooperação de Deus na trans­
formação da criação. Quando nos colocamos
esconde e rege tudo no mundo
em cooperação com Deus na preservação da
magnificentemente".
criação levando em consideração a nova cria­
— Martinho Lutero
ção prometida, então fica claro que os seres
humanos também cooperam com Deus na an­
tecipação da transformação escatológica que
Deus procede no mundo. Na verdade, não estamos introduzindo o
Reino de Deus, construindo “um novo céu e uma nova terra” ; só
Deus pode fazer isso. Muito semelhante à criação original, a nova
criação é, em primeiro lugar, um dom da graça de Deus e não um
resultado do esforço humano.
O Deus que dá também é o Deus que ordena e inspira. A ex­
pectativa do Reino não é contrária à participação com Deus, que
já está em trabalho construindo o Reino. Se trabalhamos no poder
do Espírito, que é “ a primeira prestação” da glória escatológica
(veja 2 Coríntios 1.22; Romanos 8.23), então nosso trabalho pelo
qual cooperamos com Deus é a antecipação ativa do Reino de
Deus. Colocado no contexto da participação no Reino, o trabalho
mundano para melhorar o mundo, embora possa ser de pouca monta
e defeituoso e necessite de purificação divina, torna-se uma con­
tribuição para o Reino escatológico, que em última instância virá
pela ação de Deus. Como Jurgen Moltmann afirma em seu artigo
“The Right to Work” (O Direito ao Trabalho), em seu trabalho
diário os seres humanos são “colegas de trabalho no Reino de Deus,
que completa a criação e renova o céu e a terra” .15 Deus purifica­
rá, transfigurará e receberá em Seu Reino eterno todas as coisas
boas e bonitas que as mãos humanas têm criado.
Contra a idéia de que o trabalho é cooperação com Deus na
preservação e transformação do mundo, alguém pode objetar que
glorifica o trabalho excessivamente. Por isso, é importante lem­
brar que a noção de trabalho como colaboração com Deus não é
uma teoria geral de trabalho, aplicável a todo e qualquer tipo de
trabalho. Com frequência o trabalho humano é feito em coopera­
ção com os poderes das trevas, que planejam arruinar a criação
boa de Deus. Só pense em todo o trabalho duro que foi feito para
apoiar a Alemanha de H itler, a Rússia de Stálin ou o Chile de
TRABALHO 2 3 3
Pinochet. O trabalho humano não é apenas uma situação em que a
glória dos seres humanos como colaboradores de Deus se mani­
festa. Também é uma situação em que a misé­
ria dos seres humanos, como impedidores dos
"Com frequência o trabalho
propósitos de Deus, fica visível. Como na pro­
va de fogo, o julgamento de Deus trará à luz o
humano é feito em cooperação
trabalho que tem o significado último, porque
com os poderes das trevas, que
foi feito em cooperação com Deus. Mas tam­
planejam arruinar a criação boa
bém manifestará a insignificância última do
trabalho feito em cooperação com aqueles po­
de Deus".
deres demoníacos que planejam arruinar a cri­
ação boa de Deus (veja 1 Coríntios 3.12-15).
O Trabalho Humano e a Maldição de Deus
Com exceção do parágrafo anterior, até aqui enfatizei só o lado
positivo do trabalho: O trabalho é essencial à nossa humanidade e
pelo trabalho mantemos unidos não só a alma e corpo de nosso
próximo, como também a nossa própria, e além disso cooperamos
com Deus na preservação e transformação de nosso mundo. No
entanto, como todos sabemos, também há um lado desagradável
do trabalho. Considerando que a B íb lia não o encobre, seria alta­
mente impróprio se os teólogos o fizessem. A teologia do trabalho
não é uma ideologia projetada a glorificar o trabalho, mas é uma
ferramenta que nos ajuda a transformar o trabalho, de forma que
corresponda à vontade de Deus para a sua criação.
Considere no segundo relato da criação (Génesis 2— 3), um
texto — você se lembrará, no qual o trabalho figura muito proe­
minentemente — que tem a dizer algo sobre o lado desagradável
do trabalho. No mesmo texto em que lemos que Deus criou os
seres humanos e os colocou no jardim do Éden para cultivar e
guardá-lo, lemos também sobre a labuta humana fora do jardim .
Entre o trabalho realizador e o trabalho fatigante está um mistério
inexorável do pecado humano. O texto não tenta explicar esse
mistério; só narra o aparecimento do pecado, a responsabilidade
humana a esse respeito e as consequências do pecado nos seres
humanos. Uma das consequências tem a ver com o trabalho hu­
mano. Deus diz a Adão: “M aldita é a terra por causa de ti; com dor
comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos e cardos também
te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto,
comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste
tomado, porquanto és pó e em pó te tornarás” (Gn 3.17-19).
Repare duas coisas sobre este texto. Prim eiro, o que é amaldi­
çoado é a terra e não Adão ou o seu trabalho. A s vezes as pessoas
declaram que o Antigo Testamento vê o trabalho como maldição;
alguns filósofos, como Jíirgen Habermas, gostam de falar sobre a
“ maldição bíblica do trabalho necessário” .16 Em primeiro lugar,
tal interpretação se evapora em face de Génesis 1.26-31 e Génesis
2 3 4
MIROSLAV VOLF
2.15, onde o trabalho é claramente uma dimensão fundamental da
vida humana. Porém mais importante, no próprio texto de Génesis
3.17-19 é que não há sugestão alguma de que o trabalho seja uma
maldição. Antes, é uma consequência da maldição contra a terra
que o trabalho se tornou labuta.
Em segundo lugar, para que o trabalho seja labuta significa
que não é mais algo fácil e realizador; antes, os seres humanos
têm de cultivar a terra no suor do seu rosto.
Além disso, depois da Queda o trabalho mais
estrénuo não pode impedir que até espinhos e
"A labuta, como a opressão,
cardos cresçam na colheita. O trabalho resulta
seguramente é uma consequência
muitas vezes em fracasso e toda labuta é às
vezes em vão. Alguém poderia objetar que esta
do pecado. Mas o pecado nunca
é uma visão bastante pessimista do trabalho.
deveria ser usado para justificar a
E , não obstante, alguém removerá o suor do
labuta e a opressão."
trabalho da maioria dos seres humanos quei­
xando-se do pessimismo desta passagem? Os
espinhos serão tirados dos produtos do traba­
lho, se os tirarmos do texto bíblico? Minha impressão é que a pas­
sagem é realista, em vez de pessimista.
Temos de ter cuidado com o que fazemos com o realismo desta
passagem. Muitas vezes na história do Cristianismo a passagem
foi usada incorretamente pelos poderosos para justificar a explo­
ração dos fracos: Depois da Queda, declarava-se, você tem de so­
frer a fatiga do trabalho, suportar sua labuta, não procurar melho­
rar sua condição. Contudo isto é claramente um mal emprego da
passagem. Quase sem exceção, o Antigo Testamento censura o
trabalho forçado, por exemplo. Os primeiros seis capítulos de
Êxodo, que narra a história da escravidão de Israel no Egito, dão
claro testemunho a esse respeito.
“Os egípcios faziam servir os filhos de Israel com dureza; assim,
lhes fizeram amargar a vida com dura servidão, em barro e em
tijolos, e com todo o trabalho no campo, com todo o seu serviço,
em que os serviam com dureza” (Êx 1.13,14).
Como Deus reagiu à opressão de Israel?
“E disse o SENHOR: Tenho visto atentamente a aflição do meu
povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clam or por causa dos
seus exatores, porque conheci as suas dores. Portanto, desci para
livrá-lo da mão dos egípcios” (Êx 3.7,8).
Ou considere o que aconteceu quando o grande rei Salomão
recrutou o trabalho forçado de seus súditos para construir a casa
do Senhor, os palácios e as fortificações da cidade (veja 1 Reis
9.15). O modo como Salomão tratou os trabalhadores fez com que
seu sucessor, Roboão, perdesse grandes porções do reino (1 Rs
12.1-24). O rei tinha a obrigação de ser “ servo deste povo” e não
seu exator (1 Rs 12.7). De modo semelhante, os profetas atacaram
os reis de Israel com veemência por explorar os súditos. Um bom
exemplo são as palavras de Jeremias ao rei davídico, Jeoaquim:
Ai daquele que edifica a sua casa com injustiça e os seus aposentos
sem direito; que se serve do serviço do seu próximo, sem paga, e
não lhe dá o salário do seu trabalho; que diz: Edificarei para mim
um a casa espaçosa e aposentos largos, e lhe abre janelas, e está
forrada de cedro e pintada de vermelhão. Reinarás tu, só porque te
encerras em cedro? Acaso, teu pai não comeu e bebeu e não exerci­
tou o juízo e a justiça? Por isso, tudo lhe sucedeu bem. Julgou a
causa do aflito e do necessitado; então, lhe sucedeu bem;
porventura, não é isto conhecer-me? diz o SENHOR. Mas os teus
olhos e o teu coração não atentam senão para a tua avareza, e para
o sangue inocente, a fim de derramá-lo, e para a opressão, e para a
violência, a fim de levar isso a efeito (Jr 22.13-17).
A labuta, como a opressão, seguramente é uma consequência
do pecado. Mas o pecado nunca deveria ser usado para justificar a
labuta e a opressão; antes, porque a labuta e a opressão são conse­
quências do pecado, devem ser combatidas. A labuta e a opressão
têm de acabar. Esta é a mensagem inscrita na libertação que Deus
deu ao seu povo da escravidão egípcia; esta é a mensagem procla­
mada corajosamente pelos profetas.
Trabalho Ruim, Trabalho Bom
Olhemos alguns aspectos negativos importantes do trabalho e
examinemos como a B íb lia nos ensina a reagir a eles. O que bus­
camos aqui é como fazer o trabalho ruim que muitas vezes experi­
mentamos no trabalho bom que Deus nos designou a fazer.
Prim eiro, a exploração. Muitas pessoas ao redor do globo tra­
balham longas horas por baixo salário, os contratos não são feitos,
o molestamento sexual é uma prática e a saúde e as leis de segu­
rança são desconsideradas. E bastante apropriado falar de “ explo­
ração” e “ opressão” em tais situações. Como indicado na seção
prévia, o Deus da B íb lia é o Deus cujo intento é libertar as pessoas
do trabalho forçado e da escravidão (compare Deuteronômio 26.68). Além disso, a libertação de Deus dos explorados e oprimidos é
um modelo de como o povo de Deus deve tratar os explorados e
oprimidos em seu meio (veja Levítico 25.39ss).
Como indicação de que Deus quer que a exploração e a opres­
são sejam removidas da face da terra, considere as visões proféti­
cas sobre a nova era de salvação. Na profecia sobre os céus novos
e a terra nova, Isaías fala não só de uma intimidade especial das
pessoas com Deus e de uma paz na natureza, mas também de um
novo tipo de trabalho que as pessoas farão. “E edificarão casas e
2 3 6
MIROSLAV VOLF
as habitarão; plantarão vinhas e comerão o seu fruto. Não edificarão
para que outros habitem, não plantarão para que outros comam.
[...] Não trabalharão debalde, nem terão filhos para a perturbação,
porque são a semente dos benditos do SEN H O R, e os seus des­
cendentes, com eles” (Is 65.21-23). O contraste é violento: Se hoje
as pessoas trabalham e outros desfrutam do fruto do seu trabalho,
na era de salvação que Deus ocasionará, aqueles que trabalham
também recolherão os benefícios do seu tra­
balho. A mensagem é clara: chega de explora­
ção, chega de opressão.
"Os seres humanos são criados por
Segundo, a labuta. Para muitas pessoas em
Deus como pessoas dotadas de
muitas partes do mundo, o trabalho é um “bem
dons aos quais Deus as chama para
árduo” , como João Paulo I I diz na carta
exercerem livremente".
encíclica Laborem Exercens. E um bem, por­
que ajuda a alim entar suas bocas e lhes dá sig­
nificado à vida; porém, é árduo, porque sofrem
grandemente sob seu fardo e com frequência trabalham sob as
condições mais apavorantes. Isto é contra a vontade de Deus, o
Criador e Redentor. Os seres humanos são criados por Deus como
pessoas dotadas de dons aos quais Deus as chama para exercerem
livremente. Considere o modo como Deus quis que o Tabernáculo
no deserto fosse construído. Em contraste com o trabalho forçado
que Salomão impôs sobre o povo enquanto construía o Templo (1
Rs 9.15) e a escravidão cruel no Egito, Moisés não apenas pediu
contribuições de materiais valiosos somente daqueles cujo cora­
ção era “voluntariamente disposto” (veja Êxodo 35.5), mas tam­
bém insistiu que o próprio trabalho fosse um ato de oferta volun­
tária. Pois lemos que Moisés chamou “ a todo homem sábio de
coração em cujo coração o SEN H O R tinha dado sabedoria, isto é,
a todo aquele a quem o seu coração movera que se chegasse à obra
para fazê-la” (Ê x 36.2).
Para dizê-lo mais abstratamente, como dimensão fundamental
da existência humana, o trabalho é uma atividade pessoal. A s pes­
soas devem então trabalhar livremente e nunca serem tratadas como
meros recursos. Temos de resistir a qualquer tendência a tratar os
trabalhadores como entrada de trabalho. Antes, as pessoas devem
desfrutar do trabalho que fazem. Os reformadores tiveram razão
em ressaltar que os seres humanos foram originalmente criados
para trabalhar e também designados a trabalhar “ sem inconveni­
ência” e, “por assim dizer, brincando e com o maior prazer” .17
Terceiro, o egocentrismo. Nunca foi fácil trabalhar para o bem
comum. As pessoas sempre preferiram ser servidas a servir (veja
Marcos 10.45) e, portanto, precisavam ser encorajadas a servir os
outros, sobretudo os necessitados, pelo seu trabalho (E f 4.28). Em
sociedades contemporâneas as forças poderosas contribuem para
a troca geral do interesse pela comunidade para o interesse por si
mesmo. Consideramo-nos como indivíduos autónomos que
interagem com outros indivíduos autónomos. Além disso, a ten­
são na autonomia individual é acompanhada por uma tensão igual
na busca do interesse pessoal. Gostamos de pensar que é bom ser
“ dirigido interiormente” , e que se primeiro tomarmos conta de
nós, seremos capazes e estaremos dispostos a tomar conta dos
outros. Assim trabalhamos para nós mesmos, pegos na rede de
nossos próprios desejos e expectativas sociais. Nosso trabalho tem
utilidade pessoal, mas nenhum significado moral.
Contraste isto com o que encontramos no Novo Testamento.
L á também somos encorajados a trabalhar pelo nosso alimento
(2 Ts 3.12), mas também somos chamados a trabalhar pelos com­
panheiros humanos necessitados. Como está declarado em E f, de­
vemos trabalhar honestamente com as mãos, para que tenhamos o
que repartir com o que tiver necessidade (Efésios 4.28). Fazendo
um comentário sobre Efésios 4.28, João Calvino escreveu: “Não é
o bastante quando alguém diz: ‘Ó, eu trabalho, tenho minha ocu­
pação’ , ou ‘Tenho tal comércio’ . Isso não é o bastante. Mas temos
de ver se é bom e proveitoso para o bem comum, e se o próximo
dessa pessoa passa melhor com isso” .18 Para Calvino bem como
para a maioria da tradição cristã, além da utilidade pessoal, o tra­
balho também tinha uma dimensão moral.
Deus chama as pessoas para usar os seus
dons para o benefício da comunidade inteira.
"O egoísmo
O trabalho humano deve ser uma contribuição
para o bem comum. O interesse próprio indi­
acompanhado
vidual pode ser buscado legitimamente. Em um
dos
mundo de recursos escassos que devem ser
adaptados às necessidades humanas para que
os seres humanos sobrevivam, há um senso
importante no qual toda a individualidade deve ser “ interesseira” .
Contudo o egoísmo legítimo deve ser acompanhado pela busca do
bem dos outros. Estas duas buscas são complementares, não con­
traditórias. Como podemos perceber de Efésios 5.25-28, o Novo
Testamento não vê nenhuma contradição quando a pessoa “ se en­
trega a si mesma” por alguém e, ao mesmo tempo, “ ama-se a si
mesma” .
Quarto, a discriminação. Apesar dos significativos ganhos que
foram feitos na igualdade dos sexos em muitos países, a discrim i­
nação no trabalho (como também em outras áreas) continua para
muitas mulheres. A s mulheres “ou são empurradas ou arrastadas a
uma exígua esfera de ocupações” ,19 que frequentemente são mal
pagas e oferecem pouco status, segurança, possibilidade de pro­
moção ou benefícios adicionais.
Embora os homens e mulheres foram criados diferentemente,
eles são iguais diante de Deus. Eva foi criada diretamente por Deus,
da mesma maneira que Adão o foi. O fato de que ela devia ser
adjutora não significa inferioridade ou subordinação em qualquer
sentido. A mesma palavra “ adjutora” (hebraico, ‘ezer) é usada
muitas vezes para referir-se a Deus como ajudador do seu povo.
legítimo deve ser
pela busca do bem
outros".
2 3 8
MIROSLAV VOLF
Além disso, na comunidade da fé não há mais macho e fêmea, do
mesmo modo que não há escravo ou mestre (G1 3.28). As mulhe­
res devem, portanto, ser reconhecidas e tratadas como iguais aos
homens na vida social e económica.
O Trabalho num Ambiente Frágil
Depois de seis dias de trabalho, Deus criou o mundo e o pro­
nunciou “muito bom” (Gn 1.31). Em Isaías, lemos que Deus no
fim vai criar novos céus e nova terra (Is 65.17). Por que será ne­
cessária esta nova criação se a criação original foi criada boa,
como nos é dito explicitamente? Porque hoje, por causa do peca­
do humano, “ a criação geme e está juntamente
com dores de parto” (Rm 8.22). Pela cobiça e
violência os seres humanos pecadores estra­
"O fato de que Eva devia ser
garam a criação boa de Deus. Temos abusado
adjutora não significa inferioridade
dos recursos da terra. Nosso planeta está en­
ou subordinação em qualquer
frentando uma crise do sistema ecológico, que
é em virtude principalmente dos atos cumula­
sentido".
tivos das gerações depois da Revolução Indus­
trial. Se nós — mormente os que vivem nas
nações economicamente desenvolvidas — continuarmos usando
os recursos do mundo à taxa atual, não só causaremos desastrosa
instabilidade dentro do ecossistema global, mas também exaurire­
mos os recursos essenciais para o bem-estar das gerações futuras.
A ecologia da terra já não sustentará uma expansão indefinida das
forças produtivas.20 O que chamamos de “crise ambiental” não é
simplesmente uma crise de ambiente; é uma crise de vida neste
planeta. Como criamos uma crise de vida no planeta? A resposta
é: pelo trabalho! Assim , se queremos reparar o problema, temos
de repensar como o trabalho se relaciona com o ambiente.
Os críticos têm culpado a fé cristã pela destruição progressiva
do ambiente depois do início da industrialização. No centro de
sua crítica está a ordem de Deus em Génesis 1 de sujeitar a terra e
ter domínio sobre ela. Em seu contexto mais amplo, o mandamen­
to, declaram, é problemático em três enquadramentos. Prim eiro, o
mandamento para sujeitar a terra pressupõe a singularidade dos
seres humanos, sua separação do restante da criação, o que, por
sua vez, incentiva o seu comportamento destrutivo. Segundo, o
texto inteiro de Génesis 1 está centrado nos seres humanos: Eles
são a coroa da criação. Isto, argumenta-se, desvaloriza o restante
da criação. Terceiro, esta ordem para sujeitar dá licença à destrui­
ção do ambiente. Vamos examinar estas objeções brevemente.
Prim eiro, a singularidade humana. Sem dúvida, os seres hu­
manos são singulares na criação e não apenas no sentido muito
usado de que toda espécie é singular. Os seres humanos têm um
lugar especial na criação. Isto parece bastante óbvio, se por ne­
nhuma outra razão, que seja pelo fato de que só eles podem refle­
tir sobre sua posição na criação. Os textos bíblicos sublinham a
singularidade humana, declarando que os seres humanos foram
criados depois de deliberação especial por parte de Deus. Todas as
outras criaturas Deus simplesmente fez; quando chega a vez dos
seres humanos, Deus diz: “Façamos” a humanidade “ à nossa ima­
gem” , e então passa a fazer o homem e a mulher (Gn 1.26,27).
A despeito da singularidade dos seres humanos seria um erro
concentrar-se apenas no que os distingue do restante da criação.
De tudo o que nos é dito sobre os seres humanos, provavelmente o
mais fundamental é que eles são “ criaturas” que estão ao lado das
outras criaturas em frente de Deus. Criados no sexto dia, eles fa­
zem parte da sucessão dos atos criativos de Deus. Semelhante­
mente, no Salmo 104, onde o salmista adora a Deus olhando a
maravilha da criação, os seres humanos e a natureza compreen­
dem uma unidade inseparável.21 Como expressou K arl Barth, na
criação os seres humanos são “ os primeiros entre os iguais” .
Segundo, o antropocentrismo. A “Declaração Oxford sobre a
Fé Cristã e a Economia” dá excelente resposta resumida à acusa­
ção imputada contra a fé cristã, que é antropocêntrica, preocupada
apenas com os seres humanos e não com o restante da criação:
A vida e cosmovisão bíblicas não estão centradas na humanidade.
Estão centradas em Deus. A criação não hum ana não foi feita ex­
clusivamente para os seres humanos. E nos dito repetidam ente na
Escrituras que todas as coisas, os seres Rm e o ambiente no qual
eles vivem, são “para D eus” (Rm 11.36; 1 Coríntios 8.6; Cl 1.16).
Correspondentem ente, a natureza não é somente a m atéria-prim a
para a atividade humana. Em bora somente os seres humanos foram
criados à imagem de Deus, a criação dos não humanos tem um a
dignidade sua própria, tanto que depois do Dilúvio Deus estabele­
ceu um concerto não só com N oé e seus descendentes, mas tam ­
bém “com toda alm a [criatura] vivente, que convosco está, de aves,
de reses, e de todo animal da terra convosco; desde todos que saí­
ram da arca, até todo animal da terra” (Génesis 9.9,10). De modo
semelhante, a esperança cristã para o futuro tam bém inclui a cria­
ção. “A m esm a criatura [ou seja, a totalidade da criação não hum a­
na] será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da
glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21).22
E indisputável que a civilização cristã depois do início da
modernidade desvalorizou a natureza. Contudo, é igualmente
indisputável que a desvalorização da natureza não pode ser feita
com a B íb lia, mas só contra a B íb lia.
Terceiro, o significado do domínio. E verdade que os verbos
usados em Génesis 1.26 e 28 são violentos; reger ou ter domínio
(hebraico, radhah) é usado para dizer pisar o lagar (Joel 3.13) ou
de um país subjugar o outro (Nm 24.19). A questão crucial, po-
2 4 0
MIROSLAV VOLF
O termo modernidade
refere-se à nova civilização
desenvolvida na Europa e
América do Norte durante
os últimos séculos e
plenamente manifestada no
início do século XX. A
perspectiva moderna é
caracterizada pela
confiança na razão humana
de exercer controle
tecnológico sobre a
natureza e promover o
conhecim ento humano pelo
método científico. Para um
tratamento mais extenso
sobre a modernidade, veja
Lawrence Cahoone, editor,
From Modernism to
Postmodernism: An
Anthology (Cambridge,
Massachusetts: Blackwell
Publishers, 1996).
rém, é se estes verbos têm conotações violentas em Génesis 1.
Eles dão aos seres humanos domínio ilim itado sobre a terra?23 Os
seres humanos permanecem “ em cada caso e em cada fase” do
domínio da terra “dentro da ordenação original do Criador” , como
lemos na encíclica de João Paulo II, Laborem Exercens'!24 Tudo
fala contra tal compreensão de Gn 1.
1. A inda que “dom ínio” às vezes tenha conotação de violência,
em Génesis 1 diz respeito aos animais que não fo ra m originalmente
dados aos seres humanos como alimento (cf. Génesis 1.29,30). Por­
tanto, não inclui a m atança de animais. Alguns com entaristas pen­
sam que se refere à domesticação desses animais.25
2. O Antigo Testamento usa radhah para designar o domínio do
rei (veja 1 Reis 5.4; Salmos 110.2). A o sujeitar a terra, os seres hu­
manos estão exercitando sua responsabilidade real. Devemos enten­
der este domínio no contexto do ideal de Israel de um rei. Um rei
deveria ser “servo” do povo e cuidar dele (1 Reis 12.7). A lém disso,
como dominadores sobre a terra, os seres humanos são responsáveis
a Deus que os criou à sua imagem. Eles têm de dominar conforme a
vontade de Deus para a criação de Deus (Génesis 1.31).
3. E im portante observar que Génesis 1.26-28 relaciona o m an­
damento de ter dom ínio estreitam ente com a bênção de D eus. Por
seu dom ínio régio, os seres hum anos deviam m ediar as bênçãos
de D eus para a criação. E essa bênção efetua o bem -estar e não a
destruição.
4. Os seres humanos são criados à im agem de Deus como com u­
nidade e não sim plesm ente como indivíduos isolados (Génesis 1.2628). Por conseguinte, eles têm de exercer domínio em responsabili­
dade por toda a com unidade humana, a com unidade global na cadeia
de gerações.
O segundo relato da criação confirma esta interpretação de
domínio. Aqui lemos que Deus colocou os seres humanos no ja r­
dim de Éden não só para lavrá-lo (ou trabalhar, ‘avadh), mas tam­
bém para guardá-lo ( shamar , Génesis 2.15). Por conseguinte, o
domínio humano consiste na tarefa dupla de “trabalhar” e “ guar­
dar” a criação. Trabalhar e guardar são dois aspectos complemen­
tares da atividade humana. Todo trabalho tem de ter um aspecto
produtivo e também um aspecto protetor. Os seres humanos só
dominam sobre a criação conforme as intenções do Criador, so­
mente quando seu domínio ajuda a preservar a inteireza da cria­
ção de Deus. De que outra forma o trabalho deles poderia estar em
cooperação com Deus?
Um comentário final sobre a natureza do domínio. No começo
da modernidade, Francis Bacon admitiu que o “homem caiu do
seu estado de inocência e do seu domínio sobre a criação” como
resultado do pecado. Mas considerando que ele acreditava que a
inocência poderia ser recuperada “pela religião e pela fé” , Bacon
sustentava que para recuperar o domínio, “ as artes e as ciências”
seriam su ficien tes.26 E le adm itia que o exercício do poder
tecnológico deveria ser governado pela razão perfeita e pela re li­
gião. Mas não levou muito tempo e Deus foi esquecido e o domí­
nio foi pervertido no exercício do poder tecnológico bruto guiado
apenas pela razão instrumental.
Hoje, precisamos redescobrir as dimensões religiosas e mo­
rais do domínio sobre a natureza. Os reformadores estavam côns­
cios de que o domínio baseado somente nas artes e nas ciências é
um domínio inferior. Só os seres humanos “verticais” podem exer­
cer verdadeiro domínio sobre a natureza. Não seria este o princí­
pio da declaração em Marcos que, durante a tentação de Jesus no
deserto, E le “vivia entre as feras” , mas não precisava domesticálas (Marcos 1.13)? Sua comunhão com os animais selvagens, a
comunhão daquele que venceu a tentação de fazer mal-uso do poder
do engrandecimento de si mesmo, não antecipou a paz futura en­
tre os seres humanos e a criação não humana, uma paz que será o
fruto da justiça (vejalsaías 11.6-8; 65.25)?
Em Lugar de Conclusão: A Advertência
de Albert Speer
Em Truthfulness and Tragedy (Veracidade e Tragédia)
Stanley Hauerwas narra a história de A lbert Speer, o arquiteto
de H itler e ex-m inistro de armamentos. Como fo i que um jo ­
vem inteligente como Speer pôde concordar com H itler? Speer
explica à sua filh a:
Você deve entender que, com a idade de trinta e dois anos, em m i­
nha habilidade como arquiteto, eu tinha as tarefas mais esplêndidas
com as quais poderia sonhar. Certo dia, Hitler disse à tua mãe que
o m arido dela poderia projetar edifícios cuja sem elhança não tinha
sido vista por dois mil anos. Tinha-se de ser m oralmente muito
estóico para rejeitar a proposta. Mas eu não era assim.21
A expressão “razão instrumental” refere-se a um dos usos im ­
portantes da razão humana. Especificamente, diz respeito ao modo
como os seres humanos procuram resolver problemas ou alcançar
metas por meio da investigação racional. Neste sentido, a razão é
o meio, o instrumento , para resolver um problema ou alcançar
uma meta. Por contraste, os seres humanos às vezes também pen­
sam em coisas finais: por exemplo, o significado da vida ou as
obrigações morais da pessoa. A razão, assim empregada, é reflexi­
va ou contemplativa , não instrumental. Assim , a razão instrumen­
tal considera os meios para alcançar os fins, enquanto que a razão
reflexiva considera os próprios fins.
Speer era “ acima de tudo arquiteto” e com “medo de descobrir
algo que pudesse ter-me feito sair do meu curso” , ele escolheu
2 4 2
MIROSLAV VOLF
não saber. “Eu tinha fechado os olhos” , escreve ele. Com seus
olhos, ele não estava consciente dos crimes do sistema ao qual
servia, impossibilitado até de “ ver qualquer base moral fora do
sistema onde eu deveria ter assumido minha posição” .28
As tentações de Speer poderiam ter sido maiores, porque o
Império para o qual ele trabalhava era mais sinistro, mas basica­
mente não era diferente do nosso. Em The Gamesman: Winning
and Losing the Career Game (O Jogador: Ganhando e Perdendo o
Jogo da Carreira), M ichael Maccoby ressalta que o carreirismo
resulta na perda do eu:
Por demais preocupado em adaptar-se aos outros, em
com ercializar-se, o carreirista constantemente se trai, visto que tem
de ignorar seus impulsos idealistas, compassivos e corajosos que
poderiam prejudicar-lhe a carreira. Como resultado, ele nunca desen­
volve um centro interior, uma forte e independente sensação do eu e,
eventualmente, perde contato com suas forças mais profundas.29
A grandeza e tragédia de Albert Speer, esse carreirista consu­
mado, são unicamente uma: Ele era “ acima de tudo arquiteto” .
Ser “ acima de tudo arquiteto” foi sua grandeza, porque sua devo­
ção singular à sua carreira fez dele um arquiteto excepcionalmen­
te bom. Ser “ acima de tudo arquiteto” foi sua tragédia, porque sua
devoção singular à sua carreira fez dele um ser humano excepcio­
nalmente ruim.
O trabalho é perigoso. Se você não ficar atento, dividirá sua
excelência profissional de sua excelência pessoal, nutrirá uma e
matará a outra. Pode iludi-lo a se esforçar para ganhar o mundo
inteiro, enquanto o cega para o fato de que você está perdendo a
própria alma (veja Marcos 8.36). A única maneira de ser, ao mes­
mo tempo, um bom trabalhador e uma boa pessoa é esquecer-se
de ganhar o “mundo inteiro” e, em vez disso, esforçar-se pelo Reino
de Deus e a sua justiça (Mateus 6.33).
Revisão e Questões para Discussão
1. O que V olf quis dizer quando afirmou: “ O trabalho é a nossa
bênção e o trabalho é a nossa maldição” ?
2. Como Volf define trabalho? O que ele acha que não é trabalho?
3. Volf distingue entre a razão porque trabalhamos e o propó­
sito pelo qual trabalhamos. Explique esta distinção. Qual é a res­
posta dele à pergunta: Por que trabalhamos?
4. Como V olf explica o propósito do trabalho? Na verdade ele
cita vários propósitos. Quais são?
5. Na seção intitulada “ O Trabalho Humano e a Maldição de
Deus” , Volf descreve a maldição associada com a Queda. Como
ele relaciona a maldição com o trabalho humano?
r
6. O autor identifica quatro aspectos negativos do trabalho:
exploração, labuta, egocentrismo e discriminação. Resume e ilus­
tre um deles.
7. Os críticos culparam a fé cristã pela destruição progressiva
do ambiente depois do início da industrialização. Que evidências
os críticos citam para a sua conclusão? Resuma a resposta de Volf
aos críticos.
8. Qual é o princípio de contar a história de Albert Speer? E s ­
pecificamente, o que a história desse homem tem a ver com o
trabalho?
Bibliografia Selecionada
H A R D Y, Lee. The Fabric ofThis World: lnquiries into Calling,
Career Choice, and the Design o f Human Work. Grand Rapids:
W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1990.
Laborem Exercens: Encyclical Letter o f the Supreme Pontiff
John Paul II on Human Work. Londres: Catholic Trust Society,
1981.
M O LTM AN N , Jiirgen. “The Right to Work.” In : On Human
Dignity: Political Theology and Ethics, traduzido para o inglês
por D . Meeks. Filad élfia: Fortress Press, 1984.
STO TT, John. “Work and Unemployment.” In: Issues Facing
Christians Today. Basingstoke, Inglaterra: M arshalls, 1984.
“The Oxford Declaration on Christian Faith and Econom ics.”
In : Christianity and Economics in the Post-Cold War Era: The
Oxford Declaration and Beyond, editores H . Schlossberg et al.
Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1994.
V O LF, M iroslav. Work in the Spirit: Toward a Theology o f
Work. Nova York: Oxford University Press, 1991)
Notas Bibligráficas
1. A lain Finkielkraut, Die Weisheit derLiebe, traduzido do russo
para o inglês por N. Volland (Reinbeck bei Hamburg: Rowohlt
Verlag, 1989), p. 17.
2. Ju lie tB . Schor, The OverworkedAmerican: The Unexpected
Decline ofLeisure (Nova York: Basic Books, 1992), p. 11.
3. Ib id ., pp. 9s.
4. John K . Galbraith, TheAffluent Society (Boston: Houghton
M ifflin , 1958), p. 154.
5. Schor, The Overworked American, p. 11.
6. Omiti intencionalmente alguns aspectos do trabalho huma­
no, como a relação entre trabalho e descanso ou lazer, porque se­
rão tratados em outro capítulo. No texto a seguir, não farei refe­
rências extensas a literatura secundária. Para uma abordagem mais
extensa dos temas que trato aqui, veja especialmente M iroslav Volf,
Work in the Spirit: Toward a Theology ofWork (Nova York: Oxford
University Press, 1991). Veja também “Eschaton, Creation, and
2 4 4
MIROSLAV VOLF
Social Ethics” , Calvin Theological Journal, volume 30,1995, pp.
130-143; “Work and the G ifts of the Spirit” , in: Christianity and
Economics in the Post-Cold War Era: The Oxford Declaration and
Beyond, editores Herbert Schlossberg et al. (Grand Rapids: W illiam
B . Eerdmans Publishing Company, 1994), pp. 33-56; “ On Human
W ork: An Evaluation of the Key Ideas of the Encyclical Laborem
Exercens", Scottish Journal o f Theology, volume 36, 1984, pp.
65-79.
7. V eja Goran A g re ll, Work, Toil and Sustenance: An
Examination o f the View o f Work in the New Testament, taking
into Consideration Views Found in Old Testament, Intertestamental
and Early Rabbinic Writings (Lund: Verbum/Hakan Ohlssons,
1976), p. 8.
8. Sobre a questão do trabalho divino, veja Robert J. Banks,
God the Worker: Journeys into the Mind, Heart, and Imagination
o f God (Claremont: Albatros, 1992).
9. Atra-Hasis: The Babilonian Story ofthe Flood, editores W. G.
Lambert e A . R . M illard (Oxford: Clarendon Press, 1969), p. 43.
10. Atra-Hasis, pp. 59s.
11. Veja W alter Zim m erli, “ Mensch und A rbeit im Alten
Testament” , Recht a uf Arbeit — Sinn der Arbeit, editor Jiirgen
Moltmann (Munique: Christian Kaiser, 1979), p. 52.
12. Jiirgen Ebach, “Zum Thema: Arbeit und Ruhe im Alten
Testam ent. E in e U top ische Erin n e ru n g ” , Z e itsc h rift fiir
Evangelische Ethik, volume 24, 1980, p. 17.
13. Contra Stanley Hauerwas, “Work as Co-Creation: A C riti­
que of a Remarkably Bad Idea” , in : Co-Creation and Capitalism:
John Paul I I ’s Laborem Exercens, editores J. W. Houck e O. F.
W illiam s (Lanham , M aryland: U niversity Press of Am erica,
1983), p. 48.
14. John Stott, Issues Facing Christians Today (Basingstoke,
Inglaterra: M arshalls, 1984), p. 160.
15. Jiirgen Moltmann, “The Right to Work” , On Human Dignity
Political Theology and Ethics, traduzido para o inglês por D . Meeks
(Filad élfia: Fortress Press, 1984), p. 45.
16. Jiirgen Habermas, Erkenntnis und Interesse (Frankfurt A .M .:
Suhrkamp, 1979), p. 80.
17. M artin Lu th e r, M artin L uthers Werke. K ritische
Gesamtausgabe (Weimar: H . Bohlau, 1883— ), volume X L II, p.
78.
18. John Calvin, Sermons on the Epistle to the Ephesians (Edim ­
burgo: Banner of Truth, 1973), p. 457.
19. W. T. Bielby e J. N. Baron, “Men and Woman at Work: Sex
Segregation and Statistical Discrim ination” , American Journal o f
Sociology, volume 91, 1986, p. 760.
20. Parcialmente com base nisso, Christopher Lasch argumen­
tou que temos de repensar a idéia de progresso. Veja seu livro
True and Only Heaven: Progress and Its Critics (Nova York: Norton
& Company, 1991).
21. Veja O. H . Steck, Welt und Umwelt (Stuttgart: Kohlhammer,
1978), p. 68.
22. “ The O xfo rd D e claratio n on C h ristia n F a ith and
Economics” , in: Christianity and Economics in the Post-Cold War
Era: The Oxford Declaration and Beyond, editores Herbert
Schlossberg et al. (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing
Company, 1994), pp. 13s.
23. Veja, por exemplo, B . Jacob, Das erste Buch der Tora.
Genesis (Berlim : Shocken, 1934), p. 61.
24. Laborem Exercens; Encyclical Letter ofthe Supreme Pontiff
John Paul II on Human Work (Londres: Catholic Trust Society,
1981), n.° 4.
25. Veja Norbert Lohfink, “Macht euch die Erde Untertan?” ,
Orientierung, volume 38, 1974, p. 139; Claus Westermann,
Schõpfung (Stuttgart: Kreuz Verlag, 1979), p. 78.
26. Citado por W. Leiss, The Domination ofNature (Nova York:
Georges B raziller, 1972), p. 49.
27. Citado por Stanley Hauerwas, Richard Bondi e David B .
B u rre ll, Truthfulness and Tragedy: Further Investigations in
Christian Ethics (Notre Dame: U niversity of Notre Dame Press,
1977), pp. 88ss.
28. Ibid., p. 90.
29. Michael Maccoby, The Gamesman: Winning and Losing the
Career Game (Nova York: Simon & Schuster, 1976), pp. 204, 205.
7
Entrando no
"Descanso
Divino":
Rumo a uma
Visão Cristã
de Lazer
Charles W. Nienkirchen
248
CHARLES W. NIENKIRCHEN
avia um menino que cresceu numa pequena cidade cana­
dense. Como parte de uma subcultura alemã de classe tra­
balhadora firmemente unida, sua fam ília o ensinou desde
cedo a acreditar no trabalho - sua necessidade, seu valor moral e
suas recompensas. Lazer e descanso raramente eram menciona­
dos ou exemplificados. O menino chegou a ver tudo na vida pela
janela do trabalho. Tudo, inclusive a imagem de si mesmo, era
avaliado a partir de sua relação com o trabalho. “ Trabalhar para
Deus” tornou-se a base que moldou sua vida espiritual. Crendo
que Deus sempre estava lhe pedindo que fizesse mais pela via do
serviço, seu estilo de vida tomou-se um ativismo cristão altamen­
te extrovertido. Ele avaliava o sucesso espiritual em termos de
quantidade de trabalho e produtividade - os únicos critérios que
conhecia.
Os anos se passaram. A compulsão ao trabalho (“ workaholismo”)
permaneceu o padrão reinante em sua vida. Durante seus estudos de
pós-graduação, um interesse pela história cristã levou-o a explorar as
origens cristãs no Oriente Médio. Ele foi atraído por uma série de
__________________ diálogos com monges que habitavam os de­
sertos do Egito e de Israel. Ficou intrigado com
Eu não tinha conhecimento ou
as motivações de determinado monge que du­
rante
mais de 40 anos tinha vivido ao lado do
experiência do 'Cristo do deserto',
monte da Tentação, fora dos lim ites de Jericó.
chamado para usufruir de
Achando divertidíssim a a excentricidade do
comunhão tranquila com seu Pai.
monge, e convencido da irrelevância de sua
vida, o jovem travou conversa com o mon­
ge, e lhe perguntou: “ Como sua vida cum­
pre a Grande Com issão?” Sem perder a serenidade, o monge
respondeu: “ Como você segue a Cristo no deserto? - E além
do m ais, não estou voando de avião pelo mundo inteiro poluin­
do a atm osfera!”
Eu era aquele jovem . O “pai deserto” tinha discernido meu
coração. Eu não tinha conhecimento ou experiência do “ Cristo do
deserto” , chamado para usufruir de comunhão tranquila com seu
Pai. O Espírito tinha me levado a sair da familiaridade confortável
de minha cultura ocidental e tradição religiosa. O mesmo Espírito
me tinha posto em equilíbrio para começar um novo capítulo de
sua obra restauradora em minha vida. O encontro com o pai deser­
to me lançou numa excursão de 15 anos no mundo da “ vida
contemplativa” e “lazer santo” . Nas páginas a seguir descrevo al­
guns dos temas fundamentais para entendermos o lazer santo e
integrá-lo em nossa vida diária.
O Surgimento Histórico da Sociedade de Lazer
A Revolução Industrial dos séculos X V III e X IX alterou dras­
ticamente as economias da Europa ocidental. Nos dois séculos
seguintes, grande parte do mundo tem buscado a industrialização.
r
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER 2 4 9
A s sociedades foram construídas e seus habitantes passaram a es­
perar usufruir de riqueza disponível, bens disponíveis e tempo dis­
ponível.1A inexorável inovação tecnológica criou a “ era do lazer” .
Outrora privilégio apenas dos ricos, hoje o lazer se estende às clas­
ses trabalhadoras. Isto é evidente em muitos aspectos da vida: se­
mana de trabalho menor, mais feriados, férias mais extensas, edu­
cação ampliada antes do trabalho, aposentadoria mais cedo, ex­
pectativa de vida mais longa. O rápido crescimento da economia
de trabalho, os dispositivos tecnológicos, inclusive os eletrodomésticos, e a melhoria dos meios de transportes e comunicação
tornaram o lazer muito mais disponível para a pessoa comum.
Além disso, hoje o trabalho está em geral separado física e
psicologicamente de onde as pessoas vivem. Todos estes fatores
combinados enchem a vida da classe média trabalhadora de uma
quantidade de lazer e descanso aparentemente sem precedentes na
história do mundo.2
Numerosos observadores sociais têm chamado a atenção para
um paradoxo do mundo ocidental de fins do século X X : A s pesso­
as trabalham duro no lazer. Escrevendo em meados do século,
Walter Kerr lamentou o “ declínio do prazer” na sociedade indus­
trial. Ele reconheceu que o “ sonho de lazer” tinha sido realizado.
Porém, lastimou que o século X X tinha “ ao contrário e talvez de
modo bastante cruel [...] nos aliviado do trabalho, sem ao mesmo
tempo nos aliviar da crença de que só o trabalho é significativo” .3
O escritor britânico Jeremy Seabrook, escrevendo em fins da dé­
cada de 1980, viu a degradação da cultura ocidental em uma “bus­
ca agitada de entretenimento e fuga” como uma corrupção do lazer.
Em sua visão, o lazer foi reduzido a “ uma perpetuação da tarefa
nunca completada do trabalho nas minas, moinhos ou fábricas” .4
Longe de ser uma experiência de repouso criativo, o lazer foi vis­
to por Seabrook como tendo “uma semelhança extraordinária com
a atividade febril do labor capitalista” .5
Mais recentemente, a antropóloga M ary Bateson descobriu que
seus companheiros americanos de fins do século X X trabalham
duro para se divertir: “ Somos uma sociedade agitadamente ocu­
pada, com pouca capacidade para vadiar ao sol (embora trabalhe­
mos duro para ficar bronzeados) ou folgar na cama (onde o ‘delei­
te’ é uma obrigação séria). Somos tão tiranizados pelo papel de
domingo livre como nossos [...] antepassados eram pelos sermões
de duas horas” .6Tudo neste comentário nos faz lembrar dos deva­
neios incisivos de Leslie Stephen, cínico inglês do século X IX .
Stephen satirizou o uso pretensioso do tempo de lazer supostamente criado pela Revolução Industrial: “M ilhares de pessoas no
presente momento estão [...] fingido para si mesmas que estão
desfrutando um feriado. Elas voltarão quase mortas de cansaço
dos seus prazeres e deleites para retomar aos seus afazeres. [...]
Contudo, irão se persuadir a si mesmas e aos outros que passaram
um feriado incrivelmente agradável” .7
2 5 0
CHARLES W. NIENKIRCHEN
A declaração irrefletida de que a industrialização deu o dom
do lazer às massas trabalhadoras da sociedade ocidental durante
os séculos X V III e X IX é enganosa. Pode ser bem mais verdade
que a industrialização impôs na sociedade um novo conceito de
tempo, e esse conceito na realidade reduziu o lazer e não o au­
mentou.
Os estudiosos têm revisado cada vez mais a visão comumente
mantida de que a Revolução Industrial criou o lazer. O historiador
Richard Kraus, por exemplo, argumenta que a Revolução Indus­
trial na verdade intensificou a glorificação puritana do trabalho e
a condenação do lazer e do divertimento. Ele chama a atenção
para as fortes ligações feitas por líderes religiosos do século X IX
entre trabalho, disciplina e vida saudável. Kraus conclui que “ os
americanos ficaram mais conscientemente dedicados à ética pro-
O
Sítáem a £tíc& ^unctaaO'
O que hoje passa pelo nome de
“ ética protestante” é quase o oposlo
do que os protestantes o rig in ais
[C alvino, Lutero, os puritanos) na
verdade defendiam e praticavam. Só
quando a consciência religiosa e
a estrutura teológica tinham sido
removidas foi que a ética protes­
tante adquiriu as características
que são erroneamente atribuídas
a ela.
O estereótipo comum sobre
a ética protestante está correto
em uma consideração: afirmou
o valor do trabalho industrioso,
[...] Poderíamos observar [...]
que os protestantes originais não de­
fenderam o trabalho porque era ine­
rentemente meritório, mas porque era
o meio designado por Deus para pro­
ver as necessidades humanas.
Uma ênfase importante da ética
protestante original foi delinear as
motivações e recompensas do traba­
lho. As recompensas do trabalho eram
dominantemente concebidas como
espirituais e morais. [...] Além de for­
necer uma visão cristã equilibrada das
metas e recompensas do trabalho, a ética
do trabalho protestante objetivava um
ideal de moderação no trabalho.
Muitas das acusações modernas con­
tra os puritanos são inverídicas ou exa­
geradas. Elas tendem a estar baseadas no
preconceito dos puritanos contra mani­
festações sclecionadas das atividades de
lazer que, a princípio, eram aceitáveis aos
puritanos. Dentro de sua estrutura religio­
sa e moral, os puritanos se engajaram num
âmbito saudável de atividades de lazer.
Sem a influência restritiva da crença
protestante na primazia do espiritual, as
doutrinas da ética protestante original
foram pervertidas num credo de sucesso
pessoal. Esta perversão secularizada é o
que a maioria das pessoas de hoje quer di­
zer quando fala loquazmente da “ética pro­
testante” . A verdade é que as pessoas da
era da Reforma ficariam horrorizadas ao
ficarem sabendo de tudo o que foi colo­
cado hoje sob a bandeira da “ ética pro­
testante” .
Material extraído de Leland Ryken,
Work and Leisure in Christian Perspective
(Portiand, Oregon: Multnomah, 1987), pp.
92, 93,97, 99, 104,69.
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
251
testante do trabalho do que os europeus jam ais tinham ficado” .8
De acordo com raciocínio análogo, certos protestantes exaltaram
o trabalho e a produtividade económica. Em sua visão, o trabalho
tem valor santificador e purificador. C . W right M ills, por exem­
plo, em sua pesquisa da história do trabalho, insistiu que antes do
século X X um “ evangelho do trabalho” ditou a imagem que os
Estados Unidos tinham de si mesmos como também a imagem
mantida pelo resto do mundo.9
Alguns futuristas por demais otimistas continuam prevendo o
declínio do trabalho. Eles discutem que o trabalho será “remode­
lado” para incorporar mais lazer nos horários de trabalho.10 Ou­
tras vozes, porém, deduzem que o trabalho está na verdade au­
mentando. Há algumas evidências, por exem­
plo, de que o número de horas trabalhadas está
Nos Estados Unidos, a indústria
aumentando em comparação ao que se traba­
do lazer só é ultrapassada pela
lhava há quarenta anos.11 A lvin Toffler, em A
Terceira Onda, apresentou argumentos sobre
indústria do automóvel nas vendas
o aparecim ento do “ prosum idor” . Um
brutas a varejo.
prosumidor (termo desconhecido em língua
portuguesa), parece, é alguém que, sem fazer
conta de compensação, gasta muito tempo do denominado lazer
na produção voluntária de bens e serviços.12Na visão de alguns, o
lazer evaporou-se tão completamente da sociedade que a distin­
ção entre trabalho e lazer tomou-se quase imperceptível.13Alguns
grupos de trabalho, na realidade, não têm tempo de lazer.14
Mesmo que certas tendências (algumas das quais trazidas pe­
las recessões económicas) indiquem uma revivificação do traba­
lho, numerosos países ocidentais têm testemunhado o surgimento
da enigmática “indústria do lazer” . Nos Estados Unidos, a indús­
tria do lazer só é ultrapassada pela indústria do automóvel nas
vendas brutas a varejo.15Alguns críticos cristãos, enquanto defen­
deram que o lazer tem seu lugar legítimo na sociedade, atribuíram
o crescimento rápido da indústria do lazer durante as décadas de
1970 e 1980 à corrupção da ética americana do trabalho.16 Em
suma, enquanto ninguém imaginaria o retrocesso que houve no
trabalho e diversão que ocorreu nos Estados Unidos de 1800 a
1950, neste momento a “ era do lazer” pode ser mais ilusão que
realidade.17 Neste caso, a ilusão não está em nenhuma parte mais
dolorosamente simbolizada que na perda da infância como fenó­
meno social.18 N eil Postman tem observado a “ adultificação” da
sociedade americana desde a década de 1950, como está evidente
na mídia, nos estilos de vestuário, hábitos alimentares, jogos, es­
portes e entretenimento, língua, práticas sexuais e a criminalidade
da juventude.19
Outra complicação é que na literatura atual o termo “ lazer”
necessita de definição clara. Nenhum consenso foi alcançado no
que concerne a uma definição trabalhista do termo.20 Pelo menos
três fatores parecem ser responsáveis. Prim eiro, algumas pessoas
2 5 2
CHARLES W. NIENKIRCHEN
empregam conceitos superficiais e distinções espúrias (lazer e re­
creação são a mesma coisa ou são diferentes?). Segundo, a versão
“planejada” de lazer promovida pelo estado e outras agências so­
ciais com frequência obtêm atenção imprópria. Terceiro, algumas
definições do termo simplesmente são deficientes.21 Qual, por
exemplo, é a relação entre lazer e certas atividades afins como
jogo, diversão, prazer e consumo? (No que diz respeito ao assun­
to, o que devemos fazer com o debate que gira em tomo das projeções de uma futura “ sociedade de lazer” ?22) Seu significado es­
sencial fica mais obscurecido quando usado em frases como “ in­
dústria do lazer” , “ tempo de lazer” , “viagem de lazer” e “ adminis­
tração do lazer” . Todas estas expressões associam o lazer com al­
gum tipo de atividade.
Em sua etimologia, porém, o termo lazer
Em sua etimologia, o termo lazer
(derivado do latim licere) tem a ver com a li­
(derivado do latim licere) tem a ver
berdade, no sentido de denotar um estado in­
terior de reflexão e contemplação combinado
com a liberdade.
com uma quietude externa. Para o filósofo
B ertran d R u s s e ll, o verdadeiro la ze r,
contemplativamente definido, é o único remédio para a fadiga,
infelicidade e tensão nervosa que tomam a vida urbana moderna
uma “peregrinação no deserto” .23
Muito do lazer recreativo é uma busca do descanso por meio
de atividades que não são parte das rotinas normais e diárias da
pessoa. Por contraste, a contemplação, ou o “lazer santo” , não é
um exercício de relaxam ento. O relaxam ento físic o é um
subproduto da contemplação. Na tradição cristã, a contemplação
tem muito mais a ver com desenvolver um estilo de vida religioso
do que estar continuamente atento e aberto à presença divina. E
uma atitude de receptividade à obra transformadora do Espírito
Santo que abrange o todo da vida, não só o tempo fora do traba­
lho. É viver confiantemente de um modo tranquilo, entregando
tudo da vida da pessoa aos cuidados de Deus, e submetendo-se
sem reservas à vontade divina. O corpo, mente e espírito são paci­
ficamente integrados em uma vida de obediência.
Pelo menos duas outras distrações surgem quando considera­
mos o lazer. A primeira é a tendência a associá-la com o tempo
livre e o entretenimento. A segunda é tratá-la ou como preparação
ao trabalho, recompensa pelo trabalho, ou como descanso do tra­
balho. Mas é claro que se definirmos lazer desses modos, perpetu­
amos o solo improdutivo urbano que Russell descreveu tão habil­
mente. Isto é desta forma, porque o lazer, assim definido, é priva­
do do papel integrativo na cultura. É reduzido a ser uma única
parte da vida em vez de ser um estilo de vida. Além disso, se lim i­
tarmos o lazer a um período restrito de tempo, minamos seu valor
primário na experiência espiritual a favor dos seus benefícios so­
ciais e económicos.24 Por exemplo, a maioria dos estudantes uni­
versitários logo compararia o lazer com as férias de fim de ano, os
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
2 5 3
feriadões ou a diversão ao sol do que com ir às aulas, ou seja, uma
busca folgada da verdade e significado último.
Frank Buckley fornece uma perspectiva mais significativa de
lazer. E le o descreve como “ a experiência da reunião sossegada e
presença ociosa” . Sua idéia é ú til, porque transcende as condições
sociais das várias culturas e períodos de tempo. Aplica-se igual­
mente bem, quer estejamos pensando em lazer como “tempo li­
vre” em uma sociedade industrial, quer no tempo indiferenciado e
cíclico da vida pré-industrial. Para Buckley, tudo da vida - seja
“ tempo livre” , seja “tempo de trabalho” - é designado a manar de
uma “ autêntica atitude de folga” .25
Em 1899, o sociólogo e economista americano Thorstein Veblen
publicou The Theory ofthe Leisure Class (A Teoria da Classe do
Lazer).26Nesse livro , ele falou de um século de lazer que procriou
uma cultura baseada no lazer. Um recente e fascinante estudo fei­
to por Glenn Uminowicz mostra como os protestantes americanos de
várias denominações na virada do século X X tentaram incorporar a
denominada revolução do lazer em sua visão global da civilização
cristã. Estabelecendo uma cadeia de “recursos res­
peitáveis” , eles objetivaram combinar sua busca
de santidade com as oportunidades de descanso,
A contemplação, ou o 'lazer
lazer e diversão que um novo século parecia pro­
santo', não é um exercício de
meter.27 Estes recursos foram os precursores do
relaxamento. O relaxamento físico
moderno parque de temas religiosos. Infelizmen­
te, eles com relutância denegriram a vida espiri­
é um subproduto da contemplação.
tual, casando-a com a ética do consumidor no
contexto de uma “Disneylândia Cristã” .
Sociologicamente, as Escrituras não estão fam iliarizadas com
a “ era do lazer” que Veblen antecipou. Ao mesmo tempo, uma
visão de espiritualidade fundamentada na B íb lia é uma necessida­
de do crente que enfrenta o surgimento do lazer na cultura norteamericana. Tal espiritualidade definiria o lazer e lhe daria enfoque
e significado dentro de uma cosmovisão cristã.
Se o lazer levanta questões espirituais, também levanta ques­
tões morais. Uma delas é a moralidade do consumo indulgente de
bens materiais estimulada pelo comércio do lazer.28 Em sua ma­
gistral história sobre a “ vida simples” nos Estados Unidos, David
Shi destaca a tensão na sociedade americana durante as últimas
três décadas entre dois tipos de pessoas. Um tipo adota uma abor­
dagem de consumidor para a vida. A s pessoas deste tipo estão
comprometidas com o nível excessivo de consumo material gera­
do pelo sonho americano. Um segundo tipo defende uma aborda­
gem mais simples e menos aquisitiva para a vida. A s pessoas des­
te tipo procuram um estilo de vida mais leve e simples, fundamen­
tado na integridade espiritual e exibindo consciência ecológica.29
Significativamente, tanto a ética da vida simples quanto a consu­
midora têm seus defensores sinceros nos meios evangélicos,
pentecostais e carism áticos.30
2 5 4
CHARLES W. NIENKIRCHEN
Uma análise completa do lazer invariavelmente mencionaria
questões filosóficas, teológicas, sociológicas, psicológicas, histó­
ricas e económicas. Muitas destas questões são bastante técnicas e
acham-se fora do âmbito deste capítulo.31 Concentramos nossa aten­
ção principalmente nos temas bíblicos, teológicos e históricos.
O Antigo Conceito Bíblico de Descanso
Visto por nossos olhos, o mundo hebraico e o mundo grecoromano do Antigo e Novo Testamentos, respectivamente, eram
sociedades de trabalho.32 Dentro da tradição hebraica, porém, a
ação interativa do trabalho e descanso, enraizada na narrativa da
Criação em Génesis (Génesis 2.3), era intrínseca à sua socieda­
de.33 O quarto mandamento, pertinente ao sábado, e as leis relaci­
onadas concernentes ao Ano Sabático e ao Ano do Jubileu (Êxodo
20.8-11; 23.10-19; Levítico 25.1-17), veneraram o descanso para
todos governado pelo código legal de Israel.34
Com certeza este código nem sempre foi se­
Sociologicamente, as Escrituras
guido fielmente ao longo da história israelita.
Contudo, no coração da lei mosaica acha-se
não estão familiarizadas com a 'era
uma
visão de vida “folgada” , fazendo provi­
do lazer' que Veblen antecipou.
são para a renovação regular pessoal, social e
ambiental. Na tradição hebraica, o compromis­
so moral e legal com o descanso expressava dois temas centrais.
Prim eiro, refletia uma visão de um Deus que entendia e praticava
o lazer. Segundo, compensava por quatro séculos de trabalho es­
cravo constante suportado no Egito (Deuteronômio 5.15). O fato
de que a quebra do sábado era tratada como ofensa importante
(Êxodo 31.14; Números 15.32-36) mostra que peso as Escrituras
dão à visão original do sábado. Notavelmente, a duração de seten­
ta anos do exílio israelita na Babilónia era o equivalente exato dos
anos de falha em observar o ano sabático (2 Crónicas 36.20,21).
A instituição do Antigo Testamento do sábado semanal trans­
mitia vários significados. Primeiro, recordava a vida no Éden. Neste
sentido, acarretava necessariamente a cessação de trabalho físico,
a contemplação e recordação do Santo, a restauração de energia
para os seres humanos e animais, e o reconhecimento da respon­
sabilidade.35 Segundo, servia como sinal do concerto. Neste senti­
do, olhava ao futuro para a vida tranquila do reinado do M essias.36
Terceiro, parece ser um mandato para diversão e celebração
jubilosos.37Evidências para esta visão aparecem nas passagens da
legislação sabática para as festas (Êxodo 23.10-19) e em passa­
gens que discutem o Ano do Jubileu (Levítico 25.8-55). O descan­
so do sábado é chamado corretamente o contraponto rítmico dos
outros seis dias.38
Como ocorre com todos os mandamentos, o mandamento de
guardar o sábado foi estabelecido para libertar e não reprimir. Esta
liberação deriva seu significado do evento monumental da reden­
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
2 5 5
ção no Êxodo (Deuteronômio 5.15) e ressalta que cada momento
é um presente de Deus. A totalidade da vida devia ser vivida num
espírito de libertação contra a tela de fundo do sábado.39 Ignorar o
sábado provocava várias formas de opressão psicológica, social e
económ ica. Além disso, ignorar o sábado significava negar o cui­
dado providencial de Deus por suas criaturas. Ao longo do Antigo
Testamento, as vozes proféticas execravam as violações do sábado.
Tais violações corroiam o dom do lazer que beneficiava todos os
israelitas (Isaías 58.13s; Jeremias 17.21ss; Amós 8.5; 4.4ss; 5.21ss).
A obsessão pelo trabalho, quer seja para m axim izar o ganho
económico ou apenas para obter segurança pessoal, era uma ten­
dência a ser resistida, visto que reduzia a vida a uma luta pela
sobrevivência terrestre. Por contraste, o sábado indicava uma or­
dem eterna das coisas. Jiirgen Moltmann concluiu com exatidão:
“ O sábado não existe pelo bem do trabalho; o trabalho existe pelo
bem da alegria de viver” . O descanso de Deus não é meramente a
cessação de “trabalho exaustivo” . É o pináculo da Criação.40
A legislação de Moisés concernente ao lazer expressou uma
teologia de descanso que permeia o Antigo Testamento. O des­
canso em suas facetas espirituais, sociais e militares era visto como
o principal benefício redentor para o povo de Deus que vivia na
terra da promessa. Uma vida folgada era fruto de confiar na salva­
ção de Deus. Isto era entendido holisticamente - como a liberta­
ção do pecado, como a provisão para as necessidades materiais
diárias da pessoa, e como a proteção contra seus inimigos.
Não sabemos com certeza até que ponto o antigo conceito
hebraico do sábado foi transmitido para os tempos do Novo Testa-
^ladcçâa da Sãèacta e
Entre os muitos benefícios da redenção
oferecida aos homens pelas Santas Escritu­
ras, esta do “descanso” quase tem sido negli­
genciada na teologia bíblica, apesar do fato
de que, falando teologicamente, expressa uma
noção altamente característica. Em vários li­
vros do Antigo Testamento, compilados em
períodos diferentes, a crença expressa é que
Deus dará, ou deu, “ descanso” ao seu povo.
Hoje, esta noção de “ descanso” vem ocu­
par um lugar importante no pensamento re­
ligioso de Israel. Pensa-se nela como um
descanso encontrado por uma nação cansa­
da mediante a graça de Deus na terra que
E le lhe prometeu.
/ím *
Çu&deet
Isto é visto claramente na declaração que
liga o descanso de Deus do seu trabalho da
criação com a instituição de um sétimo dia,
um dia de descanso que é contrastado com
os dias da criação. A declaração assevera que
o mundo já não está sendo criado, mas que
já recebeu o descanso de Deus. [...] Acima
de tudo, porém, a frase é tão audaciosa quan­
to declarar que até o Deus vivo e criativo
está em repouso!
Os comentários precedentes são extraí­
dos do ensaio fecundo de Gerhard von Rad:
“There Remains S till a Rest for the People
of God” (Resta ainda um Repouso para o Povo
de Deus; veja a Nota 34 neste Capítulo).
2 5 6
CHARLES W. NIENKIRCHEN
mento.41 Sem dúvida que guardar o sábado fazia parte do estilo de
vida de Jesus. Por exemplo, E le frequentava a sinagoga no sábado
(Marcos 1.21). Mas E le também pôs de lado as tradições do sába­
do e incentivou outros a fazer o mesmo (Mateus 12.1-14). As ações
supostamente escandalosas de Jesus no sábado são, com efeito, o
renascimento de um antigo ideal para com o sábado. De acordo
com este ideal, o sábado funcionava como meio de cuidar das ne­
cessidades físicas dos fracos e necessitados que eram especial­
mente vulneráveis à opressão económica (Marcos 2.27,28).
A legítima discussão erudita continuará a respeito do grau pre­
ciso ao qual as visões sabáticas de Jesus conformam-se com os
ensinos do Antigo Testamento sobre o sábado. O que não está em
disputa, porém, é que Jesus enfatizou os temas sabáticos de des­
canso e renovação tanto no seu estilo de vida quanto no seu ensi­
no. Em sua regra de vida diária, Ele exemplificou a integração da
vida ativa (trabalho) e da vida contemplativa (lazer). Para E le , os
lugares desertos para os quais regularmente se
retirava não eram lugares apenas de prova e
A legislação de Moisés
tentação, mas também de oportunidade para
concernente ao lazer expressou
descanso e renovação. Nesses lugares, E le
recarregava
as forças para enfrentar as exigên­
uma teologia de descanso que
cias febris do ministério nas ruas.42 Robert K .
permeia o Antigo Testamento.
Johnston, enquanto reconhece que nenhuma
teologia de lazer completamente desenvolvi­
da pode ser encontrada nas páginas do Novo Testamento, tem
intrigantemente sugerido que na rede de amizades de Jesus podem-se ver evidências de um “ estilo de vida sociável” .43
Confessamente, a imagem do “Cristo folgado” não se ajusta
facilmente com os tradicionais estereótipos ocidentais de Cristo.
Certos aspectos da tradição intelectual e religiosa ocidental compreensivelmente não prestariam atenção adequada à representa­
ção bíblica de um Cristo contemplativo e folgado. Isto seria ver­
dade, por exemplo, quanto a ética protestante do trabalho, que exalta
o trabalho e tende a depreciar as dimensões contemplativas e come­
morativas da vida. Retratar Cristo como figura contemplativa está
muito mais em sintonia com o modo como as culturas orientais o
viam.44 As sociedades orientais têm confirmado tradicionalmente o
valor do que o escritor indiano Vandana M ataji chama de “lazer
ascético” .45A imagem de Jesus “de férias” é alienígena às Escrituras;
o quadro de um Cristo “em contemplação” não é 46
Uma “ semana de trabalho encurtada” no estilo ocidental nun­
ca fez parte da encarnação; “ descansar em Deus” fez. Para o Jesus
terrestre, o trabalho feito no cenário da contemplação foi ordena­
do pelo mesmo amanhecer exaustivo para obscurecer a rotina fa­
m iliar de muitos nas nações pouco desenvolvidas ou em desen­
volvimento de hoje.
A substância dos ensinos de Jesus apóia a prática de sua vida.
Dois temas principais de sua mensagem são consistentes com as
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
2 5 7
necessidades profundamente inseridas na fatigante condição hu­
mana. E le oferece renovação espiritual e oferece descanso. Am ­
bos estes dons são vividos pela conversão (João 3.1-15; Mateus
11.28-30).47 Mais geralmente, o Evangelho é em si uma forma de
sábado. Como tal, faz provisão para as necessidades espirituais
básicas dos seres humanos descritas como “fome” e “ sede” (Mateus
5.6; João 4.1-15). Liberta os seres humanos necessitados de todas
as formas de escravidão e opressão. De fato, a __________________
autoproclamada missão de Jesus é enunciada
Confessamente, a imagem do
(num sábado) em linguagem profética que lem­
bra o Ano do Jubileu (Lucas 4.18). A sugestão
'Cristo folgado' não se ajusta
clara é que sua vida e trabalho eram a incorpo­
facilmente com os tradicionais
ração pessoal do que havia sido expresso ori­
estereótipos ocidentais de Cristo.
ginalmente na le i ju d aica.48
No início de um movimento de renovação
judaica, a primeira geração de cristãos u tili­
zou o sábado judaico como o Líder deles, o Profeta e Mestre ju ­
deu, fez. Essa geração continuou a observar o sábado para os pro­
pósitos de culto e oração, como também para a proclamação dos
ensinamentos de Jesus (Atos 13.13-48; 16.13ss; 18.4). O signifi­
cado das leis e instituições sabáticas do Novo Testamento dimi­
nuiu gradualmente para o estado de “ sombras” . O próprio Cristo
emergiu como a “substância” , o “corpo” (Colossenses 2.16,17).
Esta troca de ênfase afetou o modo como os cristãos viam o des­
canso. Com o passar do tempo, deixaram de pensar em descansar
dentro da estrutura do calendário judaico. Ao invés disso, o des­
canso tomou-se um ingrediente principal da vida vivida no poder
do espírito do Messias.
Durante certo período de tempo no século I, a legislação do
sábado do Antigo Testamento afetou favoravelmente judeus e cris­
tãos. Ao estipular dias e estações de descanso essa legislação
humanizou a vida antiga, tornou a labuta mais suportável. A me­
dida que o Cristianismo se espalhava para além das fronteiras da
Palestina e quando o estado político judeu foi dissolvido no últi­
mo terço do século I d.C ., a legislação do sábado do Antigo Testa­
mento ficou cada vez mais irrelevante para os cristãos. Contudo, o
significado profético permanente do próprio sábado nunca foi per­
dido pelos cristãos prim itivos. Eles viam o destino último do povo
de Deus, independente de sua localização geográfica específica,
como a participação no futuro “descanso de Deus” , um descanso
além da vida mortal (Hebreus 4.9,10).49
Apropriadamente, o cânon do Novo Testamento termina onde
o cânon do Antigo Testamento começa - com uma cena id ílica de
jardim , um cenário para o lazer humano tornado possível por um
ato divino de criação (Génesis 1; Apocalipse 22.1-5). Em Génesis,
o jardim do Éden, lugar de íntima comunhão com o Criador, é
suplantado por um mundo de trabalho suado e urbanização devi­
do ao impacto do mal. No Livro de Apocalipse, o novo céu e a
2 5 8
CHARLES W. NIENKIRCHEN
nova terra caracterizam o retomo do jardim para a cidade redimida.
Na nova cidade, o trabalho amaldiçoado pelo pecado, refletindo a
escuridão da experiência humana, é transformado de volta em lazer
santo, desfrutado em um mundo de luz inextinguível.50Nesta vida,
os ritmos folgados da oração contemplativa e folguedo comemo­
rativo, mais do que a indústria e o trabalho, parecem pressagiar a
essência da vida no estado eterno. A chamada do Evangelho, en­
tão, não é para observar um sábado por sema­
na, embora isto não seja impedido. Antes, é
Durante certo período de tempo
uma chamada para viver uma vida de guardar
o sábado folgadamente. Só respondendo esta
no século I, a legislação do sábado
chamada é que podemos redimir nossas ten­
do Antigo Testamento afetou
dências ao trabalho compulsivo e recreação
favoravelmente judeus e cristãos.
com pulsiva. Com efeito, um entendimento
adequado do descanso (sábado) até transfor­
ma nossa visão de trabalho.
Nas Escrituras, as noções de lazer e trabalho estão intimamen­
te relacionadas. Os cristãos de todas as épocas procuraram, desde
o século I, entender e explicar a relação entre eles.
A Tradição Cristã de Lazer Santo e Dias Santos
Uma visão cristã de lazer na sociedade norte-americana pósmodema pode ser vantajosamente apoiada por um conceito en­
contrado nos escritos dos pais da Igreja Prim itiva. O conceito é
conhecido por lazer santo (otium sanctum). De acordo com os pais
de ambas as tradições cristãs - oriental e ocidental - , uma vida
cristã era aquela na qual a ação alterna-se com a contemplação, o
fazer com o ver e o serviço com a adoração. Dizia-se que o traba­
lho sem o lazer santo destruía a atenção espiritual da pessoa. Como
resultado, o trabalho era desumanizado. Em sua discussão alegó­
rica sobre o significado simbólico das peças do vestuário sacerdo-
/
'l e y ó n i O
Gregório de Nyssa (ca. 330-395)
foi teólogo cristão no tempo de tran­
sição do Período Prim itivo para
o Período Medieval da história
da Igreja. Influenciado por seu
irm ão B a s ílio e seu amigo
Gregório de Nazianzo, ele entrou
para a vida monástica. O mais
jovem dos pais capadócios da
Á sia Menor (atual Turquia) tornou-
'
de 'lUfâ&a
se conseqiientem ente o bispo da
Capadócia na Turquia Central orien­
ta l. No P rim e iro C o n c ílio de
Constantinopla (3 8 1), ele argumentou
contra os arianos, advogando a doutri­
na nicena da substância única (pusia)
dos membros da Trindade. Seus escri­
tos incluem num erosos tratados
antiarianos e apologias cm favor do ri­
goroso ascetismo cristão.
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER 2 5 9
tal, Gregório de Nissa refletiu o amplo consenso dos pais a afir­
mar que “ o coração toma-se o símbolo da contemplação, e os bra­
ços, do trabalho” .51 Para ele, a vida terrestre era melhor vivida
como o dia da preparação para o futuro sábado eterno.52
Juliano Pomério, da G ália, século V, fez um discurso sobre os
ideais da vida contemplativa e da vida ativa, louvando o lazer san­
to como o estado interior no qual pode-se “ administrar os assuntos da alma” .53 A vida ativa era aperfeiçoada, completada, pela
vida contemplativa. O lazer, argumentou Pomério, transcende o
trabalho em vez de negá-lo.54 Grande parte do seu pensamento
sobre lazer santo foi inspirado por Agostinho (354-430 d .C .).
Após sua conversão, Agostinho foi atraído para uma vida mo­
nástica. E le até escreveu um regulamento para a vida religiosa em
comunidade (c. 397 d .C .). Circunstâncias inesperadas, porém, não
perm itiram que Agostinho realizasse seu sonho de uma vida
contemplativa. Não obstante, ele continuou afirmando o valor do
lazer santo em seus escritos posteriores. Sua obra A Cidade de
Deus (413-436 d .C .), uma defesa do Cristianismo motivada pela
queda de Roma, exorta os cristãos a integrar as dimensões ativas e
contemplativas da vida. Nada seria buscado às custas do outro.
Para Agostinho, o amor da verdade estimula o desejo ao “lazer
santo” . A “ doçura da contemplação” devia ser preservada e des­
frutada no meio de uma chamada para uma premente vida de ser­
viço social. Caso contrário, os fardos da existência poderiam mos­
trar-se insuportáveis.55
Agostinho acreditava que a história humana seria completada
e aperfeiçoada quando um “ grande sábado” sem fim fosse intro­
duzido. Com esta culminação da história, a vida eterna consistiria
em “descanso, [...] amor e louvor” . Em outras palavras, consisti­
ria em “ lazer santo” ininterrupto.56No seu livro Confissões, Agos­
tinho antecipou o “ sábado eterno” como um período no qual Deus
descansaria em suas criaturas da mesma maneira que E le traba­
lha agora nas criaturas.57 sua visão do destino humano colocava o
trabalho no tempo e o descanso na eternidade.
A s declarações dos pais do deserto (séculos IV e V ) resumi­
ram as experiências espirituais dos monges no deserto egípcio em
forma de sabedoria popular. Os moradores da cidade, de então e
de hoje, podem ser propensos a concluir a partir destas declara­
ções que esses monges reclusos do deserto só se dedicavam à con­
templação e exercícios espirituais. Mas se lermos as declarações
com cuidado, veremos com clareza que os monges tentaram achar
um ponto de equilíbrio entre o trabalho manual e o “lazer santo” .
Uma história ilustra o assunto. Nela, um homem chamado Abba
João, o Anão, é corrigido por tentar ganhar uma vida de lazer que
elim inava o trabalho.
Abba John, o Anão, certo dia disse ao seu irmão mais velho: “Gos­
taria de estar livre de todo o cuidado, como os anjos, que não traba­
2 6 0
CHARLES W. NIENKIRCHEN
lham, mas incessantem ente oferecem adoração a D eus”. Assim,
tirou a capa e partiu para o deserto. Depois de um a semana, voltou
ao irmão. Quando bateu à porta, ouviu seu irmão perguntar, antes
que lhe abrisse: “Q uem é?” Ele respondeu: “Sou João, seu irm ão” .
Mas ele lhe retrucou: “O João tornou-se anjo e daqui em diante não
está mais entre os hom ens” . Então o outro lhe implorou, dizendo:
“Sou eu”. Porém, o irmão não o permitiu entrar, mas o deixou lá
fora em aflição até de manhã. Depois, abrindo a porta, disse-lhe:
“Você é hom em e tem de trabalhar de novo para comer” . Então
João se prostrou diante dele e disse: “Perdoe-m e”.58
Aos olhos da maioria das pessoas, os monges vivem uma vida
radicalmente separada da rotina da sociedade normal. Contudo, a
história acima mostra que mesmo a vida motivada a buscar a Deus
sem o lazer das distrações mundanas não pode ser torcida para
impedir o trabalho. Antes, a chamada do monge do deserto era
para se ocupar de “trabalho folgado” .
De modo análogo, a tradição monástica ocidental reconheceu
os benefícios diários do trabalho equilibrado com o lazer. Na tra­
dição monástica oriental, o trabalho servia para a contemplação.
Na tradição ocidental, por contraste, a síntese dos dois inclinou-se
na direção do trabalho. A Regra de São Bento (ca. 540 d .C .), um
documento constitucional para o monasticismo
no Ocidente, prescrevia um horário diário do
A alimentação da vida interior, o
que se considerava uma mistura apropriada de
lazer e a espiritualidade têm
trabalho manual, leitura espiritual e contem­
plação (Capítulo 48).
estreita afinidade entre si.
O monasticismo beneditino reconheceu de
fato o valor do lazer. Porém, o lema beneditino
laborare est orare (trabalhar é orar) importou em uma “glorifica­
ção do trabalho” . Esta ênfase no trabalho chegou aos seus lim ites
máximos nos últimos séculos da civilização européia.59
Dos tempos de Agostinho em diante, os escritores cristãos dis­
cutiram a relação entre trabalho e lazer santo no contexto do modo
como pensavam sobre Marta e M aria, as irmãs de Lázaro e ami­
gas de Jesus.60Elas eram frequentemente vistas como personifica­
ções da vida ativa e da vida contemplativa. Até o século X II, Mar­
ta simbolizava a vida associada com as atividades do cuidado pas­
toral; M aria representava aqueles que se entregavam à oração e
esperam em Deus em um cenário de enclausuramento.61
No século X X , os defensores da antiga noção cristã de lazer
santo sugeriram que a alimentação da vida interior, o lazer e a
espiritualidade têm estreita afinidade entre si. O estudioso suíço
Josef Pieper em Leisure, The Basic of Culture (Lazer, A Base da
Cultura, 1952), descreveu o lazer em termos interiores como “ ati­
tude mental e espiritual” . Esta atitude não pode ser reduzida sim­
plesmente ao produto de “ fatores externos” como aliviar as condi­
ções de trabalho. Mais especificamente, ele a chamou de “ condi­
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
2 6 1
ção da alma” . Este estado, raciocinou ele, era quase impossível de
experimentar à parte de um estado interior de calma e quietude
quase ao ponto de dormir. Como tal, o lazer é a antítese do traba­
lho e da ociosidade, cujos pecados corolários são o desespero e a
ansiedade que privam a pessoa de entrar no estado interior de lazer.
O lazer constitui não só o fundamento da cultura, mas pertence
a uma “ ordem mais alta do que a vita activa [vida ativa]” . Em
palavras bastante simples, o lazer, para Pieper, é um companheiro
experiencial da contemplação e celebração que atrai a pessoa para
uma união m ística com o Criador e sua criação.62Assim , na tradu­
ção inglesa de Musse und Kult (Lazer e Culto), de Pieper, Salmos
46.10 diz: “Tende lazer e sabei que eu sou Deus” .63
O lazer santo abrange necessariamente o trabalho, em lugar de
excluí-lo da vida. Para Thomas Merton, escritor trapista america­
no, o lazer estimula o trabalho, aumenta sua produtividade. O lazer
até converte o trabalho em uma forma de oração. Em direção se­
melhante, Evelyn Underhill fala do “lazer da eternidade” . De acor­
do com Underhill, se for permitido inspirar o local de trabalho, o
lazer (corretamente compreendido) serve para vários propósitos.
Por exemplo, parece inibir a desonestidade. Além disso, m ilita
contra a preocupação nervosa, a subserviência à tirania do tem­
po e a tendência a evitar aspectos monótonos do trabalho - to­
das expressões do lado escuro do trabalho.65 A ausência deste
lazer santo no coração da cultura ocidental priva o trabalho do
seu significado espiritual e psicologicamente aliena o traba­
lhador do seu trabalho.66 Por contraste, considere que o lazer
impregna o trabalhador e os m ateriais de trabalho com signi­
ficado fora dos lim ites de sua utilidade.67O trabalho, como tipo da
vida ativa, localiza os seres humanos no tempo e no espaço. O
O calendário cristão é herança direta da
religião judaica, na qual a guarda de come­
morações e observâncias regulares há muito
tempo eram importantes. [... | É do calendá­
rio [judeu] que a Igreja cristã tomou o con­
ceito das grandes festas, como a Páscoa e o
Pentecostes. [...] Claro que deram novo sig­
nificado às antigas festas. A Páscoa judaica
tornou-se a Páscoa e o Pentecostes. [...1 Des­
de tempos antigos, a Igreja também adotou
o costume judeu de uma semana de sete dias
com jejuns regulares às quartas-feiras e sextas-feiras. [...] Só o sábado judeu foi muda­
do pelos cristãos. Eles escolheram como seu
dia santo o dia da ressurreição, o Dia do Se­
nhor. [,..| |Os romanos| dividiram o ano em
doze meses e, então, quando a Igreja come­
çou a instituir as festas que eram de impor­
tância única para ela e não originalmente para
os judeus, elas foram observadas em datas do
calendário romano. Estas datas incluíam os dias
dos santos [...] e, mais tarde, o dia de Natal.
Extraído de L . W. Cowie e John Selwyn
Gummer, The Christian Calendar (O Calen­
dário Cristão) (Springfield, Massachusetts:
G. & C . Merriam Company 1974), p. 7.
2 6 2
CHARLES W. NIENKIRCHEN
lazer permite que o trabalhador toque o eterno mesmo que ele seja
incapaz de entendê-lo completamente.
As antigas tradições cristãs de lazer santo e dias santos eram
mutuamente apoiadoras. Os cristãos prim itivos moldaram a ob­
servância dos dias santos segundo os hebreus antigos, que
estruturaram a vida em volta do calendário anual de dias santos. O
ve*tto& 'Ttõtãvecb da &zíe*tc(4fu&
(Zniâtãa 7n<%dtccú*t<zl
Advento (Vinda): Este dia do calendário da
Igreja começa quatro domingos antes do Natal.
Durante o advento, os cristãos recordam as pro­
fecias messiânicas do Antigo Testamento. A l­
guns cri stãos também observam o advento como
um período de oração e jejum.
Natal: Este é o dia em que os cristãos mar­
cam o nascimento de Jesus. Os protestantes e
católicos romanos celebram o Natal em 25 de
dezembro. A Igreja Ortodoxa Oriental celebra o
Natal em 7 de janeiro.
Epifania: Frequentemente celebrada como
festa, este dia comemora a vinda dos magos
como a primeira manifestação de Cristo aos gen­
tios. Na Igreja Ortodoxa Oriental a epifania co­
memora o batismo de Cristo. Seis de janeiro é a
data habitual para a celebração da epifania.
Quarta-feira de Cinzas: A quarta-feira de cin­
zas é o primeiro dia do período da quaresma.
Quaresma: Quaresma é o nome dado aos
quarenta dias que começam na semana da quar­
ta-feira de cinzas e vão até à Páscoa. E observa­
da pelos católicos romanos, ortodoxos orientais
e algumas igrejas protestantes como período de
penitência e jejum.
Domingo de Ramos: Este domingo, uma se­
mana antes da Páscoa, comemora a entrada triun­
fal de Jesus em Jerusalém.
Sexia-feira Santa: Este dia marca a morte de
Jesus, considerada pelos cristãos como o sacri­
fício que tornou possível a reconciliação de Deus
com a humanidade.
Páscoa: A Páscoa comemora a ressurreição
de Jesus. É geralmente considerada o dia mais im­
portante no calendário cristão. Nas igrejas católicas
romanas e protestantes, a Páscoa é costumeiramente
celebrada no primeiro domingo depois da lua cheia
após o equinócio da primavera no hemisfério norte.
A Igreja Ortodoxa Oriental celebra aPáscoavintee
oito dias depois.
Ascensão do Senhor: Este dia, uma quintafeira, quarenta dias depois da Páscoa, é obser­
vado em comemoração à ascensão de Cristo ao
céu.
Pentecostes: O Pentecostes é o dia em que
os cristãos celebram a descida do Espíri to Santo
sobre os apóstolos. E costumeiramente obser­
vado (e às vezes comemorado como festa) no
sétimo domingo depois da Páscoa.
Domingo da Santíssima Trindade: O Domin­
go da Santíssima Trindade acontece no domin­
go seguinte ao domingo de Pentecostes. É cele­
brado em honra da Trindade.
Festa da Transfiguração: Seis de agosto é
uma data da festa marcada para comemorar a
ocasião em que Jesus levou Pedro, Tiago e João
ao monte. A aparência física de Jesus mudou e
Ele foi transfigurado em luz.
Dia da Reforma: Na tradição protestante, 3 1
de outubro relembra o começo da Reforma em
1517. A Reforma é caracterizada por duas ten­
dências no século X V I: 1) a rejeição ou modifi­
cação de algumas doutrinas e práticas católicas
romanas; 2) o estabelecimento das igrejas pro­
testantes.
Dia de Todos os Santos: Primeiro de novem­
bro é observado nas igrejas litúrgicas ocidentais
como festa cristã em honra de todos os santos.
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
2 6 3
calendário incluía seis festas religiosas anuais e três peregrina­
ções a Jerusalém. Os cristãos, durante a B aixa e Tardia Idade Mé­
dia, desenvolveram sua própria versão de calendário religioso que
santificava os dias para eles. O calendário cristão veio a revolverse em tomo de dois pontos centrais: a época do Advento, Natal,
Epifania; e a época da Quaresma, Páscoa, Pentecostes. Estas duas
estações permitiram que a igreja refletisse e celebrasse todo o
mistério de Deus que atua na história humana.
Intrínseco aos ritmos anuais de adoração cristã estava o ciclo
semanal. O ciclo começou e terminou com o D ia do Senhor e in­
corporou os temas da Criação, ressurreição e a paz de Deus na
recriação futura. Até mais fundamental à santificação dos dias es­
tava a observância dos momentos de oração que entremeavam di­
ariamente o trabalho com descanso.68
Visto em sua totalidade, os ritmos diários, semanais e anuais
de oração, reflexão e celebração no calendário cristão eram convi­
tes regulares para entrar em lazer santo e ser renovado. Os cristãos
eram encorajados a lembrar-se do drama d ivi­
no da redenção, e antecipar seus eventos. Fa­
As antigas tradições cristãs de
zer isso tinha a intenção de servir de fonte de
lazer santo e dias santos eram
novas energias em meio às intensas pressões
da sociedade e dos sofrimentos pessoais. Tam­
mutuamente apoiadoras.
bém protegia os cristãos, numa época posteri­
or de liberdade religiosa sob o imperador ro­
mano Constantino, de assumir compromisso com crenças e costu­
mes pagãos que foram entretecidos na estrutura da vida política e
c iv il. O calendário proporcionava um ritmo regular de festivida­
des alternativas centralizadas em Cristo.69
A vida na Europa medieval veio a ser regida pela visão da igre­
ja dos dias santos. Porém, eventualmente esta noção de tempo foi
destruída pelo surgimento de dispositivos mecânicos de medir o
tempo que serviram de instrumento para a demanda do sistema de
fábrica de maior precisão, prontidão e regularidade.70 Os horários
industriais - não as festas cristãs - tornaram-se as novas liturgias
da cultura ocidental durante os séculos X V III e X IX . Durante a
Revolução Industrial, o próprio tempo foi “industrializado” . As
forças da produção económica foram instaladas como as novas
deidades a ser adoradas no altar do trabalho. A esse respeito, John
Farina chamou a atenção para dois pontos importantes.
Prim eiro, ele notou que a “ qualidade do tempo” é “ cultural­
mente determinada” . Isto significa que está ligada a valores cultu­
rais. Segundo, ele observou que a tendência da maioria das socie­
dades é dicotomizar o tempo. A cultura ocidental faz isso em ter­
mos de “ trabalho” e “ sem trabalho” .71 Com o tempo “ industrial”
(trabalho), o tempo “ livre” (sem trabalho) também apareceu, mas
não teve valor intrínseco. Era simplesmente a cessação do traba­
lho. Por contraste, quando a vida pré-industrial era governada pe­
los ritmos sazonais da natureza, o tempo era inerentemente de
2 6 4
CHARLES W. NIENKIRCHEN
lazer.72 Nos tempos pré-industriais, o trabalho era acompanhado
por uma sensação pessoal de alegria e renovação espiritual (o ver­
dadeiro lazer). Esta experiência de tempo parece ser o que os tra­
balhadores industrializados procuram encontrar no tempo de lazer,
separado como compensação para o vazio que experimentam no
trabalho.73
Atualmente, na Am érica do Norte, deve-se procurar guarnecer
as tradições cristãs como as dos Amish e Shakers, e a dos habitan­
tes nativos do continente para recuperar uma perspectiva sobre o
tempo que o vê ciclicamente e em concordância com os ritmos da
natureza e as tradições antigas. Estes grupos tentam viver uma
época pré-industrial dentro de suas comunidades contraculturais.74
Em suma, os conceitos de lazer santo e dias santos eram dois
componentes vitais da antiga e medieval estratégia do cristianis­
mo para a formação espiritual dos seus fiéis. Os ciclos diários,
semanais e anuais dos dias santos conduziram os cristãos à expe­
riência festiva do lazer santo, e lhes permitiram contemplar e par­
ticipar mais completamente na vida de Cristo.
Por este processo, os aspectos mundanos da
Uma visão cristã de lazer requer
vida receberam um senso de sagrado e trans­
como seu fundamento uma visão
cendente. O “ descanso santo” , um legado do
judaísmo, era a chave para a dotação espiritu­
cristã do tempo.
al. Convidados pelos dias santos para o “ lazer
santo” , a Igreja coletivamente em suas esta­
ções do ano cristão e os cristãos individualmente nos seus ciclos
de vida, repetiram experiências de morrer, ressuscitar e ser ungido
pelo Espírito para o serviço na Igreja e sociedade.
Considerando o sagrado do tempo, Noéle Denis-Boulet subli­
nha as razões para o uso continuado do calendário cristão: “D evi­
do ao fato de o nosso tempo humano, sujeito ao ritmo da repetição
natural, ter a tendência a voltar-se à eternidade segundo seu pró­
prio modo, é que precisamos de um ano litúrgico. Não podemos
viver nossa vida cristã sem o calendário cristão” .75Uma visão cristã
de lazer requer como seu fundamento uma visão cristã do tempo.
Sem tal visão, o lazer perde seu enfoque espiritual. O atual e di­
fundido renascimento no interesse da “espiritualidade” (grande
parte da qual tem origens não-cristãs) entre o povo, que também
está buscando um estilo de vida de mais lazer, é fato que nos fala
poderosamente. Exige que achemos lugar apropriado para o lazer
em qualquer discussão culturalmente pertinente de espiritualidade.
Rumo a uma Espiritualidade
Contemporânea de Lazer
O termo espiritualidade é rapidamente associado pelas mentes
comuns a indivíduos extraordinários - santos e místicos que reali­
zaram feitos espirituais extraordinários, e viveram num platô de
perfeição além do que a vasta maioria das pessoas alcançou. Po­
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER 2 6 5
rém, definido dentro de uma estrutura bíblica, a “espiritualidade”
refere-se à obra do Espírito Santo na vida de todo crente, da qual,
em última instância, derivam suas atitudes interiores e ações exte­
riores. Dallas W illard propõe habilmente que
a “ espiritualidade é meramente a qualidade
A experiência do lazer move o
holística da vida humana conforme foi desig­
indivíduo a considerar o significado
nada a ser, no centro da qual está nossa relação
com Deus” .76
da vida e a religar-se com seus
A visão que W illard tem de espiritualidade
anelos íntimos.
coloca a espiritualidade do lazer em harmonia
com o domínio da vida cotidiana, em que a
pessoa é renovada pelo Espírito Santo segun­
do a imagem de Jesus Cristo. A presença da imago Dei (a imagem
de Deus) em toda vida humana toma a vida, mesmo em suas di­
mensões de lazer, intrinsecamente espiritual. Na mesma direção,
a teologia espiritual (o estudo da espiritualidade) pode ser defini­
da não como um ato intelectual que se encontra fora do alcance
das pessoas comuns, mas como “ simplesmente o ato de refletir no
mistério de Deus e sua relação com o universo criado, sobretudo a
experiência humana de Deus” .77
As preocupações de lazer (mesmo que seja definido funcional­
mente como “tempo livre” ) e espiritualidade necessariamente se
sobrepõem. Ambos os domínios da vida têm como meta promo­
ver o bem-estar pessoal e a auto-realização. Ademais, proporcio­
nam oportunidade para a expressão das escolhas deliberadas e
desejos internos da pessoa. Ultimamente, cada indivíduo direciona
a seu modo a atenção para a necessidade de recreação e restaura­
ção a fim de viver uma vida proveitosa, enquanto resiste à pressão
para definir uma “vida proveitosa” somente em termos de utilida­
de.78
O lazer e a espiritualidade podem ajudar as pessoas a ver que
elas têm de resistir à pressão da cultura em definir a “ vida provei­
tosa” somente em termos de utilidade. (Para que algo seja consi­
derado sem proveito não precisa necessariamente tornar-se sem
proveito no sentido de não ter preço, significado ou propósito.)
Mas as pessoas também precisam dar o próximo passo e in flu ir na
necessidade de recreação e restauração para que a vida realmente
seja frutífera.
Viver de modo folgado não é direito exclusivo daqueles que
buscam uma vida espiritual. Além disso, uma espiritualidade des­
tituída de qualquer respeito pelo lazer não é adequada para satis­
fazer as necessidades espirituais dos seres humanos. Uma religião
sem lazer é destinada a se degenerar numa existência medíocre e
ansiosa. Qualquer experiência de vida, como ocasião para renova­
ção ou como expressão de criatividade humana, será sufocada por
uma sensação fatigante de estagnação e tédio.79 Ironicamente, os
não-cristãos que estão à vontade com o lado contemplativo da vida
podem na verdade viver com integridade mais espiritual do que os
2 6 6
CHARLES W. NIENKIRCHEN
cristãos frenéticos e estressados que não sabem como descansar.
A experiência do lazer move o indivíduo a considerar o significa­
do da vida e a religar-se com seus anelos íntimos. Destes instintos
mais profundos vem a energia vital para viver.
Os mesmos instintos determinam o propósito
O lazer como repouso interior e
e direção da vida da pessoa.80
paciente na providência de Deus é
O lazer é, ao mesmo tempo, uma experiên­
cia profundamente humana e espiritual. Uma
indicador claro de qualidade de
teologia contemporânea de lazer deve respon­
vida no Reino de Deus".
der ao cenário cultural norte-americano e às
suas necessidades espirituais. Uma teologia
adequada de lazer deve incluir pelo menos os seguintes três te­
mas: a definição de lazer como estado interior, o lazer como a
integração de dois tipos de tempo e o renascimento da vida sabática.
A
D
e f in iç ã o d e
L azer
como
E s t a d o I n t e r io r
Como já observamos, o lazer é compreendido por muitos hoje
como um uso ativo do “tempo livre” num sentido recreativo. Con­
siderado deste modo, o lazer tem pouco significado espiritual.
Porém, se o lazer for identificado com um estado contemplativo
interior (como muitos escritores sobre a vida espiritual o fazem),
então torna-se ind isp en sável para a alim entação de uma
espiritualidade autenticamente cristã. Nas palavras de Dietrich
Bonhoeffer, uma verdadeira existência de lazer é refletida na “ sim­
plicidade da vida despreocupada” prevista por Cristo no Sermão
da Montanha. Tal disposição contrasta nitidamente com um esfor­
ço aquisitivo pelo “pão de cada dia” , o que não pode ser “conse­
guido” pela “ ansiedade ou trabalho” .81 O lazer como repouso inte­
rior e paciente na providência de Deus é indicador claro de quali­
dade de vida no Reino de Deus que distingue crentes de incrédu­
los. Separa aqueles que descansam em Deus daqueles que por si
mesmos se esforçam freneticamente para prover tranquilidade.
O pregador puritano inglês John Flavel (século X V II) reco­
mendou a “ devida consideração da Providência” . E le reputou tal
“consideração” como meio de nutrir uma “tranquilidade interior”
da mente que estabiliza a pessoa “entre as vicissitudes e revolu­
ções das coisas num mundo instável e vão” .82
D efinir o lazer em termos de vida interior torna-o expressão
cristã universal estreitamente ligada com a oração. Além disso,
esta forma de ver o lazer resiste a uma tendência comum nos estu­
dos seculares de lazer recreativo: d ivid ir a vida artificialm ente
em compartimentos de “ trabalho” e “ lazer” .83 Em seu livro
Sabbath Time (Tempo de Sábado, 1992), Tilden Edwards cons­
trói uma série de imagens de tempo de sábado e tempo de tra­
balho e m inistério. Essas imagens apresentam o trabalho, o di­
vertimento e a oração não como dissociados uns dos outros,
mas como relacionados e conectados entre si - embora pare­
çam ser ritm os opostos da vid a.84
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
2 6 7
K a rl Rahner, teólogo jesuíta alemão, comentou habilmente
que “ toda atividade humana que envolve o homem inteiro de qual­
quer forma e em qualquer grau é trabalho e lazer” .85 O lazer santo,
de acordo com a antiga tradição cristã, faz parte do opus Dei (tra­
balho de Deus) e não é algo separado disso. O lazer santo relacio­
na-se com o cumprimento da ordem do apóstolo Paulo de orar
sem cessar (1 Tessalonicenses 5.17). O mes­
mo tema aparece no pedido clássico do Irmão
"Toda atividade humana que
Lourenço, o Carmelita (século X V II), que nos
envolve o homem inteiro de
“chama a praticar a presença de Deus” em to­
qualquer forma e em qualquer grau
das as coisas.86 O reconhecimento da afinida­
de do lazer com a tradição contem plativa da
é trabalho e lazer."
“ oração de descanso” no Cristianism o refor­
— Karl Rahner
ça a contribuição vital que a discussão do
lazer pode dar ao mundo de hoje. Em parti­
cular, tal reconhecimento reforça a contribuição que tal discus­
são pode trazer para renovar a vida espiritual da cultura de alta
tecnologia dominada pelo ativism o, quer em sua variação secu­
lar ou religiosa.87
O lazer definido em termos de vida interior começa a formar a
resposta cristã a uma sociedade vencida por vícios e preocupada
com programas de recuperação. V ícios de tipos variados podem
ser considerados corretamente como o resultado inevitável da perda
do lazer. A perda do lazer é de fato uma perda de liberdade interior. E
parte do que James Houston descreveu como o “processo horrível de
‘perder a alma’ ” .88 O psiquiatra Scott Peck interpreta certos vícios
(álcool e outras drogas) como “ doenças espirituais” . Refletem uma
tentativa desencaminhada por parte do viciado de ganhar o lazer
de um Éden perdido ou um céu futuro.89 Compreensivelmente, a
recuperação do lazer torna-se a preocupação dos médicos da alma
- psicoterapeutas, conselheiros e diretores espirituais.
Ironicam ente, a “ grande doença” da era do lazer do século
X X fo i diagnosticada como “perda da alma” . Thomas Moore,
famoso discípulo do psicoterapeuta suíço C ari Jung, fez uma
observação sagaz: “ Quando a alma é abandonada, não vai sim ­
plesmente embora; aparece sintomaticamente em obsessões,
vício s, violências e perda de significado” .90 Uma sociedade
perturbada pela violência, m aterialism o e imagens pornográfi­
cas da vida perdeu sua capacidade de lazer. Porém, quando de­
finido como estado interior, o lazer funciona como corretivo
poderoso. Repara os estilos de vida da sensualidade desenfrea­
da, na qual as pessoas entregam sua liberdade pessoal e, com
ela, sua capacidade de desenvolver a virtude m oral. A conver­
são cristã objetiva a transformação do coração com suas forças
a fe tiv a s e poder da vontade, resultand o num a vid a de
autocontrole. A vida de lazer é então aquela na qual o coração é
liberto para fazer o que fo i criado para fazer - adorar o C ria ­
dor, desfrutar dos frutos da criação e amar o próxim o.
2 6 8
CHARLES W. NIENKIRCHEN
O L azer
com o a
Integraçao
de
D
o is
T ip o s
de
T em po
A presença ou falta de lazer na vida tem relação direta com a
percepção do tempo, em seu uso e significado. A reflexão cristã
sobre o tempo, influenciada pelo pensamento grego clássico, tem
distinguido tradicionalmente dois tipos de tempo. O primeiro cha­
maremos cronos-tempo. É o tempo medido, o tempo calculado
pela duração. A s Escrituras têm pouco a dizer acerca do cronostempo. O segundo chamaremos kairos-tempo. É o “ tempo certo” ,
o tempo avaliado pelo conteúdo. O kai.ros-te.mpo é poeticamente
expresso em tempo e estações no terceiro capítulo de Eclesiastes.91
Embora não totalmente cega ao kairos-tempo, a vida moderna no
Ocidente é muito ordenada pelo cronos-tempo. O pensamento bí­
blico de rem ir o tempo (Efésios 5.16) e o pensamento moderno de
economizar tempo são bastante diferentes.
As Escrituras vêem o tempo como um presente e oportunidade a
ser usada sob a direção do Espírito Santo. Remimos o tempo para
realizar aquelas coisas que estão de acordo com os propósitos de
Deus. A visão moderna de tempo é como um produto que pode ser
eficaz ou ineficazmente usado, disputado, administrado, economi­
zado, perdido ou até convertido em dinheiro.92O kairos-tempo pro­
move uma consciência descontraída e discernimento das oportuni­
dades de viver fornecidas pelo tempo.93 O
cronos-tempo é propenso a ser compulsivamente
Ironicamente, a 'grande
tiranizado por uma planificação frenética da
doença' da era do lazer do século
vida. Objetivar a riqueza, a produtividade eco­
nómica e viver eficientemente nutrem a sensa­
XX foi diagnosticada como 'perda
ção de ser rápido - a marca registrada das soci­
da alma'.
edades regidas pelo cronos-tempo.94
Enquanto se vive numa cultura dominada
pelo cronos-tempo, o lazer mostra para a pessoa o potencial do
kairos em cada momento do cronos. Também derruba a barreira
artificial, minando a unidade da vida, entre o tempo “ secular” e o
“tempo sagrado” . Os momentos existem não para serem aglome­
rados em agendas e socados em relógios digitais. Antes, existem
para serem ouvidos pela sabedoria que eles contêm no que tange
aos movimentos do Espírito nas áreas frequentemente tediosas,
esfarrapadas e estressadas de nossas vidas. O lazer nos permite
ouvir em cada uma das estações da vida - infância, adolescência,
juventude, meia-idade e velhice - os assuntos que nos dizem res­
peito e as oportunidades que nos são dadas.95Além disso, a voz do
Espírito pode ser aguçada pela experiência genuína do lazer em
tempos de transição e deslocamento, quando as estruturas fam ili­
ares e os movimentos da vida são desarraigados e alterados.
O lugar do lazer numa espiritualidade cristã está unido
indissoluvelmente à questão do tempo. Sendo assim, o desafio para
os cristãos norte-americanos contemporâneos é construir em seu
estilo de vida o que James Whitehead chamou de “ ascetismo do
tempo” .96 A expressão de Whitehead refere-se a como levamos
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
2 6 9
em conta as inovações felizes e inesperadas do Espírito. O lazer,
embora pareça (e frequentemente se sinta ser) desperdício de tem­
po, na verdade nutre a sensibilidade para os encontros divinos. No
cenário do lazer, todo tempo é tempo de Deus. O cronos-tempo e
o kairos- tempo encontram -se em todo m om ento. Um a
espiritualidade verdadeiramente carismática requer uma sensibi
lidade descansadamente contínua à voz e mo­
vimento do Espírito, na qual a vontade de Deus
A presença ou falta de lazer na
é comunicada ao crente. Sem esta sensibilida­
vida tem relação direta com a
de nenhuma reivindicação à espiritualidade
percepção do tempo, em seu uso e
pode permanecer fiel à sua visão de nutrir a
vida na abundância do Espírito Santo.
significado.
A autenticidade, eficácia e longevidade do
m inistério carismaticamente capacitado não
dependem de nenhuma maneira da profundidade do lazer santo,
que o apóia e do qual nasce. Em The Spirit ofLife (O Espírito de
Vida), o teólogo alemão luterano Jiirgen Moltmann reconhece o
inter-relacionamento entre estes dois temas. Logo após tratar o
tema “ carismático” (inclusive o falar em línguas), ele faz conside­
rações sobre o valor da meditação e contemplação em termos de
aprofundamento da experiência que a pessoa tem com o Espírito.
Sem a autoconsciência que vem com o lazer santo, os ativistas
religiosos de qualquer tipo invariavelmente caem numa armadi­
lha. Eles “passam [...] a infecção do seu próprio egoísmo, a agres­
são gerada pela própria ideologia deles” , as quais são todos demó­
nios da alma que habitam um deserto interior.97 Por contraste, vi-
O
(2nom<i e a
Cronos é a duração, kairos é a
oportunidade. Nós serenamente me­
dimos o cronos com re­
lógios e calendários;
perdemo-nos arrebata­
damente no kairos por
nos apaixonarmos ou
saltarmos na fé. [...] Se
somos dominados por
uma sensação de
cronos, o futuro é fonte
de ansiedade, sangran­
do energia do presente
ou deixando-nos lamurientamente
descontentes com o presente. [_...] Mas
se somos dominados por uma sensa­
0?£aâio&
ção de kairos, o futuro é fonte de ex­
pectativa que verte energia no presen­
te. Uma obsessão com o cronos - ho­
rários rígidos, esque- i
'
mas de atividades cui­
dadosamente planeja­
dos - é uma defensi­
va disfarçada contra o
kairos de D eus, os
inesperados e des­
controlados mistérios
da graça.
Extraíd o de Eugene Peterson,
Reversed Thunder (Trovão Invertido)
(São F ra n c isc o : H arper & Row
Publishers, 1988), pp. 192. 193.
CHARLES W. NIENKIRCHEN
ver no momento kairos é descrito por Sue Monk Kidd como “ trans­
bordar na vida com de Deus” . Viver no momento kairos introduz
a pessoa no aprofundamento dos “ estágios da consciência
contemplativa da harmonização” .98
Há um corolário ao que temos dito: A secularização na cul­
tura ocidental corroeu a sensibilidade da sociedade como um
todo (e da de muitos cristãos) ao valor do kairos- tempo. O
mesmo processo - pelo qual os arranha-céus das instituições
financeiras e os estádios esportivos deslocaram as catedrais
góticas do centro da vida urbana - tem levado à supressão do
calendário eclesiástico como meio socialmente aceitável de
guardar dias. Na vida moderna, onde não há método de instituir
“ dias santos” , o cronos-tempo secular frequentemente trata a pon­
tapés o kairos-icmpo sagrado.
Suponha [...] que o tumulto da
carne de um indivíduo cessasse e que
todos os seus pensa­
mentos pudessem resol­
ver, da terra, da água e
do ar, não fa la r mais
com ele. Suponha que
os céus e até a própria
alma desse indivíduo
ficassem em silêncio, já
não pensando mais em
si m esma, mas indo
mais além. Suponha que os seus so­
nhos e as visões da sua imaginação
já não falassem mais e que toda lín ­
gua, todo sinal e tudo o que é transi­
tório ficassem silenciosos - pois to­
das estas coisas têm a mesma mensa­
gem a dizer, se apenas a ouvíssemos,
e a mensagem é esta: Nós não nos fi­
zemos a nós mesmas, mas aquEle que
vive para sempre nos fez. Suponha,
dissemos, que depois de nos dar esta
mensagem e nos ordenar a ouv ir a Ele
que nos fez, essas coisas ficassem ca­
ladas e só Ele nos falasse não por elas,
mas com a sua própria voz, de forma
que o ouvíssemos falar, não por alguma
língua de carne ou pela voz de um anjo,
não no som do trovão ou em alguma pa­
rábola velada, mas com a sua própria voz,
a voz daquele a quem amamos em todas
estas coisas criadas; suponha que o ou­
víssemos, com nenhuma destas coisas
entre nós e Ele, justamente naquele bre­
ve momento [...] em que tínhamos al­
cançado em pensamento e tocado a Sa­
bedoria eterna que vive acima de todas
as coisas; suponha que este estado con­
tinuasse e que todas as outras visões das
coisas inferiores fossem removidas, de
modo que esta única visão extasiasse e
embebesse aquele que a viu e o envol­
vesse em alegrias interiores de tal forma
que para ele a vida fosse eternamente
igual àquele momento de compreensão
ao qual tanto tínhamos desejado - isto
não seria o que entenderíamos pelas pa­
lavras “Venha e compartilhe a alegria do
seu Senhor?”
Extraído de Agostinho, Confissões,
Livro 9.10.
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
2 7 1
A recente tendência a ressuscitar o calendário eclesiástico,
mesmo nas igrejas desacostumadas com o culto litúrgico, ilustra a
necessidade de muitos de libertar a vida cotidiana da escravidão
do cronos-tempo. Em números crescentes, as pessoas sentem a
necessidade de franquear suas agendas aos momentos de kairos
santos, estimuladas por uma observância das estações do ano ecle­
siástico.99 Nos últimos séculos, o “feriado” triunfou sobre o “ dia
santo” , mas este está fazendo seu retorno para combater os efeitos
de uma perspectiva totalmente secular.100
O L a zf .r
e o
R e n a s c im e n t o
da
V id a S a b á t ic a
Confessamente, a situação sociológica do mundo dos dias de
hoje difere substancialmente daquela dos hebreus antigos a quem
foi dada a legislação divinamente originada de “ descanso” . Féri­
as, fins de semana e dias de trabalho das oito
às seis eram tão estranhos ao mundo do A nti­
go Testamento quanto as rígidas observâncias
A secularização na cultura
do sábado são para o mundo de nossa cultura
ocidental corroeu a sensibilidade
ocidental de alta tecnologia, quando a terra ra­
da sociedade como um todo ao
ramente é deixada sem cultivo e os anos
sabáticos (para os poucos que os desfrutam)
valor do kairos-tempo.
costumam muitas vezes produzir mais e não
menos. Que relevância os “ritmos de descan­
so” inventados por uma cultura prim itiva e pré-industrial do O ri­
ente Médio têm para uma sociedade ocidental, tecnológica, de
passos rápidos, de sete dias por semana e orientada ao consumi­
dor? Que relevância eles têm numa época em que “criação” é com­
preendida por produção, as lutas da “ síndrome da fadiga crónica”
para ganhar status como doença legítim a e o “ esgotamento”
permeiam o local de trabalho?
Em resposta a estas tendências modernas, um número crescen­
te de escritores cristãos nas últimas décadas buscou revitalizar a
instituição quase esquecida do sábado, recuperando a ética da vida
sabática. Esta resposta surgiu em grande parte do reconhecimento
de que os ciclos regulares de descanso e relaxamento, quer ou não
se traduzam em observância tradicional do dia de sábado, ainda
são ingredientes essenciais de uma vida espiritual.101A noção an­
tiga de descanso está passando por um ressurgimento na atualidade. Ao mesmo tempo, muitas pessoas desenvolveram um interes­
se renovado pelas disciplinas espirituais clássicas que formavam
parte rotineira da vida diária, anterior ao advento da sociedade
industrial: oração, meditação, solidão, silêncio, manter um diário
e escrito autobiográfico.102
A prática destas disciplinas frequentemente está ligada a um
senso religioso com relação à essência do sábado. Num sentido
secular, elas foram unidas pela necessidade das pessoas modernas
encontrarem relaxamento e lazer em meio de suas vidas estressantes
e aflitivas, quando até os feriados e as férias mostram sintomas de
2 7 2
CHARLES W. NIENKIRCHEN
compulsão ao trabalho (“ workaholismo ” ) em vez de uma estraté­
gia para a recreação.103Alguns têm proposto que devemos repen­
sar a natureza e o propósito das férias. Eles acreditam que devía­
mos vê-las como oportunidades para descanso e renovação genu­
ínos e, assim, como meios para restringir a “ impulsão” individual
e da sociedade engendrada por uma ética de trabalho que se tor­
nou im própria.104
Ao me preparar para um ano sabático em 1989, recebi forte
convicção interior durante os momentos de oração silenciosa de
que o intervalo dos deveres profissionais devia ser um período de
descanso renovado para mim e minha fam ília. Devia ser vivido no
espírito do ano sabático do Antigo Testamen­
to, e não ser abusado por excesso de trabalho e
uma vida demasiadamente planejada - como
O trabalho não é o inimigo. O
os académicos são propensos a fazer. A medi­
inimigo é um estilo de vida que
da que me submetia ao estudo vagaroso da ora­
revolve-se exclusivamente em
ção cristã - ou, talvez mais corretamente, per­
torno do trabalho.
m itia que as numerosas tradições da oração
cristã me falassem - um processo nasceu. Chamei-o de “ Caminhos de Oração a Deus” . Não
era tanto o produto dos meus esforços quanto era o fruto da obra
do Espírito Santo em mim, para ser entregue como presente a
muitos estudantes em várias escolas os quais buscam direção para
as suas vidas interiores.
O teólogos cristãos há muito têm afirmado que para que a vida
atinja seu potencial espiritual pleno, deve ser vivida de maneira
dialética e rítm ica.105 O lazer e o trabalho merecem quantidades
proporcionadas de tempo e energia. Deste modo a alma pode ser
nutrida na contemplação e o corpo ocupado no trabalho.106 O tra­
balho não é o inimigo. O inimigo é um estilo de vida que revolvese exclusivamente em torno do trabalho.107A inteireza na vida vem
de reconhecer e experimentar a interação dos ritmos de trabalho,
descanso, adoração e divertimento. Surge do reconhecimento da
capacidade deles revitalizarem-se uns aos outros quando lhes é
dado o devido lugar. Uma volta aos ritmos do sábado tem im plica­
ções refrescantes para indivíduos, famílias e a sociedade, embora
integrá-los com os padrões de vida agitados e destrutivos de fins
do século X X venha a testar a resolução até do mais devoto.108
A germinação do movimento de retiro por toda a América do
Norte durante as últimas duas décadas ilustra um ponto notável.
Uma parte significativa da população americana está hoje fazen­
do sérios esforços para incorporar os ritmos de retiro interior em
seus estilos de vida, de modo a opor-se aos hábitos do barulho e
atividades gerados por uma sociedade por demais extrovertida. O
“retiro” formal foi introduzido na história cristã durante o século
X V I pela Sociedade de Jesus, fundada por Inácio de Loyola. Po­
rém, a importância da solidão na espiritualidade judaico-cristã foi
confirmada desde tempos antigos. A lista de pessoas ao longo da
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
história cristã que maximizou o valor das experiências periódicas
da solidão inclui muitas figuras notáveis: Paulo, António, Bento,
Francisco, Inácio, Jonathan Edwards, David Brainerd, Hudson
Taylor, A . W. Tozer. Em tempos recentes, o movimento de retiro
espalhou-se ao redor do mundo e tem abarcado vasta extensão de
tradições cristãs.109
Um retiro é um afastamento temporário e estruturado da vida
normal. Como tal, expressa o ideal do sábado. E literalmente uma
“retirada” da vida para a presença de Deus dentro de um contexto
de silêncio, a fim de entrar em contato com realidades transcen­
dentes. A solidão e o silêncio dos centros de retiro criam um ambi­
ente no qual uma mudança de atitude para com o mundo cotidiano
da pessoa pode ocorrer. Ao mesmo tempo, perm ite que a
criatividade pessoal floresça.110 Os centros de retiro são descritos
como “paisagens sagradas” , onde o processo de entrar em contato
com a própria alma está casado com a procura de Deus, a conside­
ração do significado da vida e uma reflexão do bem comum.111 Os
propósitos do antigo sábado judeu - descanso, relaxamento, con­
templação e brincadeiras - também são os mesmos dos centros de
retiro. A atmosfera tranquila das instalações do retiro, frequente­
mente realçadas por cenários bonitos, exalta a consciência espiri­
tual daqueles que se disponibilizam. Sensível ao clamor pelo “lazer
santo” , que está ficando cada vez mais alto na sociedade em geral,
alguns centros de retiro e mosteiros afastados nos Estados Unidos
agora anunciam “retiros de feriados” como remédios para a pres­
sa, o estresse e a secularidade da vida moderna. Em suma, repre­
sentam alternativa significativa para as férias típicas.112O poder
de o lugar sagrado induzir a um senso de sagrado interior também
está sendo reconhecido por maior número de pessoas a quem uma
sensação de ligação com a terra fo i corroída pelo aumento
desordenado urbano.113Ironicamente, um reconhecimento do po­
der de renovação da natureza em sua beleza intacta está sendo
recuperado numa época em que áreas desérticas estão sendo exau­
ridas pelo turismo industrial e a invasão de hábitos urbanos.114
Conclusão — O Descanso Divino
e a Renovação da Vida
Em seu livro clássico do século X X sobre o sábado, o filósofo
judeu Abraham Heschel convoca os leitores a viver “além da civi­
lização” . Suas metáforas para o sábado como símbolo arquétipo
do descanso divino e lazer humano são muito eloquentes - “palá­
cio no tempo” , “ grande catedral” , “ espírito na forma de tempo” ,
pedra angular numa “ arquitetura do tempo” . Para Heschel, a civi­
lização moderna tem uma casta tecnológica. Isto não significa
meramente que estamos cercados por um número cada vez maior
de dispositivos tecnológicos. Significa que de modo muito básico
2 7 3
2 7 4
CHARLES W. NIENKIRCHEN
nos preocupamos com o controle e administração das forças e re­
cursos naturais. Mas Heschel acredita que somos chamados para
algo mais sublime. Somos chamados, argumenta ele, para um tipo
de “vida espiritual” que leva cada um de nós a “ enfrentar os mo­
mentos sagrados” . A vida espiritual de qualquer civilização come­
ça a se deteriorar quando a existência humana diária não experi­
menta mais regularmente as “ intuições da eternidade” . Entrando
na experiência terrestre do descanso eterno - embora aqui ainda
seja breve e passageiro
os seres humanos não renunciam uma
civilização tecnologicamente fundamentada. Ao invés disso, “ul­
trapassam” a vida civilizada e afirmam sua independência dela.
Fazendo assim, contribuem para sua renovação espiritual. Heschel
conclui afirmando que a “resposta para o problema da civiliza ­
ção” não é um vôo “ saindo do reino do espaço” . Antes, a resposta
é descobrir um modo de vida que esteja “ apaixonado pela eterni­
dade” .115
Nas décadas finais do século X X , um corpo crescente de figu­
ras eminentes no Ocidente ressoou com a preocupação de Heschel
de preservar a santidade do tempo e do espaço no meio do domí­
nio da tecnologia. O sociólogo francês Jacques E llu l ofereceu aná­
lise reflexiva sobre a secularização da civilização ocidental. Se­
gundo sua visão, qualquer senso de sagrado que ainda possamos
ter já não é derivado da natureza, mas da sociedade e da “técnica” .
Os “ novos demónios” que contribuíram para a perda de um senso
de mistério sagrado, foram identificados por E llu l como o materi­
alismo, o racionalismo científico e a administração técnica. O efeito
líquido destas forças secularizadoras é despojar a civilização oci­
dental de qualquer senso de alma além daquela dada pela socieda­
de. E llu l criticou os teólogos cristãos severamente. Ele opinava
que eles casaram o Cristianismo com o secularismo. Contra isto,
ele pediu a ressurreição de uma cosmovisão cristã que reinstale o
Deus-Criador bíblico no centro do mundo.116Para escapar do sis­
tema tecnológico, E llu l reivindicou que precisamos de algo além
de nós mesmos:
Precisamos de uma transcendência. [...] Somente algo que não
pertença nem a nossa história nem a nosso mundo pode fazer isso.
[...] Somos confrontados com a tecnologia como nosso destino ou a
existência de um transcendente. A existência deste transcendente
nos permite avaliar o mundo no qual nos achamos.117
Uma vida finita e humana só alcança seu potencial mais pleno
e o senso de significado apenas pela conscientização de sua ori­
gem no mundo do infinito. Caso contrário, os seres humanos se
tomam meramente escravos de tudo que inventam.
Sem dúvida, nossa abordagem tecnológica trouxe à existência
um número vasto de melhorias e confortos para as pessoas no
Ocidente como também em outras partes do mundo. Mas, como
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
2 7 5
estrutura de referência, tal abordagem só é capaz de construir uma
civilização baseada no trabalho. Não pode produzir satisfação in­
terior. Não pode dar descanso à alm a. De fato, a sociedade
tecnológica despoja de seus participantes a capacidade de experi­
mentar “ afeto religioso profundo” .118 Inevitavelmente, o lazer é
roubado do seu poder criativo. Suas qualidades restauradoras são
cegas pelas demandas universais da tecnologia, que impedem que
os trabalhadores descubram sua verdadeira personalidade.119 A
experiência do lazer santo deve ser estimulada por outras fontes.
O destacado economista alemão E . F. Schumacher concluiu que
trezentos anos consumidos pela acumulação de conhecimento para
fins exploratórios, para a negligência da sabedoria tradicional,
deixaram a civilização ocidental “rica em meios e pobre em fins” .120
Pouco antes de sua morte, Schumacher converteu-se ao C ristia­
nismo. Sua jornada pessoal o levou a descobrir e adotar a “Oração
de Jesus” no clássico espiritual russo The Way o f a Pilgrim (O
Caminho de um Peregrino, 1884).121 E le pediu que o Ocidente
voltasse às suas raízes cristãs contemplativas para evitar a catás­
trofe. De acordo com sua visão, precisamos renovar nossa vida
espiritual, danificada por uma perspectiva materialista. O remédio
que ele recomendou é um retorno à contemplação santa.
O desenvolvimento de uma visão cristã de lazer é indispensá­
vel para a causa da renovação pessoal, social e ambiental. No ní­
vel pessoal, os cristãos no Ocidente (especialmente os protestan­
tes) têm de reencontrar uma teologia da vida contemplativa. A s­
sim, eles poderão evitar tomarem-se aliados inconscientes de al­
guns dos pecados mais comuns de nossa era. Afortunadamente,
alguns teólogos protestantes no Ocidente começaram a tratar des­
ta deficiência.122 A recuperação do “ lazer santo” , “ dias santos” e
“descanso divino” como ritmos necessários e desejáveis numa vida
cristã tem vários benefícios. Detém o ativismo insalubre, modera
o materialismo descontrolado e nutre uma atmosfera na qual a
vitalidade espiritual pode ser renovada continuamente. No recen-
(Mieyca&tdfr Sifcaçfr ftma <z
Talvez a parte mais d ifícil do sábado para
os jovens seja seu ritmo muitas vezes mais
lento e mais reflexivo, longe das atividades
frenéticas de muitos dos seus colegas. Seu
puro acondicionamento fisiológico àquele rit­
mo pode dificultar a adaptação a um longo
período de tempo. Pelo fato de eles serem ge­
ralmente mantidos tão sobreexcedidos em
nossa cultura, com o modo que pode obliterar
Sa&ztcaz
qualquer espaço para que o Espírito de Deus
seja reconhecido em suas vidas, todo esforço
é extremamente valiosoo. Eles podem adap­
tar-se por algum período de tempo, até com
alegria, se o que for leito permanecer sensí­
vel à capacidade deles.
Extraído de Tilden Edwards, Sabbath Time
(Tempo de Sábado) (N ashville: Upper Room,
1992), p. 103.
2 7 6
CHARLES W. NIENKIRCHEN
te best-seller de Stephen Covey, The Seven Habits o f Highly
Effective People (Os Sete Hábitos de Pessoas Altamente Eficazes,
1989), ele destacou o lazer santo como importante para a transfor­
mação pessoal. O modelo de Covey de lazer requer a renovação
das dimensões espirituais, mentais, sociais e físicas da vida. Difere
de modo importante da dependência de hoje da personalidade, atitu­
des, habilidades, técnicas e imagem pública. O que realmente está em
jogo para Covey na experiência do lazer é a restauração de uma “éti­
ca de caráter” para a sociedade.123 Uma ética de caráter que envolve
alimentar a integridade pessoal como meio para o sucesso.
Temos definido o lazer em termos contemplativos clássicos,
retirados da tradição cristã que enfoca a vida interior. Chamamos
a atenção aos seus benefícios para a renovação pessoal. Um bene­
fício adicional é que definindo o lazer deste
modo, coloca o lazer num contexto não con­
No nível pessoal, os cristãos no
trolado pelos critérios relacionados com os tra­
balhos mais seculares para determinar o lazer
Ocidente (especialmente os
—
“tempo livre” , “ duração da seman
protestantes) têm de reencontrar
balho” , “número de dias de trabalho por ano” .
uma teologia da vida
Todos estes pontos de referência estão sujei­
tos à subida e declínio das fortunas económi­
contemplativa.
cas das nações industrializadas. (Notavelmen­
te, os teoristas sociais que apelam para fontes
de dados sempre variáveis contradizem-se uns aos outros em suas
tentativas de provar que o trabalho está na verdade declinando ou
diminuindo.124)
Os indivíduos nas nações que passam por depressões econó­
micas e taxas altas de desemprego ficam responsivos aos modos
pré-industriais de manter o tempo. Eles buscam uma noção de tem­
po que não separe artificialm ente o trabalho do lazer da forma
como domina a indústria moderna. Como resultado, eles chegam
a apreciar de certo modo não distinto a antiga noção bíblica de
fcairos-tempo.
Na formulação e proclamação de uma visão cristã de lazer tam­
bém está em jogo a renovação da cultura como um todo. Em mui­
tos aspectos, os Estados Unidos retratados por N eil Postman em
Amusing Ourselves to Death (Divertindo-nos até à Morte, 1985),
são uma sociedade que perdeu o significado e a arte do verdadeiro
lazer.125 Está fora de contato com sua própria alma e, assim, vu l­
nerável às “ devastações espirituais da tirania” . Nas últimas déca­
das, o caráter coletivo, a ética e a consciência pública americanos
têm sido desgastados cada vez mais pela mídia pública e a indús­
tria do entretenimento. Estes elementos da existência social ame­
ricana só podem ser restabelecidos quando os indivíduos pensati­
vos entrarem em “ descanso d ivin o ” e experim entarem o
renascimento de sua própria imaginação m oral.126 Da postura de
uma “ mente cristã” renovada, eles podem então ser conduzidos à
reformulação do programa de trabalho social mais amplo.
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
Por fim , considere a atordoadora gama das crises ecológicas
criadas na A m érica do Norte e alhures. Estas crises foram
provocadas pelo modo como a produção industrial tentou manter
o passo no ritmo das demandas dos consumidores. Como resulta­
do, a terra clama por descanso. A civilização humana está a ponto
de entrar no século X X L As ameaças ao ambiente natural - ar,
terra e água - parecem maiores que nunca. Além disso, mostramse mais prováveis de aumentar, a menos que haja um retorno e
respeito pelos ritmos tranquilos da criação pelos quais a natureza
pode se restabelecer.127 O consumo excessivo dos recursos em
muitas frentes ameaça o planeta com possibilidades apocalípticas
muito horrorosas de visionar. As questões ambientais estão, em
última instância, todas relacionados com o lazer. Será permitido
que a terra descanse? Os seres humanos descansarão de modo que
seja permitido que a terra descanse? Os cristãos se darão conta do
seu destino eterno como pessoas de descanso? A sobrevivência de
sociedades inteiras, senão de todo o género humano, bem pode
depender de nossa boa vontade em entrar novamente no “ descan­
so divino” .
Enquanto a cortina se encerra no século X X , os monges conti­
nuam proclamando sua mensagem de tranquilidade para o mundo
moderno. Recentemente, os monges beneditinos espanhóis de
Santo Dom ingo de S ilo s , cantando os centenários cantos
gregorianos de “lazer santo” , encontram-se no topo das paradas
de sucesso musical - depois de centenas de anos sem nem ousar!
O sucesso deles - irónico - ilustra bem a eterna atração do “ des­
canso antigo” em uma era de inquietude.
Revisão e Questões para Discussão
1. Você considera o trabalho como parte de sua jornada espiri­
tual? Tente explicar sua resposta usando razões e exemplos de sua
própria experiência ou do que você leu ou ouviu a respeito.
2. O lazer é parte de sua jornada espiritual? Aqui também tente
explicar sua resposta utilizando razões e exemplos de sua experi­
ência. Tente também incorporar em sua resposta algumas refle­
xões sobre a diferença do modo como Nienkirchen usa o termo
lazer e do modo como você usava o termo antes de ler este capítu­
lo.
3. Que relevância tem o “ sábado” na cultura moderna? Tente
utilizar alguns dos pontos de Nienkirchen sobre o sábado. De que
maneira você acha que a cultura pode estar perdendo algo impor­
tante - até crucial - para o seu bem-estar ao ignorar os ritmos
sabáticos?
4. Como os ritmos sabáticos podem ser integrados como um
todo na sociedade? Em seu estilo de vida?
5. Onde o “lazer/recreação” se ajusta em uma cosmo visão cris­
tã? Brincar e orar são compatíveis?
2 7 7
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CHARLES W. NIENKIRCHEN
6. Qual é sua filosofia de “tempo” ? A distinção entre cronostempo e kairos-tempo é significativa para você? Você consegue
integrá-la em sua agenda diária?
7. O que você faria num dia de isolamento?
8. Você consegue integrar o conceito de “ dia santo” em seu
estilo de vida? Dê alguns exemplos específicos e procure explicar
o que poderia ser ganho com tal integração. Você conhece pessoas
que tentaram algumas das idéias que você expôs?
9. Explique a diferença entre uma visão “ secular” e uma visão
“ cristã” de lazer.
Bibliografia Selecionada
B A N K S , Robert. The Tyranny ofTime. Downers Grove, Illinois:
1983.
DAW N, Marva J. Keeping The Sabbath Wholly. Grand Rapids:
W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1989.
DOO HAN, Leonard. Leisure, A Spiritual Need. Notre Dame:
Ave M aria Press, 1990.
FLEM IN G , Jean. Between Walden and the Whirlwind. Colorado
Springs, Colorado: Nav Press, 1985.
F O S T E R , Richard. The Freedom o f Simplicity. São Francisco:
Harper & Row Publishers, 1981.
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David C . Cook Publishing, 1979.
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Pensilvânia: Herald Press, 1974.
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Penguin Books, 1992.
R Y K E N , Leland. Work and Leisure in Christian Perspective.
Portland, Oregon: Multnomah Press, 1987.
Notas bibliográficas
1.
O impacto global da Revolução Industrial da Europa está
substanciado em Femand Braudel, A History ofCivilizations, tra­
duzido para o inglês por Richard Mayne (Londres: Penguin, 1994),
pp. 373-398. Sobre o desenvolvimento do lazer anglo-americano
da industrialização para o “ lazer das massas” do século X IX , veja
Gary Cross, A Social History o f Leisure Since 1600 (State College,
Pensilvânia: Ventura, 1990), pp. 39-139. Hugh Cunningham em
Leisure in the Industrial Revolution ca. 1780 - ca. 1880 (Londres:
Croom Helm, 1980), pp. 140-191, identifica os padrões de lazer
da moderna sociedade urbana industrial que começou a tomar for­
ma em meados do século X IX , como 1) padrões de trabalho mais
regulares, 2) distinção mais clara entre trabalho e lazer, e 3) me­
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
nos horas de trabalho e uma busca crescente pelo lazer.
2. A expansão do lazer e “ diversão” no contexto inglês do sé­
culo X X foi sucintamente analisado por John Armitage em Man
at Play: Nine Centuries ofPleasure Making (Londres: Frederick
Warne, 1977), pp. 134-184. O aparecimento do lazer como item
principal no programa de trabalho social ocidental do fim do sé­
culo X X foi estudado substancialmente por A . J. Veal em Leisure
and the Future (Londres: A llen & Unwin, 1987).
3. V eja o cap ítu lo intrigantem ente in titu lad o “ Some
Observations on the Oddness of Our Live s” , no livro de Walter
Kerr, The Decline o f Pleasure (Nova York: Simon & Schuster,
1962), pp. 11-42, especialmente a p. 40.
4. Jeremy Seabrook, The Leisure Society (Oxford/Nova York:
B asil Blackw ell, 1988), p. 5.
5. Seabrook, The Leisure Society, p. 5.
6. M ary C . Bateson, Composing a Life (Nova York: Plume,
1990), p. 125.
7. Um cínico [Leslie Stephen], “Vacations” , in: Mass Leisure,
editores E ric Larrabee e R o lf Meyersohn (Glencoe, Illin o is: Free
Press, 1958), p. 284,
8. Richard Kraus, Recreation and Leisure in Modern Society,
4.a edição (Nova York: Harper C ollins, 1990), p. 147; concernente
à glorificação do trabalho feita pela Revolução Industrial consulte
C live Jenkins e Barrie Sherman, The Leisure Shock (Londres: Eyre
Methuen, 1981), p. 2. Em defesa das visões de recreação purita­
nas e da ética protestante original do trabalho, consulte o livro
Work, de Leland Ryken (apresentado no box A Ética Puritana, neste
capítulo), pp. 87-115.
9. C . W right M ills , “ The Meaning of W ork Throughout
History” , in: The Future o f Work, editor Fred Best (Englewood
C liffs, Nova Jersey: Prentice-Hall, 1973), p. 9; cf. D . Rogers, The
WorkEthic in Industrial America 1850-1920 (Londres: University
of Chicago, 1978), p. 14. “A premissa central da ética do trabalho
era que o trabalho era o cerne da vida m oral.”
10. Sobre estes temas, veja Ken Dychtwald e Joe Flower, Age
Wave (Nova York: Bantam, 1990), pp. 115-145, 173-207; Russell
Chandler, Racing Toward 2001 (Grand Rapids/São Francisco:
Zondervan/Harper, 1992), pp. 82-89. Para predições sobre o lazer
continuamente corroendo o trabalho em direção ao fim do século
X X , veja Marion Clawson, “How Much Leisure, Now and in the
Future?” , in: Leisure in America: Blessing or Curse?, editor James
C . Charlesworth (Filad élfia: American Academy of Political and
Social Science, 1964), p. 12; John K . Galbraith, The Affluent
Society, 2.aedição (Boston: Houghton M ifflin , 1969), pp. 297-310,
especialmente as pp. 302, 303 e sobretudo as previsões do Hudson
Institute concernentes à futura sociedade “ orientada ao lazer” .
Herman Kahn e Anthony J. Weiner, The Year 2000 (Nova York:
The M acm illan Publishing Company, 1967), pp. 186-197.
2 7 9
2 8 0
CHARLES W. NIENKIRCHEN
11. Juliet B . Schor, The Overworked American: The Unexpected
Decline o f Leisure (Nova York: Basic Books, 1991), p. 51, atribui
esta tendência à síndrome de “trabalhar e gastar” , na qual o “ di­
nheiro” toma precedência sobre o “ tempo liv re ” . C f. Robert
Wuthnow, Christianity in the 21 st Century (Nova York/Oxford:
Oxford University, 1993), pp. 194-196, para uma discussão sim i­
lar das “ doenças da classe média” . Para uma discussão semelhan­
te sobre a observação numa situação canadense, veja W illiam G.
Watson, National Pastimes, The Economics o f Canadian Leisure
(Singapore: The Fraser Institute, 1988), pp. 10, 11.
12. Atvin Toffler, The Third Wave (Nova York: W illiam Morrow,
1980), pp. 282-305.
13. Ib id ., p. 294.
14. Sobre o dilema das mulheres que trabalham fora de casa,
veja John N aisb itt e P a tricia Aburdene, R e-inventing the
Corporation (Nova York: Warner, 1985), p. 251.
15. Veja Howard W. Kelley, “A New Century Dawns” , Leisure
Management, volume 13, Outubro de 1993, p. 46. Sobre a indus­
trialização do lazer na Grã-Bretanha, Europa e Austrália, veja B ill
M artin e Sandra Mason, “ Research Note: Current Trends in
Leisure: the Changing Face of Leisure Provision” , Leisure Studies,
Janeiro de 1992, pp. 81-86; “ The Leisure Industry and the Single
European Market,” Leisure Studies, volume 10, Janeiro de 1991,
pp. 1-6; J. R . Brehaut e K . C . Poole, “The Industrialization of
Leisure” , Leisure Studies, volume 1, Janeiro de 1982, pp. 95-107.
De acordo com John Naisbitt, Global Paradox (Nova York: Avon,
1994), p. 133, as viagens/turismo, a maior indústria mundial, é “a
principal fonte” dos Estados Unidos “ de ganhos por câmbio de
moeda estrangeira” .
16. Chuck Colson e Jack Eckerd, Why America Doesn’t Work
(D allas: Word, 1991), pp. 52, 53.
17. Sobre a continuação da antiga ética de trabalho e seu
condicionando do lazer, veja Gene Quarrick, Our Sweetest Hours
(Jefferson, Carolina do Norte: M cFarland, 1989), pp. 14, 15.
18. Uma obra provocativa sobre este tema é David Elkind , The
Hurried Child (Reading, Massachusetts/Don M ills, Ontário:
Addison-Wesley, 1981).
19. N eil Postman, The Disappearance o f Childhood (Nova
York: Laurel, 1982), pp. 67-80.
20. Esta observação aparece em Peter Em erson, “Leisure
Counseling: A C a ll to O rder” , Career Planning and Adult
Development journal, volume 8, Primavera de 1992, p. 5.
21. Harry van Moorst, “Leisure and Social Theory” , Leisure
Studies, volume 1, 1982, p. 157.
22. Veja os esforços para dar ordem conceituai ao caos de defi­
nições na obra de Sheila M ullett, “Leisure and Consumption:
Incompatible Concepts?” , Leisure Studies, volume 7, 1988, pp.
241-253, Walter Podilchak, “Distinctions of Fun, Enjoyment and
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
Leisure” , Leisure Studies, volume 10, 1991, PP- 133-148; cf. Otto
Newman, “The Corning of a Leisure Society” , Leisure Studies,
volume 2, 1983, pp. 97-109.
23. Veja a discussão de Bertrand Russell sobre as doenças da
vida moderna em The Conquest ofHappiness (Nova York: Bantam,
1968), pp. 3 ,4 , especialmente a p. 43. Para Russell, o lazer tem a ver
com coisas “não de importância prática na vida da pessoa” (p. 160).
24. Veja o tratamento de lazer como “ forma de atividade” apre­
sentado por Jam es F . M urphy em C oncepts o f Leisure:
Philosophical Implications (Englewood C liffs , Nova Jersey:
Prentice-Hall, 1974), pp. 109-166; cf. Richard Kraus, Recreation
and Leisure in Modern Society (Nova York: Appleton-CenturyCrofts, 1971), p. 256. Charles K . Brightbill e Tony A . Bobley,
Education fo r Leisure-Centered Living, 2.a edição (Nova York/
Santa Bárbara: John W iley & Sons, 1977), p. 8, definem lazer
como “tempo discricionário que é melhor esboçado no modelo
quantitativo” .
25. Frank M . B uckley, “ The Everyday Struggle For The
Leisurely Attitude” , Humanitas, volume 8, 1972, pp. 310, 311.
26. Thorstein Veblen, The Theory ofthe Leisure Class (Franklin
Center, Pensilvânia: Franklin Library, 1979),
27. Glen Um inowicz, “ Recreation in a Christian Am erica:
Ocean Grove and Asbury Park, New Jersey, 1869-1914” , in: Hard
at Play: Leisure in America, 1840-1940, editora Kathryn Grover
(Amherst, Massachusetts: University of Massachusetts, 1992), pp.
8-38.
28. Esta tendência harmoniza-se bem com a preferência dos
americanos pelo empreendimento económico individual e consu­
mo privado sobre o bem-estar público identificado em Robert N.
Bellah et al., The Good Society (Nova York: A lfred A . Knopf,
1991), pp. 86-90; cf. John K . Galbraith, The Culture o f Contentment
(Boston: Houghton M ifflin , 1992).
29. Veja a discussão sobre “riqueza e preocupação” em David
E . Shi, The Simple Life (New York: Oxford University, 1985), pp.
248-276.
30. Por exemplo, veja o conjunto dos defensores evangélicos e
carismáticos da simplicidade em Lifestyle in the Eighties, editor
Ronald J. Sider (Filadélfia: Westminster, 1982), bem como o pe­
dido dos carismáticos e evangélicos para rejeitar o materialismo
em Jeremy R ifkin com Ted Howard, The Emerging Order (New
York: G. P. Putnam’s Sons, 1979), pp. 211-272.
31. Para uma recente avaliação da literatura m ultidisciplinar
somente sobre a relação do trabalho e lazer, veja J. Zuzanek e R .
M annell, “W ork-Leisure Relationships from a Sociological and
Social Psychological Perspective” , Leisure Studies, volume 2,
1983, pp. 327-344.
32. Claro que a noção recreativa do lazer foi certamente enun­
ciada pelos filósofos gregos e romanos e desfrutada pelos ricos e
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CHARLES W. NIENKIRCHEN
poderosos que exploraram as massas sobre as quais dominavam.
O conceito filosófico greco-romano de lazer como vida ideal além
do trabalho para a m inoria, baseado no trabalho da maioria, é dis­
cutido em Sebastian De G razia, O f Time, Work, and Leisure
(Garden City, Nova York: Doubleday, 1964), pp. 9-30; Byron Dare,
George Welton, W illiam Coe, Concepts of Leisure in Western
Thought: A Criticai and Historical Analysis (Dubuque: Iowa,
Kendall/Hunt, 1987), pp. xiii-2 , 27-44.
33. Veja a referência de James M . Houston à dialética do “des­
canso/inquietação” na civilização humana, como está fundamen­
tada nos ritmos da Criação, em I Believe in the Creator (Grand
Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1980), pp.
217-219, especialmente a p. 219.
34. Veja o estudo fundamental (1933) de Gerhard von Rad so­
bre o “ descanso” como “benefício da redenção” , em “ There
Remains S till a Rest for the People of God” , in: The Problem of
the Hexateuch and other Essays, traduzido para o inglês por E . W.
Trueman Dicken (Nova York: McGraw, 1966), pp. 94-102, e mais
recentemente, Walter C . Kaiser Jr., “ The Promise Theme and the
Theology of Rest” , Bibliotheca Sacra, volume 130, A b ril de 1973,
pp. 135-150.
35. Sobre o significado do sábado, veja Hans Walter W olff,
“The Day of Rest in the Old Testament” , Concordia Theological
Monthly, volume 43, Setembro de 1972, pp. 498-506; Paul K .
Jewett, The Lord’s Day: A Theological Guide to the Christian Day
o f Leisure (Grand Rapids: Eerdmans, 1971), pp. 13-28; Harold H.
P. Dressier, “The Sabbath in the Old Testament” , in: From Sabbath
to Lord’s Day: A Biblical, Historical and Theological Investigation,
editor D . A . Carson (Grand Rapids: Zondervan Publishing House,
1982), pp. 21-12. Em Slavery Sabbath, War andWomen (Scottdale,
Pensilvânia: Herald, 1983), pp. 65-95, o autor, W illard M . Swartley,
fornece pesquisa útil sobre o debate do sábado na literatura recen­
te. Com relação ao sábado como cura para algumas das doenças
da modernidade (a falta de finalidade, a rivalidade e o desassosse­
go), veja W. Gunther Plaut, “The Sabbath as Protest: Thoughts on
Work and Leisure in the Automated Society” , in: Tradition and
Change in Jewish Experience, editor A . Leland Jamison (Syracuse,
Nova York: Syracuse University, 1978), pp. 169-183, especial­
mente as pp. 176-178. Os benefícios psicológicos e físicos da ob­
servância do sábado são explorados em Alan D . Goldberg, “The
Sabbath: Implications for Mental Health” , Counseling and Values,
volume 31, A b ril de 1987, pp. 147-156; Influence o f the Weekly
Rest-Day on Human Welfare (Nova York: The New York Sabbath
Committee, 1927).
36. Jiirgen Moltmann, The Church in the Power o f the Spirit
(Nova York: Harper & Row Publishers, 1977), pp. 269, 270; cf.
Jiirgen Moltmann, The Passion fo r Life: A Messianic Lifestyle
(Filadélfia: Fortress, 1978), p. 76.
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
37. Em seu soberbo e holístico estudo do sábado, Marva J.
Dawn o vê como oportunidade para “ festejar no eterno” . Veja
Keeping the Sabbath Wholly (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans
Publishing Company, 1989), pp. 151-202. Em The Christian Use
o f Time (N a sh ville : Abingdon P re ss), p. 71, N ie ls-E rik A .
Andreasen vê “o sábado” um ousado “não fazer nada e uma diver­
são festiva” que transcende o mundo do trabalho. Em The Christian
at Play (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company,
1983), pp. 88-93, Robert K . Johnson vê o “descanso do sábado” como
análogo a divertimento. O estudo clássico de Johan Huizinga, Homo
Ludens: A Study of the Play Element in Culture (Boston: Beacon,
1955), discute a festividade religiosa como forma de divertimento.
38. John C . Haughey, Converting Nine to Five (Nova York:
Crossroad, 1989), p. 47.
39. Sobre a intenção da lei mosaica de que o espírito do sábado
é suficiente para a totalidade da vida em vez de compartimentar a
vida pela observância de um “ dia especial” fixo separado dos ou­
tros, veja S. R . Hirsch, Horeb: A Philosophy o f Jewish Laws and
Observances (Nova York: Soncino, 1962).
40. Moltmann, The Church in the Power o f the Spirit, p. 269.
41. Este assunto é amplamente estudado por D . A . Carson, “Je­
sus and the Sabbath in the Four Gospels” ; M . M ax B . Turner, “ The
Sabbath, Sunday and the Law in Luke/Acts” ; e D . R . de Lacey,
“ The Sabbath/Sunday Question and the Law in the Pauline
Corpus” , From Sabbath to Lord’s Day, editor D . A . Carson (Grand
Rapids: Zondervan Publishing House, 1982), pp. 57-196.
42. O significado do deserto como lugar de renovação e res­
tauração espiritual, e não apenas como lugar de rebelião e ju ízo , é
desenvolvido em Kenneth Leech, Experiencing God: Theology as
Spirituality (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1985), pp.
35-38, 127-161.
43. Johnston, Christian at Play, pp. 119-125, especialmente a
p. 120. Elton Trueblood, o quacre, documenta o divertimento de
Jesus em The Humor o f Christ (Nova York: Harper & Row
Publishers, 1964). C . S, Lew is vê o milagre em Caná da G aliléia
como “santificador, [...] um uso recreativo da cultura” , em Christian
Reflections (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing
Company, 1967), p. 15.
44. Na obra Jesus Through the Centuries (Nova York/São Fran­
cisco: Harper & Row Publishers, 1987), Jaroslav Pelikan pesqui­
sa a tendência histórica para diversamente descrever Cristo de
acordo com as pressuposições culturais; cf. Priscilla Pope-Levison
e John R . Levison, Jesus in Global Contexts (Louisville, Kentucky:
Westminster/John Knox, 1992).
45. Em Gurus, Ashrams and Christians (Bombaim: St. Paul,
1978), pp. 59-63,66, Vandana Mataji pede um estilo contemplativo
do Cristianismo e presumivelmente uma imagem correspondente
de Cristo mais apropriada com as necessidades da cultura asiática.
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CHARLES W. NIENKIRCHEN
46. Sobre “Cristo contemplativo/no deserto” , veja “W illiam
McNamara, Mystical Passion: Spirituality fo r a Bored Society
(Nova York/Ramsey, Nova Jersey: Paulist, 1977), p. 94; John R .
Sheets, “ Graced-Life as Contemplative” , Contemplative and the
Charismatic Renewal, editor Paul Hinnebusch (Nova York/
Mahwah, Nova Jersey: Paulist, 1986), pp. 40-43.
47. Veja Charles Cummings, The Mystery ofthe Ordinary (São
Francisco: Harper & Row Publishers, 1982), pp. 75-79, sobre a
importância do “ descanso” no ensino e estilo de vida de Jesus.
48. O intento e historicidade da legislação do Jubileu em
Levítico 25 são analisados em Robert North, The Sociology ofthe
Jubilee Year (Roma: Pontifical B ib lical Institute, 1954).
49. F. F. Bruce considera isto importante em seu comentário de
Hebreus 4.9,10, Commentary on the Epistle to the Hebrews (Grand
Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1964), pp.
77-79.
50. Meu pensamento sobre esta consideração foi estimulada
pela tese de Jacques E llu l concernente à redenção da cidade em
The Meaning o f the City (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans
Publishing Company, 1970). Sobre a importância dos jardins nas
Escritu ras e na civilizaçã o urbana, veja Matthew F o x, The
Reinvention ofW ork (São Francisco: Harper & Row Publishers,
1994), p. 160. Fox nota prestimosamente a derivação da palavra
paraíso do termo persa traduzido por jardim.
51. Gregory of Nyssa, The Life ofMoses, traduzido para o in­
glês por Abraham J. Malherbe e Everett Ferguson (Nova York/
Ramsey, Nova Jersey: Paulist, 1978), p. 106.
52. Ibid., p. 89.
53. Julianus Pomerius, The Contemplative Life , traduzido para
o inglês por M ary I. Suelzer (Nova York/Ramsey, Nova Jersey:
Newman, 1947), p. 28.
54. Ib id ., pp. 31-33.
55. Augustine, The City o f God (Grand Rapids: W illiam B .
Eerdmans Publishing Company, 1973), p. 414.
56. Ibid., p. 511.
57. Augustine, Confessions, traduzido para o inglês por R . S. PineCoffin (Harmondsworth, Inglaterra: Penguin, 1961), pp. 37, 38.
58. The Desert Christian: The Sayings o f the Desert Fathers,
traduzido para o inglês por Benedicta Ward (Nova York: The
M acm illian Publishing Company, 1975), p. 86. Confira o comen­
tário sobre a história do entendimento de Aba Silvano da relação
Marta-Maria (Desert Christian, p. 223) em Rembert Sorg, Towards
a Benedictine Theology o f Manual Labor (L isle , Illin o is: St.
Procopus Abbey, 1951), p. 20; Robert Taft, The Liturgy ofthe Hours
in East and West (Collegeville, Mineápolis: Liturgical Press, 1986),
pp. 68, 69.
59. Sobre a glorificação beneditina do trabalho, contra o traba­
lho meditativo da tradição monástica oriental, veja Herbert B .
T
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
Workman, The Evolution ofthe Monastic Ideal (Boston: Beacon,
1963), pp. 165-158. A oração, estudo e trabalho correspondentes
às polaridades do espírito, mente e corpo estão discutidos em Brian
C . T aylo r, Spiritually For Everyday Living (C o lle g e v ille ,
M ineápolis: Liturgical Press, 1989), pp. 30-46.
60. Cuthbert Butler, Western Mysticism, 2.a edição (Londres:
Constable, 1927), pp. 159, 160.
61. Este tipo de estilo de vida, observaríamos, nem sempre foi
visto positivamente mesmo em círculos monásticos. Veja a dis­
cussão do valor relativo de Marta, a “ativa frutífera” , contra Ma­
ria, a “ estéril contemplativa” , entre os escritores cistercienses do
século X II em Christopher J. Holdsworth, “The Blessings of Work:
The Cistercian View” , Sanctity and Secularity: The Church and the
World, editor Derek Baker (Oxford: Basil Blackwell, 1973), p. 65.
62. Josef Pieper, Leisure, the Basis o f Culture, traduzido para
o inglês por Alexander Dru (Nova York: Random House, 1963),
pp. 38-45.
63. Pieper, Leisure, p. 19. A melhor análise da vita activa e da
vila contemplativa na civilização ocidental e “ a reversão da or­
dem hierárquica” entre os dois está no livro de Hannah Arendt,
The Human Condition (Chicago: University of Chicago, 1958),
especialmente as pp. 289-292. Arendt denomina o deslocamen­
to da vita contemplativa como “ talvez a mais importante das
consequências espirituais” da modernidade (p. 289). Também
proveitoso é Robert B ellah , “To K ill and Survive or To Die and
Become: The Active Life and Contemplative as Ways of Being
Adult” , in: Adulthood, E rik Erikson (Nova York: Norton, 1978),
pp. 61-80, especialmente as pp. 76-78, sobre a necessidade de re­
cuperar a vida contemplativa nos Estados Unidos modelada por
Thom as Jefferso n e Abraham L in c o ln - dois grandes
“ contemplativos em ação” .
64. Thomas M erton, Spiritual Direction and M editation
(Collegeville, Mineápolis: Liturgical Press, 1960), pp. 76,77. Para
as prim itivas raízes cristãs da tradição do “ trabalho como oração” ,
veja o tratado de Orígenes “ On Prayer” , Origen, traduzido para ao
inglês por Rowan A . Greer (Nova York/Ramsey, Nova Jersey:
Paulist, 1979), p. 104.
65. Evelyn Underhill, The Spiritual Life, edição reimpressa
(Londres/Oxford: Mowbray, 1984), pp. 97, 98.
66. Sobre a falta de contemplação/lazer no Ocidente, veja o
ensaio de Douglas Steere, “ Contemplation and Leisure” , Together
in Solitude (Nova York: Crossroad, 1982), pp. 112, 113.
67. Ao descobrir a essência da vida pela contemplação, M aisie
Ward cita uma carta de G. K . Chesterton (1899), na qual ele se
refere a estar excitado e intoxicado pela “ surpreendente umidade
da água” , a “ fogosidade do fogo, a “ dureza do aço” e o
“indescritível lamaçal da lama” . Gilbert Keith Chesterton (Nova
York: Sheed & Ward, 1943), pp.108, 109.
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CHARLES W. NIENKIRCHEN
68. Sobre o calendário cristão como a “ santificação do tempo”
e a noção cristã prim itiva de “ guardar dias” , veja Dom Gregory
D ix, The Shape ofthe Liturgy, 2.a edição (Londres: Dacre/Adam
& Charles Black, 1945), pp. 303-396; John Westerhoff III e W illiam
H. W illim on, Liturgy and Learning Through the Life Cycle (Nova
York: Seabury, 1980), pp. 55-72. A origem do ofício divino é su­
cinta mas competentemente explicada por G . J. Cuming, “The First
Three Centuries” , in: The Study o f Liturgy, editores Cheslyn Jones,
Geoffrey W ainwright e Edward Yarnold (Nova York: Oxford
University, 1978), pp. 353-357.
69. Para inteirar-se de todo o calendário das festas greco-romanas, veja Nigel Pennick: The Pagan Book ofD ays (Rochester,
Vermont: Destiny, 1992).
70. Sobre a transição do tempo natural para o tempo mecânico
ou industrial e o efeito correspondente no trabalho e lazer, veja
Robert Banks, The Tyranny o f Time (Downers Grove, Illin o is:
InterVarsity Press, 1983), pp. 116-145.
71. John Farina, “Perceptions of Tim e” , in: Recreation and
Leisure: Issues inAn Era ofChange, editores Thomas L . Goodale
e Peter A . W itt (State College, Pensilvânia: Venture, 1980), p. 23.
72. Estou em dívida com as distinções feitas por James Murphy
entre o tempo “cíclico” , “mecânico” e “psicológico” em Concepts
o f Leisure, pp. 5-9. Em Work, Leisure and the American Schools
(Nova York: Random House, 1968), pp. 48-60, Thomas Green
diferencia entre o tempo “diurno” e o tempo “ do relógio” .
73. Sobre a afinidade do verdadeiro lazer com o verdadeiro
trabalho, veja Wayne Stormann, “Work: True Leisure’s Home” ,
Leisure Studies, volume 8, 1989, pp. 25-33.
74. Em MeettheAmish (New Brunswick, Nova Jersey: Rutgers,
1947), p. 1, Charles S. Rice e John B . Shenk aludem ao Condado
de Lancaster, Pensilvânia, um mostruário da cultura Amish, como
“ o Lugar do Jardim dos Estados Unidos” . Com relação à proxim i­
dade dos Amish da natureza e seus ritmos de vida comunal segun­
do são governados pelas estações “ agrícolas” e dias “ santos” , veja
John A . Hostetler, Amish Society, 3.a edição (Baltimore, Maryland:
John Hopkins, 1980), pp. 89-92,136-138,220-222. Sobre o compro­
misso dos Shakers com a simplicidade de vida, a quietude e uma
economia principalmente agrícola, veja Mark Holloway, Heavens on
Earth, 2.a edição (Nova York: Dover, 1966), pp. 71-74. Mais geral­
mente, sobre a teologia e espiritualidade dos Shakers, veja The Shakers,
editor Robley E . Whitson (Nova York/Ramsey/Toronto: Paulist Press,
1983), pp. 4-32. Para os conceitos aborígines do “tempo cíclico” con­
tra o “tempo linear” , veja Peter Knudtson e David Suzuki, Wisdom of
the Elders (Toronto: Stoddart, 1992), pp. 142-154.
75. Noêle M . Denis-Boulet, The Christian Calendar (Nova
York: Hawthom, 1960), p. 199.
76. Dallas W illard, The Spirit ofthe Disciplines (São Francis­
co: Harper & Row Publishers, 1988), p. 77.
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
77. Robin Maas e Gabriel 0 ’Donnell, Spiritual Traditions for the
Contemporary Church (N ashville: Abingdon Press, 1990), p. 12.
78. Sobre este assunto, meu modo de pensar foi estimulado
por Stanley Parker, The Sociology o f Leisure (Londres: George
A lien & U n w in , 1976), pp. 103-113.
79. Quanto à importância da reclusão quieta e lazer relaxante
em viver uma vida espiritual, veja Klaus Bockmuehl, Living by
the Gospel (Colorado Springs, Colorado: Helmers & Howard,
1986), pp. 49, 50; Adrian van Kaam , Am ILiving a Spiritual Life?
(D enville, Nova Jersey: Dimension, 1978), pp. 83-87.
80. Quanto ao lazer como experiência de integração pessoal e
p sicoló g ica/esp iritual, veja Ela in e Sm urawa, “ Le isu re : An
Integrative Attitude” , Humanitas, volume 8, 1972, pp. 323-346.
81. Dietrich Bonhoeffer, The Cost o f Discipleship, edição re­
vista (Londres: SCM , 1959), pp. 154ss. Um dos mais recentes tra­
tamentos sobre a simplicidade cristã é Richard Foster, Freedom of
Simplicity (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1981).
82. John Flavel, The Mastery o f Providence (Londres: Banner
of Truth Trust, 1963), p. 167.
83. Veja Judith Brook, “Leisure Meanings and Comparisons
with Work” , Leisure Studies, volume 12, A b ril de 1993, pp. 149162.
84. Tilden Edwards, Sabbath Time, pp. 41, 42. Também fui
ajudado em meu modo de pensar sobre a relação entre o trabalho
e o lazer pelos cinco modos possíveis de definir a relação entre
trabalho e lazer elaborados pelo sociólogo japonês Kunio Osaka:
1) modo un ilateral orientado ao trabalho (a vida consiste em tra­
balho); 2) modo un ilateral orientado ao lazer (a vida consiste em
trabalhar para viver e o lazer pelo prazer que faz a vida valer a
pena; 3) modo à identidade (nenhuma distinção entre trabalho e
lazer); 4) modo dividido (trabalho é trabalho e lazer é lazer); 5)
modo integrado (o trabalho toma o lazer aprazível e o lazer dá
nova energia para trabalhar). “Work and Leisure: As Viewed by
Japanese Industrial Workers” , citado em Stanley Parker, The Future
ofWork and Leisure (Nova York: Praeger, 1971), p. 70.
85. K arl Rahner, Theological Investigations, traduzido para o
inglês por K evin Smyth (Baltim ore/Londres: Helicon/Daron
Longman & Todd, 1966), volume 4, p. 379.
86. Brother Lawrence, The Practice o f the Presence o f God,
traduzido para o inglês por E . M . B laiklock (N ashville: Thomas
Nelson, 1982).
87. Veja Richard Foster, Prayer, Finding the Heart’s True Home
(São Francisco: Harper & Row Publishers, 1992), pp. 93-103, para
uma identificação e explicação proveitosas sobre a “ oração de
descanso” como entendida por um bom número de escritores es­
pirituais. Para uma espiritualidade do lazer mais geral e recente,
veja Leonard Doohan, Leisure - A Spiritual Need (Notre Dame:
Ave M aria, 1990).
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88. James Houston, The Heart’s Desire: A Guide to Personal
Fulfillment (Oxford: Lio n, 1992), p. 53. O vício como o oposto da
liberdade é analisado m ais completamente em Gerald M ay,
Addiction and Grace (São Francisco: Harper & Row Publishers,
1988), pp. 1-15. Como argumento para ilustrar, veja a discussão
de Richard Foster sobre a liberdade interior da simplicidade como
força para quebrar um vício em gastar dinheiro, em The Challenge
ofthe Discipline Life (São Francisco: Harper & Row Publishers,
1985), pp. 71-87.
89. Scott Peck, Further Along the Road Less Traveled (Nova
York: Simon & Schuster, 1993), pp. 136, 137.
90. Thomas Moore, Care o f the Soul (Nova York: Harper
Perennial, 1992), p. x i. A observação de Thomas Moore sobre a
moderna “falta de alma” foi antecipada por seu mentor C ari Jung;
veja sua obra Modern Man in Search o f a Soul, reimpresso
(Orlando, Flórida: Harcourt Brace Jovanovich, 1933), pp. 196220. Veja também Martin Luther King, Where Do We Go From
Here? Chaos or Community? (Boston: Beacon Press, 1967), p.
186, para um discernimento da relação do materialismo e os pro­
blemas espirituais como o racismo e o m ilitarism o. Para obra mais
recente, veja Jim W allis, The Soul o f Politics (Nova York: New
Press/Orbis, 1994), pp. 126-144, para inteirar-se de uma exposi­
ção de fatos do credo do consumidor “Eu faço compras, logo exis­
to” e um reconhecimento da conexão entre o consumismo, a vio­
lência e a exploração sexual. W allis argumenta que o consumismo
promove a “ acomodação da vida” e até já usurpou o lugar da “ ci­
dadania” nos Estados Unidos.
91. V eja John M cln nes, New P ilgrim s (Palm Sp ring s,
Califórnia: RonaldN . Haynes Publishers Incorporated, 1981), pp.
18-35; Robert Banks, Tyranny ofTim e, pp. 168-177, relativo à
distinção entre kairos e cronos; e Jean M . Blom quist, “H oly Tim e,
Holy Tim ing” , Weaving, volume 6, Janeiro/Fevereiro de 1991, pp.
7-13.
92. Veja a comercialização do tempo de Benjamim Franklin
com seu famoso ditado “tempo é dinheiro” em seu ensaio “ Advice
to aYoung Tradesman (1748)” , The Autobiography o f Benjamin
Franklin (Nova York: Random House, Modern Library, 1944), p.
232.
93. Interessante sobre esta consideração é a observação que
está em Staffan B . Linder, The Harried Leisure Class (Nova York:
Columbia University, 1970), p. 17, que diz que as culturas com
“ superfluidade do tempo” são encontradas nos países mais po­
bres, onde grande parte do tempo não tem nenhum significado
produtivo.
94. Veja a pesquisa, “Rapid Growth in Rushin’ Americans” ,
American Demographics, volume 15, A b ril de 1993, p. 26; Nancy
Gibbs, “ How America Has Run Out ofTim e” , Time, 24 de abril de
1989, pp. 48-55.
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
95. Cada parte do ciclo de vida apresenta seus próprios desafi­
os para viver folgadamente. A s coações ao lazer que acompanham
cada estação da vida são o foco da parte três do livro Constraints
on Leisure, editor M ichael G . Wade (Springfield, Illin o is; Charles
C . Thomas, 1985), pp. 289-353.
96. James Whitehead, “An Asceticism of Tim e” , Review fo r
Religious, volume 39, Janeiro de 1980, pp. 16, 17.
97. Jiirgen Moltmann, The Spirit o f Life (Mineápolis: Fortress,
1992), pp. 199-205, especialmente as pp. 201, 202.
98. Veja a descrição esplendidamente eloquente dos estágios
da “ consciência contemplativa” por meio da qual a pessoa é trans­
formada de ouvir música a ser música, na obra de Sue Monk Kidd,
When the Heart Waits (São Francisco: Harper & Row Publishers,
1990), pp. 194-196; cf. a autora anglicana evangélica Joyce
Huggett, The Joy ofListening to God (Downer’s Grove, Illin o is:
InterVarsity Press, 1986), pp. 41-74, para conhecer os estágios de
sua jornada na experiência da contemplação.
99. Para ilustração desta tendência, veja Storiesfor the Christian
Year, editor Eugene H . Peterson (Nova York: The M acm illian
Publishing Company, 1992). Robert Webber discute o “ fenómeno
da convergência” nas igrejas litúrgicas e carismáticas no modo
como afeta o renascimento do calendário eclesiástico, em Signs of
Wonder (N ashville: Abbott Martyn, 1992), pp. 99-115.
100. Bruce Lockerbie argumenta em favor do valor do ano
litúrgico na formação espiritual em “Living and Growing in the
ChurchYear” , in: The Christian Educator’s Handbook on Spiritual
Formation, editores Kenneth Gangel e James C . W ilhoit (Wheaton,
Illin o is: Victor, 1994), pp. 130-142; cf. a chamada para substituir
o “ entretenimento” pelo lazer autêntico e o renascimento das fes­
tas sociais na obra de Fox, Reinvention ofWork, p. 161. Fox (pp.
34-37) também sugere uma relação entre trabalho viciador e as­
sistir televisão na cultura americana e japonesa.
101. Para os escritores protestantes evangélicos que restabele­
cem o sábado, veja Karen B . Mains, Making Sunday Special (Waco,
Texas: Word, 1987); Eugene H . Peterson, Working the Angles
(Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1987),
pp. 44-58; Gordon MacDonald, Restoring Your Spiritual Passion
(N ashville: O liver Nelson, 1986), pp. 157-171, e (o protestante
que virou católico) Ernest Boyer Jr., A Way in the World (São Fran­
cisco: Harper & Row Publishers, 1984), pp. 101-105; cf. o católi­
co Thomas Ryan, Discipline For Christian Living (Nova York/
Mahwah, Nova Jersey: Paulist, 1993), pp. 69-102.
102. Por exemplo, veja Richard Foster, Celebration o f Disci­
pline, edição revista (São Francisco: Harper & Row Publishers,
1988); Henri J. M . Nouwen, The Way o fth e Heart (Nova York:
Ballantine, 1981); Susan A . Muto, Pathway o f Spiritual Living
(Garden City, Nova York: Double Day, Image Books, 1984).
103. Veja o reconhecimento de Harvey Cox da meditação como
2 8 9
2 9 0
CHARLES W. NIENKIRCHEN
expressão da essência de “ guardar o sábado” , em Turning East
(Nova York: Simon & Schuster, 1977), pp. 63-73. No seu bestseller The Relaxation Response (Nova York: Avon 1975), Herbert
Benson promoveu um modo “ secular” de meditação para aliviar a
tensão e depois combinou seu método religiosamente neutro com
um “fator de fé” , em Beyond the Relaxation Response (Nova York:
Berkeley, 1984).
104. Na obra When IRelax Ifeel Guilty (Elg in , Illin o is: David
C . Cook, 1979), pp. 109-142, Tim Hansel cunhou a expressão “des­
canso ativo” para a sua estratégia de remodelar as férias segundo
princípios m ais voltados ao lazer. C f. Gordon M acDonald,
Ordering Your Private World (N ashville: Oliver Nelson, 1984),
pp. 33-38, para as características das pessoas “ impulsionadas” que
vivem à beira do “ síndrome do sumidouro” (pp. 13-18). A brochu­
ra mais antiga de Charles E . Hummel, Tyranny o f the Urgent
(Downers Grove, Illin o is: InterVarsity Press, 1967), apresenta es­
forços para levar os “ ativistas” evangélicos a um estilo de vida
mais de lazer.
105. Por exemplo, veja as Questões 179 a 182, segunda parte
da segunda parte, sobre a vida ativa e contemplativa em Tomás de
Aquino, Summa Theologica, volume 2 (Nova York: Benziger
Brothers, 1947), pp. 1929-1946. A obra clássica (originalmente
publicada em inglês em 1920) de A . D . Sertillan g es, The
Intellectual Life, 5.a edição (Westminster, M aryland: Christian
Classics, 1980), pp. 66-68, 87-93, exalta o potencial reconstituin­
te e rejuvenescedor da solidão e do descanso para aumentar a fer­
tilidade da vida intelectual da pessoa.
106. K arl Rahner, Theological Investigations, volume 4, p. 378,
arrola “ a recreação, o divertimento, a liturgia, o pensamento cria­
tivo, a poesia e a arte e conceitos semelhantes” como atividades
de lazer. O esporte, entretanto, ele chama uma “ mistura peculiar
de lazer e trabalho” (p. 379).
107. Claro que alguns também têm visto o lazer como perigo
sério para a civilização. O reitor da Colgate University, George B .
Cutten, em The Threat o f Leisure (Washington D .C .: M cGrath,
1926), pp. 87-99, relacionou a degeneração física e mental, o
declínio moral, o enfado, o amor ao prazer, a riqueza excessiva, a
perpetuação de elementos degenerativos, a frouxidão sexual e o
declínio das belas artes como efeitos danosos do lazer.
108. O desafio de desenvolver uma espiritualidade mais passi­
va e contemplativa numa cultura impaciente orientada à ação é
tratado habilmente por W. H . Vanstone em The Stature ofWaiting
(Londres: Darton, Longman & Todd, 1982), pp. 52-68, 101-115.
Sentimentos análogos são expressos em Henri J. Nouwen, “A
Spirituality of W aiting: Being A lert to God’s Presence in Our
Live s” , Weavings, volume 2, Janeiro/Fevereiro de 1987, pp. 7-17,
especialmente as pp. 7,8. Em Workaholics: The Respectable Addicts
(Toronto: Key Porter, 1991), pp. 6, 7, Barbara K illing er sugere
ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER
que o divertimento, a meditação e os exercícios espirituais no cen­
tro da vida são remédios eficazes para a compulsão ao trabalho
(“ workaholismo ”).
109. Quanto à origem e desenvolvimento do movimento de
retiros, veja N. W. Goodacre, “Retreats” , A Dictionary o f Christian
Spirituality, editor Gordon Wakefield (Londres: SCM , 1983), pp.
335, 336. As várias nuanças de “retiro” são consideradas em
Anthony Starr, Solitude (Londres: Flamingo/Fontana, 1989), pp.
32-41. Quanto às tentativas históricas de ricos moradores urbanos
ocidentais de achar “retiro” , veja W itold Rybczynski, Waitingfor
the Weekend (Nova York: Penguin, 1991), pp. 162-185.
110. O propósito e padrão do retiro são discutidos amplamente
por John L . C asteel em Renewal in Retreats (N ova Y o rk:
Association Press, 1959). Para obras mais recentes, veja o exce­
lente programa de retiro pessoal elaborado por Brother Ramon
em Heaven on Earth (Londres: M arshall Pickering, 1991), e a dis­
cussão mais religiosamente eclética de retiro defendida por David
A . Cooper em Silence, Simplicity and Solitude (Nova York: B ell
Tower, 1992).
111. Concernente à missão dos centros de retiro, veja Tom
Gedeon, “Holding Environments for the Blue Planet in Our Search
for God, for Meaning, for the Common Good” , Newsletter (Retreats
International), Inverno de 1992-1993, pp. 3-5.
112. Veja o artigo de viagem “ H oliday Retreats” , Good
Housekeeping, Julho de 1989, pp. 138-140, e a série de santuários
dos guias excursionistas a mosteiros, abadias e centros de retiro
feita pela Harmony Books; Jack e Mareia K elly, Sanctuaries, The
Northeast (Nova York: B ell Tower, 1991); Sanctuaries, The West
Coast and Southwest (Nova York: B e ll Tower, 1993).
113. Quanto ao impacto da geografia física em vários movi­
mentos e mentores espirituais americanos, veja Belden Lane,
Landscape o f the Sacred (Nova York/M ahwah, Nova Jersey:
Paulist, 1988). Os entendimentos aborígines de “ espaço sagrado”
são inspecionados em Knudtson e Suzuki, Wisdom ofthe Elders,
pp. 121-141. Quanto à sensação renovada entre os americanos
urbanos do poder do lugar para moldar a experiência, veja o livro
do sociólogo Ray Qldenberg, The Great Good Place (Nova York:
Paragon, 1989), pp. 294-296.
114. Irene M . Spry, “The Prospects for Leisure in a Conserver
Society” , in: Recreation and Leisure: Issues In an Era ofChange,
editores Thom as Goodale e Peter A . W itt (State C ollege,
Pensilvânia: Venture, 1980), p. 152. Concernente aos assaltos em
parques nacionais, veja John G . M itchell, “ Our National Parks” ,
National Geographic, volume 186, Outubro de 1994, pp. 2-55.
Sobre as origens “ milenaristas” do século X IX da agressão ameri­
cana contra os desertos, veja a obra do ecoteólogo Thomas Berry,
The Dream ofthe Earth (São Francisco: Sierra Club Books, 1990),
pp. 114-116. Em “Wilderness inAm erica” , Journal ofthe American
2 9 1
2 9 2
CHARLES W. NIENKIRCHEN
Academy o f Religion, volume 42, Dezembro de 1974, pp. 614620, Henry C . Bugbee vê a “ tradição/povos” do deserto america­
no com sua espiritualidade associada, no sentido de estar em “ con­
trariedade dialética” com a cultura tecnológica e mecânica que
cria o consumismo. E le exige que as pessoas e a natureza vivam
em “mutualidade” .
115. Abraham J. Heschel, The Earth is the Lord’s and the
Sabbath (Nova York: Harper & Row Publishers, 1966), pp. 8, 1332.
116. Jacques E llu l, The New Demons (Nova York: Seabury,
1975).
117. Jacques E llu l, Perspectives on Our Age (Toronto: Canadian
Broadcasting Corporation, 1981), p. 101.
118. Os fatores contribuintes para a dessacralização na socie­
dade industrial estão elucidados em S. S. Acquaviva, The Decline
ofthe Sacred in Industrial Society (Oxford: B asil Blackw ell, 1979),
pp. 133-141. Acquaviva sugere que a industrialização até esterili­
za a vida emocional da sociedade (p. 146).
119. Em The Technological Society, traduzido para o inglês
por John W ilkinson (Nova York: Random House, Vintage Books,
1964), pp. 401, 402, Jacques E llu l fala sobre a destruição do lazer
pela sociedade tecnológica.
120. Schumacher, A Guidefor the Perplexed (Londres: Jonathan
Cape, 1977), p. 68.
121. Ibid., pp. 73-91, especialmente a p. 88.
122. Por exemplo, veja o livro do anglicano John Macquarrie,
Paths in Spirituality, 2 .a edição (H arrisbu rg , P e n silvân ia:
Morehouse, 1992), pp. 140-152. Os teólogos do divertimento tam­
bém estão ajudando nesta consideração. Consulte Jiirg en
M oltm ann, Theology o f Play (N ova Y o rk: H arper & Row
Publishers, 1972), e a obra mais antiga de Hugo Rahner, Man at
Play (Nova York: Herder & Herder, 1967).
123. Stephen R . Covey, The Seven Habits o f Highly Effective
People (Nova York: Simon & Schuster, 1989), pp. 287-307, 18-21.
124. A dificuldade de determinar as preferências da troca de
tempo de renda dos trabalhadores americanos devido aos diferen­
tes tipos de dados usados pelos analistas, foi anotada por Fred
Bestem FlexibleLifeScheduling (NovaYork: Praeger, 1980), 107,
108.
125. N eil Postman, Amusing Ourselves to Death (Nova York:
Penguin, 1985).
126. Quanto à descida dos Estados Unidos em uma “nova ida­
de das trevas” , veja Charles Colson, Against the Night (Ann Arbor,
M ichigan: Servant, 1989).
127. Concernente à tensão projetada que a industrialização
colocará sobre o ambiente natural no século X X I, veja Paul
Kennedy, Preparing For the Twenty-First Century (Nova York:
Harper & Row Publishers, 1993), pp. 95-121.
8
A Ética de Ser:
Caráter,
Comunidade,
Práxis
Cheryl Bridges Johns
e Vardaman W. White
2 9 4
CHERYL BRIDGES JOHNS E VARDAMAN W. WHITE
eff, um novato da faculdade, considera-se cristão. Frequenta
uma faculdade cristã particular, onde participa no coral do
campus e em clubes académicos. Jeff vai à Igreja e emprega
o seu tempo no grupo da mocidade. Nunca usou drogas e não in­
gere bebidas alcoólicas. Contudo, Jeff e sua namorada são sexual­
mente ativos. Tendo crescido em volta de pessoas que mantêm as
Escrituras em alta consideração, Jeff está fam iliarizado com as
declarações bíblicas que proíbem o sexo fora do casamento. Po­
rém, em seus momentos de reflexão, ele diz consigo mesmo que
esse comportamento não é pecaminoso, porque ele e a namorada
se amam e planejam se casar. Para ele, sexo antes do casamento só
é moralmente errado se a pessoa é promíscua ou se não há com­
promisso a longo prazo.
Ainda que se confesse cristão, Jeff é produto de sua cultura.
Ele é o que poderia ser chamado de “pessoa pós-moderna” . Nos
últimos anos, ocorreram mudanças culturais e sociais de tal mag­
nitude que muitas pessoas afirmam que estamos numa era radical­
mente diferente das gerações anteriores. As pessoas acreditavam
que havia um centro de verdade que definia para todos uma visão
unificada de certo e de errado. Contudo isso já não é mais assim. Jeff
cresceu num mundo em que as normas comportamentais são consi­
deradas invenções humanas. Já não se acredita que sejam derivadas
de uma fonte fora da humanidade (Deus). A verdade também tomouse relativa e individualizada. Até a própria realidade é vista como
uma construção e não como algo concreto e pré-existente.
Consequentemente, as pessoas hoje são encorajadas a viver
por suas próprias regras, a definir a verdade por elas mesmas e a
fazer o seu próprio mundo. Como quem costura uma colcha de
retalhos, somos incentivados a misturar os símbolos que no pas­
sado julgavam-se ser incompatíveis. Por exemplo, atualmente se
diz que se pode tomar elementos de muitas religiões diferentes e
estilos de vida e misturá-los para criar uma expressão única e in­
dividualizada da verdade.
Em tal mundo, como saber definir o certo do errado? Claro
que as Escrituras fornecem base importante para obtermos res­
posta a tal questão. No decorrer dos séculos e em muitas culturas,
os cristãos derivaram regras morais das Escrituras. Jeff também
tem uma familiaridade básica com as regras morais derivadas das
Escrituras. Mas Jeff precisa de algo mais que uma lista de regras mesmo que essas regras venham da B íb lia - para navegar na con­
fusão das decisões morais que ele enfrenta na vida diária.
O
mero fato de ele conhecer certas regras ainda não significa
que ele esteja equipado para enfrentar os desafios de um contexto
social pós-moderno popularizado por cosmovisões competidoras.
Jeff precisa de algo que venha centralizar sua vida e unificá-la, de
maneira que ele não apenas tenha crenças e ações cristãs, mas que
seja cristão. Jeff precisa ter o coração e a mente de um cristão. Só
isto poderá transformar sua visão da realidade.
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
2 9 5
Uma Ética de Ser
Uma maneira de começar a falar sobre moralidade é concen­
trar-se na ação humana e na observância de regras. A questão cen­
tral nesta abordagem é: O que devo fazer? Responder esta pergun­
ta inevitavelmente leva a pessoa a considerar questões como de­
ver ou obrigação, as características de um código satisfatório de
regras éticas, a justificação para fazer exceções à regra, os méto­
dos para determinar as prioridades entre as regras, e as sanções
para reforçar as regras.
tigo Testamento salienta as disposições hu­
Embora seja óbvio que “ ética bíblica” se
manas, as atitudes, as intenções e motivações,
refira à ética encontrada na B íb lia , não é
oferece esperança e julgamento em algum
óbvio se há ou não uma ética consistente
momento futuro e aplica o padrão de Deus
esposada nas Escrituras. A B íb lia foi escrita
para todas as pessoas. O Antigo Testamento
ao longo de muitos anos por autores dife­
também destaca o seguinte: O caráter de
rentes que focalizaram indivíduos e comu­
Deus, especialmente como santo; o concer­
nidades diversos. Porém, se a B íb lia é a re­
to entre Deus e seu povo; relacionamentos
velação de Deus inspirada por seu Espírito,
então é razoável crer que há alguma consis­ justos pessoais e em sociedade; a fam ília ea
comunidade; e a L e i de Moisés.
tência no que ela revela concernente à natu­
O
Novo Testamento enfatiza responder a
reza do ser humano, a natureza dos relacio­
Jesus e sua mensagem. A ética de Jesus é
namentos humanos entre si e com Deus, e a
achada na resposta ao Reino inabalável de
natureza das ações humanas. Dentro desta
Deus. Assim escreve Allen Verhey: “ Esta é a
consistência relativa, porém, estão ênfases
primeira e fundamental tese com respeito à
éticas diversas, comunidades diferentes que
ética de Jesus: é uma ética de resposta, res­
enfrentam problemas diferentes, vários pon­
posta à ação apocalíptica de Deus, que está
tos na história que lidaram com problemas
às portas e já se sente o seu poder” (The Great
novos, e assim sucessivamente. Este reco­
Reversal [A Grande Reversão], p. 15). A res­
nhecimento não relativiza a ética, mas nos
posta correta para o Reino é arrependimen­
força a lidar honesta e sensivelmente com as
to. A lei é cumprida pelo amor, que é “ uma
narrativas e instruções que encontramos nas
disposição que se dirige à sua própria
Escrituras. Temos de nos lembrar de que tra­
tar a ética bíblica como um todo ou tratá-la
concreção em obras de amor” (p. 24). A s­
assim brevemente, é simplista.
sim, a pessoa responde a Deus cm arrepen­
O
Antigo Testamento é especialmente dimento e amor, e então age de acordo com
d ifíc il de caracterizar. Contudo, W alter
esse amor. Paulo reconhece que em Cristo
Kaiser Jr. identifica cinco elementos da éti­
algo novo foi criado, que o crislão é orienta­
do à vida nova, e participa na obra e no ser
ca do Antigo Testamento: E pessoal, teísta,
interna, orientada ao futuro e universal
dc Cristo. Os cristãos são livres da escravidão
do pecado, morte e lei. A pessoa é livre não
(Toward Old Testament Ethics [Com vistas
à Ética do Antigo Testamento]). Baseado cm
para praticar a libertinagem, mas para praticar
Deus e sua relação com a humanidade, o An­
o amor, que é a realização da lei (p. 108).
2 9 6
CHERYL BRIDGES JOHNS E VARDAMAN W. WHITE
Com certeza parece natural e até necessário responder a per­
gunta: O que devo fazer? Na teoria moral tradicional, a resposta a
esta pergunta tomou duas formas gerais: 1) Devo fazer (ou me
abster de fazer) a ação a, porque estou preso ao dever de agir as­
sim, ou 2) devo fazer (ou me abster de fazer) a ação a , por causa
das consequências que provocará. A primeira forma é chamada
abordagem deontológica, a segunda, abordagem consequencialista.
(Veja o box sobre a Ética Deontológica e o box sobre a Ética
Consequencialista para tratamentos sucintos destas abordagens às
questões éticas.)
É digno de nota que a própria natureza da pergunta: O que
devo fazer?, focaliza a atenção na ação e nas regras que a gover­
nam, e ficamos desejando saber sobre a pessoa que executa as
ações - o agente. Seguramente nenhuma ação está inteira ou com­
pleta à parte da referência da pessoa que faz a ação.1Este insight
fornece um ponto de afastamento para criticar o enfoque na ação
humana com sua ênfase nas regras. De acordo com esta crítica, a
pergunta anterior não diz tanto respeito ao que devo fazer, mas,
Stcca 'DeortfolSytca,
A palavra deontologia deriva do verbo
grego dei, que significa “é necessário” . Uma
abordagem deontológica à ética enfatiza o
que é necessário, ou seja: do nosso dever ou
obrigação. Em vez de buscar os fins ou as
conseqiiências, um agente moral deve agir
por dever ou obrigação. Uma teoria de ética
deontológica assevera que uma ação ou re­
gra é certa para uma razão diferente da con­
sequência da ação ou regra (por exemplo, é
comandada por Deus, é inerentemente cor­
reta) (Frankena, Ethics [Ética], p. 15).
Em anuel Kant (1724-1804) fez uma
abordagem deontológica da ética. E le afir­
mou que uma ação deve ser feita por de­
ver a fim de ter valor m oral. Para Kant,
agir por dever sig nifica agir por respeito à
lei m oral. Sem esse respeito, a ação não é
feita por dever. Claro que Kant reconhe­
cia que as pessoas nem sempre agem por
motivação adequada. A s vezes, fazem coi­
sas que são consistentes com o que o de­
ver requer, mas são motivadas por algo d i­
ferente do dever. Por exemplo, a m otiva­
ção pode ser o egoísmo. D iz-se que as
ações deste tipo não são feitas por dever ,
mas somente de acordo com o dever. Se­
gundo Kant, tais ações não têm nenhum
valor moral e não merecem elogio moral. Por
exemplo, se o dever ordena dizer a verdade,
e se certa pessoa diz a verdade simplesmen­
te por motivos egoístas, então esse ato de
dizer a verdade carece de valor moral.
No centro da teoria moral de Kant está
algo chamado imperativo categórico. Um
imperativo é uma ordem. Algumas ordens
têm um formato se-então, e são chamadas
imperativos hipotéticos', por exemplo: “ Se
você quer ter amigos, então seja amigo” . A
ordem aqui é “ seja amigo” . Mas a ordem só
está ligada com a condição específica de que
você quer ter amigos. De acordo com Kant,
a moralidade está baseada em uma ordem
que não tem tais condições ligadas a ela. A
ordem da moral idade não está ligada a ne­
nhuma qualificação. Dito de maneira sim­
ples, a ordem da moralidade é categórica (ou
seja, incondicional).
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
2 9 7
antes, que tipo de pessoa devo ser. Responder esta pergunta re­
quer que consideremos não só o que significa ser humano, mas
também o que vale a pena buscar na vida. (Por exemplo, o com­
portamento de Jeff relativo ao sexo antes do casamento reflete mais
do que apenas não seguir as regras de comportamento cristão. Reflete
algo do próprio Jeff - suas crenças, hábitos, sentimentos, caráter, re­
flete algo do seu ser.) Claro que quando tivemos a intenção de consi­
derar estes assuntos, não ignoramos completamente as regras ou o
conceito de dever. Mas a ênfase muda quando se trata da preocupa­
ção com o desenvolvimento do caráter, o papel desempenhado
pelas virtudes e vícios, e os componentes de nossa natureza espi­
ritual, biológica e psicológica, pelos quais somos afetados e influ­
enciam o crescimento moral. Em suma, o enfoque passa de uma pre­
ocupação primária sobre a ação (e sua ênfase nas regras e obriga­
ções) para uma preocupação primária sobre o ser (com o seu empuxo
básico para a transformação e formação de caráter).
Em um mundo pós-modemo no qual há pouco admitido ou
presumido que prescreveria o que a pessoa deve fazer, é imperati-
Kant sustentou que só há um imperativo
categórico'. “Aja somente de acordo com aque­
la máxima pela qual você possa querer que, ao
mesmo tempo, se torne lei universal” . Esta
versão do imperativo categórico usa o termo
máxima. Uma máxima é uma regra particular
da ação ou uma razão particular para agir. Kant
acreditava que as pessoas têm razões para o que
fazem. O imperativo categórico declara que para
que a ação da pessoa seja moral, a razão da pes­
soa agir (a máxima) deve ser aquela pela qual
todo o mundo possa agir. O que Kant está que­
rendo dizer pode ficar mais claro considerando
os casos de roubo. Suponha que eu veja uma
caneta na escrivaninha de minha secretária. Eu
preciso de uma caneta, mas minha secretária não
está presente para me conseguir uma, e assim
penso em roubar a caneta dela. Minha máxima
(minha regra particular de ação) poderia ser
algo assim: “ Sempre que eu precisar de algo,
sou livre para tomá-lo de onde quer que esteja
disponível, mesmo que eu tenha de roubá-lo” .
Agora o teste da moralidade de minha
ação proposta é se a máxima que a alicerça
pode ou não se tornar lei universal (uma lei
para todo o mundo). Um momento de refle­
xão mostra que minha máxima não pode se
tornar lei universal. Não me é possível que­
rer que minha máxima autorizando o roubo
deva servir de base para a ação de todo o
mundo. Ainda que eu proponha roubar a ca­
neta de minha secretária, não quero que ou­
tras pessoas me roubem. Também não quero
que outras pessoas nem suspeitem que sou
ladrão. Em palavras bem simples, quero que
lodo o mundo se contenha de roubar, mas
quero que seja feita uma exceção para mim.
Minha máxima não pode se tornar “ lei uni­
versal” . Portanto, não é uma máxima moral.
Não devo agir assim.
Há elementos deontológicos na B íb lia.
Deus é o doador da L e i. Espera-se que o povo
de Deus obedeça aos mandamentos de Deus,
independentemente das consequências. Além
disso, os princípios deontológicos podem ser
resumidos da Escritura; por exemplo, o prin­
cípio de amar o próximo, o princípio da san­
tidade da vida humana.
2 9 8
CHERYL BRIDGES JOHNS E VARDAMAN W. WHITE
vo que a ética cristã comece com a transformação do ser. Je ff tem
de se tornar alguém distintamente cristão antes que possa expres­
sar em ação um estilo de vida cristão íntegro. Em outras palavras,
Je ff tem de desenvolver o caráter de um cristão.
Mas como uma ênfase no caráter nos ajuda na ética? Prim eiro,
o caráter nos ajuda a responder na situação particular, porque na
situação particular ainda somos nós! As circunstâncias mudam,
mas o fator constante nas areias movediças é a pessoa que enfren­
ta as circunstâncias. O caráter daquela pessoa, suas disposições,
valores, virtudes e vícios, movem-se com a pessoa no panorama
de sua vida. Em palavras bastante simples, o caráter dá consistên­
cia à ação. Arthur Holmes observa que um caráter desenvolvido
torna o comportamento muito mais previsível do que o impulso
súbito ou a inclinação passageira. Torna a pessoa fidedigna, um
agente responsável” .2 Em resumo, fazemos o que somos, e a con­
sistência do ser traduz-se na consistência da ação. Um indivíduo
S tcca
Uma abordagem consequencialista da
ética avalia o valor moral de uma ação me­
diante a referência às consequências que pro­
duz. Um ato é certo ou bom se produz certo
resultado ou consequência, é errado se não
produz. Um exem plo de uma ética
consequencialista é o utilitarism o, articula­
do classicam ente por Jerem y Bentham
(1748-1832) e John Stuart Mi 11(1806-1873).
Bentham identificou o bem como o pra­
zer. Entre as ações alternativas que se pode
praticar em dada situação, o ato moral terá a
consequência de produzir a maior quantida­
de de prazer. O utilitarismo de Bentham era
quantitativo. Para este fim , ele inventou o
cálculo hedônico, um conjunto de elemen­
tos que podem ser quantificados (por exem­
plo, duração, intensidade, extensão) aplica­
dos às consequências esperadas de uma ação
ou política de acordo com o que o prazer e a
dor poderiam ser medidos.
M ill rejeitou o utilitarismo quantitativo
de Bentham em favor de uma versão mais
q u a lita tiva. E le escreveu em seu liv ro
Utilitarianism (U tilitarism o): “ O credo que
aceita como fundamentos da ‘utilidade’ mo­
ral ou o ‘princípio de maior felicidade’, sus­
tenta que as ações são certas na proporção
que tendem a promover a felicidade; erra­
das à medida que tendem a produzir o con­
trário de felicidade. Por felicidade entendese o prazer e a ausência de dor; por in felici­
dade, a dor e a privação de prazer” . M ill acre­
ditava, entretanto, que as pessoas que des­
frutavam tanto os prazeres básicos quanto os
prazeres mais altos dão preferência aos pra­
zeres mais altos. Ele atribui isto a uma dig­
nidade inata nos seres humanos. Assim ele
escreveu: “É melhor ser um ser humano in­
satisfeito do que um porco satisfeito; é me­
lhor ser um Sócrates insatisfeito do que um
tolo satisfeito” . Consequentemente, seu
utilitarismo tende a ser mais qualitativo que
o de Bentham.
Nem todas as éticas conseqiiencialistas
são militaristas. Por exemplo, elementos conseqiiencialistas podem ser notados em am­
bos os Testamentos da B íb lia, em muitas das
referências a um tempo futuro de bênçãos e
julgamento. A s Escrituras nos fazem espe­
rar um julgamento - e, portanto, as conse­
quências - de nossas ações e disposições.
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
cuja natureza é ser corajoso será geralmente corajoso, não impor­
ta a circunstância. Pode-se contar que será corajoso, porque tal
coragem é parte da sua pessoa.
Segundo, os eventos não nos acontecem simplesmente, mas
são interpretados por nós. Hauerwas escreve que “ o caráter deter­
mina a circunstância, mesmo quando a circunstância é forçada
sobre nós, mediante nossa própria habilidade de interpretar nos­
sas ações numa história que é responsável pela atividade moral” .3
Os eventos não são eventos meramente passados, mas estão liga­
dos uns aos outros para formar histórias. Os seres humanos são
contadores de histórias: Eles ganham sua identidade e entendi­
mento do mundo pelas histórias que compõem a história deles. De
certo modo, nós somos histórias,4 ou talvez melhor, as histórias
estão encarnadas em nosso caráter.5 O ponto importante é que to­
dos os eventos tornam-se parte de nossas histórias de vida, parte
de como nos descrevemos, parte de como interpretamos nossa vida.
A situação não é alguma “ coisa” abstrata separada de nós, mas
também é parte de nossa história de vida, é um evento numa histó­
ria de eventos e a enfrentamos no caráter, quer dizer, como pessoa
que utiliza a história pessoal para responder ao presente.
Não podemos separar o que fazemos do que somos; na ética
temos de nos concentrar principalmente no agente, não no ato. Se
o ser do ator está bem formado, então é provável que as ações que
derivam dele também sejam formais. A questão essencial da teo­
ria ética não é: O que devo fazer?, mas: O que devo ser ? Nas
páginas a seguir discutiremos três aspectos que pertencem ao nos­
so ser: o caráter, a comunidade e a práxis.
O Caráter
O
primeiro e mais básico elemento da tríade é o caráter. Esta
seção explorará o que é caráter, por que o caráter cristão requer
transformação e formação, a linguagem bíblica da santificação e
os aspectos do caráter.
D
e f in iç ã o
Há um inter-relacionamento com nosso ser que define nosso
caráter. Por exemplo, Jeff não é apenas uma combinação de ações;
antes, ele é composto de uma unidade misteriosa de ações, afetos
e razões. Craig Dykstra observa que estes aspectos de nós mes­
mos são expressos no drama revelador da história de nossas vidas.
Como dramas que têm um passado e um futuro, nossas ações atu­
ais refletem como percebemos o passado e o que pretendemos
fazer do futuro. Ter um caráter bem formado é vivenciar uma his­
tória que seja inteligível, que verdadeiramente corresponda à rea­
lidade.6
A história de nosso caráter mostra-se por nossa vida. E com­
posta de nossas convicções: “Daquelas crenças tenazes que quan­
I
2 9 9
3 0 0
CHERYL BRIDGES JOHNS E VARDAMAN W. WHITE
do mantidas dão definição ao caráter de uma pessoa ou de uma
comunidade, de forma que se fossem renunciadas, a pessoa ou a
comunidade seria significativamente mudada” .7 Em outras pala­
vras, somos nossas convicções.
A s convicções são obtidas pela dinâmica da formação (cresci­
mento gradual). De fato, nossas convicções estão constantemente
sendo formadas por grande quantidade de forças. Por exemplo, as
convicções de Jeff foram moldadas por sua fam ília, as experiênci­
as na escola e na Igreja, e a sociedade em geral conforme está
refletida na mídia. Mas Jeff também precisa de transformação, a
fim de conhecer e adorar a Deus corretamente. E le precisa ter seus
desejos transformados, porque seus desejos, torcidos pelo peca­
do, proporcionam-lhe pouca noção do que ele deve querer corre­
tamente. É declaração cristã que “ a fé em Cristo junto com a graça
de Deus têm um efeito transformador na natureza humana em ge­
ral e em cada cristão em particular” .8A ética cristã contemporânea
tem de descansar nessa premissa - a qual é a própria base do C ris­
tianismo.
A Base do Cristianismo
Uma abordagem à ética cristã baseada no caráter é proveniente
da natureza do Cristianismo em si. A ética não é redutível ao que
os cristãos fazem, visto que o Cristianismo não é redutível ao que
os cristãos fazem. Esta discussão da base do Cristianismo pressu­
põe certas doutrinas que não podem ser investigadas neste estudo:
que a humanidade foi criada por Deus, para Deus e à imagem de
Deus; que a humanidade é pecadora, alienada de Deus e dos pro­
pósitos de Deus para a vida das pessoas e, desta forma, alienada
do próprio ser verdadeiro delas; que Jesus Cristo era Deus encar­
nado, morreu e foi ressuscitado para efetuar a reconciliação da huma­
nidade com Deus; que esta reconciliação envolve transformação da
pessoa inteira pelo Espírito Santo, pois que participa na natureza divi­
na. Declarada assim, a pergunta pode ser feita: O que pode participar
na natureza divina? A resposta: Aquilo que é santo.
A natureza essencial de Deus é santa. A santidade de Deus qua­
lifica todas as outras qualidades de Deus, de forma que, por exem­
plo, o poder de Deus é um poder santo e o amor de Deus um amor
santo.9 Para que uma pessoa seja reconciliada com Deus, ela tem
de entrar na presença do Deus santo. Considerando que um aspec­
to essencial da santidade é a separação do profano,10como pode o
profano permanecer diante do santo? Só pela própria santidade,
pela graça ou dom da santidade dada por Ele mesmo que é santo,
é que isto pode ser realizado. “E um presente que indica transfor­
mação interior para reconhecer o que é bom, agradável e perfeito
(Romanos 12.1,2)” .11 Temos de não só reconhecer o que é bom,
agradável e perfeito, mas também temos de nos tornar bons, agra­
dáveis e perfeitos. Somos ordenados a ser santos, a ser perfeitos.
A ÉTICA DE SER: CARÁTER. COMUNIDADE. PRÁXIS
301
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Desde a antiguidade até o presente, muitas
listas diferentes de virtudes foram propostas.
Em vários de seus diálogos, o filósofo Platão
(século IV a.C.) encontra razão para mencio­
nar e discutir diversas das virtudes gregas clás­
sicas: sabedoria, devoção, coragem, temperan­
ça e justiça. Em Gálatas 5.22,23, Paulo (scculo l d.C.) arrola várias virtudes chamadas por
ele de fruto do Espírito: amor, alegria, paz,
longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança. O teólogo do século XITI,
Tomás de Aquino, discute muitas virtudes e
inclui quatro virtudes primárias (a temperança, a j ustiça, a fortaleza, a prudênc ia) e três vi rtudes teológicas (a fé, a esperança, o amor). O
teólogo do século X V III, Jonathan Edwards,
acentua o amor e a santidade e comenta que a
vida religiosa é um dos afetos de acordo com o
qual o cristão vive uma vida de amor, amando
as coisas santas de Deus.
No início da década de 1990, William Bennett
publicou uma antologia de histórias folclóricas
sob o título The Book qfVirtues (O Livro das
Virtudes). Nele, o autor ordena as histórias conforme dez virtudes: autodisciplina, compaixão,
responsabilidade, amizade, trabalho, coragem,
perseverança, honestidade, lealdade e fé.
O que é virtude? Para Aristóteles, virtude
(aretê, que significa “excelência” ) é uma disposição da alma (um estado do caráter) desenvolvida por hábitos que ajudam a pessoa a alcançar a felicidade (eudaemonia). A virtude tem
por fim o intermédio: é um meio-termo entre
os vícios do defeito e do excesso. Por exem­
plo, a coragem da virtude encontra-se em um
meio-termo entre a precipitação (excesso) e a
timidez (deficiência). A virtude não é uma ques­
tão de determinar uma média aritmética entre
dois vícios e agir. Antes, a virtude sempre re­
quer a sensibilidade a um contexto: fazer o ato
certo, no momento certo, do jeito certo com
vistas às pessoas certas.
Em sua obra Suma Teológica, Tomás de
Aquino define a virtude como “uma qualidade
boa da mente, pela qual vivemos corretiimentc,
da qual ninguém pode fazer uso ruim, que Deus
trabalha em nós sem nós". Para que um ato seja
virtuoso, a razão e o desejo devem estar dispos­
tos para o ato. Em outras palavras, se alguém sabe
que o ato que está fazendo é um ato bom, mas
deseja fazer alguma outra coisa, então essa pes­
soa não agiu virtuosamente. Do mesmo modo,
se alguém age de um modo bom, mas não enten­
de a qualidade moral do ato, então não agiu vir­
tuosamente. Assim, para Aquino, a virtude inte­
lectual (a perfeição de nossa habilidade de saber)
e a virtude moral (a perfeição de nossos desejos)
são necessárias, se devemos alcançar nosso fim
formal, a beatitude, a visão de Deus.
Alasdair Maclntyre identifica três estágios
das virtudes, os últimos estágios pressupondo
os primeiros. No primeiro estágio, as virtudes
tornam possível a aquisição de bens interiores
para as práticas (por exemplo, ciências, jogos).
No segundo estágio, as virtudes nos fortale­
cem para buscar o que é bom. As virtudes for­
necem conhecimento do eu e do que é bom.
No terceiro estágio, as virtudes sustentam uma
tradição vital. Uma pessoa começa e vive den­
tro de uma tradição, e a busca do que c bom
toma lugar na tradição da pessoa. A noção de
Maclntyre de virtude é comunal e teleológica:
a virtude é a persuasão ou a ordenação de ca­
racterísticas que ajudam o indivíduo, e a co­
munidade da qual o indivíduo é membro, na
busca da excelência na forma de viver.
Na tradição aristotélica-tomística, levada
para o presente por pessoas como Maclntyre e
Stanley Hauerwas, as virtudes são as perfeições das atividades. as excelências que capa­
citam as pessoas a viver com êxito. São as dis­
posições e as capacidades encarnadas no agen­
te moral, que são postas em execução em qual­
quer situação, e que capacitam o agente a nego­
ciar a situação prosperamente. (Para informa­
ções adicionais, veja Westrninster Dictionary of
Christian Ethics (Dicionário Westrninster de
Ética Cristã), no verbete: “Virtue” .)
3 0 2
CHERYL BRIDGES JOHNS E VARDAMAN W. WHITE
Somente por este tomar-se é que podemos evitar ter uma iden­
tidade confusa que compõe as escolhas morais baseadas no que
achamos que é bom ou no que parece que é certo para o momento.
A medida que nos tornamos santos e perfeitos, viajamos mais pro­
fundamente em Deus e para Deus. Isto não significa que nunca
cometemos pecado ou que não temos nenhuma falta. Antes, signifi­
ca que nossos afetos e nossos desejos se tomam os afetos e os desejos
de Deus. Nossos pensamentos e ações tomam-se, assim, o que reflete
os desejos de nosso coração segundo são os desejos de Deus. Nosso
ser santo se expressa pelo viver santo, pelo fazer santo.
Tomamo-nos santos pelo processo de santificação. Há vários
aspectos da santificação que devem ser observados. Prim eiro, é
um ato da vontade graciosa de Deus para nós. É o dom de Deus
para nós e não algo que realizamos por nossa própria habilidade.
Segundo, é uma transformação concreta do
caráter no qual somos feitos santos ou justos.
Santificação é uma
Este processo acarreta necessariamente limpe­
transformação concreta do caráter
za e separação. Significa, de acordo com certo
estudioso, “ ser enxertado na justiça de Deus” .12
no qual somos feitos santos
R . H ollis Gause escreve: “E um ato purifica­
ou justos.
dor de Deus fornecido para limpar a natureza
do crente e libertá-lo da lei do pecado e da
morte” (Romanos 8 .2 ).13Terceiro, produz viver santo. Novamen­
te, o fazer segue o ser.
A santificação não é um ato de limpar apagando a lousa de
nossa vida; antes, é um processo de purificar, purgar, tornar santo
quem somos. Nós que somos santos participamos da natureza di­
vina. Somos nós mesmos, com nossa vivência, nossa história, nos­
sas idéias, nosso caráter, encontrando (e tomando nossa) a experi­
ência, a história, as idéias e o caráter de Cristo e do Cristianism o.
Não perdemos o que é nosso, mas adquirimos o que faltava e pas­
samos por uma transformação do que foi corrupto.
T ra n sfo rm a çã o
e
F orm ação
Foi durante seu segundo semestre na faculdade que Jeff parti­
cipou de um culto de avivamento em sua Igreja. Naquela noite, o
evangelista fez um sermão poderoso concernente à nossa inab ili­
dade de esconder de Deus nossa pecaminosidade. Durante o ser­
mão, Jeff sabia que o Espírito Santo estava esquadrinhando sua
vida, revelando e trazendo à luz áreas ocultas de pecado. Quando
o apelo foi feito, ele literalmente correu ao altar. Mais tarde, teste­
munhou que sentia como se o Senhor estivesse lhe esperando de
braços abertos, braços que ele sentia que se abriram para abraçar
sua pecaminosidade. Ele experimentou uma limpeza e cura pode­
rosas. Daquela noite em diante, Jeff tornou-se uma pessoa dife­
rente. Depois de aconselhar-se, ele deu um basta ao relaciona­
mento pecaminoso com sua namorada, e começou a desejar mo­
mentos a sós com Deus. E le sabia que tinha uma jornada a seguir,
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
3 0 3
consistindo em um andar diário com Deus e um crescimento em
seu relacionamento com Ele, mas sempre rememoraria aquele culto
de avivamento como um momento decisivo em sua vida cristã.
A santificação é uma experiência transformadora. O próprio
Cristianismo é transformador. A transformação se refere a mudar
de uma coisa ou característica para outra. O
Cristianism o não é redutível a “ crença” ou
Devemos não só nos perguntar:
“ moralidade” , mas é um relacionamento entre
o Criador e a criatura, e, como já foi visto, um
O que estamos sendo?, mas
aspecto essencial deste relacionamento é a
também: Estamos sendo em
transformação. E importante para a ética cris­
direção a quê?
tã refletir sobre a natureza e o poder da trans­
formação. Só porque a transformação não é
algo que fazemos, não significa que seja sem importância ou que
possa ser ignorada. Entendendo o que acontece na transformação,
podemos entender melhor o que se supõe que somos.
Embora a transformação seja vital, não é a meta em si. Antes
ocorre em pontos estratégicos ao longo de nossa jornada, sempre
nos movendo em direção à nossa meta - o próprio Deus. Apreci­
ando a meta da transformação, podemos reivindicar melhor para
nós a vida do ser transformado.
Depois daquela experiência de transformação de Jeff durante
o culto de avivamento, ele precisava das experiências regulares da
formação, como o estudo da B íb lia, a oração e o culto. E le preci­
sava entender e se apropriar do significado do que lhe tinha acon­
tecido. Entre os momentos de transformação, o caráter também é
servido
formação. As tarefas de compreender, apreciar e se
apropriar não são experiências transformacionais em si mesmas, e
sim atividades formacionais. A formação diz respeito ao desen­
volvimento ou maturação; uma coisa ou característica não é mu­
dada em outra coisa ou característica, mas fica mais forte ou mai­
or ou melhor.
O caráter cristão é desenvolvido em nosso ambiente social. Os
cristãos não são meros produtos do ambiente. Depois da experiên­
cia transformacional, Jeff teve de aceitar ou rejeitar as influências
sociais que o cercavam. Esta aceitação e rejeição, esta escolha,
são autodeterminação ou auto-agência. Mediante as escolhas que
fazemos por certas ações, “não apenas reafirmamos o que fomos,
mas também determinamos o que seremos no futuro” .14 Deste
modo, utilizamos ativamente o caráter já formado para intencio­
nalmente formar o caráter que teremos no futuro.
Visto que cada pessoa tem muito a ver com a formação do seu
caráter, cada pessoa é moralm ente responsável pelo que é forma­
do. O que é essencialmente mudado, santificado, na santificação é
o caráter. O cristão deve ser responsável em desenvolver o cará­
ter de acordo com o seu movimento em direção à perfeição.
As experiências transformacionais abrem diante de nós uma
visão da realidade que nos capacita a prosseguir vigorosamente
3 0 4
CHERYL BRIDGES JOHNS E VARDAMAN W. WHITE
em nossa jornada. A partir de tais experiências, transformamos o
entendimento de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Já não
somos mais mantidos presos a uma estrutura de referência que
trabalha contra nosso caráter. Pelas experiências transformacionais
somos libertos para ver o que Deus vê, e cumprirmos as intenções
de Deus neste mundo. Nossas mentes e nossos corações são reno­
vados na mente de Cristo (Romanos 12.2). Já não somos mais
conformistas ou pessoas confusas; somos capacitados a nos tor­
nar vencedores.
O que fazemos surge do que vemos; assim, formando o que
somos, finalmente formamos nossa visão. O movimento dos even­
tos é circular: de visão, para a ação, para o ser e assim por diante
ao longo da vida, impulsionando o caráter na direção do cresci­
mento. A visão, movendo-se rapidamente de quem somos, forne­
ce direção a este crescimento, porque o que se abre diante do cen­
tro de nosso ser é a nossa percepção do futuro. Devemos não só
nos perguntar: O que estamos sendo?, mas também: Estamos sen­
do em direção a quê?15
Esta seção explorou o que é caráter, a necessidade de transfor­
mação e formação do caráter e a santificação. Dentro desta estru­
tura, a base do Cristianismo foi identificada como relacionamen­
to, no qual os seres profanos são mudados por Deus em seres san­
tos para comunhão com Ele. Chamamos a atenção para a impor­
tância da autodeterminação e comentamos a relação circular de
ser, visão e ação. Embora estes sejam muito importantes para a
formação, não são os únicos meios de formação de caráter. O ca­
ráter cristão requer um ambiente no qual possa ser formado apro­
priadamente. Este contexto é o tópico da próxima seção.
A Comunidade
A N e c e s s id a d e
de
C o m u n id a d e
A ética cristã tem de considerar o cenário social no qual a
transformação e a formação acontecem. O cenário requerido é
koinonia. Nesta seção, vamos sugerir algumas razões para a ne­
cessidade de koinonia, sua definição e natureza.
Depois de sua experiência durante o avivamento, Jeff achouse almejando um grupo de pessoas com quem pudesse comparti­
lhar suas lutas e cultuar a Deus regularmente. Embora tivesse par­
ticipado ativamente no grupo da mocidade, Jeff nunca tinha de­
senvolvido um hábito regular de frequentar a Igreja. Ele fazia tra­
balhos para a Ig reja, mas nunca tinha se tornado parte do
companheirismo da Igreja. Porém, depois do avivamento, ele se
juntou a um pequeno “ grupo de concerto” que se reunia regular­
mente para oração e encorajamento. (Um grupo de concerto con­
siste em pessoas que se comprometem a orar, apoiar, fortalecer e
abençoar uns aos outros.) Ele tomou-se mais fie l na frequência
aos cultos. Imediatamente notou uma diferença em sua vida. Sen­
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
tia-se relacionado, útil e amado. Seu grupo de concerto o encora­
jou em seu andar diário e forneceu companheirismo regular com
os crentes. Sempre que tinha uma necessidade, ele sabia que po­
dia chamar outros crentes para orar com ele.
O grupo de concerto ao qual Jeff se juntara, é construído no
insight básico de que os seres humanos são criaturas sociais. Isto
significa que eles precisam de interação com outros seres huma­
nos em um cenário comunitário. Na comunidade, as pessoas compar­
tilham suas experiências entre si e vêm a se sentir como se pertences­
sem uns aos outros.16O desejo por comunidade nos foi dado por Deus.
Ademais, a comunidade é necessária para o desenvolvimento do cris­
tão. É quase impossível desenvolver um estilo de vida cristão sem o
companheirismo da Igreja;17de fato, “a formação ocorre no contexto
das relações” .18Somente na comunidade é que a pessoa toma conhe­
cimento de quem é, desenvolve seu caráter e vive de acordo com ele.
Mas a comunidade deve ser uma comunidade fiel, pois devemos nos
preocupar em nos formar fielmente.19
D e f in iç ã o
A palavra do Novo Testamento usada para identificar o tipo de
comunidade necessária é koinonia. Paulo a usou para indicar “o
companheirismo do relacionamento dos cristãos com Cristo e, por
conseguinte, uns com os outros” .20 Koinonia tem o significado
básico de “ compartilhar algo com alguém” .21 Assim , para nós,
koinonia é o companheirismo dos crentes em Cristo, que deve ser
encontrado na Igreja.
C a ra c te rís tic a s d a K
o in o n ia
Howard Snyder especifica três aspectos da comunidade cristã
importantes para este estudo: compromisso e concerto, vida
compartilhada e transcendência.22 Pode ser proveitoso aplicar estes
aspectos da koinonia aos elementos que James McClendon sugere
que os cristãos precisam: estabilidade (para o corpo), integridade (para
a mente) e liberdade (para o espírito). Os cristãos precisam estar em
um ambiente que venha a nutrir o corpo, a mente e o espírito.23
Compromisso e Concerto
Compromisso e concerto referem-se ao vínculo entre uma pes­
soa e Deus e, como consequência disto, o vínculo entre uma pes­
soa e os outros membros da comunidade cristã. Snyder fala sobre
compromisso e concerto: “Não há comunidade cristã genuína sem
um concerto. [...] A comunidade cristã não pode existir sem com­
promisso com Jesus como Senhor, e uns aos outros como irmãs e
irmãos” .24Embora o conceito de koinonia como organismo m ísti­
co seja importante, este fato não nega a necessidade da lealdade
simples e pessoal dentro da comunidade e entre seus membros.
James Nelson enfatiza com exatidão o aspecto orgânico e do con­
certo de koinonia, mas observa que há o perigo de que a individu-
3 0 5
3 0 6
CHERYL BRIDGES JOHNS E VARDAMAN W. WHITE
alidade da pessoa seja perdida, se a comunidade só for vista como
orgânica. Deve haver unidade, mas essa unidade deve ser o resul­
tado do compromisso consciente dos membros uns para com os
outros, sendo leais e fiéis uns aos outros.25
É importante que a beleza e a singularidade de cada indivíduo
sejam expressas na comunidade cristã. O legalismo - o apego rí­
gido e não crítico a regras - é frequentemente um meio de substi­
tuir a conformidade pela koinonia genuína. Não celebra, mas, an­
tes, teme a individualidade. O legalismo mui­
tas vezes dá uma falsa sensação de comunida­
Koinonia tem o significado
de, fornecendo segurança para as pessoas e li ­
básico de 'compartilhar algo
mites definidos num mundo em que parece não
haver lim ites. Em um ambiente legalista, as
com alguém'.
pessoas não têm de ser responsáveis por suas
ações. Não têm de se preocupar em se empe­
nhar para se relacionar com aqueles que podem ser diferentes.
Pelo fato de o legalismo não mudar a natureza interior das pes­
soas, o fazer e o não fazer exteriores sempre têm de estar presen­
tes. As pessoas são julgadas e apreciadas de acordo com a confor­
midade delas a regras e não de acordo com suas convicções. A s­
sim, o “ ser” delas não é transformado pelos relacionamentos en­
contrados na comunidade. O que parece ser comunidade cristã
genuína é, na verdade, totalmente o oposto!
Uma verdadeira comunidade deve ser convencional', quer di­
zer, seus membros devem ser unidos, porque escolheram refletidamente suas mais profundas crenças e valores, e não só porque
se conformam não criticamente a um código externo de compor­
tamento comumente mantido. Uma comunidade convencional é
aquela “que mantém crenças, histórias, linguagem, rituais e for­
mas particulares de ação em comum” .26Estes elementos da comu­
nidade são maravilhosa e misteriosamente mantidos pelo Espírito
Santo, o que toma a koinonia uma realidade viva. A medida que
as pessoas (que são seres) relacionam-se umas com as outras, elas
também se acham relacionando-se com o Ser Supremo, Deus.
A proporção que a Igreja contemporânea reagia contra as pri­
meiras formas de legalismo (e as falsas noções de comunidade
resultantes dela), enfrentava a dificuldade de criar comunidades
convencionais genuínas. Ao invés disso, o Cristianismo contem­
porâneo tem optado muitas vezes por um individualismo que, como
a sociedade dominante, toma a vida moral um assunto particular
do indivíduo. Por conseguinte, as pessoas podem frequentar uma
Igreja e nunca ser desafiadas a considerar seus estilos de vida.
Podem nem mesmo saber em que os outros da congregação acre­
ditam sobre assuntos morais críticos. Até pior, podem nem mes­
mo se preocupar em conhecer as histórias e crenças dos outros.
Se Jeff deve crescer como cristão, ele não precisa de uma co­
munidade legalista, que o forçaria a seguir uma lista de regras e
regulamentos. Por outro lado, ele também não precisa de uma co­
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
munidade que não se preocupe o bastante para confrontar, instruir
e modelar para ele as alternativas para a sociedade dominante.
Jeff precisa de uma comunidade caracterizada por compromisso,
concerto e lealdade. Jeff precisa de outros crentes que estejam dis­
postos a compartilhar a vida cristã com ele nos laços da koinonia.
Vida Compartilhada
Snyder descreve a vida compartilhada como “passar tempo
juntos”27 e diz que “tal vida encontra seu real significado no equi­
líbrio da adoração, nutrimento e testemunho compartilhados” .28
Talvez na expressão “vida compartilhada” esteja o significado
encapsulado de koinonia. “ Compartilhado” im plica pluralidade;
deve haver mais de um para compartilhar. “Vida” é singular. As
vidas não são tanto compartilhadas quanto a vida é compartilha­
da. Koinonia é uma unidade orgânica composta de muitas pesso­
as. As pessoas testemunham com o objetivo de edificação, ado­
ram juntas, participam de uma essência, buscam uma experiência,
contam a mesma história, olham para o mesmo futuro, professam a
mesma esperança. Compartilham da única vida. Contudo, as pessoas
permanecem distintas, trazendo suas próprias histórias para uma his­
tória, trazendo suas próprias características para uma essência.
Tanto o concerto quanto a vida compartilhada fornecem inte­
gridade. Para McClendon, integridade “ significa a sociedade não
apoiada principalmente em mentiras; significa oportunidade para
a educação que nutre a sinceridade da mente, o exame crítico das
crenças atuais, maneiras coerentes ou integrantes de pensamento
para cada um consistente com o próximo item a seguir, a liberda­
de espiritual plena” .29 Para que a integridade seja nutrida, os indi­
víduos têm de se comprometer mutuamente e compartilhar suas
vidas uns com os outros.
Tal compromisso e compartilhamento também conduzem à le­
aldade. Lealdade não é obediência cega ou confiança ingénua, mas
fidelidade crítica originada da veracidade comprovada na prova.
Hauerwas escreve: “Nenhuma sociedade pode ser justa ou boa se
tiver sido construída na falsidade. A primeira tarefa da ética social
cristã é [...] ajudar o povo cristão a formar sua comunidade con­
sistente com sua convicção de que a história de Cristo é um relato
verdadeiro de nossa existência” .30 Os indivíduos são leais uns aos
outros e a Deus quando sabem que sua comunidade está baseada
no que é verdadeiro e que suas crenças são verdadeiras.
A integridade e a lealdade são, então, recíprocas. O cristão e a
comunidade têm integridade e tomam-se leais sendo verdadeiros
à história de Cristo; Deus tem integridade e demonstra lealdade
fornecendo uma história que é verdadeira.
Transcendência
A verdadeira koinonia está além da habilidade que os seres
humanos têm de a produzirem. Não criamos koinonia ; ela nos é
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dada. É um presente. Não só isso, mas os cristãos a compartilham
com Cristo e com os outros cristãos. Tudo isto é koinonia, sobre­
tudo conforme é entendida pelos escritores do Novo Testamento,
que viram todos estes aspectos da koinonia derivada de Cristo e
do Espírito Santo.31 H ollis Gause explica: “ Num sentido espiritu­
al e real, a presença de Cristo proporciona um padrão duplo. P ri­
meiro, como Ele habita no Pai, os crentes devem habitar em C ris­
to. Segundo, como Cristo habita nos crentes, eles devem habitar
uns nos outros. Este é o padrão bíblico de uni­
dade, que é a experiência e prática da santida­
Liberdade é o poder de ser
de” .32 Para que a koinonia exista, os cristãos
cristão, de fazer a vontade de
devem não apenas experimentar a presença de
uns
com os outros e comprometerem-se uns
Deus, de agir de acordo com a
com os outros, mas também têm de experimen­
natureza santa da pessoa.
tar a presença de Deus e comprometer-se sem
reservas a Ele.
A L ib e r d a d e C r is t ã
Acompanhando a experiência transform acional de Je ff, ele
comentou com um amigo que já não se sentia preso a padrões
da prevalecente cultural popular. E le sentia uma nova liberda­
de para dizer “ não” ao que é mau e “ sim ” ao que é justo. Sua
participação no Corpo de Cristo também lhe deu a coragem
para ser o que antes ele estava incapacitado de ser. Je ff era
liv re . Era livre para ser vitorioso sobre o pecado e a tentação,
não só como alguém que mal estava conseguindo se arranjar.
E le continuou a ter lutas, mas as lutas não tinham poder sobre
ele como tinham outrora. A vergonha e a culpa já não eram
mais seus companheiros constantes.
O espírito precisa de liberdade (como o corpo e a mente), e a
liberdade religiosa é uma faceta importante da vida social. A li­
berdade não está limitada a estruturas sociais. Gerhard Lohfink
adverte: “É impossível libertar os outros a menos que a liberdade
irradie dentro do próprio grupo que a pessoa participa. Não é pos­
sível pregar arrependimento social aos outros se a pessoa não v i­
ver em uma comunidade que leva a sério a nova sociedade do
Reino de Deus” .33Como podem aqueles que estão algemados abrir
as algemas dos outros? Como podem os que vivem em uma co­
munidade injusta, preconceituosa, irreconciliável, sem amor e de­
sinteressada exem plificar as virtudes do Reino de Deus? A comu­
nidade cristã tem de primeiro evidenciar o Reino de Deus, antes
que os cristãos possam conclamar outras comunidades a submete­
rem-se àquele Reino.
Em bora esta liberdade dentro da comunidade tenha um ele­
mento social, trata-se essencialmente de liberdade fundamen­
tada num relacionamento com Deus. Groome comenta com pre­
cisão que “ é pela liberdade de nosso ‘espírito’ que podemos
transcender o mundano, passando a alcançar a união com o
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
Transcendente últim o” .34 Esta liberdade transforma e é produ­
to da transform ação; é uma liberdade de ser que reflete a natu­
reza da koinonia. Isto pode ser visto se a definição que Hauerwas
fez da liberdade for aceita: “ A partir de nossa perspectiva de
uma ética de virtude, a liberdade é mais como ter poder do que
ter escolha. [...] Para o virtuoso, ser livre não im plica numa
escolha, mas na capacidade de que o que fo i feito ou não feito
era ele mesmo” .35
Liberdade é o poder de ser cristão, de fazer a vontade de Deus,
de agir de acordo com a natureza santa da pessoa. A transcendência
é especialmente importante para o conceito de liberdade, pois a
liberdade emana do que Deus fez na formação da koinonia. É um
presente, e vem de Deus. Começa na transformação e é perpetua­
da na formação. É primeiramente de Deus e secundariamente re­
conhecida e fomentada pela comunidade.
Deus transforma e forma não só o caráter cristão, mas também
a comunidade cristã. A ética tem de atender a ambos, certificandose de que as metas de cada um sejam enunciadas e entendidas.
Nenhum pode sobreviver sem o outro: A comunidade não pode
existir sem uma congregação de pessoas individuais; o caráter não
se desenvolverá sem um ambiente social apropriado que forneça
transmissão, persuasão e vida da fé cristã. Deve haver uma narra­
tiv a , uma h istó ria , um caráter, uma id entid ad e, um
compartilhamento que sejam cristãos para, pelo nutrimento, levar
o ser cristão imaturo ao crescimento.
A fé não é algo que os cristãos meramente têm, mas é algo que
é vivido. A próxima seção examina o que dimana do caráter e da
comunidade: a práxis.
A Práxis
Durante o verão seguinte ao seu ano de calouro, Jeff participou
de uma viagem m issionária de curto prazo à Am érica do Sul. Que
experiência! Durante o dia, ele dava aulas cristãs em bairros onde
as crianças viviam numa pobreza miserável. À noite, ele se reunia
com os irmãos latino-americanos para o culto. Os cultos eram in­
críveis ! O mês em que ele viveu, trabalhou e cultuou a Deus num
cenário do terceiro mundo radicalmente mudou o conceito que
Je ff fazia do Cristianismo. E le começou a entender que servir a
Cristo envolve mais que somente frequentar a Igreja. É um modo
de vida que exige ação propositada, informada e circunspeta no mun­
do. Como Jeff descobriu durante sua permanência na América Lati­
na, tal ação revela os valores e crenças reais da pessoa.
Nesta seção, investigaremos a relação entre fazer e ser confor­
me se relacionam com a práxis. Exploraremos como fazer não é
meramente uma opção, mas um mandato para o desenvolvimento
de uma ética cristã. Também discutiremos as maneiras pelas quais
a práxis forma o ser e a comunidade cristãos.
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D e f in iç ã o
Práxis não é apenas ação ou prática. Antes, é “ ação reflexi­
va” ,36 quer dizer, a prática que está instruída pela reflexão teórica.
Para entender a práxis, deve-se primeiro parar conscientemente
de separar a teoria da prática. Isto não significa que teoria e práti­
ca devam ser reduzidas uma à outra, ou que sejam idênticas. An­
tes, esta abordagem busca uni-las, de forma que a prática não seja
vista como a aplicação da teoria. Na práxis, a teoria e a prática
estão unidas.37 O que pensamos sobre a nossa situação social será
refletido em nossas ações dentro daquela situação social. R eci­
procamente, nossas ações (para o bem ou para o m al) revelam
nosso pensamento sobre as coisas que fazemos. O que, no final
das contas, é revelado por nossas ações é o nosso ser — quem
somos - , o nosso caráter. Por conseguinte, o caráter cristão é reve­
lado e formado por nossas ações.
A R elação
da
P r á x is
com o
C aráter
e a
C o m u n id a d e
A práxis surge fora do caráter e da comunidade. Pensar e fazer
não estão separados de quem somos e o que somos, de nosso cará­
ter, de nossa história.
Embora o que somos não seja redutível ao que fazemos, o que
fazemos reflete e está fundamentado no que somos. Outrossim,
embora a fé não seja redutível ao que fazemos, o que fazemos
reflete nossa fé e está fundamentado nela. A ação é, então, um
ingrediente necessário da fé. A fé im plica em resposta. Não é só
participação na natureza divina pela transformação do caráter.
Também é a participação no trabalho divino que surge daquela
participação na natureza divina.
Se a ação (resposta) é um lado da moeda da práxis, o outro
lado é o pensamento crítico. Como a ação, o pensamento crítico é
integrante à fé. Steve Land afirm a que “ a doutrina sã produz e
mantém os cristãos sãos ou saudáveis” e que “ ela está preocupada
principalmente com o cultivo de uma comunidade com o caráter e
as virtudes de Cristo” .38 A doutrina cristã, como também a refle­
xão crítica na narrativa cristã, as histórias da comunidade e os
indivíduos na comunidade, a missão da comunidade, as virtudes
promovidas na comunidade, são todas expressões de fé. A fé é
expressa no que pensamos como também no quefazemos. De fato,
na expressão da fé, o pensamento e a ação influenciam-se mutua­
mente. O que pensamos não apenas ajuda a formar o que somos,
mas também é resultado do que somos. Nosso pensamento crítico
não é formado num vazio, mas como qualquer outro aspecto de
nossa vida, é formado no pano de fundo de nossas experiências.
A práxis também provém da comunidade. Poling e M iller fa­
lam da práxis como “ a reflexão de uma comunidade sobre aquela
interação na qual já está engajada” .39 De fato, Groome chama a
comunidade de “um grupo de pessoas que juntas compartilham de
um esforço comum para viver a práxis cristã” .40 A práxis, então,
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
não só reflete o caráter individual, mas também o caráter da co­
munidade.
À medida que mudamos, desenvolvemos e nos tornamos o que
seremos, nosso desenvolvimento ocorre em resposta às nossas
ações.41 Em outras palavras, o que fazemos não é apenas o resulta­
do de um caráter completamente formado; nossas ações nos for­
mam também. Hauerwas alude às ações como “ atos de autodeter­
minação; neles reafirmamos o que fomos e determinamos o que
seremos no futuro” .42 Entendendo quem somos e quem precisa­
mos ser, escolhemos com autoconsciência o que fazemos (ação
reflexiva). Pelo que fazemos, escolhemos com autoconsciência
quem e o que seremos (reflexão ativa).
Os R e s u l t a d o s
d a P rá x is
O indivíduo e a comunidade cristã existem dentro de um con­
texto social maior - o mundo. O que eles têm a dizer ao mundo?
Que responsabilidades eles têm para a sociedade? Nesta seção,
desenvolveremos a visão de que na práxis o indivíduo e a comuni­
dade conhecem o mundo.
Contexto e Responsabilidade
Quer os cristãos gostem ou não, eles existem dentro do con­
texto do mundo. A situação é que o Cristianismo existe na terra,
que os cristãos vivenciam no mundo a fé, que a comunidade cristã
é uma entre muitas comunidades, e que influencia e é influencia­
da pela sociedade em geral. Os aspectos da sociedade mais ampla,
como a economia ou a política, são parte do mundo do cristão.
Não há vida cristã à parte da vida neste mundo.
Também há uma responsabilidade inevitável devido à nature­
za do Cristianismo em si. Lehmann elabora argumentos em favor
de Deus como “político” . E le argumenta que “ o Deus a quem na
koinonia passamos a conhecer como real, o único Deus que há, o
único Deus digno sobre quem falar, não é dividido, mas é um; e o
Deus que é um é o Deus da política” .43 Com isto, ele quer dizer
que Deus é ativo na vida humana no mundo. Sua comunidade é
política, porque é ativa no mundo que habita. A práxis é a reflexão
ativa/ação reflexiva do Cristianismo vivendo, dialogando e cau­
sando impacto no mundo.
Durante sua permanência na Am érica Latina, Je ff ouviu histó­
rias de cristãos que tinham “ desaparecido” , porque haviam falado
contra o tratamento violento dos indígenas. E le começou a enten­
der que um cristão verdadeiro não pode deixar de relacionar-se
com as dimensões político-sociais deste mundo, embora muitas
vezes pague um preço por tal envolvimento. Na sua volta aos E s­
tados Unidos, Jeff começou a trabalhar como voluntário no ramo
da construção num capítulo local da organização chamada Habitat
fo r Humanity (Habitat para a Humanidade). Também tornou-se
mais consciente do aumento da pornografia em sua cidade natal, e
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ajudou a organizar uma campanha para fechar os negócios que
lucravam com isso.
Conhecendo a Verdade
Como sabemos se nossa práxis, ou ação-reflexão no mundo,
reflete a mente e a vontade de Deus? Como podemos estar segu­
ros de que nossas ações não refletem interesses investidos em nós
mesmos sob o disfarce da religião? A ação-reflexão humana, por­
quanto importante, é torcida e pode se tornar
interesseira. Sem uma autoridade fora do eu
Como Adão e Eva que se
que transcenda e, às vezes, até negue a açãoesconderam no jardim do Éden,
reflexão, somos deixados com a possibilida­
de, a despeito de nossas melhores intenções,
não queremos enfrentar a verdade
da práxis pecadora. Por exemplo, as pessoas
sobre nós mesmos e nosso mundo.
que atiram bombas em clínicas de aborto nos
Estados Unidos declaram estar fazendo guer­
ra ju sta contra os m ales do aborto. Não
obstante, a violência que perpetuam só torna pior a alienação e
o ódio encontrados em nossa sociedade. Tais bombardeios não
conseguiram nada de justo relacionado ao problema do aborto.
Daniel Schipani reformulou a práxis de um modo a conhecer e
engajar o mundo, numa reformulação que incorpora o discipulado
como “ seguir a Jesus dinâmica, dialogai e discementemente” .44
E le comenta mais adiante que a verdade que praticamos, deve, em
última instância, nos ser revelada.45Portanto, nossa prática da ver­
dade é uma questão de obediência amorosa à vontade conhecida
de Deus.
Mas como conhecer a verdade? Como discernir a vontade co­
nhecida de Deus? Com frequência há um espaço entre nós e a
verdade. De fato, empreendemos grandes esforços para nos es­
conder da verdade. Conforme comenta Parker Palmer, “nos es­
condemos do poder transformador da verdade; nos evadimos da
busca da verdade para nós” .46Agimos assim porque esta verdade
nos conhece. Como Adão e Eva que se esconderam no jardim do
Éden, não queremos enfrentar a verdade sobre nós mesmos e nos­
so mundo. Contudo, esta verdade não é inerte, é ativa. E la nos
procura. Busca-nos. Por quê? Porque a verdade é claramente en­
contrada em Deus, que deseja um relacionamento pessoal conosco.
As palavras de Jesus: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”
(João 14.6a), não só revelam que Deus é a verdade, mas que Ele
preparou um caminho para que conheçamos a verdade. Por meio
de Cristo podemos conhecer Deus, e este conhecimento de Deus
revela a verdade sobre nós mesmos.
A B íb lia fala de um caminho, de um modo para conhecer Deus,
que é mais do que ter conhecimento dEle. A palavra hebraica
traduzida por “conhecer” é yada ’, e significa ãquilo que transmite
um conhecimento que vem pela experiência. Im plica que há uma
relação específica entre o conhecedor e o que será conhecido. Este
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
modo de conhecer tem um forte componente afetivo. Em vez de
ser um assunto da mente, também é experiencial. Notavelmente a
palavra yada ’ era usada como eufemismo para as relações sexu­
ais; outra forma da palavra yada ’ era usada para referir-se a amigo
ou confidente.
Para os escritores bíblicos, se um indivíduo conheceu Deus,
ele foi encontrado por um Deus que viveu no meio da história e
que iniciou um relacionamento de concerto que requereu uma res­
posta da pessoa inteira. Não se podia conhecer Deus e não ter um
relacionamento com E le . A medida para saber se a pessoa conhe­
cia Deus ou não, seria como essa pessoa estava vivendo em res­
posta a Ele. Portanto, conhecer Deus é amar e obedecê-lo!
Em contraste, certos pensadores gregos explicaram o conheci mento de maneira muito diferente: colocando-se atrás de algo a
fim de conhecê-lo objetivamente. Poder-se-ia dizer que a pessoa
teria medo de “ ficar com as mãos sujas” pelo que seria conhecido.
Nossa palavra teoria provém do grego theoros, que quer dizer “ es­
pectador” . Sugere um tipo de conhecimento sobre o mundo carac­
terizado por uma audiência de teatro. O que será conhecido está
“ lá fora” , no palco, e nos relacionamos a distância. Parker Palmer
dá uma descrição cheia de insights sobre o conhecimento, quando
visto sob esta luz:
Nosso conhecimento não nos atrai ao relacionam ento com o conhe­
cido, à participação no drama. Ao invés disso, nos m antém à dis­
tância como destacados analistas, comentaristas, avaliadores uns
dos outros e do mundo. Como frequentadores de teatro somos li­
vres para assistir, aplaudir, assobiar e gritar, mas não nos entende­
mos como parte integrante da ação.47
O objeto é algo exterior à questão do conhecimento; deve ser
visto, identificado, catalogado, suas partes relacionadas a outras
partes e julgado.
A primeira epístola de João fornece contraste nítido a este modo
de conhecimento de “ audiência” . Parece que ele intencionalmente
prega contra esta compreensão de conhecimento e ataca suas im­
plicações para a vida cristã, isto é, que é possível conhecer Jesus
sem se esforçar para segui-lo. Para João, o conhecimento de Deus
está fundamentado em um relacionamento amoroso (1 João
4.3,16,20), e este conhecimento é manifestado pela obediência à
vontade conhecida de Deus.
E nisto sabemos que o conhecemos: se guardarmos os seus m anda­
mentos. Aquele que diz: Eu conheço-o e não guarda os seus m an­
damentos é mentiroso, e nele não está a verdade. Mas qualquer que
guarda a sua palavra, o am or de Deus está nele verdadeiram ente
aperfeiçoado; nisto conhecemos que estamos nele. Aquele que diz
que está nele tam bém deve andar como ele andou (1 João 2.3-6).
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CHERYL BRIDGES JOHNS EVARDAMAN W. WHITE
Em palavras bastante simples, conhecer Deus envolve algo mais
do que ter uma teoria correta sobre E le ; também envolve
experimentá-lo, obedecê-lo e ser desafiado e mudado por aquele
conhecimento experiencial dEle.
O envolvimento de Jeff na vida da Igreja e o envolvimento
dele como cristão no mundo em geral, reflete uma mudança em
sua visão da relação dele com Deus. E le já não é mais “parte da
audiência” , observando o drama cristão de longe. Jeff tornou-se
parte do drama e tomou-se parte de sua história. Seu conhecimen­
to de Deus ficou pessoal e direto e o alimentou num estilo de vida
de obediência.
E mais confortável estar na audiência, assistir enquanto outros
cultuam, observar outros testemunharem, contemplar de longe en­
quanto outros entram no mundo com o testemunho cristão. É mui­
to mais fácil dar consentimento verbal a uma ética cristã do que
encarnar e viver uma ética cristã! Todos temos de tomar a decisão
crucial no que diz respeito a se seremos experiencialmente fam iliari­
zados com Deus ou apenas nos acomodaremos em conhecer Deus.
Aceitando o Desafio
Os indivíduos não só devem tomar a decisão de ter uma fé
ativa, mas a Igreja como corpo coletivo tem de tomar esta mesma
decisão. Quando o programa de trabalho é estabelecido pela cul­
tura popular prevalecente, a Igreja não tem a influência que deve­
ria ter. A Igreja é a Igreja e não a cultura popular. Sua práxis deve
permanecer verdadeira com seu caráter.
A Igreja permanece verdadeira ao seu caráter preservando sua
distinguibilidade. E la não faz nenhum favor à sociedade adaptan­
do-se à cultura popular prevalecente, porque falha em sua tarefa
justamente no ponto em que deixa de ser ela mesma. Como
Hauerwas argumenta com exatidão: “A Igreja não tem uma ética
social, mas é uma ética social, [...] na medida que é uma comu­
nidade que pode ser claramente distinta do mundo. Pois o mundo
não é uma comunidade e não tem tal história, visto que está base­
ado na pressuposição de que os seres humanos, e não Deus, go­
vernam a história” .48 Quando a Igreja adota uma ética moral for­
mada pela cultura popular prevalecente, está negando sua nature­
za. Antes, a Igreja tem de expressar a ética social que já encarna;
tem de transmitir a história de Cristo, uma história que continua­
mente causa impacto nas relações sociais dos seres humanos.
A Igreja deve ser ela mesma pelo bem da humanidade. E o
papel da Igreja servir e transformar a sociedade e suas institui­
ções. Para realizar esta tarefa, a Igreja deve ser a Igreja e não se
assim ilar com a cultura popular prevalecente. Só um Cristianismo
que não se envergonha de ser ele mesmo pode fazer isto.
Ser “para a humanidade” significa ser verdadeiro à mensagem
da Igreja. Como afirma John Westerhoff: “É [...] a qualidade de
uma comunidade que testemunha que a Igreja deve ser entendida.
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
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A Igreja tem uma história a contar, uma visão a compartilhar, boasnovas a proclamar. E essa história, visão e boas-novas são melhores
comunicadas pela sua vida, por suas ações-palavras no mundo” .49
A Igreja é a manifestação física da história de Cristo; aponta
para Deus além de si mesma. E uma testemunha da ação de Deus
na história. Pelas ações e palavras da Igreja, as pessoas devem ver
as intenções, ações e caráter do próprio Cristo.
O
Cristianismo só pode mostrar ao mundo o que está faltando
e só pode reter o seu fator diferenciador sendo
uma sociedade de contraste ou uma con­
É o papel da Igreja servir e
tracultura. O que é uma sociedade de contraste
transformar a sociedade e suas
ou uma contracultura? Snyder define uma
subcultura como aquela que concorda basica­
instituições.
mente com a cultura dominante no que tange
aos valores prim ários, e difere nos valores
menos importantes, ao passo que uma contracultura pode concor­
dar com uma cultura dominante no que tange aos valores menos
importantes, mas divergir da cultura dominante na questão dos
seus valores primários.50A Igreja funciona como subcultura quando,
por exemplo, adota um valor como o individualismo na particulari­
dade em que deixa de alcançar as pessoas em desespero, mas difere
do mundo no modo como esse individualismo pode ser expresso.
(Por exemplo, pode condenar o individualism o que defende o
“ direito à privacidade” dos direitos do aborto, mas aplaudir o in ­
dividualismo que diz que a comunidade não tem nenhuma res­
ponsabilidade em ajudar as mulheres que ficam grávidas por cau­
sa do seu pecado.) A Igreja funciona como contracultura quando
valores secundários são compartilhados (como usar roupas seme­
lhantes ou participar de entretenimentos em comum), mas desafia
a cultura dominante em suas crenças centrais e valores fundamen­
tais (como lembrar a sociedade que ela está sujeita a um poder
maior do que ela ou que isso pode não tomar as coisas certas).
Snyder considera que a Igreja na América do Norte é em grande
parte uma subcultura e não uma contracultura.51
A sociedade de contraste é a que está contra muitas das metas
e práticas comumente aceitas da cultura popular de hoje. Por exem­
plo, rejeita as falsas imagens (como os retratos estereotipados e
humilhantes das mulheres) projetadas pela mídia de entretenimento
popular, e fica contra a auto-ilusão daqueles que defendem a auto­
nomia, mas não a responsabilidade. Ao invés disso, a sociedade
de contraste toma partido da verdade revelada em Jesus Cristo e
vivida na fé cristã, apóia a reconciliação de todas as pessoas com
Deus e defende um padrão de vida em conformidade com a santi­
dade de Deus. Não espera que a sociedade se conforme, mas mo­
dela o viver santo pela vida dos cristãos individuais. A santidade é
inerentemente antitética aos elementos não regenerados da cultu­
ra popular. Só como comunidade santificada é que a Igreja funci­
ona como sociedade de contraste ao mundo.52
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CHERYL BRIDGES JOHNS E VARDAMAN W. WHITE
Este entendimento da sociedade de contraste como comunida­
de santificada complementa a declaração de Jackie Johns de que
“ a Igreja (Prim itiva) compreendia o ímpeto de sua existência como
sociedade de contraste enquanto lutava bravamente para manterse impulsionada pelo Espírito de Deus” .53O mesmo princípio pode
ser dito sobre a Igreja da era pós-moderna. Nada está em maior
contraste com certas metas e práticas comumente aceitas da cultu­
ra de hoje do que a santidade. A Igreja tem de reconhecer as dife­
renças fundamentais entre ela e as instituições que capturaram os
corações e mentes das pessoas na era atual.
A santidade da Igreja divulga-se na práxis. Esta práxis é espe­
cificamente profética em natureza. Não é apenas o dever de os
indivíduos serem testemunhas proféticas, mas é a comissão de a
Igreja existir como comunidade profética e santa. Só deste modo
as pessoas podem em todos os lugares ver a luz do Reino que
brilha nas trevas.
Durante sua viagem missionária, Jeff experimentou a vida em
comunidades proféticas de pessoas, cuja koinonia o recebeu nos
laços do amor cristão e cuja práxis o desafiou a tornar visível a fé
cristã. Jeff fez uma transição em seu pensamento sobre a relação
entre o cristão e o mundo. E le se afastou de ser parte de uma
subcultura cristã para ser parte de uma sociedade de contraste.
Este movimento representou mudança importante no seu modo de
ser no mundo. Para Jeff, agora havia destacada diferença entre
uma cosmovisão cristã e as outras cosmovisões prevalecentes na
cultura. Considerando que antes ele só via o Cristianismo como
algo que aumentava a qualidade de sua vida, agora ele via a fé
como algo que radicalmente alterava sua vida. Sua vida foi altera­
da de tal modo a expressar uma chamada profética.
A fim de expressar esta chamada verdadeiramente, Jeff preci­
sa ser parte de uma comunidade profética de crentes que existem
como sociedade de contraste. Tais comunidades são encontradas
onde quer que haja cristãos que coletivãmente busquem ser o povo
de Deus, pouco importando os custos. Tais comunidades existem
ao redor do mundo. Algumas estão pagando grande preço por seu
testemunho profético.
Na América do Norte, ainda que não haja perseguição pública
de cristãos, os crentes como Jeff levantam-se em contraste com a
sociedade rapidamente secularizante. Sua práxis cristã entrará cada
vez mais em conflito com o que o Stephen Carter chama de “ a
cultura da descrença” .54Nesta cultura, Deus é visto como um pas­
satempo. Carter comenta que “ a mensagem da cultura contempo­
rânea parece ser que é perfeitamente certo acreditar nessas coisas
- temos liberdade de consciência, [...] mas na verdade você deve
guardá-la para si, sobretudo se suas crenças são do tipo que fazem
você agir de modo [...] um tanto quanto não ortodoxo” .55
Aqueles que levam a fé cristã mais a sério do que um mero
passatem po, arriscam ser rotulados de “ fa n á tico s” ou
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
“fundamentalistas religiosos” . Tais rótulos indicam o nível do medo
presente em nossa sociedade para com o cristianismo profético.
Carter observa que tal medo é compreensível, visto que “ a re li­
gião realmente é um modo estranho de conhecer o mundo — es­
tranho, ao menos, numa cultura política e legal, na qual a razão
supostamente impera” .56 E le considera que a religião é subversi­
va, especialmente nas nações onde a norma é desprezar a visão
religiosa como irrelevante.57 A Igreja americana contemporânea
tem de aceitar o risco de ser mal-entendida, rotulada e até perse­
guida ativamente. Só então seu testemunho profético pode ser v is­
ta claramente.
As V
ir t u d e s d a s
D is c ip l in a s
Ser uma pessoa de virtude não é fácil ou automático. Muitas
pessoas vão a Cristo com inveterados hábitos pecaminosos. En ­
quanto a transformação nos encontra livres da escravidão e tirania
do pecado, o Espírito Santo deseja continuar a obra transformadora
do interior da recriação. Durante séculos, a práxis das disciplinas
cristãs foi um meio pelo qual os crentes têm vencido o pecado e
possuem o caráter de Cristo profundamente inveterado no íntimo
do seu ser.
As disciplinas em si não transformam, mas Richard Foster ob­
serva que elas “ nos permitem nos colocar diante de Deus, de for­
ma que E le possa nos transformar” .58 Foster compara as discipli­
nas espirituais ao agricultor, que faz tudo o que humanamente é
possível para proporcionar as condições certas para o crescimento
da semente: o Espírito semeia pelas disciplinas, plantando-nos na
terra em que Deus pode nos mudar de dentro. Assim , as discipli­
nas não fazem nada por si mesmas; são meios que Deus usa para o
nosso benefício.59
Foster divide as disciplinas em três categorias: as disciplinas
interiores, consistindo em meditação, oração, jejum e estudo; as
disciplinas exteriores, consistindo na simplicidade, solidão, sub­
missão e serviço; e as disciplinas coletivas, consistindo na confis­
são, culto, direção e celebração.
A práxis das disciplinas nos leva a uma experiência mais pro­
funda com Deus e, à medida que continuamos em nossa jornada,
descobrimos que fizemos com que nosso coração ficasse à vonta­
de na presença dEle.
A jornada à Frente
Começando seu segundo ano de faculdade, Jeff reflete sobre
seu primeiro ano significativo e percebe que é uma pessoa muito
diferente. Há um ano, ele tinha sentido e respondido à voz do E s­
pírito Santo que o levou a um andar mais profundo com Cristo.
No caminho, ele aprendeu que ser era primeiríssimo em impor­
tância. Agora suas escolhas morais e decisões éticas já não são
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CHERYL BRIDGES JOHNS E VARDAMAN W. WHITE
mais baseadas em uma miscelânea de valores e crenças. Pelo con­
trário, dimanam de uma individualidade bem formada e unificada.
Atualmente o caráter de Jeff reflete, mais do que nunca, o caráter
de Deus. Je ff começou seu primeiro ano de faculdade vagamente
ligado ao Corpo de Cristo. Agora, como estudante de segundo ano,
ele participa ativamente em uma Igreja local, onde encontra ir­
mãos e irmãs para compartilhar na koinonia do Espírito Santo.
Finalmente, hoje a vida de Jeff reflete a práxis da vida cristã. Suas
ações como cristão são mais consistentes com quem ele é como
crente em Cristo.
Jeff está numa jornada surpreendente. E uma jornada em direção a Deus. É uma jornada em Deus e com Deus. No caminho, há
a possibilidade de mais transformação e crescimento ininterrupto.
Enquanto a jornada o leva para um futuro incerto, Jeff o encara
com a garantia de que ele, como o apóstolo Paulo, pode terminar a
carreira sabendo que há uma coroa de justiça que o espera (2 T i­
móteo 4.7,8),
Revisão e Questões para Discussão
1. O que é uma “ pessoa pós-moderna” ? Que problemas
concernentes à moralidade o mundo contemporâneo coloca aos
cristãos?
2. Faça a d istin ção entre ética deontológica, ética
conseqiiencialista e ética de caráter. Identifique elementos de cada
uma em sua ética pessoal e especificamente na ética cristã.
3. O que é santificação? Qual é a relação entre santificação e
transformação? Como a santificação afeta o caráter da pessoa?
4. Como a visão pessoal afeta o caráter da pessoa? Uma ênfase
na visão significa que a ética de caráter é, em última instância,
conseqiiencialista?
5. Por que a integridade e a lealdade são importantes para a
comunidade cristã, e por que ambas são importantes para o desen­
volvimento do caráter cristão? O compromisso e o concerto en­
contrados na koinonia são diferentes dos que são encontrados em
outras comunidades?
6. Descreva sua comunidade cristã. É verdadeira koinonia? Você
encontra com prom isso e concerto, vid a com partilhada e
transcendência em sua comunidade? Você encontra estabilidade,
integridade e liberdade em sua comunidade?
7. A liberdade im plica em liberdade para pecar? A verdadeira
liberdade não significaria que nenhuma ação é pecadora se for
executada por um cristão?
8. O que significa pensar em Deus como “político” ? O que isto
im plica para o envolvimento cristão nas questões sociais?
9. Como a Igreja difere do mundo? O que a Igreja pode fazer
pelo mundo ou contar ao mundo? Qual deveria ser o programa de
trabalho da Igreja? Seria o mesmo programa de trabalho executa­
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
do pelo mundo? Se não, em que diferem? Há somente um progra­
ma de trabalho para a Igreja? Há somente um programa de traba­
lho para o mundo?
10. Identifique as disciplinas espirituais. Você as vê em opera­
ção em sua vida? Como?
11. Jeff mudou de muitas maneiras durante sua jornada no pri­
meiro ano de faculdade. Descreva essas mudanças. Por que ele
mudou? O que o afetou?
Projetos Sugeridos para Reflexão
1. Conte sua história. Quem é você? Qual é a sua tradição do­
minante? O que você valoriza? Para onde você está indo? Identifi­
que as experiências que são muito importantes em sua vida, que o
ajudaram a se tornar quem você é.
2. A cosmovisão pós-moderna caracteriza a verdade como re­
lativa. Qual é a relação entre o cristão e a verdade? Como os cris­
tãos podem conhecer a verdade e saber que suas crenças são ver­
dadeiras? Explique para a mente pós-moderna como as reivindi­
cações cristãs são verdadeiras.
Bibliografia Selecionada
L e it u r a s C l á s s ic a s S o b r e A T e o r ia M
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A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
Notas bibliográficas
1. Como escreve Stanley Hauerwas: “ Os ‘problemas’ ou ‘situ­
ações’ não são entidades abstratas que existem à parte de nosso
caráter; eles tornam-se tais abstrações à medida que recusamos
ser diferentes de nós somos” . Veja Vision and Virtue: Essays in
Christian Ethical Reflection (Fides Publishers, 1974; Notre Dame:
University of Notre Dame Press, 1981), p. 49.
2. Arthur Holm es, Ethics: Approaching Moral Decisions,
Contours of Christian Philosophy Series (Downers Grove, Illino is:
InterVarsity Press, 1984), p. 117.
3. Stanley Hauerwas, The Peaceable Kingdom: A Primer in
Christian Ethics (Notre Dame: University of Notre Dame Press,
1983), p. 8.
4. Stanley Hauerwas, Truthfulness and Tragedy: Further
Investigations into Christian Ethics (Notre Dame: University of
Notre Dame Press, 1977), p. 78.
5. Richard Bondi, “The Elements of Character” , The Journal
o f Religions Ethics, volume 12, Outono de 1984, p. 209.
6. Craig Dykstra, Vision and Character: A Christian Educator’s
Alternative to Kohlberg (Nova York: Paulist Press, 1981), p. 52.
7. James W. McClendon, Biography as Theology (N ashville:
Abingdon Press, 1974), p. 34.
8. The Westminster Dictionary o f Christian Ethics, editores
James F. Childress e John Macquarrie (Filadélfia: The Westminster
Press, 1986), no verbete: “ Character” .
9. Paul T illich , Systematic Theology, volume 1 (Chicago: The
U niversity of Chicago Press, 1951), p. 272.
10. Donald C . Bloesch, Essentials o f Evangelical Theology,
volume 1, God, Authority, and Salvation (São Francisco: Harper
& Row Publishers, 1978, 1982), p. 33.
11. The Westminster Dictionary o f Christian Ethics, editores
James F. Childress e John Macquarrie (Filadélfia: The Westminster
Press, 1986), no verbete: “ Holiness” .
12. Bloesch, Essentials o f Evangelical Theology, volume 2,
Life, Ministry, andHope (São Francisco: Harper & Row Publishers,
1982), p. 41.
13. R . H ollis Gause, Living in the Spirit: The Way of Salvation
(Cleveland, Tennessee: Pathway Press, 1980), p. 49.
14. Hauerwas, Vision and Virtue, p. 49.
15. Jam es W . F o w le r, “ Future C h ristia n s and Church
Education” , in: H opefor the Church: Moltmann in Dialogue with
Practical Theology, editor Theodore Runyon (Nashville: Abingdon,
1979), p. 95.
16. James Poling e Donald E . M ille r, Foundations fo r a
Practical Theology o f Ministry (N ashville: Abingdon Press, 1985),
p. 126.
17. Stanley Hauerwas e W illiam H . W illim on, “Embarrassed
3 2 1
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by God’s Presence” , Christian Century, volume 30, Janeiro de
1985, p. 99.
18. James W. Fowler, “ Practical Theology and the Shaping of
Christian Live s” , in: Practical Theology, editor Don S. Browning
(São Francisco: Harper & Row Publishers, 1983), p. 162.
19. Stanley Hauerwas, “The Gesture of a Truthful Story” ,
Theology Today, volume 42, Julho de 1985, p. 187.
20. Paul Lehmann, Ethics in a Christian Context (Nova York:
Harper & Row Publishers, 1963), p. 86.
21. Friedrich Hauck, no verbete: “ [Koinos]” , in: Theological
Dictionary ofthe New Testament, editores Gerhard Kittel e Gerhard
Friedrich, traduzido para o inglês por Geoffrey W. Brom iley (Grand
Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1965, 1982),
volume 3, p. 808.
22. Howard A . Snyder, Liberating the Church: the Ecology o f
Church andKingdom (Downers Grove, Illin o is: InterVarsity Press,
1983), pp. 127, 128.
23. James W. McClendon Jr., Ethics: Systematic Theology,
volume 1 (N ashville: Abingdon Press, 1986), p. 236.
24. Snyder, p. 127.
25. James B . Nelson, MoralNexus: Ethics o f Christian Identity
and Community (Filadélfia: Westminster Press, 1971), p. 119.
26. Dykstra, Vision and Character, p. 57.
27. Snyder, p. 127.
28. Ibid., p. 128.
29. McClendon, p. 236.
30. H auerw as, A C om m unity o f Character: Toward a
Constructive Christian Social Ethics (Notre Dame: University of
Notre Dame Press, 1981), p. 10.
31. E ric G . Jay, The Church: Its Changing Image through
Twenty Centuries (Londres: S P C K ; Atlanta: John Knox Press,
1977, 1978), pp. 23, 24.
32. Gause, p. 56.
33. Gerhard Lo h fin k, Jesus and Community: The Social
Dimensions o f the Christian Faith, traduzido para o inglês por
John C alvin (Londres: S P C K , 1985), p. 138.
34. Groome, p. 96. Groome identifica três dimensões da liber­
dade: a dimensão “ espiritual” ; a dimensão “pessoal” , que é o as­
pecto interior e psicológico da liberdade; e a dimensão “ social/
política” (p. 96).
35. Hauerwas, Community and Character, p. 115.
36. Groome, p. x v ii, nota.
37. Ibid., p. 152.
38. Steven J. Land, “Modest Appearance” , in: A Life Style to
His Glory (Cleveland, Tennessee: Pathway Press, 1988), p. 115.
39. Poling e M iller, p. 65.
40. Groome, p. 122.
41. Dermot A . Lane, Foundations fo r a Social Theology: Praxis,
A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS
Process and Salvation (Nova York: Paulist Press, 1984), p. 3.
42. Hauerwas, Vision and Virtue, p. 49.
43. Lehmann, pp. 82, 83.
44. D an iel S ch ip a n i, R eligious Education Encounters
Liberation Theology (Birmingham, Alabama: Religious Education
Press, 1988), p. 125.
45. Schipani, p. 136.
46. Parker Palmer, To Know As We Are Known: A Spirituality
o f Education (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1983), p.
59.
47. Palmer, p. 23.
48. Hauerwas, “ Gesture of a Truthful Story” , p. 182.
49. John Westerhoff, Will Our Children Have Faith? (São Fran­
cisco: Harper & Row Publishers, 1976), p. 48.
50. Snyder, p. 120.
51. Ibid.
52. Lohfink, p. 130.
53. Jackie Johns, The Pedagogy ofthe Holy Spirit According
to Early Christian Tradition (Tese para Doutorado em Educação,
The Southern Baptist Theological Seminary, 1986), p. 169.
54. Stephen L . Carter, The Culture o f Disbelief (Nova York:
Basic-Books, 1993).
55. Carter, p. 25.
56. Ib id ., p. 43.
57. Ibid.
58. Richard Foster, Celebration o f Discipline (São Francisco:
Harper & Row Publishers, 1978), p. 6.
59. Ibid.
3 2 3
9
Música que
Vem do
Coração da
Fé
Johnathan David Horton
3 2 6
JOHNATHAN DAVID HORTON
A palavra de Cristo habite em vós abundantemente, em toda a
sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros, com
salmos, hinos e cânticos espirituais; cantando ao Senhor com gra­
ça em vosso coração.
— Apóstolo Paulo
Ter um mundo sem música seria como ter um mundo sem sentido.
A música evidencia os mais profundos sentimentos e aspirações
do género humano.
— Norman Dello Joio
Prelúdio: O Poder da Música
oi
logo que entrei na faculdade que pela primeira vez assisti a
um recital vocal solo. O auditório parecia enorme e havia
pessoas em todas as partes. Subindo as escadas, encontrei
meu lugar perto da frente da sacada. O entusiasmo parecia quase
palpável, pairando sobre a multidão como névoa densa. Sentado
sozinho no meio da multidão, fui surpreendido pela expectiva do
momento. Aquele não seria um concerto comum.
George London, o solista convidado, voltara recentemente de
Moscou, onde tinha cantado no Bolshoi Opera Theatre, na mais
famosa de todas as óperas russas, Boris Godunov. London cantou
em plena guerra fria, quando as relações entre os Estados Unidos
e a antiga União Soviética eram tensas. Esse estrangeiro america­
no tinha cantado o papel principal. Embora os russos a princípio
não tivessem querido gostar dele, foram completamente conquis­
tados pela beleza da voz e força do seu caráter. Seu desempenho
foi aclamado como triunfo! A história do seu sucesso fora levada
pela mídia americana e ele se tomara herói nacional, uma celebri­
dade da noite para o dia. M al podíamos esperar ouvir esse famoso
baixo cantar.
Um silêncio encheu o auditório quando as luzes se escurece­
ram. London subiu ao palco sob um trovão de aplausos. E que
apresentação! A canção brotava de sua p róp ria alm a. A
expressividade do seu cantar construiu um vínculo de comunica­
ção entre o cantor e a audiência - algo tão poderoso que transcen­
deu a expressão verbal.
No fim do programa, ele cantou a pequena balada popular in ­
glesa Lord Randall. Esta canção é um diálogo entre uma mãe e
seu filho agonizante. Embora simples o bastante para ser cantado
por qualquer estudante de canto da audiência, ele deu vida à can­
ção que mexeu as profundezas da alma. À medida que a canção se
desenrolava, ele cantava com uma voz cada vez mais fina, contu­
do, suave. A canção terminou num mero sussurro, quando nós, a
audiência, sentimos a dor da morte de Lord Randall. O silêncio
que se seguiu foi o mais longo que jam ais ouvi num concerto. A
audiência permaneceu sentada, paralisada, olhando fixamente para
o palco em meio às lágrimas.
MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 2 7
Por fim uma explosão de aplausos rolou pelo auditório em on­
das após ondas após ondas. Completamente subjugado pela emo­
ção do momento, sentei-me em quietude atordoada, im possibili­
tado de erguer as mãos para aplaudir. Pensei: Tenho de escrever
uma carta para minha mãe e lhe dizer: “Hoje à noite descobri o
poder da música! ”
A música tem o poder de influenciar nossa vida de maneira
profunda. Quando consideramos essa influência, podemos nos
fazer estas perguntas: O quão importante é a música na vida do
indivíduo? Qual é o papel da música na sociedade? Qual é a fonte
da música? Qual é o seu propósito? Como damos significado a
um sortimento abstrato de sons e silêncio? Como podemos tirar
mais proveito da música? Qual é o impacto da música como parte
e pacote da mídia popular? E , finalmente, há diretrizes que nos
ajudam a fazer escolhas morais e artísticas sobre a música? Este
capítulo foi desenvolvido para responder essas questões. Come­
cemos com o lugar que a música ocupa na vida do indivíduo e na
sociedade.
A Supremacia da Música
Pareceria improvável, a priori, que todo o género humano fosse
dotado da faculdade de desfrutar a beleza, a menos que ele alcan­
çasse alguma realização nobre.
— H. E . Huntley
A música nos cerca. Satura a urdidura de nossa vida. É a com­
panheira quase constante em nossa vida pública e particular. Se
vamos comprar mantimentos num supermercado, ouvimos músi­
ca. Se vamos passear de carro, música é ouvida do painel. Se nos
reunimos com alguns amigos para uma sessão de estudo, a música
é o monitor do estudo. A música aumenta e exalta nossos momen­
tos de celebração. A liv ia a carga de nosso trabalho. Conforta-nos
quando nos sentimos sós. A música expressa nossa fé em Deus.
Dá expressão aos nossos pensamentos e emoções, desde o capri­
cho mais trivial até ao insight mais sublime.
Há muitos estilos de música. De fato, parece que quase há tan­
tos estilos quanto há pessoas. Em nenhum lugar a diversidade de
estilos é mais evidente do que nos grandes centros urbanos dos
Estados Unidos. Se você surfa pelas ondas do rádio descobrirá
estações especializadas em determinados estilos de m úsica: Top
40 (canções mais vendidas na década de 1940), rock suave, rock
popular, rock alternativo, heavy metal, rap, soul, reggae, jazz,
blues, country, gospel, música cristã contemporânea, inspirativa,
clássica, da Nova E ra , e vários estilos de músicas nacionais e
étnicas. Já se disse muitas vezes que a música é uma língua
universal, mas também descobrimos que é uma língua da di­
versidade. (Veja Apêndice 4, “A M úsica e o Espaço de Execu­
ção” , ao final deste livro .)
3 2 8
JOHNATHAN DAVID HORTON
A maioria de nós está fam iliarizada com um ou mais estilos de
música. Aprendemos a amar e apreciar a música que entendemos,
que faz sentido para nós. Entendemos sua sintaxe - a estrutura do
seu significado. As pessoas muitas vezes dizem: “Não sei muito
sobre música, mas sei do que gosto” . O que realmente querem
dizer é: “ Gosto do que sei” . A s vezes ouvimos música pouco co­
nhecida e comentamos: “ Puxa, isso nem mesmo é m úsica!” O que
provavelmente queremos dizer é: “Não entendo esta música que
me tira o sossego” . Quando nos restringimos a apenas a música
que sabemos e entendemos, podamo-nos de novos mundos de pra­
zer e insight potenciais.
A música não é o elemento essencial apenas da cultura ameri­
cana; é parte vital de toda cultura ao redor do globo - passado e
presente. A música é integrante a toda sociedade, da tribo mais
prim itiva à comunidade urbana mais complexa. Pela música, as
pessoas expressam todas as emoções humanas, do êxtase e fe lici­
dade ao pesar e desespero. Casamentos, enterros, festas, cerimo­
nias cívicas - onde quer que as pessoas se reúnam, haverá música.
Embora poucos questionariam a qualidade penetrante das ex­
periências musicais que enchem nossa vida, a pergunta é inevita­
velmente feita: A música é necessária para a vida? Em sentido
estritamente biológico, do que precisamos para manter a vida?
Precisamos de ar - só podemos viver durante cerca de três minu­
tos sem ar. Precisamos de água - só podemos viver durante cerca
de três dias sem água. Precisamos de comida - só podemos viver
durante cerca de três semanas sem comida. Mas se precisamos de
música, quanto tempo podemos viver sem ela - um dia, uma se­
mana, toda a vida? E questão filosófica que não gera uma resposta
simples.
Em vez disso, considere a seguinte pergunta: No período em
que você está acordado, qual é o tempo mais longo que você fica
sem ouvir música? Com frequência faço esta pergunta aos meus
alunos. As respostas que me dão revelam o quanto a música faz
parte da nossa vida. Alguns dizem que ouvem música quase que
continuamente, outros afirmam que não passam mais que quinze
A expressão “clássica” tem vários usos e é
aplicada a ampla esfera musical. Em um dos
seus usos mais genéricos, refere-se à música
de câmara, ópera e música sinfónica na tradi­
ção européia culta. Neste sentido, escolhe ti­
pos de música que, em sua sofisticação técni­
ca e nível de cultura, diferem da música fol­
clórica ou popular. Às vezes a “música clássi­
ca” diz respeito mais estreitamente à música
européia de fins do século X V III e início do
século X IX . As vezes, seu uso é estendido para
incluir a música sinfónica e outras músicas tec­
nicamente sofisticadas e sérias do final do sé­
culo X IX e começo do século X X .
MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 2 9
minutos sem ouvir música, e outros relatam que ficam duas horas
ou mais sem ouvir música. A resposta mais comum que os alunos
me dão é que não passam mais que trinta minutos por dia sem
música!
Pare e faça a si mesmo essa pergunta: No período em que es­
tou acordado, qual é o tempo mais longo que eu fico sem ouvir
música? Enquanto considera esta pergunta, inclua toda música que
você ouve na performance ao vivo, toda música que você ouve no
rádio ou televisão, e toda música que você ouve
em cassete ou C D . Além disso, inclua toda
Curiosamente, é a própria
música que você ouve em film es, toda música
onipresença da música que leva
que você ouve nos elevadores, lojas e festas.
Finalmente, inclua toda música que você ouve
alguns a negar a necessidade de
até dentro da cabeça, quando não há nenhum
adquirir conhecimento sistemático
som físico! Parece que a música é tão prevale­
de música.
cente quanto o idioma.
O valor de se entender um idioma, falado e
escrito, é óbvio a quase todo mundo. Usamos a língua falada e
escrita na vida cotidiana para comunicação interpessoal, comér­
cio e expressão das próprias idéias ou sentimentos. Compreendese que o domínio das habilidades do idioma é fundamental para se
viver com êxito no mundo de hoje. Mas o quanto é óbvio o valor
do domínio do conhecimento e habilidades musicais? Curiosa­
mente, é a própria onipresença da música que leva alguns a negar
a necessidade de adquirir conhecimento sistemático de música.
Se as pessoas já amam e apreciam a música, prossegue o argu­
mento, por que estudá-la? Eles não vêem que a educação musical
é “menos uma comunicação de amor para a música do que uma
extensão e reforma de um amor já existente” .1
Saber mais de música aumenta nosso prazer? Falamos de apre­
ciação da música, mas ninguém fala de apreciação do futebol, por
exemplo. Entende-se em geral que quanto mais a pessoa sabe so­
bre futebol, mais é provável que goste de assistir um jogo de fute­
bol. Porquanto seja verdade que não haja nenhuma correlação en­
tre conhecimento de futebol e prazer do jogo, há uma ligação no­
tável entre os dois: conhecimento gera apreciação.
Ninguém dúvida que o mesmo princípio se aplica à música,
sobretudo quando o conhecimento está ligado diretamente com a
própria música. Um pouco de conhecimento de música é necessá­
rio para se entender os muitos mundos diferentes da música, de­
senvolver as habilidades necessárias para fazer música, aprofundar
o entendimento intelectual e estético da arte da m úsica.
Comprovadamente, um pouco de conhecimento de música é até ne­
cessário para podermos expressar nossos pensamentos e sentimentos
pessoais pela música. Se estas declarações são verdadeiras, o que
temos de saber para aumentar nossa apreciação da música?
Para começar, é provável que a apreciação se aprofunde pro­
porcionalmente ao conhecimento que a pessoa tenha nestas três
3 3 0
JOHNATHAN DAVID HORTON
áreas: 1) os grandes e duradouros marcos musicais da civilização
(da pessoa) -a herança cultural; 2) os fundamentos da música,
inclusive análise, composição e desempenho - arte da música; e
3) a natureza expressiva ou afetiva da música - a estética da músi­
ca. W illiam J. Bennett, ex-secretário do Departamento de Educa­
ção, expressou a natureza fundamental do conhecimento da músi­
ca: “Nenhuma educação é completa sem a consciência m usical; a
música é a expressão essencial do caráter de uma sociedade” .2
N
o ssa
H era n ça C ultural
Um cidadão bem-educado deve estar fam iliarizado com pelo
menos algumas das monumentais realizações musicais da c iv ili­
zação ocidental. A música do passado antigo está hoje para sem­
pre perdida, mas a música do período medieval até aos dias atuais
é parte de nossa herança m usical. Os grandes compositores do
passado deram-nos insights sobre a condição humana do tempo
deles e do nosso também. É interessante notar que a matéria dos
textos musicais - as letras - permanecem incrivelmente constan­
tes de geração em geração.
Bach e Handel, Haydn e Mozart, Beethoven e Brahms, Debussy
e Stravinsky e muitos outros moldaram a música do mundo cotidiano.3 O estudo da música destes mestres do passado produzirá
colheita de enriquecimento e prazer, como também maior com­
preensão da música atual. “A declaração inteira para a importân­
cia da música clássica acha-se na base de que não há substituto
para o conhecimento de primeira mão” .4Um conhecimento sólido
da música clássica deve incluir familiaridade com obras-primas
representativas dos principais géneros - como sinfonia, abertura,
ópera, balé, oratório, concerto - incluindo um entendimento da
forma, estilo e desenvolvimento temático.
O estudo da música popular dos Estados Unidos -fo lk , Top 40,
jazz, blues, rock, Broadway show, country, gospel, música cristã
contemporânea - também deve estar incluído numa educação
m usical bem planejada. Nossa herança musical popular inclui a
música folclórica de muitos países e culturas. Ademais, os própri­
os Estados Unidos provaram ser solo fértil para produzir novas
músicas mediante a transpolinização de suas muitas e variadas
culturas musicais. A música popular americana, em suas muitas
formas, deixou marca expressiva por todo o mundo.
A A rte
da
M
ú s ic a
Num mundo ideal, todos aprenderiam a ler música, cantar e
tocar um instrumento. A porta para o mundo da performance mu­
sical abre-se amplamente para a pessoa que lê música e sabe os
rudimentos de cantar e/ou tocar um instrumento. A performance
m usical é em si um tipo de conhecimento. Tudo que diz respeito a
escutar e analisar o mundo nunca pode duplicar completamente a
compreensão inerente na performance m usical.
r
MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 3 1
O conhecimento da melodia, estrutura harmónica, ritmo e
metragem é essencial para uma compreensão plena da música. O
conhecimento da forma m usical, que é feito pelo ritmo natural em
grande escala, é necessário para se entender muitos dos monu­
mentos musicais da civilização ocidental. Quanto mais se aprende
sobre os funcionamentos internos da música, mais a música faz
sentido. Cada aspecto da estrutura m usical pode ser usado para
expressar o que está na mente e coração do compositor e artista.
Em resumo, saber a arte da música facilita a apreciação que a pes­
soa tenha da música.
A E s t é t ic a
da
M
ú s ic a
Temos desenvolvido a visão de que o amor da música cresce
em proporção ao aprofundamento do entendimento que a pessoa
tenha da música. Engajar nossa herança cultural e entender alguns
dos aspectos técnicos da arte da música marcam passos importan­
tes para o tipo de compreensão que aumenta a apreciação. Mas
ainda que a estética da música esteja relacionada com estas duas
coisas, não é idêntica a nada. A estética m usical vai além dos as­
pectos históricos, culturais e técnicos da música, e fala de sua na­
tureza essencial.
Algumas teorias da estética requerem que a pessoa se distan­
cie da experiência musical para fazer o julgamento estético.5 Tal
ponto de vista cria um ouvinte que é crítico em vez de participan­
te. Como músico, considero o envolvimento no momento musical
como a essência da experiência estética. Nesta conexão, temos de
apreciar completamente o fato de que música é mais do que notas ou
sons. É mais do que melodia, harmonia, ritmo e contraponto. Como
certo artista observou: “Música é primeiro uma expressão do espírito
- caso contrário é meramente ruído bonito” .6A música salta do fundo
do espírito do artista e fala com as profundidades do espírito do ou­
vinte, eliminando, inclusive, palavras. O ouvinte que é completamente
afinado com a música é, nas palavras de H . E . Huntley, “restabeleci­
do ao ato criativo e, atraído pela beleza, está experimentando a ale­
gria da atividade criativa. Está, de fato, na frase de Kepler, ‘pensar os
pensamentos de Deus segundo E le ’ ,”7 O que Huntley descreve tão
poeticamente representa em seu cerne uma produção e troca profun­
das de significado. A estética da música tem a ver com o fazer sentido
nesta profunda produção e troca de significado. Mais adiante, neste
capítulo, descreveremos esse processo mais completamente, quando
respondermos à pergunta: O que significa música?
A Fonte da Música
Onde estavas tu quando eu fundava a terra? [...] quando as estre­
las da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus
rejubilavam?
— Jó 38.4-7
3 3 2
JOHNATHAN DAVID HORTON
Muitos dos atuais textos da história da música não tentam tra­
çar as origens da música. Escolhem começar com a história regis­
trada. A Enciclopédia Britânica declara que cada sociedade anti­
ga conhecida “entrou nos tempos históricos com uma cultura mu­
sical em florescimento” .8Os primeiros escritores especularam que
o que conhecemos hoje por música começou como forma rudi­
mentar de comunicação, que aliviava o fardo do trabalho das co­
munidades, e que era elemento poderoso da cerimónia religiosa. De
fato, grande parte dos primeiros escritores falou de música em termos
de lenda e mito. Aqueles que não aceitam a revelação bíblica só po­
dem ver a origem da música envolta numa névoa mística.
A fonte da música pode ser descoberta pela revelação das E s ­
crituras. Deus disse a Jó: “ Onde estavas tu quando eu fundava a
terra? [...] quando as estrelas da alva juntas alegremente canta­
vam, e todos os filhos de Deus rejubilavam?” (Jó 38.4-7). Por­
quanto seja claro que esta é uma passagem poética que lida com a
criação, a verdade da revelação de Deus é, todavia, real - a música
existia antes que os seres humanos fossem criados! Deus, o C ria­
dor do cosmo, é o Criador da música.
Somos feitos à imagem de Deus. Isto significa que somos do­
tados dos atributos de Deus. Deus é espírito, portanto, somos do­
tados de um espírito. Deus tem personalidade, e nós temos perso­
nalidade. Deus é criativo; nós também somos criativos. É verdade
que só Deus pode criar ex nihilo, ou seja, só E le pode criar algo do
nada. Mas nós, os seres humanos, podemos pegar algo e criar algo
completamente novo - algo que antes não existia. Deus é infinito
em cada uma das suas características; os seres humanos são finitos.
Todavia, sendo feitos à imagem de Deus, possuímos (embora em
medida lim itada) suas características.9
Deus é musical. A Bíblia nos apresenta um registro claro que Deus
Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo cantam. No Dia do Senhor,
Deus Pai cantará em seus filhos com grande alegria (Sofonias 3.17).
Concluindo a celebração da última Páscoa com os discípulos, Deus
Filho cantou um hino com eles (Marcos 14.26; Mateus 26.30) e Deus
Espírito Santo canta no coração do crente (1 Coríntios 14.15).
Porque Deus é musical e somos criados à sua imagem, tam­
bém somos m usicais.10A criatividade musical da fam ília humana
parece quase ilim itada. Uma pessoa munida com os doze tons da
escala crom ática11 pode c ria r uma sinfo nia sublim em ente
arrebatadora. Outra pessoa com esses mesmos doze tons pode cri­
ar uma canção country. Outra pode criar uma complicada peça de
jazz e, ainda outra, uma balada romântica. Usando apenas essa
paleta aparentemente limitada de doze tons musicais, compositor
após compositor têm achado uma esfera ilim itada de possibilida­
des musicais.
Como o músico, o compositor, cria a música? Paul Hindemith,
um dos mais influentes compositores do século X X , descreve a
inspiração m usical: “Algo - você não sabe o que - surge inespera­
MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 3 3
damente em sua mente - você não sabe de onde - e lá cresce você não sabe como — ganhando forma - você não sabe por quê” .12
Se o compositor profissional não sabe de onde vem a inspiração
m usical, não é de admirar que o público em geral encare a compo­
sição como um mistério.
Alguns afirmam que a criatividade musical é lim itada àqueles
dotados de alto grau de treinamento musical, ou àqueles especial­
mente talentosos. Contudo, pessoas comuns experimentam momen­
tos de inspiração musical quando um fragmento de melodia ou um
trecho de uma nova canção entra em sua consci- __________________
ência. Independente da qualidade destes peque­
nos momentos de inspiração musical, a maioria
Porque Deus é musical e somos
das pessoas pensa em seu pedacinho de música e
criados à sua imagem, também
o esquece. Sem a disciplina do treinamento mu­
somos musicais".
sical, é difícil preservar tais inspirações musicais
ou transformá-las em algo memorável.
Duas diferenças entre a pessoa comum e o
gênio concernentes à criação musical são a tenacidade do gênio
em desenvolver a idéia e a visão para transformar essa idéia em
algo de genuína significância.13 O compositor verdadeiramente
talentoso é impulsionado a perseguir cada idéia musical que lhe
vem à mente. Durante o período do dia em que o compositor está
acordado, alguma parte do seu cérebro está procurando pedaci­
nhos de música potencialmente valiosos nos despojos do mar da
inspiração. Quando estas idéias musicais vêm, o compositor as
agarra e as guarda. Para o compositor que é consumido pela paixão
de criar música, estas idéias musicais, nas palavras de Aaron Copeland,
“parecem estar implorando por vida própria, pedindo ao criador, ao
compositor, que encontre o invólucro ideal para elas, que desenvolva
uma forma, cor e conteúdo, que venham a explorar plenamente o
potencial criativo delas” . Por meio destas inspirações musicais, nos­
sas esperanças e sonhos mais profundos podem ser “incorporados
em uma estrutura translúcida de materiais sonoros” .14
A maioria das pessoas que tem interesse sério na música é ca­
paz de criar música. Da mesma forma que a pessoa não precisa ser
chefe de cozinha de classe internacional para desfrutar a arte da
culinária e beneficiar-se dela, assim a pessoa não tem de ser gênio
musical para gostar de compor música e gozar dos seus benefíci­
os. Todo músico sério, amador ou profissional, deve ser encoraja­
do a agarrar esses momentos de inspiração musical que brotam da
consciência e desenvolver cada um deles ao seu mais pleno poten­
cial. Compor música é um território relativamente inexplorado no
mundo do prazer musical para a maioria dos músicos.
O Propósito da Música
Asno prepóstero, que até hoje nunca leu
Para saber que a música fo i ordenada
3 3 4
JOHNATHAN DAVID HORTON
Para refrescar a mente do homem,
Depois dos seus estudos ou de sua dor habitual?
— Shakespeare
Digno és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder, porque tu
criaste todas as coisas, e por tua vontade são e foram criadas.
— Apocalipse 4.11
W illiam Faulkner, ganhador do Prémio Nobel da Literatura em
1954, abordou o propósito dos seus escritos no prefácio de sua
coletânea de trabalhos The Faulkner Reader. Ele disse que não
tinha escrito seus romances somente para entreter, ou ganhar di­
nheiro, ou ficar famoso, ou mesmo para criar arte. Antes, ele es­
creveu suas histórias para “enaltecer o coração humano” .15 Era
seu desejo ajudar seus leitores a transcender o mundo cotidiano
deles. Como escritor secular, ele buscava tocar e, talvez, transfor­
mar as vidas espirituais dos seus leitores. Esta visão representa
alta e bonita aspiração humana. Contudo, tão digna quanto tal meta
possa ser, há um propósito mais sublime e ainda mais nobre para a
música.
A música é um presente de Deus. Deus nos deu a música de
forma que pudéssemos comungar com E le . A música pode e serve
a muitos propósitos variados, mas a B íb lia deixa claro que sua
função mais importante é adoração. O cântico dos anciões é ins­
trutivo: “Digno és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder,
porque tu criaste todas as coisas, e por tua vontade são e foram
criadas” (Apocalipse 4.11). Deus é a fonte de toda a criação, e
toda a criação, inclusive a música, foi projetada para o prazer dEle.
A música foi projetada primeiramente para adoração, e este é o
seu propósito mais sublime e mais nobre. Este ponto não signifi­
ca, porém, que toda música deve ser música de igreja. Nem que
toda música deve ser religiosa. A própria B íb lia contém arte,secu­
lar.16O cântico de lamentação do rei D avi por Saul e Jônatas é um
exemplo. Exalta a vida destes dois heróis de Israel (2 Samuel 1.1927). A Bíb lia também exalta o amor humano. Cantares de Salomão,
embora seja comumente interpretado de modo alegórico (repre­
sentando Cristo e a Igreja), é em primeiro lugar um poema de
amor. (Veja Apêndice 5, “A M úsica e o Estilo de Adoração” .)
Em geral, a música de romance, amor, fam ília, amizade e de
todos os assuntos da vida são apropriadas para o cristão, e todas
têm mérito. Porém, o princípio predominante para a nossa música
é: Deus é a audiência primária! Se cantamos um cântico de adora­
ção diretamente a Deus, ouvimos “ a nossa canção” com nosso
amado ou amada, tocamos na sala de ensaio um concerto para
trompete de Mozart, ou apenas improvisamos com alguns ami­
gos, fazemos tudo com a consciência de que há um Deus que nos
vê. Não precisamos ir a E le em oração, como o filho que diz: “ Olhe,
mamãe” , para informá-la do que fizemos. E le vê tudo e entende a
MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 3 5
intenção de nossos corações até mais que nossos pais ou amigos
mais chegados (veja Salmos 139). Oferecemos toda nossa música
como ato de adoração. Todavia, se ela não pode ser uma glória
para o Senhor, não deve ter lugar na vida do cristão.
Claro que Deus está interessado em nossa adoração. Jesus nos
oferece insights maravilhosos sobre o cerne da adoração na con­
versação dEle com a mulher junto ao poço de Jacó (João 4). A
adoração, Jesus lhe diz, não é questão de lugar, mas de adequada
orientação a Deus: “Deus é Espírito, e importa que os que o ado­
ram o adorem em espírito e em verdade” (João
4.24).
O que queremos dizer quando falamos em
Deus está interessado em nossa
adorar a Deus em espírito? Porque Deus é es­
música. Sabemos do seu interesse,
pírito e porque nós somos feitos à sua imagem,
porque a Bíblia está repleta
também somos seres espirituais. Nossa dimen­
são espiritual nos toma bastante distintos de
de música.
outras criaturas na terra. Quando adoramos
Deus em espírito, o adoramos de certo modo
que é distintivo à nossa humanidade (entre os seres criados) e,
contudo, de certo modo também verdadeiramente salienta como
somos semelhantes a Deus. Na genuína adoração espiritual não
pode haver fingimento, pretensão. A adoração em espírito deve
ser honesta e sincera, porque Deus vê diretamente o centro de nos­
sos corações (1 Samuel 16.7).
Para adorar em verdade, temos de adorar conforme os padrões
e princípios encontrados nas Escrituras. Pelo fato de poucos assuntos gerarem maiores diferenças de opinião do que a música e a
adoração, começaremos com esta pressuposição: Toda opinião
tem de se submeter à autoridade das Escrituras. Nossa adora­
ção - inclusive a adoração que incorpora a m úsica - também
deve ser guiada pelos princípios das Escrituras. Então, o que as
Escrituras dizem sobre adoração, em particular, sobre a adora­
ção que envolve a música?
Prim eiro, Deus está interessado em nossa música. Sabemos do
seu interesse, porque a B íb lia está repleta de música. Há literal­
mente centenas de referências à música e à doração ao longo da
B íb lia, de Génesis 4.21, onde encontramos Jubal, que é “ o pai de
todos os que tocam harpa e órgão” , a Apocalipse 15.2-4, onde
vemos aqueles que venceram a besta cantando “ o cântico de
M oisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro” . O Livro de Sal­
mos é o grande hinário da B íb lia. A maioria dos estudiosos con­
corda que os salm os foram feitos para serem cantados. Além dis­
so, o Livro de Salmos provê riqueza de informação sobre música e
adoração - é um rico manual de adoração para o povo de Deus.
Segundo, cantar louvores a Deus não é sugestão, é uma orde­
nança divina. O Salmo 149 é particularmente instrutivo: 1) “ Cantai
ao SEN H O R um cântico novo” ; Deus quer que haja frescor em
nossa adoração. E le não quer que nossa música de adoração se
3 3 6
JOHNATHAN DAVID HORTON
Um estudo é uma peça
musical escrita para
explorar ou desenvolver
uma técnica particular. E
projetado com o peça de
estudo, mas é
frequentemente tocado em
concerto.
torne rotineira na tradição ou fique atolada na fam iliaridade. 2)
“ Cantai [...] o seu louvor, na congregação dos santos” ; sempre
que o povo de Deus se reúne, é o desejo de Deus que unamos
nossas vozes e corações na unidade do cântico. E 3) “ Cantai [com
alegria em vossa cama]” ; o povo de Deus deve entoar cânticos de
louvor, onde quer que esteja, quer só ou em companhia. A adora­
ção não é algo que deve ocorrer somente no edifício da igreja. A
adoração é um estilo de vida! Tudo em nossa vida deve ser uma
oferta de adoração ao Senhor. Toda nossa música deve ser um
louvor, uma glória ao Senhor! (Veja 1 Coríntios 10.31).
Terceiro, a B íb lia im plica que a música desempenha um papel
pedagógico. Pelo fato de que quando cantamos memorizamos sem
ter a intenção, somos instruídos a usar a música “ em toda a sabe­
doria, ensinando-[nos] e admoestando-[nos] uns aos outros, com
salmos, hinos e cânticos espirituais; cantando ao Senhor com gra­
ça em [nosso] coração” (Colossenses 3.16). A teologia viva de
uma congregação é revelada tanto nos cânticos que são cantados
quanto nos sermões que são pregados. As letras dos cânticos per­
manecem por muito tempo depois que o sermão é esquecido.
Alguns argumentariam que a igreja hoje tem de confiar so­
mente no Novo Testamento para obter direção nos assuntos da
adoração. Esta visão não se harmoniza com as Escrituras. Vamos
examinar o que o Novo Testamento diz sobre o Antigo Testamen­
to e particularmente sobre o Livro de Salmos.
Prim eiro, Jesus faz repetidas referências aos Salmos, estabele­
cendo assim sua confiabilidade. Segundo, cada seção do Novo
Testamento - os Evangelhos, o Livro de Atos, as Epistolasse o Livro
do Apocalipse - cita o Livro de Salmos. Terceiro, o apóstolo Paulo
está se referindo ao Antigo Testamento, o cânon das Escrituras então
contemporâneo a Paulo, quando escreve: “Toda Escritura divinamente
inspirada é proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para
instruir em justiça, para que o homem de Deus seja perfeito e perfei­
tamente instruído para toda boa obra” (2 Timóteo 3.16,17).
Ademais, o profeta Amós (Amós 9.15) e o apóstolo Tiago (Atos
15.16) nos falam que nos últimos dias Deus tornará a levantar o
tabernáculo de D avi. Quando a arca do concerto, o próprio símbo­
lo da presença de Deus, foi devolvida a Israel, D avi não a colocou
de volta em Siló, onde tinha estado durante a divisão da terra, nem
devolveu a arca ao novo local do Tabernáculo em Gibeão, onde as
ofertas queimadas e a música eram oferecidas pelos sacerdotes. A
arca do concerto foi trazida para Jerusalém e colocada em uma
tenda - o tabernáculo de D avi. Este novo tabernáculo caracteriza­
va uma nova ordem de adoração. Embora as ofertas queimadas e
as ofertas de comunhão fossem apresentadas diante do Senhor, as
instruções para os líderes de adoração eram simples e diretas: Fa­
çam petição, agradeçam e louvem ao Senhor. A adoração centrali­
zava-se em torno de duas atividades - oração e adoração musical.
E pôs perante a arca do SENHOR alguns dos levitas por ministros;
MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 3 7
e isso para recordarem, e louvarem, e celebrarem ao SENHOR,
Deus de Israel. E ra A safe o chefe, e Zacarias, o segundo, e depois
dele Jeiel, e Semiramote, e Jeiel, e Matitias, e Eliabe, e Benaia, e
Obede-Edom, e Jeiel, com alaúdes e com harpas; e Asafe se fazia
ouvir com címbalos. Também Benaia e Jaaziel, os sacerdotes, esta­
vam continuam ente com trombetas, perante a arca do concerto de
Deus (1 Crónicas 16.4-6).
É evidente que a adoração m usical jaz no próprio centro das
atividades que cercam a presença de Deus. Muitos acreditam que
a tenda, diferente do tabernáculo antes dela, era uma estrutura
aberta que permitia que os levitas tivessem acesso à arca do con­
certo, onde a glória de Deus habitava entre os querubins. Do mes­
mo modo, muitos pensam que o tabernáculo de D avi está sendo
restabelecido espiritualmente com relação à expressão musical na
adoração nesta geração.
Deus se preocupa com o conteúdo dos cânticos que cantamos
e com a atenção com que os cantamos. No Salmo 47, somos ins­
truídos a cantar cânticos de louvor a Deus, nosso R ei. Exam ine a
insistente repetição destes versículos: “ Cantai louvores a Deus,
cantai louvores; cantai louvores ao nosso R ei, cantai louvores. Pois
Deus é o R ei de toda a terra; cantai louvores com inteligência”
(Salmos 47.6,7). Evidentemente, se desejamos agradar Deus com
nosso cântico, temos de entender quem E le é. Se verdadeiramente
entendermos que E le é o Rei de toda a terra, não cantaremos irrefletidamente.
No ato sincero da adoração, o Espírito Santo penetra cada as­
pecto da música. Como nos lembra LaM ar Boschman: “E le não
só nos chama para adorar, mas nos capacita a adorar. O Espírito
Santo nos dá a música de adoração, as letras de adoração e o dese­
jo de adorar” .17 É a unção do Espírito Santo que faz a música pe­
netrar com a força de mudar vidas. A música sozinha não muda o
coração para melhor; somente quando é conduzida pelo Espírito
Santo é que há tal benefício.
O que significa Música?
Falar sobre música é como dançar sobre arquitetura.
— Thelonious Monk
Quando foi pedido ao compositor Robert Schumann que ex­
plicasse um estudo d ifícil, ele se sentou ao piano e tocou o estudo
outra vez. Visto que nenhuma palavra poderia explicar adequada­
mente o significado daquele estudo m usical, ele não usou nenhu­
ma. A pessoa que fez a pergunta obteve melhor entendimento do
estudo depois de ouvi-lo pela segunda vez? Não sabemos, mas a
probabilidade de mais insight foi maior na segunda audição do
que depois de uma explicação verbal. “ Quando se fala de música,
3 3 8
JOHNATHAN DAVID HORTON
o idioma é manco” .18
O cerne da dificuldade é que o significado na música é essen­
cialmente não-verbal. O que a música significa não pode ser redu­
zido a palavras; o significado m usical não se transmite pronta­
mente para o discurso proposicional. Este princípio permanece
verdadeiro até para com canções com letras. A música pode real­
çar o significado das palavras ou estar em conflito com o signifi­
cado delas, mas, em todo caso, a música não significa meramente
o que as palavras querem dizer.
Os compositores da Era Barroca acreditavam num conceito
chamado doutrina dos afetos. Eles criam que certos ritmos especí­
ficos e padrões melódicos específicos têm um significado particu­
lar que pode ser usado para realçar o significado do texto. De Platão
aos diais atuais, muitos pensam que a música tem um significado
inerente. Em outras palavras, alguns teoristas cogitam que a me­
lodia e o ritmo da música comunicam, em certa medida, um signi­
ficado específico para o ouvinte.20 Por contraste, outros asseve­
ram que a música expressa primariamente o eu interior e não é um
recipiente para o significado.21Neste capítulo, traçaremos um curso
diferente de ambas as visões.
Leonard Bemstein sugere que há quatro níveis de significado
na música: 1) significado narrativo-literário, 2) significado atmosférico-pictórico, 3) significado afetivo-reativo e 4) significado
puramente m usical.22Sob exame mais detido, vemos que cada um
dos três primeiros pode ser agrupado sob a categoria música de
programa, quer dizer, música instrumental que recebeu associa­
ções verbais ou visuais. O significado é sugerido pelo título ou
pelo “programa” explicativo fornecido pelo compositor ou editor. A
natureza do significado fornecido pode ser uma história, uma idéia,
um local, uma disposição de espírito ou qualquer outra coisa. A quar­
ta categoria que Bemstein sugere é chamada música absoluta ou
música pura. A música pura não tem significado extramusical.
S ig n if ic a d o
por
A
s s o c ia ç ã o
A música muitas vezes é chamada de língua universal; contu­
do, não é possível transm itir um pensamento verbal pela música
em si. O compositor, só por sua música, não pode comunicar um
significado preciso (conceito, idéia, pensamento). Uma idéia mu­
sical única ou uma composição inteira pode ganhar significado
por associação, mas tal significado é dependente do conhecimen­
to do ouvinte individual.
Os significados ganhos por associação não são universais. Por
exemplo, a música gospel de dois tempos pode ser para uma pes­
soa o som das reuniões de acampamento e renovação espiritual,
contudo, para outra, a mesma música de dois tempos pode ser o
som de cabaré reles, totalmente inadequado para uso no culto. Para
alguns, o som do órgão de tubo é o epítome da música espiritual;
para outros, é a própria essência do formalismo morto e sem vida.
MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 3 9
Estes significados não são inerentes à música. Antes, são produto
das associações pessoais com a música ou estilo musical.
O significado por associação é significado aprendido. Quando
as pessoas vêem na tela da televisão uma cena de oceano e ouvem
repetidamente um movimento de duas notas de semitom grave e
acentuado, como elas sabem que um tubarão está a ponto de ata­
car? Aqueles que assistiram o film e Tubarão conhecem o som,
porque aprenderam a associar este motivo musical muito distinti­
vo ao grande tubarão branco do film e; só parece ameaçador, por­
que está associado com um evento ameaçador. __________________
Tais associações são dinâmicas, não estáti­
cas. Nossa compreensão do significado de cer­
O significado é sugerido pelo
tos motivos ou estilos musicais está em cons­
título ou pelo 'programa'
tante mutação. Muitas pessoas associaram o
explicativo fornecido pelo
som do modo menor com a tristeza. Contudo,
a maioria das pessoas que ouve o cântico de
compositor ou editor.
Natal atualmente popular Não sabias Tu, ó
Maria?, acham-no emotivo e alegre em seu
tom. A música de E lv is Presley e a música dos Beatles eram o som
da rebelião quando esses artistas estouraram nas paradas de su­
cesso. Agora são música de fundo em elevadores. Evocam o con­
forto da nostalgia.
Não faz muito tempo eu estava ouvindo uma estação de rádio
cristã conservadora. Fiquei surpreso ao ouvir uma música popular
dos tempos de outrora que dez anos atrás tinha um som das can­
ções mais vendidas na década de 1940! Quando foi lançada, a
canção não seria tocada naquela estação de rádio por ser muito
“mundana” , mas hoje está na lista das músicas tocadas por ela. A
canção foi santificada pela idade?
M
ú s ic a
P ura
O que é “música pura” ? De acordo com Malcolm Budd: “É a
arte dos sons aos quais não são especificados interpretação não
auditiva” .23 O Código Morse é exemplo de sons aos quais não são
especificados interpretações não auditivas, visto que é composto
de sons organizados para o propósito expresso de comunicar uma
mensagem verbal. Porém, estes sons não servem para nenhum
propósito artístico ou estético. Por contraste, os sons da música
pura não têm significados não auditivos (isto é, linguísticos ou
verbais). São puramente significados musicais.
O significado na música não é antiintelectual, mas pode ser
descrito como não linguístico ou não conceituai. Embora compor,
organizar e tocar requeiram atividade intelectual de alta ordem, o
significado da música não é primariamente cognitivo. Ninguém
pode explicar como as simples ondas de som que assaltam o ouvi­
do humano ocasionam a transmissão dos impulsos nervosos para
o cérebro, “de forma que emergimos do engolfamento daquela
apresentação ordenada de estímulos sonoros como se tivéssemos
3 4 0
JOHNATHAN DAVID HORTON
vivido por um simulacro de vida, a vida instintiva das emoções” .24
O S ig n if ic a d o Versu s um S ig n if ic a d o
David Pass sugeriu que o significado não reside no artefato (a
peça m usical). Antes, o significado emerge da interação do que o
artista pretende e do insight que o ouvinte traz à experiência de
ouvir. E le sugeriu o seguinte modelo: designer/produtor - artefato
- intérprete. Neste modelo, o designer é o que cria a música e o
produtor é o que toca a música.
O designer/produtor podem ou
Novo Modelo para o Significado da Música
não ser a mesma pessoa. As no­
( _ Designer/Produtor J
Ç Artefato
Ç Intérprete ~^)
tas, pausas, som articulado, mar­
cas de expressão e instruções in­
O com positor/executor A própria m úsica
O ouvinte
cluem o próprio artefato. O in­
térprete é o que ouve a música e averigua seu significado. Deve
ser dito que não é possível tencionar qualquer coisa sem a presen­
ça de um artefato.25
Vamos considerar por um momento a intenção do designer/
produtor e o artefato conforme foi determinado. O que o ouvinte o intérprete - receberá da música é dependente da compreensão,
experiências e gosto pessoal que ele traz ao ouvir a experiência.26
Cada pessoa chega ao momento musical com uma história pessoal
única. Essa história vai necessariamente causar um impacto poderoso
na percepção que a pessoa tenha do significado da música. Da mes­
ma maneira que não há duas histórias que sejam semelhantes, não há
duas interpretações de significado que sejam semelhantes.
Por que uma peça m usical produz tais reações contraditórias
em uma diversidade de ouvintes? Suzanne Langer dá esta expli­
cação: “A música em sua forma mais sublime, embora claramente
simbólica, é um símbolo não consumado, [...] pois a designação
de um em vez de outro significado possível para cada forma nun­
ca é feito explicitamente” .27
A música não é apenas sons, é uma expressão do espírito. Por­
quanto o som é o veículo dessa expressão, a música nunca pode ser
explicada somente pelo físico. A expressão espiritual do executan­
te comunica de certo modo ao espírito do ouvinte aquilo que trans­
cende o idioma. Embora a habilidade do compositor e a habilida­
de do executante venham a influenciar o modo como efetivamente a
mensagem espiritual é comunicada, não é a técnica que fala, é o espí­
rito. A música que fala ao espírito tem de se originar no espírito.
Isto é verdadeiro independente da intenção do executante.
Audição como Execução
Uma “audição ” é em si uma execução, um processo ativo de dar
significado.
— Jeanne Bamberger
O jovem comum nos Estados Unidos gasta muitas horas por
MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 4 1
semana ouvindo música em cassete ou C D , indo a concertos e
assistindo programas de televisão e film es que apresentam músi­
ca. Depois de ouvir toda essa música, precisamos mesmo apren­
der a ouvir música? Há pouca dúvida de que um conhecimento
maior de música aumentará a qualidade da percepção musical.
Como observa Jeanne Bamberger: “ O que ouvimos depende do
que somos capazes de pensar para ouvir - mesmo que não perce­
bamos absolutamente que esse pensar esteja em andamento” .28 O
comentário faz sentido se você imaginar alguém numa festa onde
o “fundo” musical estava num volume de concerto de rock. Tal­
vez, ao ser-lhe perguntado o nome do sucesso que estava sendo
tocado, o indivíduo só tenha podido responder: “Desculpe, não
sei; só estava ouvindo” . Ele ouvia os sons, mas não tinha ouvido a
música. O ouvir ativo e atento requer concentrar a atenção mental
na música.
Mas por si só, prestar atenção não é o bastante. O ouvinte pre­
cisa de conhecimento e exposição significativa à música para com­
preender o que a música tem a oferecer. Se numa noite clara eu
estivesse no quintal de minha casa contemplando o céu e um as­
trónomo me perguntasse: “ Vê as estrelas?” Talvez quisesse dizer:
Vê as constelações e os planetas? Bem que eu poderia lhe respon­
der: “Sim , vejo as estrelas” , mas como principiante não veria o
que o astrónomo treinado vê. Para encontrar as constelações e os
planetas, preciso de conhecimento do que procurar nas estrelas.
De modo análogo, para ouvir os detalhes da estrutura da música,
preciso saber como a música é formada.
Você provavelmente já tem muitas e importantes habilidades
de audição, e pode ter um conhecimento maior de música do que
pensa que tem. Considere o exemplo da aluna que diz que gosta
de música. Se alguém lhe perguntasse, ela adm itiria que “bate
com as mãos ritmos simples, reconhece melodias que já ouviu
antes e até canta ou assobia ao menos algumas delas” .29Todavia,
ela provavelmente logo acrescentaria: “Na verdade não sei mui­
to sobre música” . No entanto, bater com as mãos ritmos e reco­
nhecer e tocar melodias são habilidades de alta ordem. Se você
já tem estas habilidades, tem sólidos fundamentos sobre os quais
construir.
Muitas pessoas aprenderam a dar sentido à música que conhe­
cem e amam. Embora possam não entender a terminologia precisa
dos músicos, a música que conhecem faz sentido para elas. Enten­
dem a sintaxe - a estrutura do seu significado. Da mesma maneira
que as crianças aprendem a sintaxe da língua falada muito tempo
antes de começar o estudo formal da língua, assim também apren­
demos de modo auricular e intuitivo a sintaxe da música, mesmo
que não estudemos música formalmente.
Contudo, não ouvimos música do mesmo jeito. Alguns consi­
deram a melodia a chave para a música: Ouvem a música horizon­
talmente. Outros ouvem a música verticalmente: Pensam em acor-
3 4 2
JOHNATHAN DAVID HORTON
Contraponto é a
com binação de duas ou
mais linhas melódicas
independentes, executadas
ao mesmo tempo. A maioria
das músicas é composta de
uma melodia predominante
acompanhada nas outras
vozes pela harmonia.
des e harmonia. Concentram-se nos sons que ocorrem ao mesmo
tempo. Ainda outros são fascinados pelo ritmo, ou a forma, ou as
cores tonais dos instrumentos em todas as suas combinações e
permutações.
Há muitas coisas diferentes para ouvir na música. Suponha que
tivéssemos de comparar ouvir música com olhar uma paisagem
panorâmica. Podemos escolher vê-la de diversas maneiras: da es­
querda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para bai­
xo. Podemos até tentar abranger o panorama inteiro de uma vez.
O que vemos é em grande parte afetado por onde escolhemos
enfocar nossa atenção. Assim é com a m úsica.30 Ouvimos música
de pelo menos três modos: o nível sensual/emocional, o nível
cognitivo/intelectual e o nível espiritual.
O N
ív e l
S e n s u a l / E m o c io n a l
As vezes ouvimos música e simplesmente deixamos que ela
nos inunde como os raios do sol quente. Ouvimos passivamente
sem qualquer esforço. Em outros momentos, permitimos que a
música mexa com nossas emoções. Consentimos que nossos sen­
timentos mais profundos venham à superfície. Essas emoções tor­
nam-se parte da experiência da audição. Neste nível, audições re­
petidas dão uma sensação de confortabilidade, uma sensação de
fam iliaridade com a experiência da audição. O ouvinte pode rela­
xar e desfrutar a música com um conhecimento razoável do que
vem a seguir.
O N
ív e l
C o g n it iv o / I n t e l e c t u a l
Às vezes ouvimos o modo como a música é feita, ou seja, as
operações internas da música. Ouvimos a melodia, a harmonia, o
contraponto. Consideramos a forma, a estrutura da música. Temos
prazer na música como arte. Desfrutamos os dons criativos do
compositor e do executante. Por vezes, gozamos o contexto da
música tanto quanto a própria música. Na ópera e balé (que tem
uma linha de história) e na música de programa (música dotada de
uma associação literária ou pictórica), ouvimos às vezes o enredo
ou os aspectos extramusicais para fornecer a chave para a música.
E neste nível, particularmente, que mais conhecimento se toma
essencial. Quanto mais se entende as operações internas da músi­
ca, mais se ouve o contexto da mensagem espiritual.
O N
ív e l
E s p ir it u a l
A música tem a capacidade notável, senão única, de falar diretamente ao espírito. Sempre somos afetados pelo conteúdo espiri­
tual da música. A melodia, harmonia, forma e outras característi­
cas técnicas da música existem com a finalidade de transmitir con­
teúdo espiritual. Isto é verdade quer se trate de música sacra ou
secular. O conteúdo espiritual pode tocar as emoções, mas o espi-
MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 4 3
ritual e o emocional não são a mesma coisa. A música fala à parte
mais profunda do indivíduo e expressa a linguagem indescritível
do espírito.
A Música e a Mídia
Para mim, a música que escolho ouvir ou navegar é importante,
porque alcança meu espírito e afeta minha vida.
— Janet Lynn Salomon
A música e a mídia influenciam nossa vida de numerosas e
complexas maneiras. Em geral, quanto maior a exposição, maior
o impacto. As tendências constantemente variáveis nos pentea­
dos, roupas e produtos prontos afetam-nos em nível superficial e
efémero. Por outro lado, as mudanças nas atitudes sociais relati­
vas às questões da moralidade afetam-nos num nível profundo e
eterno. Que efeitos as mudanças na música têm sobre nós?
Que haja um efeito importante parece óbvio. Precisamente
como e de que modo acontece não é tão óbvio assim. Um executi­
vo da televisão declarou diante de um auditório congressional que
era absurdo acreditar que a música influenciasse o comportamen­
to dos jovens. Apenas poucas semanas depois, num boletim para
anunciantes potenciais, o executivo garantiu aumento nas vendas
para qualquer empresa que anunciasse em seus programas. O exe­
cutivo podia garantir, porque estava convencido de que o veículo
transmissor, com seu uso da música e do vídeo, tem um efeito na
audiência. E le desprezou o efeito da música perante o auditório
congressional, porque os mecanismos precisos do efeito não são
bem conhecidos.
A dificuldade surge em procurar estabelecer uma relação de
causa e efeito entre ouvir certa música e depois comportar-se de
modo particular. O comportamento humano não é tão previsível
assim. Os efeitos causais são frequentemente sutis e complexos.
A s m udanças de atitude e com portam ento acontecem
gradativamente - pouco a pouco, um passo pequeno de cada vez.
Mas se o impacto e as influências causais da música na mídia são
sutis e complexas, tomando-as virtualmente imperceptíveis, isso
não quer dizer que sejam irreais ou sem importância. O ouvinte
pode não estar consciente das influências em ação na música con­
temporânea popular e, mesmo assim, ser influenciado.
O guru da mídia da década de 1960, M arshall M cLuhan, reco­
nheceu este fato numa era do rádio e televisão muito menos sofis­
ticada: “ Os efeitos da Tecnologia não acontecem no nível das opi­
niões ou conceitos, mas alteram as relações de sensação ou pa­
drões de percepção continuamente e sem resistência” .31
Uma das influências mais poderosas na geração atual é a Music
Television Video: a M TV criou essencialmente um novo tipo de
arte não-linear. E um casamento da música rock com film es de
3 4 4
JOHNATHAN DAVID HORTON
sequências rápidas. Considerando que os programas de televisão
típicos têm enredo e continuidade, a programação de música e
vídeo da M TV conta com o humor e a emoção. A idéia é fazer o
espectador/ouvinte sentir-se de certa maneira, não pensar de certa
maneira. A M TV é em si um contexto que busca abolir a idéia de
contexto. As imagens aparecem tão rapidamente que é impossível
o espectador editar ou filtrar a experiência.32Não é possível refle­
tir sobre a moralidade da situação segundo é apresentada. O es­
pectador/ouvinte só pode seguir a corrente da consciência confor­
me flu i. A moralidade da M TV infiltra - infecta, contamina - a
moralidade do espectador/ouvinte tão sutilmente e silenciosamente
quanto um vírus no corpo humano.
A música, a mídia e a M TV estão moldando as atitudes dos
jovens. Em recente pesquisa feita entre jovens de igrejas evangé­
licas e pentecostais, os pesquisadores descobriram que os jovens
que iam à igreja regularmente, mantinham atitudes para com a
moralidade que não eram notadamente diferentes dos jovens que
não iam à igreja. Os valores essenciais de ambos os grupos eram
manifestamente afetados mais pela música, mídia e M TV, do que
pelos pais ou a igreja que frequentavam.
A luta entre o bem e o mal é constante. A música é senão um
elemento na arena dessa luta. Contudo, é uma arena extremamen­
te importante, porque tem a capacidade de afetar a alma (inclusive
o intelecto e as emoções) e o espírito. A música e a mídia podem
ter influência positiva ou influência negativa. Sua influência mais
duradoura na atual geração de jovens pode ser que sirva mera­
mente como diversão.
Kenneth Meyers parece considerar este ponto quando observa
que há algo novo sobre a cultura popular de hoje, incluindo a
música: “ A moderna cultura popular não é apenas a mais recente
numa série de diversões. E , antes, uma cultura de diversão ” ,34Bob
Sorge pinta para o cristão um quadro gráfico e sóbrio desta cultu­
ra de diversão:
Você não ouve [Deus], porque você está ouvindo m uitas outras
coisas. O prah W infrey, Sally Jesse R aphael, Phil D onahue,
[D om ingão do Faustão, P rogram a S ílvio Santos]. Você está lam ­
bendo os dedos sujos das guloseim as da B abilónia. A noite que
poderia ser passada ouvindo as palavras de Jesus, é
desperdiçada diante da televisão. “E nquanto o M undo Q ueim a.”
Pobre do cristão que esqueceu de si m esm o assistindo novelas.
E com ida de abutres.
Você em barca no carro de m anhã e, a caminho do trabalho, sintoni­
za a estação de rádio que apresenta “rock para adultos contem porâ­
neos”. Dançando os jingles da Babilónia. Cantarolando as melodias
da Grande Meretriz. E então você clama: “O Senhor, quero ouvir
Tua voz”. “Não, não quer.” Você não sabia que no Livro de
A pocalipse eles lam entam a m orte das músicas da Babilónia?35
MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 4 5
A implicação das palavras de Sorge dá testemunho à necessi­
dade de prestar atenção cuidadosamente aos detalhes do que a vida
cotidiana tem a oferecer. Deixar-se levar pela vida passivamente,
absorvendo as mensagens musicais e outras da cultura popular
contemporânea, é viver uma vida afastada do que finalmente, e
em última instância, importa na vida.
Poslúdio: Fazendo Escolhas
Quando ouvimos estilos musicais pouco conhecidos, fazemos
bem em nos perguntar: Do que se trata esta música? O que signi­
fica? Até que entendamos a música, não estamos qualificados para
avaliar o seu valor. Claro que não podemos evitar ter uma resposta
emocional in icial à música que ouvimos. Contudo, devemos nos
dar conta de que nossa resposta in icial a uma nova peça m usical é
tão semelhante às músicas que ouvimos no passado quanto é à
música que estamos ouvindo no momento!
O
não-músico pode algum dia estar qualificado para fazer um
julgamento sobre o valor de uma obra musical? Num sentido prá­
tico, cada um de nós faz tais julgamentos diariamente. Formamos
opinião baseados no conhecimento ou na ignorância, mas faze­
mos julgamentos. Se o nosso julgamento deve ser válido, temos
de ouvir um número suficiente de composições de determinado
estilo ou género m usical, antes de formarmos um julgamento final
sobre um trabalho específico. Como Francis Schaeffer mostrou:
“A qualidade mais sublime de certo estilo pode ser melhor deter­
minada, não por ouvir os pronunciamentos dos outros, mas por
ouvir uma quantidade suficiente do todo, a fim de que você faça
seus próprios julgamentos” .36
Familiaridade direta com composições representativas de cer­
to género de música, é requisito indispensável para formar um
julgamento sadio sobre determinada peça musical daquele géne­
ro. Em palavras bastante simples, este princípio significa que, como
estrutura in icial de referência, devemos avaliar uma composição
específica de jazz, folk, rhythm and blues, canto gregoriano ou
barroco, comparando-a com outras composições do mesmo géne­
ro com as quais temos experiência direta.
O
verso deste princípio é que não devemos escolher música
simplesmente por causa de sua popularidade. O padrão para
ser “ merecedor” é primariamente o mérito técnico da composi­
ção m usical. Se escolhemos ouvir uma sinfonia de M ozart in ­
terpretada pela Filarm ónica de Nova York, uma balada popular
irlandesa executada pelos The Chieftains,' um refrão de jazz
tocada pela grande banda de Stan Kenton, uma balada country
por R ick y Skaggs, uma execução de blues feita por B . B . King
ou uma canção gospel cantada por A lv in Slaughter, nossa per­
gunta in icia l deve ser a mesma: Esta é composição merecedora
do seu género?
3 4 6
JOHNATHAN DAVID HORTON
Uma segunda estrutura de referência requer que nos concen­
tremos na cosmovisão apresentada na m úsica. Em particular,
estamos interessados na ideologia e normas morais, explícitas ou
im plícitas, da composição. Com respeito a esta estrutura de refe­
rência, tanto a música séria quanto a popular devem ser avaliadas
da mesma maneira que avaliamos outras obras de arte. Uma per­
cepção comum, mas equivocada, é que a música séria e as belas
artes têm um nível mais alto de moralidade do que a música popu­
lar e as artes populares. Isto simplesmente não é verdade. Todo
compositor, músico e artista tem uma cosmovisão. Essa cosmovi­
são pode se harmonizar com as Escrituras, ou não. Não endossa­
mos uma composição musical ou obra de arte como ideologica­
mente sã ou moralmente boa, só porque satisfaz alto padrão de
mérito técnico. “Como cristãos, temos de ver que só porque um
artista - mesmo um grande artista - retrata uma cosmovisão por
escrito ou na tela, não sig n ifica que devemos aceitar essa
cosmovisão automaticamente.” 37
nartcôi ScÁaefóen
mm
Francis Schaefler suge­ ando uma obra de arte apenas por di­
riu quatro padrões básicos nheiro ou para ser aceito, seu trabalho
para avaliar uma obra de carece de validez. A música brota do
eu real - do eu autêntico?
arte. Embora Schaeffer fale
3. Conteúdo intelectual. Todos os
primariamente da pintura, os
padrões aplicam -se fa c il­ artistas têm uma cosmovisão que se
evidencia pelo trabalho. Não importa
mente à música.
I
/ 'xcelência técnica. A qualida­quão grande ou famoso seja o artista
de técnica da música deve ser consi­ ou músico, o corpo do seu trabalho
derada totalmente à parte de sua deve ser julgado pela luz da verdade
bíblica. De fato, quanto maior o artis­
mensagem ou de sua cosmovisão. A
música é bem elaborada - melodia, ta, maior será o impacto de uma cos­
estrutura harmónica, ritm o, forma, movisão negativa.
4. A integração do conteúdo com o
instrumentação/orquestração, con­
traponto, unidade/contraste, e assim por veículo. O quanto se adaptam a forma
diante? Pode haver variados graus de e estilo musicais ao conteúdo da cos­
excelência técnica em cada um destes movisão? O quanto se ajustam entre si
aspectos. Todas as outras coisas sendo os vários aspectos da música? Uma
iguais, quanto mais se sabe sobre mú­ fuga para quatro vozes no estilo de J.
sica, mais precisa será a avaliação da S. Bach executada por brinquedos
musicais soaria ridícula, mesmo que a
qualidade técnica da música.
composição
seja de primeira linha e o
2.
Validez. O músico é honesto
desempenho
im pecável. (Schaeffer,
consigo mesmo, com o género de
Art
&
The
Bihle
[A Arle & a Bíblia)
m úsica e com sua cosmovisão? A
[Downers
Grove,
Illin o is: InterVarsity
questão aqui tem a ver com a integri­
Press,
1973
],
pp.
41-48.)
dade do músico. Se o artista está cri­
MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 4 7
O Catecismo Westminster Menor nos conta que o objetivo prin­
cipal de todo ser humano é “ glorificar Deus e agradá-lo para sem­
pre” . A música que você escolhe deve glorificar Deus e aumentar
seu prazer nEle. 1 Coríntios 10.31 diz: “ Quer [..] façais outra qual­
quer coisa, fazei tudo para a glória de Deus” . Deus nos deu a mú­
sica para que nós a desfrutássemos - tanto a música sacra quanto
a secular. O mundo da música está aberto diante de você. Você é
convidado a ir numa jornada, uma aventura incrível, para experi­
mentar novos e gloriosos mundos da música.
Revisão e Questões para Discussão
1. Quando alguém diz: “Essa música é tão bonita!” , em que estilo
de música você imediatamente pensa? Em que sua mãe pensaria?
Sua avó?
2. Com relação ao estilo musical na adoração, como reconcilia­
mos os princípios aparentemente contraditórios de 1 Timóteo 4.4,5 e
1 Coríntios 8.9-13?
3. O mesmo estilo de música é apropriado para toda cultura?
Explique.
4. Toda cultura precisa de uma variedade de estilos para expressar
a vasta gama de adoração? Explique.
5. O que o autor quer dizer quando diz: “A música de romance,
amor, família, amizade e de todos os assuntos da vida são apropriadas
para o cristão e todas têm mérito. Porém, o princípio predominante
para a nossa música é: Deus é a audiência primária!” ?
6 .0 que você acha que Thelonious Monk quis dizer quando disse:
“Falar sobre música é como dançar sobre arquitetura” ? Você concorda?
7. O que o autor quer dizer quando fala de audição como desem­
penho? Ilustre.
8. Avalie os quatro critérios que Francis Schaeffer estabeleceu para
avaliarmos uma obra de arte, usando duas composições musicais com
as quais você esteja familiarizado - uma sacra e uma secular.
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Notas bibliográficas
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cisco: Harper & Row Publishers, 1993), p. 69.
2. A lice Potosky, editora, Testimony to Music (Reston, Virgínia:
M EN C, 1986), p. 15.
3. Isto não deve implicar que todas as suas músicas tenham letras.
4. Alfred North Whitehead, TheAims o f Education (Nova York:
The M acm illan Publishing Company, 1929), p. 79.
5. Abraham A. Schwandron, Aesthetics: Dimensions fo r Music
Education (Washington: M EN C, 1967), p. 17.
6. En trevista com D avid van K o everin g , M ighty Horn
Ministries, Cleveland, Tennessee, Maio de 1985.
7. H . E . Huntley, The Divine Proportion (Nova York: Dover
Publications, 1970), p. 22.
8.EncyclopediaBritannica, 15.aedição; no verbete: “Music, Western.”
9.
Francis A . Schaeffer, Art and the Bible (Downe
Illin o is: InterVarsity Press, 1973), p. 34.
10. S tan ley M . H orton, ed ito r, S ystem atic Theology
(Springfield, M issouri: Logion Press, 1994), pp. 250-253.
11. Na música do mundo ocidental cada oitava é dividida em
doze semitons iguais, os quais então se repetem para cada oitava.
A oitava é um fenómeno naturalmente ocorrente, no qual as notas
soam “parecidas” quando vibram em múltiplos de dois, por exemplo,
Lá = 440 é uma oitava mais alta que Lá = 220. Portanto, só há doze
notas e as duplicações de suas oitavas para delas criar música.
12. Paul H indem ith, A C om poser’s World (Cam bridge,
Massachusetts: Harvard University Press, 1952), p. 57.
MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 4 9
13. Ibid., p. 60.
14. Aaron Copeland, Copeland on Music (Nova York: W. W.
Norton & Company, Incorporated, 1960), p. 63.
15. W illiam Faulkner, The Faulkner Reader (Nova York: The
Modern Library, 1954), p. ix .
16. Schaeffer, Art, p. 21.
17. LaM ar Boschman, A Heart ofWorship (Orlando, Flórida:
Creation House, 1994), p. 38.
18. George Steiner, Real Presences (Chicago: The University
of Chicago Press, 1989), p. 19.
19. Joseph M achlis e Kristine Forney, The Enjoyment ofMusic,
6.a edição (Nova York: W. W. Norton & Company, Incorporated,
1960), p. 260.
20. C alvin Johansson, Discipline Music Ministry: Twenty-first
Century Directions (Peabody, M assachusetts: Hendrickson
Publishers, 1992), p. vi.
21. Ralph Vaughn W illiam s, TheMaking ofMusic (Ithaca, Nova
York: Com ell University Press, 1955), p. 55.
22. Leonard Bernstein, The Joy ofM usic (Nova York: Simon
& Schuster, 1954), p. 15.
23. Malcolm Budd, Music and the Emotions: The Philosophical
Theories (Nova York: Routledge, 1985, 1992), p. ix .
24. Copeland, On Music, p. 24.
25. Pass, Music, pp. 42, 43.
26. Ibid.
27. Susanne K . Langer, Philosophy in a New Key. A Study in
the Symbolism ofReason, Rite, and Art (Cambridge, Massachusetts:
Harvard U niversity Press, 1942, 1951), p. 200.
28. Jeanne Bamberger, The MindBehind the Musical Ear: How
Children D evelop M usical Intellig en ce (C am b rid g e,
Massachusetts: Harvard University Press, 1991), p. 5.
29. Ib id ., p. 7.
30. Jay D . Zorn, Listening to Music (Englewood C liffs, Nova
Jersey: Prentice-Hall, 1991), p. 3.
31. M arshall M cLuhan, Understanding Media: The Extensions
ofM an (Nova York: Signet Books, 1964), p. 33.
32. Quentin J. Schultze et al., Dancing in the Dark: Youth,
Popular Culture and the Electronic Media (Grand Rapids: W illiam
B . Eerdmans Publishing Company, 1991), pp. 203-207.
33. Josh M cDowelI e Bob Hostetler, Rightfrom Wrong (D allas:
Word Publishing, 1994), pp. 8, 9.
34. Kenneth A . M yers, All God’s Children and Blue Suede
Shoes: Christians and Popular Culture (Westchester, Illin o is:
Crossway Books, 1989), p. 56.
35. Bob Sorge, In His Face (Canandaigua, Nova York: Oasis
House, 1994), p. 56.
36. Schaeffer, Art, p. 41.
37. Best, Music , p. 73.
10
O Lugar da
Literatura
no
Pensamento
Cristão
Twila Brown Edwards
3 5 2
TWILA BROWN EDWARDS
No princípio, era o Verbo [...] e o Verbo era Deus.
— João 1.1
Jesus não era teólogo. Ele era Deus que contava histórias.
— Madeleine L ’Engle'
ecentemente meu marido e eu visitamos uma grande e nova
livraria da Bames & Noble. Tantos livros e milhões de pa­
lavras! Livro s sobre religião, arqueologia, computadores,
viagem e jardinagem. Livros imaginativos de histórias, drama e
poesia. Livro s infantis, alguns de papelão, outros de pano para
que pudessem ser lavados, muitos outros livros com ilustrações
primorosas. Percorremos um longo caminho desde que o primeiro
e grande livro, a B íb lia de Gutenberg, foi impresso na prensa de
tipos móveis em 1456. Embora tenhamos uma sociedade altamente
tecnológica, os livros nos são incrivelmente importantes. Am iza­
des nascem e são alimentadas pelo compartilhamento de livros.
Os livros nos fazem rir, chorar, às vezes até causam mudanças
dramáticas em nossa vida. Quando nosso filho era jovem , nossa
fam ília viajava muitas vezes e, assim, passávamos muitas horas
juntos na estrada lendo livros, principalmente literatura imagina­
tiva. Ríamos bastante com as travessuras de Huck Finn e Tom
Sawyer. Ficávamos sentados, admirados e silenciosos ao término
da descrição que Madeleine L ’Engle fez do nascimento de um
unicórnio.2Choramos juntos silenciosamente quando percebemos
que a irmã de Laura Ingalls, M ary, nunca mais voltaria a ver. Com
frequência nos sentíamos mais unidos uns aos outros como fam í­
lia por causa das experiências da leitura compartilhada.
Hoje, percorrendo à esmo esta livraria enorme, pensamos no
lugar da leitura de livros na vida do cristão. Com tantos livros
disponíveis, como os cristãos podem fazer escolhas sábias? Ou
muitos cristãos escolhem não ler literatura imaginativa absoluta­
mente? É mais fácil assistir televisão do que ler? Neste capítulo,
desenvolvo uma abordagem cristã à literatura imaginativa. Creio
que ler a chamada grande literatura é parte essencial do desenvol­
vimento de um pensamento Cristão saudável.
Minha crença na importância da literatura está fundada na pe­
dra fundamental da própria literatura — a Palavra. O significado
poderoso da literatura para uma cosmovisão cristã tem a ver com
a ligação que vejo entre a palavra literária e o Verbo divino. Michael
Edwards também sugeriu a ligação crucial entre Deus e a língua
literária: “Deus não só tem um idioma, mas [...] é um idioma, ou
ao menos [...] um modo de descrevê-lo, ou um aspecto dEle, é
chamá-lo de ‘a Palavra’ .” 3 Edwards opina que:
R
Não apenas a segunda Pessoa da Trindade, mas a terceira Pessoa tem
esta referência linguística, pois Deus também é o Espírito, ou o So­
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
pro, e em bora o pneum a [o espírito, o sopro] tenha um a variedade
absorvente de significado, como tem o logos [a palavra, a expres­
são], sugere o sopro que é a base da fala. M esmo na história da cria­
ção que abre a Bíblia, observa-se que a narrativa do Espírito ou do
Sopro de Deus que ‘se m ovia sobre a face das águas’, é seguida im e­
diatam ente por sua fala: ‘E Deus disse: Haja luz’, como se seu sopro
estivesse se movendo em parte com a finalidade de expressar essas
palavras.4
Deus criou o mundo pela Palavra. Além disso, quando o mun­
do - inclusive o idioma - caiu, E le redimiu o mundo pela Palavra,
Jesus Cristo, o Verbo. A literatura é importante, porque os artistas
literários são “ subcriadores” . Eles usam palavras para criar um
mundo imaginário no qual entramos como leitores, a fim de nos
vermos a nós mesmos e uns aos outros com mais nitidez como
divinamente criados, como pecaminosamente caídos e como
redimidos pela Palavra, de forma que quando voltamos para o nosso
próprio mundo, tenhamos uma vida mais rica.5
Este capítulo explorará o modo como a literatura liga-se com
quatro doutrinas importantes da fé cristã: A Criação, A Queda, A
Redenção e o Pentecostes. Tentarei responder as seguintes per­
guntas: 1) Por que a criatividade do artista literário é importante
para o cristão? 2) Por que as representações literárias da Queda
são importantes para o cristão? 3) Por que as representações lite­
rárias da Redenção são importantes para o cristão? 4) Por que a
literatura que emprega as imagens do Pentecostes é importante
para o cristão?
A Criação
A I m p o r t â n c ia
da
C r ia t iv id a d e
do
A
r t is t a
L it e r á r io
Deus começa sua história descrevendo o poder criativo das pa­
lavras sobre o caos: “E a terra era sem forma e vazia; e havia tre­
vas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a
face das águas. E disse Deus: Haja luz. E houve luz” (Génesis
1.2,3, ênfase minha). No relato que Deus faz da Criação, o cená­
rio, a terra, estava sem características distintivas, sem habitantes e
no escuro. A primeira menção do Espírito retrata o sopro de Deus
que fala Palavras poderosas, dando nascimento a partir do caos a
um mundo de ordem.
O
mundo de nossa vida também está muitas vezes caótico. A
importância da criatividade dos artistas literários está relacionada
diretamente com as nossas trevas caóticas. Nessas trevas, os artis­
tas literários não diferentes de Deus à cuja imagem divina eles são
criados vêm com seu mundo de história, moldados e criados pela
estrutura e forma que falam ao caos dentro de nós. Entrando no
mundo criado dos artistas literários, embora ele possa ser um Éden
caído, somos capazes de restaurar e remodelar um pouco o nosso
3 5 3
3 5 4
TWILA BROWN EDWARDS
próprio Éden perdido. Por exem plo, o artista p articipa na
criatividade do próprio Deus quando molda um mundo onde uma
fera, como nós, pode ser amada por uma princesa cujo beijo trans­
forma algo de nossa feiúra em beleza. A história cura um pouco de
nosso ser interior caótico. A beleza da estrutura e forma criada
pelo talento do artista - talento este dado por Deus - , nos devolve
um pouco da beleza de nosso próprio Éden perdido.
Deus não apenas controlou o caos e fez nosso mundo, mas
também criou a humanidade segundo a sua imagem divina. Como
M ichael Edwards ressalta, Deus, como Criador, nos formou “per­
sonagens” por sua palavra e sopro. Por sua Pa­
lavra, E le nos fez à sua imagem; e por seu so­
Entrando no mundo criado dos
pro em nossas narinas, Ele nos deu o fôlego de
vida. “Nossa própria existência depende de um
artistas literários, somos capazes de
ato de linguagem” . Além disso, o apóstolo
restaurar e remodelar um pouco o
Pedro explica que os crentes estão “ sendo de
nosso próprio Éden perdido.
novo gerados, [...] pela palavra de Deus, viva
e que permanece para sempre” , e acrescenta
que “ esta é a palavra que entre vós fo i
evangelizada” (1 Pedro 1.23-25, ênfase minha).6Deus, então, nos
deu nascimento e renascimento segundo a sua imagem por sua
Palavra e Sopro. Se o artista literário é verdadeiro em suas obser­
vações sobre a natureza humana, ele criativamente dá à luz a per­
sonagens imaginários que nos ajudarão, quando lermos, a achar a
imagem de Deus em nós mesmos.
Não só na criação de mundos, mas também na criação dos perso­
nagens, o artista terrestre é um subcriador que imita Deus. Pelos ta­
lentos dados por Deus, os artistas literários criam personagens que
nos lembram de que somos criados à imagem de Deus, mesmo que
nos vejamos abominavelmente caídos. Por exemplo, ler contos de
fadas pode ajudar uma mãe desesperada a perceber que ela nem sem­
pre parece aos filhos como uma madrasta má ou até uma bruxa, mas
que ela, às vezes, parece como a fada madrinha boa e bonita.
Os contos de fadas também ajudam as crianças a dar sentido ao
caos do seu mundo. Walter Wangerin Jr., por exemplo, conta como os
contos de fadas lhe ajudaram a processar a confusão que, quando
menino, tinha sobre os humores bons e ruins de sua mãe.7 Quando
sua mãe lhe dava um beijou de boa noite amorosamente, ela cheirava
a rosas e ele se sentia contente e seguro pelo abraço carinhoso dela.
Na manhã seguinte, ele se levantava esperando encontrar as mesmas
respostas amorosas dela. Porém, era confrontado por uma mulher que
repreendia-o, porque ele tinha se levantado tarde, ralhava para que se
vestisse depressa e fosse à escola, e ameaçava-o (e cumpria a amea­
ça) fazê-lo ir a pé à escola, caso não ficasse pronto na hora certa. Ele
se sentia rejeitado, culpado e confuso. Tomou-se retraído por não sa­
ber como entender suas “duas mães” .
Porém, certo dia a professora leu para a classe a história da
Branca de Neve com suas “ duas mães, uma original e uma ma-
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
3 5 5
drasta” . Este conto de fadas estimulou a imaginação do jovem
Walter, libertando-o do medo de que havia algo nele que causava
a mudança terrível da sua “mãe noturna” para a sua “mãe matuti­
na” . E le pôde subconscientemente processar o __________________
fato de que o mesmo ser humano, até uma mãe,
"A história que forma o universo
é às vezes extremamente amoroso e, em ou­
da criança também forma a criança
tras ocasiões, é tenso e irrefletido. Agora ele
podia evitar conduzir a falta de amabilidade
- e pela criança, o homem."
da outra pessoa para dentro dele de modo
— Walter Wangerin Jr.
destrutivo. O conto de fadas tinha comunicado
à criança algo importante sobre a humanidade.
Sustento que, em termos doutrinários, a Verdade (a Verdade de
Deus) que a criança aprendeu por este conto de fadas foi que sua
“mãe matutina” era a mulher que permitia que a queda obtivesse o
melhor dela, enquanto que a “mãe noturna” era a mulher que per­
m itia que sua imagem criada brilhasse por sua natureza caída.
Muitas mães, lendo Wangerin, podem se identificar fortemen­
te, talvez redentoramente, com esse procedimento duplo para com
os filhos. A história ajuda a mãe a lembrar que ela não apenas está
miseravelmente caída, mas também é criada à imagem de Deus, e
ajuda a criança a estabelecer ordem em seu mundo caótico. “A
história que forma o universo da criança também forma a criança
- e pela criança, o homem. A memória de um conto de fadas ar­
dente pode in fluenciar o comportamento” .8
Até aqui procurei fundamentar meu argumento na importância
da literatura na teologia da Criação, estabelecendo paralelos entre
a criação divina de uma ordem boa no mundo e na humanidade,
e a criação literária de uma ordem boa no mundo e na vida de
personagens e leitores. Meu terceiro fundamento bíblico ao
nosso argumento revela uma interseção fascinante deste parale­
lo divino-literário.
Na história da Criação em Génesis, o próprio Deus, que tinha
acabado de criar o universo nomeando-o, concede o poder da no­
meação, do idioma, das palavras (os fundamentos da literatura)
aos humanos. Depois de haver criado os animais, “ o SEN H O R
Deus [...] os trouxe a Adão, [...] e tudo o que Adão chamou [no­
meou] a toda a alma vivente, isso foi o seu nome” (Génesis 2.19).
Da mesma maneira que Deus tinha criativamente falado: “ Haja
luz. E assim foi” , assim Adão criativamente falou: “ Seja chamado
‘Avestruz’ . E assim foi” . Ao dar nome ao mundo, que foi derivado
da palavra de Deus e era o texto (falado) de Deus, agora também
se tomou o texto de Adão.9
M ichael Edwards afirm a que embora seja a palavra de Deus
que tenha criado os anim ais, a “ nomeação” de Adão ajudou a
identificar a natureza destas criaturas. “ Depois que a toda-poderosa palavra de Deus tinha criado o mundo, a poderosa pala­
vra humana de Adão, nomeando, pôde entrosar-se com o mun­
do e m odificá-lo” .10
3 5 6
TWILA BROWN EDWARDS
Os artistas literários podem participar desta poderosa qualida­
de da palavra humana de dar nomes. Esta capacidade de dar no­
mes, documentada na passagem bíblica da Criação, ajuda-nos a
integrar nossa teologia com nossa teoria literária, e dar uma res­
posta energética à pergunta que abre esta primeira seção: Por que
a criatividade do artista literário é importante para o cristão?
Prim eiro, a criatividade do artista literário ajuda a vencer nos­
so caos e nos restabelecer em algum sentido com uma ordem
edênica. Segundo, a criatividade do artista literário nos ajuda a
perceber a imagem divinamente criada em cada um de nós. E ter­
ceiro, a literatura criativa pode ser vista como a continuação da
comissão divina de usar a palavra para nomear, ou identificar, a
verdadeira natureza de nós mesmos e do universo que nos cerca.
Concluo esta discussão sobre a Criação com dois exemplos de
artistas literários que cumpriram essa comissão original, concen­
trando-se criativamente no poder da nomeação da palavra literá­
ria. Ao recontar para crianças a história da Criação, Jean Richards
retrata humorística e imaginativamente o esforço de Adão para
dar nome à borboleta:
jfyM ent ‘TZectá &6eatento*t
‘Bela Adormecida’ , que conta como a
G . K . Chesterlon (1874-1936),
importante escritor cristão, acredita­ criatura humana era abençoada com
va que os contos de fada o ti­ todos os presentes de aniversário, con­
nham preparado para crer no tudo amaldiçoada com a morte; e tam­
cristianismo. “Minha primeira e bém como a morte talvez possa ser
suavizada por um sono. Porém, não
últim a filo so fia, na qual creio
com certeza ininterrupta, apren­ estou interessado em quaisquer dos
di no berço. [...] As coisas em estatutos distintos da terra dos duendes,
que mais cri então, as coisas que mas com o espírito inteiro de sua lei,
mais creio agora, são as coisas que aprendi antes de falar e que per­
chamadas contos de fada” (p. manecerão quando eu não puder mais
\ -* 49). Chesterlon aprendeu a ética escrever. Estou interessado em certa
i
e a filosofia de “ ser alimentadomaneira de olhar a vida que foi criada
com contos de fada. Se eu esti­ em mim pelos contos de fada” (p. 50).
vesse descrevendo-os em detalhes, Para mais pormenores de sua visão so­
poderia notar muitos princípios no­ bre os contos de fada, veja o Apêndice
6, “G. K . Chesterlon e o Poder dos Con­
bres c saudáveis que surgem deles.
[...] Há a lição da ‘Cindercla’, que é a tos de Fada” , no final deste livro.
Extraído de Gilbert K . Chesterlon,
mesma do M agnificat - exaltavit
humiles |a exaltação da humildadej. “ The Ethics of Efland” (A Ética da
Há a grande lição de ‘A Bela e a Fera’ Terra dos Duendes), in : Orthodoxy
- uma coisa deve ser amada antes que (Ortodoxia). Doubleday, Image Books,
seja amável. Há a alegoria terrível da Nova York, Nova York, 1973.
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
Deus pensou
que faria
algo diferente.
Pegou um a pitada de barro
e fez um corpo minúsculo
com um a cabeça m inúscula e seis pernas em miniatura.
Então acrescentou duas asas.
Deus achou que as asas pareciam planas demais,
então pintou-as com cores luminosas.
Ele colocou-a no ar,
e a criatura começou a agitar as asas.
“Que esquisito” , disse o Homem.
“Acho que vou cham á-la de Borborema” .
Mas Deus franziu as sobrancelhas.
O H omem pensou e pensou.
Talvez Borborema não fosse o nome certo.
“Já sei!”, gritou ele.
“Borboleta!”
No instante em que o Homem
disse a palavra,
A borboleta elevou-se graciosamente,
voando pelo céu."
Até uma criança entende que chamar algo (ou alguém) de uma
qualidade que não possui, constitui uso desonesto da língua. Há
um poder peculiar em dar o nome que identifica com precisão a
verdadeira natureza da coisa ou do ser nomeado. Ao nomear com
exatidão as qualidades de um personagem, às vezes o artista lite­
rário ajuda nossas habilidades e talentos ocultos a levantarem
vôo. Então, a literatura pode ser auxílio para que nos entenda­
mos a nós mesmos e ao nosso mundo, dessa forma identifican­
do e desenvolvendo essas qualidades boas que Deus tornou ine­
rentes em nós e em toda a sua criação. Os psicólogos dizemnos, por exemplo, que crianças inteligentes que muitas vezes
são chamadas de “ burras” ou “ ignorantes” , podem ter um de­
senvolvim ento mental muito abaixo do potencial delas. Da
m esma m aneira que Deus estrem eceria com o nome de
Borborema para uma criatura feita para voar, assim E le nos
fran ziria as sobrancelhas quando chamássemos outras pessoas
de certo modo que estreitasse as possibilidades delas descobrir
a imagem divina nelas. Nomeando corretamente uns aos ou­
tros e a nós m esm os, atividade na qual o artista literário
grandemente pode nos assistir ajuda-nos a perceber nosso poten­
cial como criaturas feitas à imagem de Deus.
3 5 7
3 5 8
TWILA BROWN EDWARDS
Madeleine U Eng le, que diz que “ todas as grandes obras de
arte são ícones da Nomeação” ,12também está interessada em aju­
dar seus leitores a conscientizarem-se do potencial divino deles
pela nomeação criativa. Em seu romance A Wind in the Door (Um
Vento na Porta), U Engle cria personagens que sugerem que pode­
mos ou nos compartimentar uns aos outros por nossos atos odio­
sos, ou nos nomear uns aos outros por nossos atos amorosos.
Meg, jovem que repetidamente teve experiências negativas com
o diretor da escola, é desafiada por uma escolha: enfatizar as qua­
lidades ruins do senhor Jenkins ou lembrar-se do ato mais gentil
que ela soube a respeito dele. Embora preferisse odiar o senhor
Jenkins, no fim ela se esforça para lembrar o ato mais amável
dele. C alvin, o bom amigo de Meg, é um jovem extremamente
pobre que certa vez lhe falara sobre um ato amável feito pelo se­
nhor Jenkins. Calvin fora forçado a ir para a escola usando uns
sapatos que sua mãe lhe comprara numa loja de artigos usados.
Meg se lembra da história de C alvin:
C ustaram -lhe [para a m ãe de Calvin] um dólar, que era m ais do
que ela podia gastar, e eram sapatos fem ininos clássicos, o tipo de
sapatos pretos de am arrar que as m ulheres velhas usam , e no m í­
nim o três tam anhos m enores que o meu. [...] Q uando os vi, ch o ­
rei, e então m inha m ãe chorou. [...] P eguei um serrote e cortei os
saltos dos sapatos, depois recortei a biqueira, de form a que p u ­
desse esprem er m eus pés dentro dos sapatos, e fui para a escola.
[...] D epois de alguns dias, o senhor Jenkins m e cham ou a seu
gabinete e disse-m e que tinha notado que eu crescera m ais que os
m eus sapatos e, por acaso, ele tin h a um par ex tra de sapatos que,
achava ele, m e serviria. Ele tinha tido m uito trabalho p ara fazer
com que tivessem a aparência de usados, com o se ele não tivesse
saído e os com prado p ara m im .13
Embora Meg preferisse contar uma das muitas histórias nega­
tivas que ela sabia do senhor Jenkins, ela repetiu a história do
amável presente de sapatos que ele fez. A escolha de Meg de no­
mear em vez de compartimentar o senhor Jenkins, suscita o me­
lhor da natureza do diretor, ajudando a ele e à comunidade onde
vive a crescerem em bondade, em vez de permanecerem prisio­
neiros em seu ódio.
O leitor desta história também é nomeado, visto que o conta­
dor de histórias nos ajuda a ver nosso poder de nomeação do bem
sobre o mal. A nomeação feita pelo artista literário desenvolve o
caráter do leitor. Assim como a poderosa palavra da nomeação de
Adão, a nomeação do artista literário ajuda a restaurar um pouco a
imagem de Deus em nós, que foi arruinada na Queda.
Deus criou o mundo por sua Palavra e Sopro, e com parti­
lhou a palavra com Adão, dando-lhe o poder da palavra para
nomear. Lemos a grande literatura criativa porque o artista li ­
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
terário cria um mundo secundário no qual entramos a fim de
nos vermos a nós mesmos e uns aos outros com mais clareza.
A s histórias criativas ajudam a dar ordem e forma a vidas chei­
as de caos e escuridão. Esses artistas também criam persona-
John M ilton (1608-1674) viveu
durante tempos turbulentos: a deca­
pitação de Charles I, como rei da In ­
glaterra, o começo e término da re­
pública inglesa sob o governo de
Crom well. e a reinstalação da monar­
quia sob o reinado de Charles II. Seu
pai educou John liberalmente, espe­
rando que cie se tomasse pastor. Con­
tudo, o jovem brilhante foi gradual­
mente sentindo uma chamada para se
tomar poeta. Mais tarde ele escreveu
que “uma instigação interior agora cres­
cia diariamente em mim, que por labor
e estudo concentrado [...] somados com
a forte propensão da natureza, eu pu­
desse talvez deixar algo escrito para os
dias vindouros, de modo que de boa
vontade não deixassem que isso mor­
resse” (“Church Government” [O Go­
verno da Igreja], p. 668). Certamente
que essa instigação interior era uma voz
verdadeira, porque O Paraíso Perdido,
de Milton, é considerado um dos mai­
ores poemas da língua inglesa.
M ilton, quando tinha dez anos,
compôs poesia em latina, e aos vinte e
quatro anos já era poeta inglês realiza­
do. Era fluente em mais quatro línguas
- grego, francês, itali ano e hebraico. Ele
acreditava que se alguém quisesse ser
um bom poeta, “devia ele mesmo ser
um verdadeiro poema” (“Apology for
a Pamphlet” LApologia a um Livrete],
p. 694). Para Milton, ser um bom poeta
significava ser primeiro uma boa pes­
soa. Era sua crença que o poeta tinha
poder semelhante ao de um pastor, de
instilar nas pessoas o desejo à virtude.
Por isso, Milton usou sua pena poderosa
para tentar trazer liberdade religiosa, so­
cial, política e pessoal para a hu­
manidade. Por ter escrito a favor
da república e contra o retomo da
monarquia, Milton escapou por
um triz de ser condenado à mor­
te, quando Charles II voltou ao
trono. Embora a nova monarquia
tivesse queimado os livros de Mi Iton publicamente e ele tivesse
sido encarcerado durante algum tempo,
Milton sobreviveu milagrosamente para
escrever uma das duas grandes epopéias
inglesas: O Paraíso Perdido.
Embora eu não tenha citado O Para­
íso Perdido neste capítulo, seu poema
épico lida extensivamente com os temas
da Criação e da Queda. Recomendo cm
alta conta os insights poéticos de Milton
sobre estas duas doutrinas, que são im­
portantes para a discussão do lugar da
literatura numa cosmovisão cristã.
A idéia de Milton sobre a aprendiza­
gem de uma cosmovisão cristã é esta:
“O objetivo da aprendizagem é con­
sertaras ruínas de nossos primeiros pais,
tornando a conhecer Deus corretamente
e, a partir desse conhecimento, amá-lo,
im itá-lo, para ser como Ele é” (“ O f
Education” [Da Educação], p. 631).
As citações de Milton foram extraí­
das da edição de Merritt Y. Hughes de
John Milton: Complete Poems and
Major Prose (John M ilton: Poemas
Completos e Grande Prosa). Odyssey
Press, 1957.
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360
TWILA BROWN EDWARDS
gens que nos ajudam a ver e nomear a imagem de Deus em
nós mesmos, e nos nossos seres humanos com panheiros. O
que John M ilton diz sobre a educação aplica-se à literatura:
A s histórias ajudam a “ consertar as ruínas causadas por nos­
sos prim eiros pais” .14
A Queda
A I m po r t â n c ia
das
R e pr esen ta ç õ es L it e r á r ia s
da
Q ueda
Parte Um: A Importância de Ler Literatura sobre a Queda
Embora a toda-poderosa Palavra Deus tenha trazido à existên­
cia um mundo glorioso e o seu Sopro brotasse vida em Adão, e
embora a palavra humana tenha sido usada para nomear as criatu­
ras de Deus, a palavra (e por extensão, a literatura) também parti­
cipa da Queda. “Entre a palavra de Deus e a do homem se intro­
mete a palavra da serpente” .15 No princípio, como nos lembra
M ichael Edwards, a serpente só procura levantar suspeitas das
palavras de Deus: “E assim que Deus disse: ‘Não comereis de
toda árvore do jardim ?’ E disse a mulher à serpente: [...] Do fruto
da árvore que está no meio do jardim , disse Deus: ‘Não comereis
dele, [...] para que não morrais” ’. Ficando mais corajoso, Satanás
categoricamente contradiz as palavras de Deus: “ Certamente não
morrereis” (Génesis 3.1-4, ênfases minhas). Edwards faz comen­
tários adicionais sobre este episódio:
E outra participação im portante da linguagem, que distorce e trans­
form a a grandeza do ato de Adão nomear na m iséria da contradição e
ambiguidade. Ao contradizer as palavras de D eus, a serpente p ro ­
duz um a linguagem em conflito com o m undo, oposta, isto é, ao
seu C riador e aos fatos, visto que A dão e Eva m orrerão, e tam bém
em conflito com a linguagem em si. [...] A frase da serpente é o
início da obscuridade sem ântica, e considerando que foi eficaz,
deixou-nos um mundo no qual o significado já não é mais evidente e
um a palavra igualmente incerta, conforme a interpretamos e confor­
m e a usam os.16
Depois de Adão e Eva terem participado da mentira da serpen­
te, “foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam
nus” . Quando Deus, passeando pelo jardim , pergunta onde eles
estão, Adão responde: “Tem i, porque estava nu, e escondi-me”
(Génesis 3.7-10). A transparência desnuda do relacionamento de
Adão e Eva entre si e com Deus acabou. Pelo fato de Adão ter
tomado parte na mentira da serpente, ele tenta se esconder com
folhas de figueira e com uma palavra decaída e enganosa. A pala­
vra de Adão, embora fosse poderosa em sua criatividade para dar
nomes aos animais, agora é caracterizada por falsidade e autoilusão. Ele distorceu a imagem de Deus nele.
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
W illiam Shakespeare (1564-1616)
foi o maior dramaturgo de todos os
tempos. Ele também foi um dos mai­
ores poetas de todos os tempos, prova­
velmente junto com Dante e Milton.
As 37 peças de Shakespeare for­
mam um corpo de obra maior do que
todos os outros dramaturgos por vári­
as razões. 1) Ele escreveu renomadas
peças em todas as formas dramáticas:
tragédia, comédia, história, romance
e tragicomédia. 2) Ainda que muitos
outros dramaturgos tenham escrito
obras de arte excepcionais, ninguém
mais compôs tantas peças com tal
poder dramático permanente. 3) Suas
obras revelam um conhecimento pene­
trante da natureza humana numa vari­
edade surpreendente.
Shakespeare criou memoráveis
personagens femininos. Beatriz (Mui­
to Barulho para Nada), lógica e en­
genhosa, nos encanta com suas a lfi­
netadas jocosas em seu namorado,
ao mesmo tempo em que se apaixo­
na por ele. V iola (Noite de Reis), en­
genhosamente imaginativa, protege
sua pureza e engana até seu patrão
com seu disfarce m asculino, com
muita destreza o tempo todo, mas
também divertidamente, desenvol­
vendo o enredo.
Personagens com plexos como
Hamlet ( Hamlet) e Próspero (A Tem­
pestade) ajudam-nos a sondar o mis­
tério da personalidade hum ana.
Shakespeare nos assusta com estudos
íntimos de vilãos, como Ricardo I I 1
(.Ricardo III), que sem misericórdia
mata seus sobrinhos para ganhar o
poder do trono. Mas ele também ex­
trai nosso riso tumultuoso com um
personagem como Dogberry ( Muito
Barulho para Nada), que pronuncia
mal as palavras e murmura seus esfor­
ços de promulgar justiça. E entre seus
personagens estão alguns dos amantes
mais famosos na literatura ocidental:
Romeu e Julieta, António e Cleópatra.
O primeiro casal é jovem c inocente, o
segundo, maduro e lascivo.
Os personagens de Shakespeare
sempre são envolvidos em enredos que
exigem honestidade m oral. Nem
Ricardo II (Ricardo II) nem Ricardo
I II ( Ricardo III) saem ilesos do i
abuso do poder real. A cum plici­
dade de Lady Macbeth no assas­
sinato do rei Duncan (Macbeth )
contribui pai a a sua psicose e sui­
cídio. O orgulho vanglorioso de
M alvólio é castigado por seu iso­
lamento da sociedade (Noite de
Reis). O gênio de Shakespeare em
criar personagens tem nos entre­
tido e nos dado modelos a imitar;
mas ele também nos ajudou a rechaçar
o mal.
Talvez a medida mais óbvia da pe­
netração shakespeariana na cultura
ocidental seja a nossa citação dele muitas vezes inconscientemente - para
definir a nós mesmos e as nossas situ­
ações. Estas citações nos farão lembrar
da qualidade duradoura das declara­
ções dos seus personagens:
“ Para mina é grego” .
“ Ser ou não ser: eis a questão” .
“O que há num nome? Com ele
chamamos uma rosa
Que por qualquer outro nome chei­
raria tão docemente” .
Shakespeare nos deixou um lega­
do duradouro com sua criação de una
mundo povoado de personagens me­
moráveis: caídos e redimidos.
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3 6 2
TWILA BROWN EDWARDS
No relato do Génesis, Adão e Eva têm de deixar o jardim do
Éden e continuar seu casamento em circunstâncias muito abaixo
do ideal. O seu relacionamento transparente, como também a pa­
lavra, foram para sempre arruinados. “Um abuso da palavra [...]
provoca a Queda, e é uma palavra caída que o casal agora mortal
leva consigo para o exílio .” 17
Edwards sugere que o artista literário também experimenta as
consequências desta queda linguística. T. S. Elio t, um dos poetas
mais importantes do século X X , expressa os esforços dolorosos
do escritor para dar forma e poder à história pelas palavras, só
para descobrir este resultado da maldição: as palavras “ deslizam,
escorregam, perecem” .18Considerando que antes da Queda as pa­
lavras eram veículo de energia criativa, agora os seres humanos
têm de lutar para transmitir significado. Apesar desta maldição
linguística, os artistas literários (talvez melhor que qualquer um
de nós) retiveram o dom criativo da nomeação. Na seção da C ria­
ção deste capítulo, vimos a habilidade do escritor imaginativo em
nomear a bondade da humanidade segundo criado à imagem de
Deus. Aqui estamos interessados na habilidade do artista literário
de verdadeiramente nomear a queda da humanidade.
A mais alta chamada do cristão é conhecer a verdade. Em ú lti­
ma instância, claro que isso significa conhecer a Cristo que se
caracterizou assim: “Eu sou [...] a verdade” (João 14.6). Conhecer
a Cristo também significa conhecer as pessoas pelas quais Ele
morreu para salvá-las. Embora ler sobre indivíduos grotescamen­
te caídos possa ser incómodo para os cristãos, entender a Queda
também faz parte da verdade da natureza humana. A verdade nem
sempre é bonita. Se somos fiéis à nossa chamada para conhecer a
verdade, não podemos evitar a fealdade horrenda da Queda. Le ­
mos tal literatura para nos ajudar a entender a verdade do poder do
pecado. Somos chamados a conhecer a verdade de Deus - toda
ela, até a parte feia e caída.
Argumentarei nesta seção que os cristãos devem ler literatura
sobre a fealdade da Queda por duas razões básicas: 1) Para bene­
fício próprio, e 2) para benefício do próximo. Prim eiro, ao verda­
deiramente nomear na literatura a humanidade caída, os escritores
ajudam-nos a ver o pecado em sua fealdade crua e, assim, aju­
dam-nos a repudiar (em lugar de tentadoramente atrair) o compor­
tamento caído.19 Segundo, ao nomear verdadeiramente a humani­
dade caída, os grandes artistas podem nos dar insights sobre com­
portamentos caídos específicos que ajudam-nos a melhor com­
preender e dar testemunho20 ao nosso próximo caído.
Prim eiro, discutirei os benefícios daquele que lê grande litera­
tura, que nos adverte contra os efeitos da Queda. W illiam
Shakespeare, o maior dramaturgo na língua inglesa, fornece exem­
plo constrangedor de nomear as consequências desastrosas da
Queda em sua tragédia Otelo. Shakespeare deixa claro nesta peça
que o fim trágico do casamento entre Otelo e Desdêmona é base­
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
3 6 3
ado numa mentira da serpente. Otelo, general do exército veneziano
e mouro, ganhou o amor da bonita Desdêmona e casou-se com ela
contra o desejo do seu poderoso pai cristão. Otelo promoveu Cássio em vez de lago para o cargo de lugar-tenente. Ciumento e irado por não ter sido pro­
Somos chamados a conhecer a
movido, lago engendra e executa um esquema
verdade de Deus - toda ela, até a
vingativo: Ele planta dúvidas na mente de Otelo
relativas à fidelidade da esposa. Ao longo da
parte feia e caída.
primeira parte do drama, Shakespeare demons­
tra a queda da palavra fazendo muitos dos seus
personagens chamar (ou nomear) lago de “lago honesto” . Enquanto
isso, a língua desonesta de lago enlaça o marido e a esposa e, no
final, destrói o casamento. O uso que Shakespeare faz da ironia
permite o leitor participar da ambiguidade da língua, causada pela
mentira da serpente. A disparidade entre o que lago diz e o que ele
quer dizer retrata poderosamente para o leitor o uso enganoso da
língua. O leitor sente que ele foi forçado a sair do jardim do Éden,
onde a palavra foi comparada com a realidade, e entrou no mundo
caído onde a língua “ desliza e escorre” e causa a morte. Embora a
mentira nem sempre cause morte física, causa frequentemente
morte psicológica, social e espiritual.
lago sugere a Otelo que Desdêmona está tendo um caso com
Cássio. Tendo o lenço de Desdêmona (que havia sido dado a ela
pelo marido amoroso) caído no quarto de Cássio, lago leva Otelo
a acreditar na mentira sobre a infidelidade dela. As cenas entre
lago e Otelo são assustadoras. O vilão sugere cuidadosamente a
Otelo que sua esposa é in fiel, porém faz suas insinuações em quan­
tidade o suficiente para fazer Otelo pensar que ele está tentando
honestamente proteger Otelo de ficar ciumento. A mistura calcu­
lada de verdade e mentiras feita por lago tece uma rede de dúvidas
que causa um ciúme furioso no marido confiante, o que dá fim ao
casamento dele e o leva a matar a esposa, e em seguida a si mes­
mo, por ter acreditado na mentira de lago.
A semelhança da serpente, lago contradisse as palavras da ver­
dade e destruiu um marido e uma esposa. O retrato que Shakespeare
traça do engano de lago leva o leitor a rejeitar um caráter que usa
a língua para tornar ambíguo o significado da realidade. Le r lite­
ratura como a de Shakespeare, que revela a crueldade deste cará­
ter caído, ajuda os cristãos a identificar a fealdade da Queda e a
evitar trapaças malignas. Tiago nos manda resistir ao diabo, e este
fugirá de nós (Tiago 4.7). É muito mais fácil resistir à tentação de
usar as mentiras da serpente, quando prestamos atenção à voz dos
artistas literários que revelam a vileza da natureza humana caída.
Não só a nomeação artística do mal ajuda os cristãos a repudi­
arem o mal, como acontece no caráter dos outros (por exemplo,
de lago), mas também ajuda os cristãos a identificar as mesmas
características caídas neles. Infelizm ente, às vezes os cristãos são
iludidos ao pensar que são imunes ao mal. As caracterizações ar­
3 6 4
TWILA BROWN EDWARDS
tísticas mostram o poder e o engano do pecado. Otelo era um ho­
mem bom. E le era fie l no trabalho; comandava bem o exército
veneziano; era respeitado pelos homens sob seu comando; era ci­
dadão obediente à le i; era amigo excelente de
lago; amava Desdêmona afetuosamente. Não
Um antídoto para não sermos
obstante, ele se deixou ser preso pelo pecado e
iludidos pelo mal é estudarmos enganado para assassinar a própria esposa, a
quem tão afetuosamente amava. Os cristãos
sensível e refletidamente - a
pensativos, que se permitem serem confronta­
natureza mortal dos personagens
dos pelos trabalhos do artista, farão uma pau­
imaginários.
sa na leitura de tal história e pensarão Se não
fosse pela graça de Deus, eu também seria
enganado, mas também percebem Eu também tenho a capacida­
de do mal destrutivo. Um antídoto para não sermos iludidos pelo
mal é estudarmos — sensivelmente e reflexivamente — a nature­
za mortal dos personagens imaginários. Os cristãos caídos não
são menos pecadores do que os não-cristãos caídos. A grande lite­
ratura nos ajuda a nos conhecer e, talvez, melhor resistir às nossas
tendências caídas.
A segunda razão principal por que acho que os cristãos devem
ler literatura sobre a Queda tem a ver com os benefícios aos nãocrentes. Embora ler literatura tenha valor intrínseco para os leito­
res cristãos, os cristãos também podem tornar-se melhores teste­
munhas da verdade e da graça de Deus, se tal leitura os ajudar a
entender o comportamento caído dos não-crentes. Certamente que
os cristãos não devem participar do pecado para entender melhor
o pecador. Mas ao ler sobre um personagem caído, o cristão ganha
insights que, quando compartilhados, ajudam o pecador a consi­
derar seriamente os méritos da fé em Cristo.
Certa vez ensinei a uma jovem que tinha sido criada num lar
cristão, onde fora abrigada do mais horroroso da humanidade ca­
ída. Quando ela se casou com um homem cuja chamada m inisteri­
al era para uma região menos favorecida, com população pobre e
densamente povoada, ela sentiu-se completamente despreparada
para lidar com as profundidades da Queda que encontrou nas ruas.
Le r romances que caracterizam os tipos de personalidades que ela
encontrou poderia ter ajudado a preparar esta mulher para o m i­
nistério na cidade.
Parte Dois: A Importância de Ler Responsavelmente
Por acreditar plenamente que ler literatura resulta nestes dois
benefícios (para nós mesmos e para os não-crentes), pedi que os
alunos lessem obras da literatura sobre seres humanos caídos. A l­
guns alunos objetaram: “Por que os alunos cristãos devem ser for­
çados a ler a grande literatura que retrata a Queda mediante a lin ­
guagem de personagens corruptos?”
Respondi que para ser grande, a literatura deve retratar verda­
deiramente a condição humana. Certa perspectiva cristã inclui ao
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
3 6 5
menos duas coisas: 1) Os seres humanos têm enorme potencial
para o bem, porque são feitos à imagem de Deus e receberam a
“graça comum” ; mas. 2) os seres humanos também têm potencial
para o mal por causa da Queda.
Os personagens da grande literatura serão
complexos. Até uma pessoa má manifestará
Os personagens da grande
qualidades boas; e as melhores pessoas podem
exibir uma falha trágica. Os artistas literários
literatura serão complexos. Até
devem ser verdadeiros à imagem de Deus e à
uma pessoa má manifestará
Queda nos personagens que criam.
qualidades boas.
Muitos dos meus alunos prefeririam ler so­
mente sobre “personagens bons” . Contudo, se
devemos entender a verdade sobre a condição
humana, será que não nos é necessário também ler sobre o verda­
deiramente caído - o marido que abusa da esposa, o assassino em
série, o trapaceiro que abusa da boa fé de cidadãos idosos, rou­
bando suas escassas poupanças? Ao criar personagens deste tipo,
o escritor deve ser verdadeiro para com as personalidades desses
personagens. Um viciado em drogas, que sobrevive nas ruas du­
rante muitos anos, não falará como um professor de Escola Do­
m inical, que dedicou a vida para tornar viva as histórias da B íb lia.
O escritor se engajaria em certa desonestidade, se retratasse tal
personagem de outro jeito. O escritor também não estaria partici­
pando da mentira da serpente?
Embora meus alunos sejam frequentemente ajudados por esta
resposta, muitos deles ainda estão preocupados por terem que ler
literatura que contém tais representações francas do comportamento
caído. A resistência deles pode ser resumida na seguinte pergunta:
“ Será que os benefícios potenciais da leitura desse tipo de litera­
tura ‘pecaminosa’ não seriam anulados pelo dano provável cau­
sado à fé dos leitores?” Analisando a questão friam ente, a res­
posta seria “ Sim ” . Porém, creio que a solução a este dilema
acha-se na leitura responsável. Na segunda parte desta seção,
procurarei tratar desta preocupação válida, respondendo estas
outras perguntas relacionadas: O que os cristãos responsáveis
devem ler? Como os cristãos responsáveis devem ler? Quando é
mais responsável não ler?
O que os Cristãos Responsáveis Devem Ler
Prim eiro, vamos pensar sobre nossa responsabilidade pelo que
lemos. A cosmovisão cristã exige que sejamos bons mordomos de
nosso tempo. Então, devemos ler só a grande literatura. Ficção
mal-escrita não é digna de nosso tempo. Dorothy Sayers, novelista que eloquentemente defendeu a fé cristã, distinguiu a grande
literatura do “ mero entretenimento” . Definir a grande literatura
não é fácil. Os escritores imaginativos e críticos no decorrer dos
séculos têm lutado para explicar a grande literatura. Não pretendo
examinar todas estas idéias neste capítulo, mas algumas compara­
3 6 6
TWILA BROWN EDWARDS
ções entre a grande literatura e o mero entretenimento nos ajuda­
rão a distinguir que tipo de literatura é merecedora do tempo e da
dedicação do cristão.
A grande literatura nos ajuda a reconhecer o eterno no tempo­
ral. Quando lemos Otelo, sentimos que Shakespeare está escre­
vendo sobre algo maior que o drama deste homem e sua esposa.
Está alcançando pela história uma realidade m aior, uma re a li­
dade que in clu i todas as relações de amor, todos os ciúmes, to­
das as traições. Sentimos que Shakespeare está alcançando o eter-
* ofio túfy A . S<zyen&
Em sua biografia de Dorothy L .
Sayers (1893-1957), David Coomes
refere-se a esta mulher notável como
“uma apologi sta da fé cristã em livros
rigorosamente argumentados, como
The Mind o/The Maker (A Men­
te do Fabricante), peças de pro­
porções épicas como The Zeal o f
Thy House (O Zelo da Tua Casa),
e como ‘a tradutora imaginativa’
de A Divina Comédia, de Dante.
[... | Ela era amável, generosa, en­
tusiástica, robusta, opiniosa e
autocensuradora, contraditória.
[...1 O cristianismo, é justo di­
zer, dominou a maior parte da
vida de Sayers” (p. 7). E la escreveu
vários romances detetivescos, nos
quais Lord Peter Whimsey é o herói.
Sayers escreveu uma série sobre a
vida de Cristo para a rádio B B C , cha­
mada O Homem Nascido para ser
Rei. A série tornou-se extremamente
popular e eficaz, visto que coloca a
v ida do Senhor num cenário humano
realista.
Em Creed or Chaos (Credo ou
Caos), uma compilação dc ensaios,
Sayers faz um comentário sobre o
linguajar das peças sobre Jesus: “Nós
singularmente o diminuímos em hon­
ra, diluindo sua personalidade até que
não possa ofender uma mosca. Com
certeza, não é o negócio da Igreja adap­
tar Cristo aos homens, mas adaptar os
homens a Cristo” (p. 24). Em The Mind
o f the Maker (A Mente do Fabrican­
te), trabalho teológico, ela acusa os
ingleses seus companheiros de não te­
rem feito progresso desde a Idade
Média em sua habilidade de descrever
a fé cristã. Como Sayers observa: “As
palavras são compreendidas em um
sentido completamente enganoso, de­
clarações dc fatos e opiniões são mal
interpretadas e torcidas com a repeti­
ção, os argumentos fundados em malentendidos são aceitos sem exame” (p.
x i). A consequência deste desmazelo
é que a mente comum é submergida
com uma mixórdia de mitologia ilógi­
ca e improvável, exibindo-se como ver­
dade cristã. Sayers propôs, num livrete
in titu lad o “ The Lo st Tools o f
Learning” (As Ferramentas Perdidas
da Aprendizagem), um remédio edu­
cacional para esta tragédia linguística:
“ Verso e prosa podem ser aprendidos
de cor, e a memória do aluno deve
armazenar histórias de todo tipo clássica, mito, lenda, e assim por di­
ante” (p. 18). E la aconselha os cris­
tãos a engajar crianças e jovens em ri­
gorosa educação, o que necessariamen­
te inclui a leitura responsável de lite­
ratura importante.
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
3 6 7
no, onde, algum dia, serão removidos todas as traições e ciú ­
mes, e a grande relação m atrim onial entre Cristo e sua Noiva
durará por toda a eternidade.
Dorothy Sayers nos apresenta um conceito d ifícil, mas impor­
tante, da grande literatura: ela transforma o abstrato em concreto.
Mais adiante, Sayers diz acreditar que o cristianismo contém um
modelo divino para este conceito.21 Por exemplo, nos é d ifícil co­
nhecer Deus, porque E le é espírito; de certo modo, E le é abstrato.
Deus decidiu que precisamos vê-lo concretamente, tocá-lo, ouvi-lo. Assim , E le mandou
Na grande literatura o artista
Jesus ao mundo num corpo material. Refletin­
encarna em palavras sua
do sobre este fato, o escritor aos Hebreus cha­
mou Jesus de “ a expressa imagem” 22 do Pai
experiência, dando a ela um corpo
(Hebreus 1.3). Em linguajar moderno, poderí­
material.
amos dizer que Jesus era a fotocópia do Pai.
Olhando Jesus, agora sabemos que Deus é
am ável, amoroso e perdoador; E le também fica consternado
pelo pecado. Então, Deus nos revelou sua natureza pela imagem
expressa dEle (“representação exata” , versão bíblica americana
da N IV ), Jesus.
Semelhantemente, na grande literatura, se um poeta nos quer
explicar uma experiência humana abstrata, como “ amor” , ele tam­
bém usa imagens concretas. Por exemplo, Robert Burns, queren­
do explicar o seu amor por uma mulher, escreve: “Meu amor é
como uma rosa vermelha, vermelha” . Ao dizer que o seu amor é
como uma rosa, este grande artista deu ao seu amor um corpo
material. A imagem da rosa é ú til, porque explica imediatamente a
suavidade, a fragrância, a beleza (sim , o espinho!) do amor duma
maneira que a palavra abstrata “amor” não pode.
Como subcriador, o verdadeiro artista literário nos revela a
Verdade por imagens. Claro que a atividade do artista não é a cri­
ação do nada que só Deus faz, porque “ o artista humano está no
universo e é limitado por suas condições. Ele só pode criar dentro
daquela estrutura e com o material que o universo fornece” .23 Não
obstante, da mesma maneira que Deus encarnou a verdade sobre
Ele por sua imagem expressa, ou representação exata - Jesus - ,
assim, na grande literatura o artista encarna em palavras sua expe­
riência, dando a ela um corpo material.
Como outra maneira de definir o que é grande literatura, Sayers
explica como esta encarnação da experiência do artista pode nos
ajudar à medida que lemos a grande literatura: “Na imagem da
sua experiência, podemos reconhecer a imagem de alguma expe­
riência nossa - algo que tinha nos acontecido, mas que nunca tí­
nhamos entendido, nunca tínhamos formulado ou expressado a
nós mesmos, e nunca conhecido como experiência real” .24
Por exemplo, qual de nós, degustando a literatura em A Bela e
a Fera, não teve aquele momento de reconhecimento que também
temos um pouco de brutalidade dentro de nós que precisa ser trans­
3 6 8
TWILA BROWN EDWARDS
formada pelo beijo amoroso de alguém? Sayers diz que este reco­
nhecimento da experiência que acontece quando lemos a verda­
deira literatura “ é como se uma luz fosse acesa dentro de nós” :
A gora que o artista [...] o imaginou [...] para mim, posso possuí-lo,
retê-lo, torná-lo meu e transformá-lo num a fonte de conhecimento e
força. [...] Este reconhecimento da verdade que obtemos com o tra­
balho do artista, chega-nos na qualidade de revelação de nova verda­
de. [...] [Esta obra da literatura] dá um novo conhecimento sobre nós
mesmos dentro do alcance do nosso entendimento. É novo, surpre­
endente e, talvez, dilacerante.25
Estas revelações surpreendentes e dilacerantes são importan­
tes para os cristãos que desejam entender-se a si mesmos e ao
mundo de Deus. E este reconhecimento importante da realidade
ocorre quando lemos a verdadeira literatura. Samuel Coleridge,
poeta do século X IX , chama a revelação encamadora que ocorre
na grande literatura de “ translucidez do eterno pelo temporal e no
temporal” .26O grande escritor toma uma idéia eterna compreensí­
vel mediante uma imagem temporal.
Uma cosmovisão cristã exige que não passemos pela vida ape­
nas permitindo que os eventos nos aconteçam. Antes, temos de
pensar em tais coisas (Filipenses 4.8), profundamente experimen­
tando e compreendendo Deus, nós mesmos, os outros seres huma­
nos - todo o mundo criado por Deus. Nas palavras de Coleridge,
através da grande literatura vemos o eterno na imagem temporal e
pela imagem temporal - uma atividade necessária para o cristão.
Embora seja a grande literatura o que o cristão deva ler, Sayers
mostra que o leitor típico não lê frequentemente este “ tipo de lite­
ratura criativa e cristã” . Tipicamente, a maioria dos leitores (tal­
vez até a maioria dos leitores cristãos) não quer “ se aborrecer com
súbitas revelações sobre [eles mesmos]. [...] Querem entreteni­
mento” .27 Concordo com Sayers que o mero entretenimento é o
que os cristãos não devem ler.
Mas o que há de errado com uma dieta de mero entretenimen­
to? A pseudo-literatura nos “ dá o prazer das emoções que normal­
mente acompanham a experiência sem termos tido a experiência” .28
Meras histórias de entretenimento são como novelas, proporcio­
nado-nos algumas emoções sangrentas de assassinatos ao término
de Otelo, mas sem termos experimentado a destruição agonizante
de ciúme que a peça de Shakespeare exige de nós. Os thrillers da
pseudo-literatura prevalecente em nossa cultura deixam de desen­
volver qualidades características significativas dentro de nós, por­
que o enfoque está completamente na ação, em vez de estar na
construção do caráter.
Por exemplo, se A Bela e a Fera tivesse sido produzida como
pseudo-literatura, a Bela teria a experiência gloriosa do beijo que
transforma a Fera no Príncipe sem ter passado pela experiência
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
desagradável - mas que desenvolve o caráter - de ter amado e
repetidas vezes reagido à Fera em sua feiúra.
Sayers explica eloquentemente por que o “ mero entretenimen­
to” deve ser evitado pelo cristão:
[O mero entretenimento] não nos revela a nós mesmos: somente projeta numa tela mental um quadro de nós mesmos como já nos imagi­
namos ser - só que melhores e mais inteligentes. O fabricante desse
tipo de entretenimento de nenhuma maneira está interpretando e re­
velando sua própria experiência a ele mesmo e a nós - está ou culti­
vando suas próprias fantasias, ou - ainda mais falsa e perdoavelmente
- está dizendo: ‘O que é que o público gostaria de sentir? Vamos
mostrar o que as pessoas desejam, de forma que possam nadar na
emoção fingindo tê-la vivido’ . Este tipo de pseudo-literatura é litera­
tura de ‘realizar desejos’ ou literatura de ‘fuga’ no pior sentido - é
uma fuga [...] da realidade e experiência num mundo de aconteci­
mentos meramente exteriores. [...] Para relaxamento ocasional é vá­
lido; mas pode ser levado ao ponto em que, não somente a literatura,
mas o universo inteiro de fenómenos se toma uma tela na qual ve­
mos a projeção aumentada de nossos “eus” irreais, com o objetivo de
sentirmos emoções igualmente irreais. Isto provoca a corrupção com­
pleta da consciência que já não pode reconhecer a realidade na expe­
riência. Quando as coisas chegam a esta situação, temos uma civili­
zação que “vive para se divertir” - uma civilização sem firmeza, sem
experiência, e fora de contato com a realidade.29
A vida é muito curta até para lermos tudo o que é digno de ser
lido na grande literatura. Fazemos bem em evitar o mero entrete­
nimento que nos faz perder contato com a natureza repugnante do
mal e contribuir para a deterioração da consciência moral, que é o
fundamento de nossa civilização. Portanto, os cristãos devem evi­
tar o mero entretenimento e ler a grande literatura.
Como os Cristãos Responsáveis Devem Ler
Se os cristãos devem ler a grande literatura - o que inclui per­
sonagens caídos - então como os cristãos deveriam ler sobre estas
pessoas imorais? O leitor cristão tem a responsabilidade de enfocar
a verdade eterna (segundo é apresentada nos personagens caídos e
temporais), em vez de enfocar as ações caídas dos próprios perso­
nagens. Por exemplo, podemos ler com a intenção de compreen­
der o horror de usar outra pessoa como objeto físico, a injustiça de
alguém tomar de outro ser humano o que não lhe pertence, a me­
nos que esse indivíduo esteja disposto a assumir um compromisso
vitalício. Ou podemos ler e nos chafurdar nas descrições de suas
ações imorais. O escritor do mero entretenimento enfatiza as ações
pecadoras dos caídos, frequentemente com pouca preocupação com
o crescimento do caráter ou as consequências do pecado. Por ou­
tro lado, um grande artista enfoca o caráter do caído. Os leitores
3 6 9
3 7 0
TWILA BROWN EDWARDS
cristãos, se não prestarem atenção às alternativas, poderão errone­
amente enfocar o ato em vez do caráter, mesmo quando lêem a
grande literatura. Só enfocar o ato é considerar o pecado muito
ligeiram ente e tolerar em vez de lamentar a tragédia do que
aquele pecado está fazendo à alma do personagem. Mas nossa
cosmovisão cristã requer que leiamos responsavelmente e pro­
curemos a “ verdade eterna” no caráter do indivíduo caído. Por­
tanto, os cristãos têm de escolher o que ler responsavelmente
(lim itando-se à grande literatura) e como ler (enfocando as ver­
dades eternas que estão por trás dos atos pecadores e não enfocar
os atos em si).
Quando E mais Responsável não Ler
Uma questão final relativa à leitura da literatura que descreve
personagens caídos precisa ser tratada: Como cristãos, devemos
evitar completamente ler certas grandes obras da literatura, se es­
tas contêm representações de seres humanos caídos? A resposta
bíblica parece ser: “ Sim” . Então, quando é mais
responsável para o cristão não ler tais obras da
literatura? Paulo diz que os cristãos não de­
Temos de nos conhecer e evitar
vem se sujeitar a atividades que os condenem:
algumas obras da grande literatura
“Bem-aventurado aquele que não se condena
que até podem nos ser destrutivas.
a si mesmo naquilo que aprova. Mas aquele
que tem dúvidas, se come [carne oferecida a
ídolos], está condenado, porque não come por fé; e tudo o que não
é de fé é pecado” (Romanos 14.22,23). Temos de nos conhecer e
evitar algumas obras da grande literatura que até podem nos ser
destrutivas. Não é porque haja alguma coisa intrinsecamente má
na boa literatura. Bem ao contrário. Gastei este capítulo inteiro
detalhando os benefícios que podem advir da grande literatura.
Mas (assim como com a carne oferecida a ídolos nos escritos de
Paulo) as pessoas não devem ler uma obra da literatura se, ao fazêlo, os leve a tropeçar.
Mesmo aqueles que, nas palavras de Paulo, não são condena­
dos, mas sentem-se chamados a entender o mundo caído, devem
ter cuidado com o que lêem e como lêem. Flannery 0 ’ Connor,
escritora cristã do século X X , faz uma advertência num contexto
ligeiramente diferente que nos pode ser útil. Aconselhando como
construir a fé, ela sugere que “para cada livro que você ler que
seja anticristão, encarregue-se de ler um livro que apresente o ou­
tro lado do retrato” .30 Claro que não estou falando de livros que
sejam “ anticristãos” , mas, antes, de personagens que são maus.
Mas a precaução de 0 ’Connor é importante palavra de advertên­
cia a todos nós para nos conhecermos a nós mesmos e sermos
vigilantes sobre o que, como e quando lermos. Por quê? De forma
que leiamos responsavelmente a grande literatura sobre a Queda,
a fim de recolhermos benefícios poderosos para nós mesmos e
para o próximo não-crente.
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
371
A Redenção
A I m po rtâ n cia
das
R epresen ta çõ es L iterá ria s
da
R edenção
Sugeri que a principal contribuição da doutrina da Criação para
a nossa teoria da literatura é lembrar os leitores caídos que eles
são criados à imagem de Deus. Reciprocamente, argumentei que a
doutrina da Queda, segundo nos é representada na literatura, faz
lembrar àqueles que agem como se estivessem aperfeiçoados à
imagem de Deus, que realmente estamos caídos. Outro modo de
descrever a função da Queda na literatura é di­
zer que é um veículo do Espírito para ajudar a
nos convencer de nosso estado caído e nos re­
"Se a leitura bíblica da vida for
cordar que estamos necessitados de redenção.
de alguma forma verdadeira, a
Uma razão adicional por que os cristãos de­
vem ler a grande literatura, é que as letras re­
literatura será fortemente atraída
tratam fortemente nossa necessidade e as pos­
para esse sentido."
sibilidades poderosas da transformação reden­
— Michael Edwards
tora. Nas palavras de M ichael Edwards: “ Se a
leitura bíblica da vida for de alguma forma ver­
dadeira, a literatura será fortemente atraída para esse sentido. O
Éden, a Queda, a Transformação, em qualquer forma exterior,
emergirá na literatura como em todos os outros lugares” .31
Esta “ Transformação” arquetípica, ou o que chamamos mais
comumente de a Doutrina da Redenção ou Salvação, provavel­
mente nos é a mais fam iliar como leitores cristãos. Não nos es­
queçamos, porém, que a figura redentora central nesta história de
salvação era um Espírito “ abstrato” e divino que foi feito concreto
na Palavra. Além disso, este Jesus percebeu o que levou quase
dois m il anos para a psicologia humana descobrir: que as pala­
vras, usadas como imagens concretas nas histórias, são meios po­
derosos de ajudar as pessoas a mudar de comportamento.
Paul W atzlawick resumiu o trabalho do destacado psicólogo
Milton H . Erickson e de outros psicólogos que buscam determinar
meios de ajudar os pacientes a transformar suas vidas para me­
lhor. Eles descobriram o poder dos elementos redentores nas ima-
gem concretasdâsààtoms. O (réa& o de éricéson mostrou que
a mudança duradoura no comportamento dos seus pacientes acon­
tecia mais frequentemente, não quando ele apelava para a lógica,
mas para a metáfora, símbolo e imagem.32A energia das imagens
concretas não poderia ser uma das razões por que Jesus veio como
a imagem expressa de Deus Pai? Imitando a Imagem, tornamonos mais como o Pai. Uma coisa é entender nosso estado de caí­
dos; outra, é saber cooperar com o Espírito Santo para transfor­
mar nosso comportamento. Esta é uma razão principal por que
Jesus contava histórias.
Por exemplo, E le conhecia o poder da imagem de um pai que
corre de braços abertos para um filho pródigo. Esta imagem trans­
mite o amor incondicional e redentor de Deus com mais vigor do
3 7 2
TWILA BROWN EDWARDS
que uma declaração preposicional, como “Deus nos ama mesmo
quando nos desviamos” . Muitos de nós fomos profundamente
transformados nos recessos de nosso ser pela imagem do pai ves­
tindo roupas novas num filho que antes estava vestido com trapos
cheirando a sujeira. E quem de nós leria sobre o grande banquete
com boi cevado e desejaria voltar ao chiqueiro e comer alfarrobas?
E quando lemos as imagens daquele banquete
feito pelo pai terrestre, um desejo profundo
A fim de tornar-se o 'Deus que
surge em nós por um Banquete ainda maior,
contava histórias', a verdadeira e
as Bodas do Casamento do Cordeiro, quando
nossa redenção será completa.
divina Palavra se tornou carne.
___________________
Na Nova Jerusalém comeremos comida
divina e beberemos o néctar das árvores da vida
que crescem ao longo do rio, que flu i do trono de nosso Noivo
divino. A maneira redentora em que Jesus usa as palavras nesta
parábola passam do temporal para o eterno, transformando-nos
por estas imagens que nos ajudam a experimentar o abraço da
graça de Deus. E isto o que Madeleine U Engle quis dizer na pas­
sagem que escolhemos como epígrafe para este capítulo: “Jesus
não era teólogo. Era Deus que contava histórias” .
Para o propósito deste capítulo, eu poderia resumir a doutrina
de Redenção da seguinte maneira: A fim de tomar-se o “Deus que
contava histórias” , a verdadeira e divina Palavra se tomou carne;
Ele usou nossa linguagem e foi tentado, como nós, a falar a men­
tira da Serpente. Jesus, a Palavra divina, viveu uma vida perfeita
que só usa a palavra para o bem, sempre procurando restaurar seus
seguidores à imagem original dada por Deus mediante suas pala­
vras. Em última instância, a Palavra nos redim iu pela abnegação
extenuante dEle na cruz e por sua ressurreição gloriosa. Ele nos
tomou isto possível para que nos revistamos “do novo homem,
que, segundo Deus, é criado em verdadeira justiça e santidade”
(Efésios 4.24).
Ao longo deste capítulo tracei paralelos entre as ações da D ei­
dade e do artista literário. Não estou sugerindo, obviamente, que o
artista literário tenha o mesmo poder de redenção (ou salvação)
como Cristo, a Palavra. Porém, estou convencida de que como
criaturas - criadas à imagem divina da Palavra e autorizada pela
Palavra como nomeadora - os artistas literários podem se tomar
instrumentos eficazes da redenção divina. O grande artista literá­
rio encarna a Verdade em suas palavras e ajuda a ocasionar uma
transformação gloriosamente redentora no leitor por um processo
de composição que, em muitos casos, envolve longas e estafantes
horas de atenção dedicadas às suas palavras literárias.
Uma das razões por que as representações literárias da reden­
ção são tão importantes para os cristãos, é que quando os artistas
literários prestam tal atenção dedicada a temas redentores, eles
nos dão a esperança de que o nosso estado caído pode ser redimido.
Por exemplo, muitos artistas literários voltaram a atenção à histó­
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
3 7 3
ria de São Jorge e o Dragão: autores de contos de fada, histórias
de crianças e epopéias (como as de Edmund Spenser), como tam­
bém os ilustradores e artistas visuais de todo o mundo. Os ele­
mentos redentores são fortes nesta história. Sem dúvida, esta re­
petição da história de São Jorge auxilia a satisfazer nossa necessi­
dade profunda de ouvir inúmeras vezes que o “ dragão” em nós
pode ser morto e que podemos ser salvos.
A repetição da esperança da redenção precisa aprofundar-se
intimamente na trama de nossas vidas. Por que é importante para
os cristãos lerem a grande literatura redentora? Ler tal literatura,
quer a história de redenção seja manifesta ou
não (e frequentemente não é), alimenta a nos­
sa esperança, pois essa literatura reitera que a
Parece que nascemos sabendo
Queda não é a palavra final para os seres hu­
que o dragão existe. Até as crianças
manos. Estas histórias proclamam as boas no­
sentem e temem o mal no mundo
vas de que temos possibilidades gloriosas de
transformação.
simbolizado pelo dragão.
A história contada no romance e no film e A
Lista de Schindler também ilustra considera­
velmente estes elementos redentores. A história está cheia de cru­
eldades que as pessoas perpetram umas às outras. Mas dentro des­
ta tragédia de tortura, abuso sexual e execuções em massa, ocorre
a transformação gradual do coração de um homem que resulta na
preservação de 1.200 judeus.35 O próprio Schindler não era santo.
Era avaro, mulherengo, oportunista e interesseiro. Contudo, ele
também tinha possibilidades (dadas por Deus) de praticar a bon­
dade que gradualmente o levou a considerar a vida preciosa e dig­
na.
Em uma cosmovisão cristã, as ações que reconhecem a digni­
dade da vida provêm de Deus e são tornadas possíveis por sua
“ graça comum” , não importado o quanto a pessoa seja falha. Não
é incomum que a redenção apareça de maneira estranha, e sob a,
mortalha da maldade: Jesus pendurado numa cruz sob uma nu­
vem que obliterava o sol é uma imagem central de nossa cosmovi­
são cristã. Os seres humanos, cristãos e incrédulos, precisam ler a
grande literatura para que a repetição constante destes elementos
redentores, que podem transparecer pela Queda em nós, ao menos
parcialmente redimam a imagem de Deus em nós.
Acabamos de exam inar algumas obras da literatura que con­
têm alguns elementos redentores claros. Mas por que o cristão
deveria ler grandes obras da literatura, que não parecem ter
qualquer qualidade redentora m anifesta? Por exemplo, por que
o cristão deveria ler uma tragédia que parece terminar em des­
truição em vez de redenção? Ou por que o crente deveria ler
uma comédia que parece não levar nada a sério, sobretudo nes­
te assunto sério como a doutrina da Redenção? Tratarei destas
questões e fecharei esta seção retornando a Shakespeare. A tra­
gédia Romeu e Julieta e a comédia Sonho de uma Noite de Ve­
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TWILA BROWN EDWARDS
rão, ambas de Shakespeare, nos ajudarão a explicar como o
cristão pode achar a redenção até nos lugares mais im prová­
veis e, outra vez, por que a grande literatura é tão vitalm ente
importante para o cristão.
Embora a princípio possa não parecer óbvio, o impulso para a
redenção é até forte nas histórias de tragédia. Feudos fam iliares,
como o que Shakespeare retrata em Romeu e Julieta, são bastante
comuns. Shakespeare espelha o ódio causado pela Queda eloquen­
temente. Mas sua peça também caracteriza um forte impulso para
a redenção:
O ódio é um a condição de nossas vontades corrompidas, de nossa
queda da graça, e busca destruir o que é gracioso nos seres humanos.
N esta discussão cósmica, o amor tem de pagar o sacrifício, como
fazem Rom eu e Julieta com suas vidas, mas porque suas mortes são
percebidas finalmente como o custo de tanto ódio, as duas famílias
daqui por diante são obrigadas a concordar com a culpa coletiva de­
las e decidir serem merecedoras dos sacrifícios.36
Não diferentemente da “ tragédia” do drama do Evangelho, o
potencial para a redenção nesta peça shakespeariana surge da morte
sacrificatória.
Por muitos anos os Capuletos, a fam ília de Julieta, eram os
inimigos mais figadais dos Montéquil, a fam ília de Romeu. Ironi­
camente, um Capuleto e uma Montecchio se apaixonam sem per­
ceber suas ligações fam iliares. Quando Julieta Capuleto fica sa­
bendo que Romeu é um Montecchio, a queda e o poderoso amor
da redenção unem-se no clamor dela:
M eu único amor brota do meu único ó dio!
Vi o desconhecido muito cedo, e o conhecido muito tarde!
O nascim ento prodigioso do amor é para mim,
Que eu tenha de amar um inim igo detestado.37
Apesar do ódio mútuo das suas fam ílias, os dois jovens ino­
centes sentem o amor que, no fim , remirá ambas as fam ílias. Quan­
do, desconhecido para as duas fam ílias, Romeu e Julieta implo­
ram que o frade Lourenço os case, ele consente, na esperança de
que este matrimónio possa em última instância ser redentor:
Eu serei o teu assistente;
Para que esta aliança tão feliz prove,
Tomar o rancor de tua casa em amor puro.38
Mas a união santa não cura as feridas de ódio imediatamente.
Antes que se desse a cura redentora, uma catástrofe acontece. O
antigo medo de Julieta: “Meu sepulcro é como minha cama de núpci­
as” ,39 realmente se toma realidade. Em uma rixa de rua entre os
Montecchio e Capuletos, Romeu mata um dos parentes de Julieta e é
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
banido de sua pátria. O frade Lourenço inventa um plano para reunir
os jovens amantes novamente, dando a Julieta uma poção que a fará
parecer morta, mas, na realidade, estará num sono profundo. Uma
mensagem é enviada a Romeu para vir e encontrar a Julieta adorme­
cida na tumba familiar, mas Romeu nunca recebe a explicação. Mais
tarde, ele entra furtivamente na tumba, pensa que Julieta está real­
mente morta e se mata. Quando Julieta desperta e vê seu amado Romeu
morto ao seu lado, ela também acaba com a vida. O ódio familiar
trouxe resultados trágicos a estes dois jovens amantes. Mas assim
como a esperança redentora surge da morte na história cristã, assim
também o amor e a reconciliação surgem da morte ao término da
história shakespeariana. Ambas as famílias permanecem ao lado dos
corpos mortos dos jovens amantes, enquanto o príncipe as repreende:
Capuleto! M ontecchio!
Vede que castigo é colocado em vosso ódio,
Que o céu encontre meios de matar vossas alegrias com o amor.40
As duas fam ílias dão um aperto de mão em sinal de amizade
redentora sobre os corpos sacrificados dos filhos. A reconciliação
foi cara, mas eficaz. Um símbolo da união redentora destas duas
fam ílias tinha acontecido durante a noite em que Romeu e Julieta
ficaram juntos, antes que ele fugisse de sua cidade natal. Deveria
ter havido muitas outras noites de amor para este jovem casal ide­
alista, mas suas vidas foram sacrificadas. Com a morte deles, po­
rém, surge o amor redentor e a reconciliação. Um leitor cristão
encontra grandes artistas que comunicam tais verdades redentoras
pela mais trágica das histórias.
O Bobo ou o Palhaço constrói um total dinâmico, desde a nossa de­
gradação até a nossa possibilidade de redenção. Sem dúvida é em
parte pelo fato de que ele desce, com icamente, em nossos medos de
nós m esmos e do mundo e, com icamente, nos levanta, o que nos atrai
tão poderosam ente a ele. N a roupa de [Charlie] Chaplin, as calças
compridas folgadas, a jaqueta bem justa e as botas enormes são con­
trapostos pelo chapéu-coco, gravata-borboleta, bengala e bigode. O
vagabundo tam bém é um dândi. Um palhaço de circo quase não con­
segue subir a escada, então anda para o outro lado num a corda bam ­
ba num show de falta de jeito e pânico, que desmente um virtuosismo
emocionante. Subitam ente terrificado, o A rlequim dá um a cam ba­
lhota para trás, sem derram ar um a gota dos copos de vinho.41
O palhaço simultaneamente revela nossa condição incapacita­
da e oferece esperança para nosso potencial de sermos restaura­
dos à nossa imagem e habilidades virtuosas originais.
Pelo caráter apalhaçado de Bottom, em Sonho de uma Noite
de Verão, Shakespeare nos projeta no palco o tolo, a natureza
empavonada de nossa condição caída, mas também o desejo de
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TWILA BROWN EDWARDS
sermos novamente amados em nossa condição original. Oberon,
o rei das fadas, deseja punir sua esposa, Titânia. Oberon ordena
que a conivente Puck (uma fada que gosta de pregar peças nos
outros) coloque nos olhos de Titânia uma poção de amor que a
fará se apaixonar pela primeira criatura que ela v ir quando acor­
dar. Enquanto isso, Puck acha Bottom, um tecedor cômico, e
amarra nele a cabeça de um burro. Shakespeare quer que veja­
mos o humor de nossa condição caída em Bottom ,42 Seu papel
de bode expiatório é evidente nas palavras de Bottom, quando
seu amigo Snout o vê primeiro e fica surpreso com a transforma­
ção de Bottom num burro:
Snout: O Bottom, tu mudaste! O que vejo em ti?
Bottom: O que vês? Tu vês um a cabeça de asno de ti mesmo, não é?43
Bottom, inconsciente da mudança em sua condição, espanta
todos os seus amigos para fora do palco. Os leitores desta peça
reconhecem na palhaçada à la burro de Bottom a própria e empavonada natureza caída deles. Não quero dizer que o pecado é en­
graçado ou alegre. Mas a tolice de Bottom pode nos fazer perce­
ber o quão distantes vagueamos da imagem nobre de Deus em
nós. Rindo de Bottom, podemos imaginar nossos medos de nosso
próprio estado caído e ressuscitarmos nossas esperanças de trans­
formação.
Quando Titânia desperta, vê Bottom, e imediatamente expres­
sa amor por ele, suas palavras trazem a esperança da transforma­
ção da condição de burro dele. “ Eu purgarei tua grosseria mortal” ,
diz a Bottom, “ de modo que tu irás como um espírito aéreo” .44 O
leitor também deseja fugir de sua “ grosseria mortal” , causado pela
mentira da serpente, e voar para aquele jardim divino de beleza e
inocência restauradas. Depois, quando a cabeça de burro é remo­
vida, Bottom desperta do que acredita ter sido um sonho:
Tive um a visão muito rara. Sonhei, além da graça do homem dizer
que era sonho: homem que é senão um asno, se ele empreende expor
este sonho. Pareceu-me que era eu - não há homem que possa me
dizer. Pareceu-me que era eu - e pareceu-m e que eu tive - , mas o
homem é senão um bobo remendado, se ele for propor dizer que me
parecia que eu tive. O olho do hom em não ouviu, o ouvido do ho­
mem não viu, a mão do hom em não é capaz de provar, sua língua de
conceber, nem seu coração de relatar, o que foi o meu sonho.45
Rimos do desfiguramento de Bottom, de suas sensibilidades
enuviadas e da confusão de sua linguagem. Mas também ficamos
aliviados ao ver sua cabeça de animal ser transformada novamen­
te em ser humano. Se Bottom recuperou sua imagem de ser huma­
no, talvez haja esperança de que seu linguajar confuso e suas sen­
sibilidades também venham a ser redim idas.
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
Shakespeare nos deu uma história hilariante que traz imagens
da Queda, mas também dá a esperança da transfiguração. A histó­
ria nos dá a esperança de que nossa queda também possa ser
redimida, que nossa feiúra possa ser transformada em beleza, que
nosso linguajar caído experimentará uma “nova língua” , que nos­
sa natureza como burro possa ser transformada uma vez mais à
imagem de Deus.
Os cristãos devem ler grandes comédias, porque o humor e o
riso têm o potencial de descrever (e talvez até de efetuar) transfor­
mações milagrosas e redentoras. M ichael Edwards acredita que a
comédia leva ou “ dá acesso aos milagres. [...] O riso é um dos
meios pelos quais parecemos [...] [ir além deste mundo], O riso é
a percepção da possibilidade” .46
Edwards sugere que a história de Abraão e Sara é um exemplo
de riso que “ dá acesso aos milagres” . Que um homem de cem
anos e uma mulher de noventa anos pudessem ter um filho sem
dúvida se aproxima do reino da comédia. Quando Deus fala a
Abraão que a estéril Sara será “mãe das nações” , Abraão cai sobre
o seu rosto e ri do ridículo da sugestão. Deus transforma o riso de
Abraão em possibilidade redentora olhando à frente no nome que
dá ao filho deles: “ Chamarás o seu nome Isaque [que significa
riso]” (Génesis 17.19). Deus aqui usa o poder de “nomear” e trans­
forma o ridículo em realidade. Algum tempo depois, quando Sara
ouve o Senhor profetizar a Abraão: “ Certamente tomarei a ti por
este tempo da vida; e eis que Sara, tua mulher, terá um filho”
(Génesis 18.10), Sara também ri do ridículo de dar à luz tendo um
corpo enfraquecido.
Mas o riso depreciativo de Sara é transformado no milagre do
seu riso jo vial no dia do nascimento de Isaque. Naquele dia Sara
disse: “Deus me tem feito riso” . E Sara percebe que o seu riso
jo vial será multiplicado e estendido no futuro, quando ela prediz o
riso de todos nós ao percebermos o milagre do seu corpo velho
poder dar à luz. Sara declara: “Todo aquele que o ouvir se rirá
comigo” (Génesis 21.6). Sara tinha razão. O leitor ri, porque tais
histórias de comédia nos dão acesso ao milagre do renascimento,
renovação, redenção. Esta comédia produz até maior riso jo vial
em particular, quando o leitor percebe que a risonha Sara não só
foi mãe de Isaque (o próprio “Riso” ), mas também por esse modo
“ mãe” de Cristo (a própria Redenção).
Então, por que uma cosmovisão cristã deveria exigir ler a grande
literatura redentora - até literatura como tragédia e comédia, nas
quais a redenção não está evidente? Uma tragédia é frequente­
mente esquematizada numa linha descendente. A prosperidade do
protagonista começa no ponto alto, mas cai em direção a uma morte
final, por causa de uma falha da personagem principal. Otelo está
no topo do exército veneziano e casado com sua amada, mas ao
término da peça ele e a esposa jazem mortos no palco por causa do
ciúm e d ele. Por outro lad o, uma com édia é comumente
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TWILA BROWN EDWARDS
O diagrama de
uma tragédia
O diagrai
uma con
esquematizada numa linha ascendente. A prosperidade do prota­
gonista começa no ponto baixo, mas sobe dramaticamente, muitas
vezes terminando num casamento. Às vezes a subida é ajudada
pela intervenção de outra personagem. Os seres humanos come­
çaram no ponto mais alto possível - trazidos à existência pelo Sopro
e pela Palavra de Deus num jardim id ílico, como vimos em nosso
estudo da doutrina da Criação. M as, como comentamos em nossa
discussão da Queda, o diagrama da história humana cai nitida­
mente por causa da mentira da serpente. O género humano in ­
teiro fo i encaminhado para a morte, mas há uma virada dramá­
tica em forma de V ,47 à medida que nossa história é transformada
numa comédia com a morte catastrófica de Jesus Cristo.
J. R . R . Tolkien, o famoso escritor cristão de fantasia, define
este evento como um eucatástrofe (“boa catástrofe” ), a morte e a
ressurreição da Palavra que se fez em carne.48 Na cruz, Jesus mudou emocionantemente a história humana trágica numa comédia
que term inará - como tradicionalmente terminam as comédias num jubiloso casamento entre Cristo e seus seguidores. A mesma
voz que falou na Criação e veio como a Palavra falará novamente.
João diz: “E o que estava assentado sobre o trono disse: E is que
faço novas todas as coisas” (Apocalipse 21.5).
A história bíblica começa num jardim com uma árvore da vida
e termina numa cidade com muitas árvores da vida. No meio está
uma queda trágica, que é refletida em nossas histórias de tragédia.
Mas nestas mesmas histórias estão fortes elementos redentores
(ou comédia). A s histórias trágicas e cómicas refletem a realidade
maior do Éden, da Queda e da Redenção. Os elementos redentores na grande literatura nos dirigem para aquela Redenção final,
que terminará num casamento jubiloso quando nossa salvação e a
comédia divina estarão completas. Enquanto isso, a restauração
do processo redentor continua em nós através da palavra da reno­
vação e capacitação do Pentecostes, a doutrina final que desejo
discutir neste capítulo.
O Pentecostes
O diagrama
da história
cristã À
A I m p o r t â n c ia
Im agens
do
de
L it e r a t u r a
que
E m preg a
P entecostes
Ao concluir este capítulo, gostaria de examinar a doutrina final da Igreja: o Pentecostes. Esta é doutrina vital para nossos pro­
pósitos neste capítulo, visto que esta história bíblica enfoca forte­
mente a língua e é, portanto, crucial para completar nossa discus­
são de uma abordagem cristã sobre ler literatura. M ichael Edwards
afirma: “Nesta ocasião [no Pentecostes], [...] a língua é colocada
em primeiro plano como nunca antes. Pois se o Espírito vem no
Pentecostes como um começo e um penhor da transformação fu­
tura do mundo, seu sinal é a transformação miraculosa, muito acentuadamente, da fala dos apóstolos” .49O Pentecostes, cena que con-
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
trasta nitidamente com a cena em Babel, descreve uma “restaura­
ção da língua e mais” . Os escritores participam desta restauração
da língua e mais “ em atos de nomeação” .50
No livro de Atos, os apóstolos (e, por extensão, a Igreja intei­
ra) recebem a comissão pentecostal para irem a todo o mundo e
restaurá-lo ensinando a Palavra. Junto com esta comissão, Jesus
prometeu enviar o Espírito Santo para nos capacitar a completar
nossa meta: “Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há
de v ir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusalém
como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra” (Atos
1.8). Não muito tempo depois, no dia de Pentecostes, Deus cum­
priu sua promessa descendo na pessoa do Espírito Santo sobre os
apóstolos como línguas de fogo: “De repente, veio do céu um som,
como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa
em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repar­
tidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles.
E todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em
outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falas­
sem” (Atos 2.2-4).
Naquele dia, o Espírito Santo capacitou a Igreja a renomear ou traduzir em outras línguas - a verdade do Evangelho de Cristo.
No dia de Pentecostes, o nome de Jesus Cristo foi literalmente
“renomeado” nas línguas dos “partos e medos, elamitas e os que
habitam na Mesopotâmia, e Judéia, e Capadócia, e Ponto, e Á sia,
e Frigia, e Panfília, Egito e partes da Líb ia , junto a Cirene, [...] e
cretenses, e árabes” (Atos 2.9-11).
Este dom divino de renomear é paralelo direto do dom divino
de nomear dado a Adão. Na criação, Deus identificou a humani­
dade nomeando-os à sua imagem. Mas a capitulação diante da
mentira da serpente levou Adão e Eva a tentarem esconder sua
condição caída. A identidade que receberam de Deus ficou con­
fundida. A redenção iniciou a restauração da imagem de Deus na
humanidade; o Pentecostes fornece o poder para levar a mensa­
gem redentora. Acredito que os artistas literários estão entre os
que foram comissionados e espiritualmente capacitados para res­
taurar e renomear seus leitores pelo uso inflam ável da língua lite­
rária que, explícita ou implicitamente, ensina o Evangelho da C ri­
ação, da Queda e da Redenção. Também acredito que as imagens
concretas pelas quais a Escritura comunica a história do Pentecos­
tes merecem atenção especial: “um vento veemente e impetuoso”
e “ línguas [...] de fogo” .
Prim eiro, discutirei brevemente o significado desta imagem
pentecostal. Por últim o, examinaremos a questão por que os cris­
tãos devem ler essa grande literatura, considerando um dos mui­
tos textos nos quais os artistas literários usam estas imagens de
Pentecostes para criar histórias poderosas, que ajudam a renomear
e nos restaurar.
Tanto a palavra hebraica quanto a grega traduzidas por “vento”
também podem ser traduzidas por “ sopro” ou “ esp írito ” .
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Lingiiisticam ente, esta passagem no Pentecostes se alia com o so­
pro de Deus em Adão, o fôlego da vida, no nascimento da huma­
nidade. No nascimento da Igreja aqui em Atos, Deus soprou uma
língua restaurada nos seus apóstolos e no restante dos 120, os quais
agora têm de proclamar a graça salvadora de Cristo, visto que Ele
ascendeu ao Pai.
Nas cabeças desses discípulos, que esperavam no cenáculo,
repousou uma “língua de fogo” . A imagem de fogo na Escritura
frequentemente conota a presença de Deus. Das numerosas ima­
gens, seguem dois exemplos. A chamada de Moisés para ser o
libertador de Israel da escravidão egípcia veio de uma sarça ar­
dente. Esta história evoca temor no leitor, à medida que a voz vin­
da da sarça ardente usa língua intensificada para expressar a natu­
reza de Deus que está chamando e capacitando M oisés: “E U SOU
O Q U E SOU” . A s palavras vindas do fogo, que não consome, con­
vencem Moisés a liderar uma libertação que se tomou o arquétipo
de todas as libertações de opressão em nosso mundo de hoje. A n­
tes da experiência da sarça ardente, Moisés tinha “ se nomeado” a
si mesmo de “pesado de boca e pesado de língua” (Êxodo 4.10),
mas Deus diz: “Eu serei com a tua boca e te ensinarei o que hás de
falar” (Êxodo 4.12). Depois da experiência de fogo de Moisés, ele
tirou os escravos da escravidão para serem renomeados como o
povo escolhido de Deus.
Um segundo exemplo da imagem de fogo representando a pre­
sença de Deus é retratado na experiência do forno de fogo ardente
de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego (Daniel 3). Northrop Frye
acredita que a imagem de fogo, como indicação da presença de
Deus, é tão prevalecente na B íb lia que quase parece que Deus
deseja que o crente viva no fogo.51 Certamente esta história apoi­
aria a intuição de Frye. O forno de fogo ardente, projetado para a
destruição dos três jovens hebreus (e que realmente consumia aque­
les que nele eram lançados), é facilmente suportado por estes ra­
pazes fiéis. Eles entram no fogo acompanhados por uma figura
que Nabucodonosor descreveu ser “ semelhante ao filho dos deu­
ses” . Estes três hebreus vivem no fogo, mas - assim como a sarça
ardente encontrada por Moisés
não são consumidos por ele.
Semelhantemente, na história do Pentecostes, a presença do fogo
de Deus toca a língua quando seu Espírito vem habitar nos corpos
humanos. E o vento, o fogo e a Palavra de Deus unem-se para
indicar a mais nova invasão de Deus na história da humanidade.
Como vimos no decorrer deste capítulo, o artista literário usa,
participa ou torna-se instrumento das forças chaves de cada uma
das principais doutrinas bíblicas que estudamos. Tal é o caso tam­
bém para o Pentecostes. Por exemplo, C . S. Lew is, um dos maio­
res escritores cristãos do século X X , usa com eficácia estas ima­
gens do Pentecostes para restaurar e renomear seus leitores em O
Sobrinho do Mago, uma das Crónicas de Narnia. Nesta história, o
leão Aslan (símbolo de Cristo) canta o mundo de Narnia à existên-
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
381
cia numa voz “tão bonita” que os que a ouvem “mal podem suportála” .52 Lew is retrata convincentemente o poder criativo de Aslan
pela linguagem da música. Polly, uma das crianças na história,
começa a ver “ a conexão entre a música [de Aslan] e as coisas que
estão acontecendo. Quando uma fileira de abeto escuro brota num
cume há cerca de cem metros, ela percebe que está relacionada
com uma série de notas profundas e prolongadas que o Leão tinha
cantado um segundo antes. E quando ele irrompe numa série rápi­
da de notas menos acentuadas, ela não fica surpresa ao ver prímulas
que aparecem de repente em todas as direções” .53
Depois a canção do Leão muda outra vez: “Era mais seme­
lhante ao que chamaríamos de melodia, mas também era mais do
que selvagem. Fazia você querer correr, saltar e subir. Fazia você
querer gritar” .54A voz de Aslan transforma gradualmente o Nada
escuro e vazio num mundo fértil, onde animais felizes moem e
relincham, latem e berram com vida alegre, unindo suas vozes
com a voz de Aslan, numa canção feliz.
Lew is une o poder da voz de Aslan na criação ao poder da
restauração da língua no Pentecostes, combinando as imagens do
sopro, do fogo e do vento remanescentes do derramamento do
Espírito Santo no nascimento da Igreja. O Pentecostes, o discurso
dos apóstolos tem um toque milagroso que lhes dá poder que não
De acordo com Northrop Prye, um ar­
quétipo é “uma imagem típica ou recorren­
te, [... | um símbolo, que conecta um poema
com outro e assim ajuda a unificar e integrar
nossa experiência literária” (Anatomy o f
Criticism: Four Essays [Anatomia da C ríti­
ca: Quatro Ensaios]. Princeton: Princeton
University Press, 1957, p. 99). Leland Ryken
define arquétipo como “ uma imagem, tipo
de personagem ou tema de enredo que ocor­
rem periodicamente ao longo da literatura
(como também ao longo da vida). Os arqué­
tipos são os blocos de construção da litera­
tura e os ingredientes de nossas vidas”
(Words ofLife: A Lilerary Introduction to the
New Testament [Palavras de Vida: Uma In­
trodução Literária ao Novo Testamento].
Grand Rapids: Baker Book House, 1987, p.
22). O arquétipo de jornada é um exemplo.
Os personagens que partem numa jornada
com destino a outro país são retratados numa
ampla variedade de literatura: a jornada de
Odisseu saindo de Tróia para a sua casa em
Itaca; a saída de Abraão de sua pátria à pro­
cura da terra prometida; a peregrinação dos
filhos de Israel pelo deserto em busca de
um novo país; a viagem de Huckleberry
Finn descendo o rio M ississip i, uma jo r­
nada a uma compreensão madura de sua
amizade com Jim , o americano africano, a
quem seus anciões tinham maltratado; a
viagem da fam ília de Joade partindo de
Oklahoma para a C alifó rn ia, procurando
uma terra melhor para melhorar suas con­
dições económicas; a viagem dc Jesus do
céu à terra e de volta ao ccu em sua ascen­
são. Talvez o arquétipo de jornada seja pre­
valecente na literatura, porque compara
nossa própria jornada do nascimento ao
longo da vida até a morte.
3 8 2
TWILA BROWN EDWARDS
são deles para proclamar o Evangelho. De modo semelhante, Aslan
sopra em alguns dos animais de Namia, dando-lhes a fala humana:
O Leão abriu a boca, mas não saiu nenhum som; ele estava soprando
uma sopro longo e morno; parecia dominar todas as feras à medida
que o vento balançava uma fileira de árvores. [...] Depois veio um
flash rápido como fogo (mas não queimava ninguém) ou do céu ou
do próprio Leão [...] e a voz mais profunda e mais selvagem que
jamais tinham ouvido dizia: “Namia, Narnia, Namia, desperte. Ame.
Pense. Fale. [...] Sejam feras quefalem”.55
A língua animal dos narnianos é tocada pelo sopro criativo de
Aslan, inflamado pelo vento da presença de Deus, que capacitou,
mas não consumiu. Os animais narnianos recebem a língua huma­
na, um dom muito além de sua natureza animal. O leitor também
participa da Criação e do Pentecostes, ajudando a restaurar e refa­
zer seu caráter. Respondendo às palavras de fogo de Aslan, o le i­
tor também é encorajado a compreender mais perfeitamente, a
amar, pensar, falar, ser.
Depois deste comissionamento linguístico dos animais, a Pa­
lavra criativa de Aslan literalmente refaz outro personagem do
romance, Cabby (outrora motorista de táxi em Londres) que passa
a ser o novo rei de Namia. Depois de também chamar a existência
a esposa de Cabby na Namia recentemente criada, Aslan fala as
palavras de fogo que renomeiam estes dois personagens: “ ‘Meus
filhos’ , disse Aslan, fixando os olhos em ambos, ‘vocês serão o
!
I
C . S. Lew is (1898-1963) foi es­
critor inglês, destacado por sua expo­
sição das doutrinas cristãs. Durante
muitos anos, ele foi ateu. Sua jorna­
da ao cristianismo começou quando
leu P h a n ta stes , de George
MacDonald, um romance de fan­
tasia que Lew is diz que “batizou
sua imaginação” . Através desta
experiência pessoal, Lew is veio
a entender o poder redentor da
literatura imaginativa. Tendo lu­
tado para crer em Deus, Lew is
tornou-se influente em explicar
o cristianismo aos intelectuais.
Seu livro Cristianismo Puro e Sirnpies é considerado uma das mais no-
laveis apologias populares à fé cristã
escrita no século X X . Muitas das idéias teológicas contidas em Cristianis­
mo Puro e Simples Lew is também ex­
pressou ficliciam entc nos sele roman­
ces que compõem As Crónicas de
Narnia. Outras obras importantes são
A Alegoria de Amor (1936), sobre o
amor romântico medieval, e as iróni­
cas Cartas do Inferno (1942). Ele tam­
bém escreveu fantasias de planetas
cósmicos com implicações morais, por
exemplo, Fora do Planeta Silencioso
(1938), e crítica.
Para informações adicionais sobre
Lew is, veja Apêndice 7, “C . S. Lew is” ,
no final deste livro.
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
primeiro rei e a primeira rainha de Narnia’ A língua de fogo de
Aslan transforma esse motorista de táxi em rei! Até o cavalo de
Cabby, Strawberry, recebe um nome novo e se toma nova criatu­
ra. Depois de perguntar ao tímido Strawberry se ele gostaria de
ser um cavalo alado, Aslan fala com sua língua de fogo: ‘“ Tenha
asas. Seja o pai de todos os cavalos de asas’, rugiu Aslan numa
voz que tremeu o solo. ‘Seu nome será Fledge’ .”
A transformação em Strawberry quando ele é renomeado é
surpreendente: “ O cavalo recuou. [...] E então [...] irrompeu dos
ombros de Fledge asas que se abriram e cresceram, maiores que
as das águias, maiores que as dos cisnes, maiores que as asas dos
anjos nas janelas da igreja. [...] E le fez um grande movimento
majestoso com as asas e saltou no ar” .56 Os leitores desta grande
obra da literatura são levados a acreditar que também podem ser
renomeados, perder um pouco da bmtalidade da Queda e planar
mais perto daquela imagem original de Deus na Criação. A língua
de Aslan foi tocada com o fogo da renomeação, levando Cabby e
sua esposa a ascender ao trono e dando a Strawberry o dom da fala
e asas para voar, ajudando-o a transcender sua brutalidade.
Mais uma vez, levando em conta uma doutrina bíblica, desta
vez o Pentecostes, faço a pergunta: Por que os cristãos deveriam
ler literatura? Porque Deus parece tocar as palavras do artista lite­
rário com seu sopro criativo e língua de fogo. Com frequência o
artista é inspirado (a etimologia de “ inspirado” inclui soprar vida
em) a escrever palavras além do que em geral é humanamente
possível. Muitas vezes o contador de histórias recebe uma “língua
de fogo” , além da língua humana habitual para moldar caracteres
que falam vida nova aos recessos interiores de nosso ser. A litera­
tura pode nos tornar mais completamente vivos.
Conclusão
i
Quando o poeta francês Saint John Perse pronunciou seu dis­
curso ao receber o Prémio Nobel de Literatura, ele falou do poder
do poeta: “ O poeta [...] mantém diante do espírito um espelho mais
sensível às suas possibilidades espirituais [...] e evoca [...] uma
visão da condição humana mais merecedora do homem conforme
ele foi criado” .57 Saint John Perse tinha razão. Deus sempre colo­
cou um prémio no poder da Palavra. Com Suas palavras, E le falou
e os mundos vieram à existência. Sua Palavra tinha o poder de
gerar o carvalho e o hipopótamo, e o sol e a lua e as estrelas. Seus
profetas tiveram a Palavra do Senhor que queimava nos ossos deles
quando proclamavam o castigo e a misericórdia do Senhor. Ele en­
viou seu Filho, encarnado como a Palavra, para habitar entre nós.
No Pentecostes, E le nos mostrou que quis compartilhar essa
Palavra poderosa conosco, quando veio como língua inflamada
de fogo e pousou nos discípulos. Algum dia, E le virá outra vez e o
seu nome será chamado a Palavra de Deus (Apocalipse 19.13)“. De
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TWILA BROWN EDWARDS
sua boca sairá uma espada afiada, de dois gumes, símbolo de sua
Palavra; e o pecado da Queda e a confusão de Babel para sempre
serão destruídos. Enquanto isso, Ele inspira (“ sopra para dentro de” )
os artistas literários a continuar nos fazendo lembrar das doutrinas da
Criação, da Queda, da Redenção e do Pentecostes.
Então, por que os cristãos devem ler a grande literatura? Le ­
mos a grande literatura sobre a Criação para permitir que o E sp íri­
to restaure alguma coisa da imagem de Deus em nós. Lemos his­
tórias artísticas sobre a Queda para reconhecer e entender a natu­
reza do mal, no esforço de evitar a tentação em nossa vida e dar
testemunho ao nosso próximo caído. Lemos a grande literatura
sobre a Redenção para mergulhar nas boas-novas de que temos
possibilidades gloriosas de transformação. E lemos histórias com
imagens pentecostais para experimentar o poder renomeador e
restaurador da língua de fogo.
Os cristãos, concluo, têm o privilégio feliz, na verdade a res­
ponsabilidade, de ler e incentivar os outros a lerem a grande lite­
ratura que participa da criatividade de Deus, fala a verdade sobre
a Queda, que nos auxilia a entender as Boas-novas de redenção, e
que nos capacita com a língua de fogo do Pentecostes da restaura­
ção e renomeação espirituais. Escolhi começar este capítulo com
o inspirador e primeiro versículo do Evangelho de João: “No prin­
cípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” .
Encerro o capítulo com uma referência a João 1.14, pois imagino
que se João o tivesse coescrito, ele poderia tê-lo concluído assim:
E o Verbo se fez carne na grande literatura e habitou entre nós, e
vimos a Sua glória, como a glória do Unigénito do Pai, cheio de graça
e de verdade sobre a Criação, a Queda, a Redenção e o Pentecostes.58
Revisão e Questões para Discussão
A I m p o r t â n c ia
da
C r ia t iv id a d e
do
A r t is t a L it e r á r io
1. Na criação, Deus tirou a ordem do caos. Discuta como é que
uma forma bem conhecida, como o conto de fadas, pode ajudar a
trazer ordem na vida de uma criança. Se você teve experiências
úteis em sua vida lendo contos de fadas ou outras formas de litera­
tura, descreva essas experiências que usam os conceitos desen­
volvidos no capítulo.
2. Como o autor usa a palavra nomeação ? Discuta a diferença
entre “compartimentar” e “nomear” outra pessoa.
3. Como a “nomeação” pelo artista literário ajuda a restaurar
um pouco da imagem de Deus em nós? Descreva alguma experi­
ência positiva que você tenha tido de ser “nomeado” ao ler uma
obra imaginativa da literatura.
A I m po r t â n c ia
das
R epr e se n t a ç õ e s L it e r á r ia s
da
Q ueda
1.
Por que o artista literário tem de contar a verdade sobre a
Queda?
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
2. Como a literatura pode nos ajudar a entender melhor o nãocrente?
3. Que tipo de literatura os cristãos devem ler? Por quê? D is­
cuta os exemplos.
4. Dorothy Sayers descreve alguns escritos como “mero entre­
tenimento” . Explique e ilustre o que ela quer dizer.
5. Como os cristãos responsáveis devem ler? Em outras pala­
vras, que critérios devem aplicar quando avaliam a literatura ima­
ginativa? Discuta um exemplo específico da leitura que você fez
de um romance ou historieta de maneira responsável.
A I m po rt â n c ia
das
R epresen ta çõ es L iterá ria s
da
R edenção
1. Argumente como o uso de imagens literárias nos faz lembrar da
Redenção. Por exemplo, explique a função da imagem do pai dando
as boas-vindas ao filho pródigo na parábola que Jesus contou.
2. Explique como a tragédia shakespeariana Romeu e Julieta
nos lembra que a Redenção vem pelo sacrifício. Discuta qualquer
outro exemplo de obras literárias que nos lembrem que a Reden­
ção vem pelo sacrifício.
A I m p o r t â n c ia
do
da
L it e r a t u r a
que
E m preg a Im agens
P entecostes
1. Explique como a língua foi afetada no Pentecostes.
2. Quais são as imagens predominantes que acompanharam a
vinda do Espírito Santo no D ia de Pentecostes (Atos 2.1-4)? E x ­
plique como C . S. Lew is usa estas imagens na criação de Narnia
em O Sobrinho do Mago.
Projetos Sugeridos para Reflexão
1.
Leia a história de Flannery 0 ’Connor, “Revelation” . Esta
história pode ser achada em Flannery 0 ’Connor: The Complete
Histories, publicada por Farrar, Straus & Giroux, Nova York, 1971.
Depois responda as seguintes perguntas:
a) O que a senhora Turpin pensa de si mesma na primeira parte
da história?
b) O que acontece com o entendimento da senhora Turpin depois
que Mary Grace a golpeia com o livro no consultório médico?
c) Qual é o significado de M ary Grace “nomear” a senhora
Turpin de “javali africana” ?
d) Quando a senhora Turpin tem a visão das almas “ribomban­
do em direção ao céu” , por que você acha que ela está “indo para
o fim da procissão” ?
e) O que significa o fato de a senhora Turpin ter sua visão
quando estava ao lado do chiqueiro?
f) A visão da senhora Turpin de sua própria pecaminosidade dá
a você a esperança de que ela será salva?
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TWILA BROWN EDWARDS
g)
A história o ajudou a ver alguma atitude sua própria que
precisa do perdão e cura de Cristo? Nomeie a atitude e discuta
com um amigo de sua confiança maneiras de você ser curado.
2.
Argumente outras obras literárias que usem imagens associ­
adas com o Pentecostes: vento, fogo, língua.
a) Por exemplo, leia That Hideous Strength, de C . S. Lew is.
Note a cena onde Ransom e M erlin estão conversando num
cenáculo e, de repente, as janelas se abrem com o vento e um
vento sopra impiedosamente no recinto. Ransom acha-se “ senta­
do no próprio cerne da palavra, no forno incandescente da fala
essencial. Todos os fatos foram quebrados, esparramados em ca­
taratas, presos, [...] mortos e renascidos com [verdadeiro] signifi­
cado” (pp. 321, 322). Esta descrição magnífica não indica que
nossa língua poderia ser assim, se todas as mentiras da serpente
fossem retiradas dela?
b) Leia também The Final Best, de Frederick Buechner. Obser­
ve as muitas imagens do Espírito Santo usadas neste livro, à medi­
da que o personagem principal, um ministro, prepara um sermão
para pregar no D ia de Pentecostes.
Bibliografia Selecionada
O b r a s L it e r á r ia s P r im á r ia s
A Divina Comédia, de Dante (tradução de Ciardi).
A Rainha do Reino Encantado, de Spenser.
Macbeth, de Shakespeare.
O Paraíso Perdido, de M ilton.
As Viagens de Gulliver, de Sw ift.
David Copperfield, de Dickens.
Hedda Gabler, de Ibsen.
Saint Joan, de Shaw.
As Histórias Completas, de Flannery 0 ’Connor.
O b r a s L it e r á r ia s S e c u n d á r ia s
C H ESTER TO N , Gilbert K . “The Ethics of Elfland.” Orthodoxy.
Garden C ity, Nova Jersey: Doubleday, 1959.
ED W A R D S, M ichael. Towards a Christian Poetics. Grand
Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1984.
G A E B E L E IN , Frank E . The Christian, The Arts, and Truth.
Portland, Oregon: Multnomah, 1973.
H O LM ES, Arthur, editor. The Making o f a Christian Mind: A
Christian World View & the Academic Enterprise. Downers Grove,
Illin o is: InterVarsity Press, 1985.
R Y K E N , Lelan d . The Liberated Imagination: Thinking
Christianly About the Arts. Wheaton, Illin o is: Shaw, 1989.
S A Y E R S , Dorothy. The Mind o f the Maker. São Francisco:
Harper & Row Publishers, 1941.
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
Y A N C E Y , Ph ilip , editor. Reality and the Vision: Eighteen
ContemporaryWritersTellWhoTheyReadandWhy. Dallas: Word, 1990.
Notas bibliográficas
1. Madeleine L ’Engle, Walking on Water: Reflections on Faith
andArt (Wheaton, Illin o is: Harold Shaw, 1980), p. 54.
2. Madeleine L ’Engle, A Swiftly Tilting Planet (Nova York:
D e ll, 1978), pp. 156, 157. Nesta história de fantasia, Charles
Wallace e Gáudio, um unicórnio, estão feridos e exaustos por cau­
sa de uma batalha contra as forças do mal conhecidas por Ectrói.
O unicórnio sábio percebe que eles devem se restabelecer antes de
travar outros combates para vencer o m al, por isso permite que
Charles monte em suas costas para irem à casa dos unicórnios,
onde a neve e o gelo têm propriedades curativas milagrosas. En ­
quanto estava nesta terra onde seres humanos nunca antes tinham
estado, Charles tem a experiência inspiradora de ver um unicórnio
bebê sair da casca do ovo. Os unicórnios só se alimentam de luz
estrelar e do luar.
3. M ichael Edwards, Towards a Christian Poetics (Grand
Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1984), p. 217.
Este trabalho foi muito influente na formação de minhas visões
apresentadas neste capítulo.
4. Ib id ., p. 217.
5. J. R . R . Tolkien, “ On Fairy-Studies” , in: The Tolkien Reader
(Nova York: Ballantine, 1966), p. 40.
6. M ichael Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 218.
7. Walter Wangerin Jr., “ Hans Christian Andersen: Shaping the
C hild’s Universe” , in: Reality and the Vision, editor Philip Yancy
(D allas: Word, 1990), pp. 2-5.
8. Ib id ., p. 5.
9. Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 9.
10. Ibid ., pp. 8, 9.
11. Jean Richards, God’s Gift (Nova York: Delacourte, 1993).
12. U Eng le, Walking on Water, p. 46.
13. Madeleine U Eng le, A Wind in the Door (Nova York: D ell,
1973), p. 114.
14. John M ilton, “ O f Education” , in: John Milton: Complete
Poems and Major Prose, editor M erritt Y. Hughes (Nova York:
Odyssey, 1957), p. 664.
15. Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 10.
. 16. Ibid.
17. Ibid.
18. T. S. Elio t, “Four Quartets” , in: T. S. Eliot: CollectedPoems
1909-1962 (Nova York: Harcourt, 1963), p. 180.
19. Até a B íb lia registra o comportamento caído da humanida­
de (por exemplo, D avi e Bate-Seba, Caim e Abel, os reis maus de
Israel).
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TWILA BROWN EDWARDS
20.
Não estamos usando a expressão dar testemunho só com o
significado de “ evangelizar” , mas para incluir a advertência da
Grande Comissão de Jesus de fazer discípulos e ensinar seus man­
damentos (Mateus 28.19,20).
21 Dorothy L . Sayers, “ Toward a Christian Aesthetic” , in:
ChristianLetters to a Post-Christian World: A Selection ofEssays (Grand
Rapids: William B . Eerdmans Publishing Company, 1969), p. 77.
22. Na língua original, esta expressão referia-se comumente à
impressão ou estampa de uma moeda.
23. Ib id ., pp. 77, 78.
24. Ib id ., p. 80.
25. Ibid.
26. Samuel Taylor Coleridge, “The Statesman’s Manual” , in:
The Norton Anthology ofEnglish Literature, 6.a edição, volume 2,
editores M . H . Abrams et al. (Nova York: Norton, 1993), p. 399.
27. Sayers, Christian Letters, p. 81.
28. Ibid.
29. Ibid., pp. 81,82.
30. Flannery 0 ’Connor, “ Letters” , in: Flannery 0 ’Connor:
Collected Works (Nova York: Library of Am erica, 1988), p. 1165.
31. Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 12.
32. PaulWatzlawick, The Language ofChange: Elements ojTherapeutic
Communication (Nova York: Basic Books, 1978), pp. 56-69.
33. Veja Bruno Bettelheim , The Uses o f Enchantment: The
Meaning andImportance ofFairy Tales (Nova York: Knopf, 1977),
pp. 122, 123.
34. Veja Apocalipse 19.11,15; 20:10.
35. Thomas Keneally, Schindler’s L ist (Nova York: Simon &
Schuster, 1982), p. 394.
36. David Bevington, “Introduction to Romeo and Juliet” , in:
The Complete Works o f Shakespeare, 3.a edição, editor David
Bevington (Nova York: Harper, 1980), p. 993.
37. W illiam Shakespeare, “Romeo and Juliet” , in: The Com­
plete Works o f Shakespeare, editor Hardin Craig (Chicago: Scott,
Foresman, 1961), 1.5, pp. 140-143.
38. Ibid., 2.3, pp. 90-93.
39. Ibid., 1.5, p. 137.
40. Ibid., 5.3. pp. 291-293.
41. Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 54.
42. Ibid ., p. 53.
43. W illiam Shakespeare, “Midsummer Night’s Dream” , in:
The Complete Works o f Shakespeare, editor Hardin Craig (Chica­
go: Scott, Foresman, 1961), 3.1, pp. 117, 118, itálicos meus.
44. Ibid ., 3.1, pp. 153-164.
45. Ibid., 4.1, pp. 208-217.
46. Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 69.
47. Northrop Frye, The Great Code: The Bible and Literature
(Nova York: Harcourt, 1982), p. 169.
O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO
48. Tolkien, “ On Fairy-Stories” , p. 68.
49. Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 12.
50. Ibid., p. 65.
51. Frye, Great Code, p. 162.
52. C . S. Lew is, The Magician’s Nephew (Nova York: Collier,
1986), p. 99.
53. Ibid., p. 107.
54. Ibid., p. 113.
55. Ibid ., p. 116, itálicos meus.
56. Ibid., pp. 144-115.
57. Saint John Perse, Two Addresses (Nova York: Bollingen
Foundation, 1966), p. 14.
58. Este capítulo não é sobre a natureza da B íb lia como litera­
tura. Creio que é a maior literatura jam ais escrita da mesma ma­
neira que creio que é a Palavra inspirada de Deus. Claro que a
B íb lia é escrita em formas literárias como poesia, provérbios,
apocalipse etc. Desde a década de 1970, têm aparecido numero­
sos livros e composições que analisam a B íb lia como literatura
feita por estudiosos literários e bíblicos, sustentando ampla gama
de posições teológicas. Os leitores que desejam explorar este tó­
pico são convidados a começar com o trabalho de Leland Ryken,
Literature o f the Bible (A Literatura da B íb lia) (Grand Rapids:
Zondervan Publishing House, 1974).
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11
Os Cristãos e
a Cultura da
Mídia de
Entretenimento
Terrence R. Lindvall e J. Matthew
Melton
3 9 2
TERRENCE R. LINDVALL E J. MATTHEW MELTON
/
uma peruca que você está usando?” , perguntou-lhe ela, apon­
tando para a cabeça dele.
“ Sim , e o que chama você isso, touca de chuveiro?” , con­
tra-atacou ele.
Assim foi o programa. Dois ícones da cultura popular, Madonna
e David Letterman, estavam se atacando na televisão tarde da noi­
te. Letterman, por um lado, estava numa posição única. Como al­
guém que alcançara boa colocação sendo ultrajante, ele descobriu
que tinha mais do que podia lidar com a rainha do shock-and-roll.
Pelo lado dela, Madonna estava fazendo o mundo da rede de tele­
visão se contorcer com seus comentários insípidos nos intervalos
comerciais, até que finalmente chegou o momento dela ir embora.
Quando tudo tinha misericordiosamente terminado e a Madonna
se fora, Letterman emoldurou o episódio inteiro quando pilheriou:
“Nossa próxima convidada é a Madre Teresa de Calcutá” . A mon­
tanha de tensão dissolveu-se em riso, não da Madre Teresa, mas
da enorme incongruência com o pensamento de que alguém, con­
siderada santa por todos, aparecesse no mesmo programa de tele­
visão que Madonna. Talvez sem querer, Letterman tenha chama­
do a atenção a uma grande preocupação para os crentes contem­
porâneos. O quanto é enorme a brecha entre o cristianismo e a
cultura popular contemporânea, e que tipos de desafios esta bre­
cha apresenta?
Como deve ser a relação entre os cristãos e a cultura popular?
Que analogias e princípios bíblicos nos proporcionam perspecti­
vas sobre como relacionar-se com o mar selvagem do entreteni­
mento da mídia no qual estamos flutuando? Este capítulo limitase deliberadamente à cultura popular da mídia de entretenimento.
O cinema e a televisão abastecem a literatura e a produção dramá­
tica da sociedade contemporânea, e por sua infiltração e volume
abusivo quase abafa as vozes das outras produções da cultura po­
pular. Esta geração é dominada pela mídia de entretenimento v i­
sual, que merece atenção particular. Pelas histórias de como Daniel,
o povo de Israel, o apóstolo Paulo e a igreja histórica lidaram com
as culturas que os cercavam, tentarei originar uma compreensão
de nosso predicamento contemporâneo. Fazendo assim, desejo
realizar duas coisas: 1) enunciar uma posição de discernimento
crítico para aqueles cuja resposta à cultura popular é ou de medo
da “ contaminação” ou, no outro extremo, de consumo compla­
cente, e 2) recomendar uma abordagem redentora que busque trans­
formar a cultura.
Antes que nos engolfemos nesta discussão, vale a pena afirmar
o lugar central da nossa fé cristã. Faço eco a C . S. Lew is, quando
ele assevera que “ o cristão sabe desde o início que a salvação de
uma única alma é mais importante do que a produção ou preserva­
ção de todas as epopéias e tragédias do mundo” .1 O cristianismo
confessa a centralidade da fé em Jesus Cristo. Nossa vida deve ser
vivida em submissão feliz a esta pessoa, inclusive numa compre­
OS CRISTÃOS E A CULTURA DA MÍDIA DE ENTRETENIMENTO
ensão de nossos direitos e responsabilidades como cristãos. Inves­
tigando uma tensão entre o direito de produzir ou revisar arte e a
responsabilidade de avaliá-la, especialmente no tocante a film es,
Mortimer Adler contrastou duas maneiras sugeridas pelo cristia­
nismo. “ Não é no espírito de Savonarola que as artes devem ser
açoitadas e eliminadas, mas no espírito de Tomás de Aquino, que,
no fim da vida e em êxtase religiosa, disse de sua obra Suma Teo­
lógica — incontestavelmente magnífica como produção da arte
humana — : ‘Parece lix o ’ .” 2 Tomás de Aquino reconheceu que os
objetivos gloriosos da cultura são transitórios e passarão. Em con­
traste, o objeto mais santo que nos é apresentado, depois do pró­
prio Deus, é o nosso próximo; pois ele foi criado à imagem de
Deus e para a eternidade. Nosso prazer e contemplação da cultura
têm de fielmente manter este conjunto de prioridades.
Definindo Cultura
“Cultura” , derivado do latim cultura, refere-se aos costumes e
produtos sociais inventados pelos seres humanos e refletindo suas
crenças e valores. Segundo é interpretada nos dias de hoje, a cul­
tura é caracterizada pelas artes, hábitos e comportamentos de um
grupo social. Assim as meninas vitorianas da década de 1890 eram
tão constrangidas por sua cultura quanto eram as meninas materi­
ais da década de 1980. Ambas seguiam a moda e a novidade que
compunham a cultura popular, quer seja a “baixa” cultura das
massas ou a “ alta” cultura da elite.
No século X IX , Matthew Am old, poeta e crítico inglês, des­
creveu a cultura como o ato normativo de “nos familiarizarmos
com o melhor do que era conhecido e dito no mundo” .3As pesso­
as tendem a ver a cultura como a “cultivação” do melhor e mais
esplêndido, dos ideais mais sublimes em termos de gosto e refina­
mento, das coisas boas com as que se esperava estar associado:
livros bons, companhia boa, roupas boas, música boa, teatro bom
e coisas assim. A bondade incluía as dimensões morais e estéticas:
Podia-se ser instruído nas coisas boas e simultaneamente achar
prazer.
Sob o ideal da alta cultura está a cultura que a massa das pes­
soas quer de fato. A cultura popular contemporânea raramente se
preocupa com o que é “bom” . Tomou-se mais associado com o
que é mantido em comum numa dada sociedade ou com o que
venderá. A cultura que é consumida em larga escala torna-se “ cul­
tura popular” . O álbum Thriller, de M ichael Jackson, os filmes
Titanic, de James Cameron e O Parque dos Dinossauros, de
Stephen Spielberg, qualificam-se — não necessariamente porque
sejam intrinsecamente bons, mas porque são de grande populari­
dade. Estas artes da mídia atraem às massas e não requerem alto
grau de sofisticação intelectual ou refinamento cultural.4
A cultura popular que tratamos aqui é o entretenimento visual:
3 9 3
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TERRENCE R. LINDVALL E J. MATTHEW MELTON
cinema, televisão, vídeo e as novas formas da tecnocultura, como
vide o games interativos. De muitas formas, esta mídia baseada
em imagens mostra uma influência às vezes evidente, às vezes
sutil, mas sempre poderosa no desenvolvimento de nossa cultura.
Neste sentido, N eil Postman vê a questão de se a mídia visual
molda ou reflete a cultura como antiquada. Na sua visão, a televi­
são e o cinema tornaram-se nossa cultura.5
Se a avaliação de Postman está ligeiramente exagerada, sua
avaliação da influência da mídia visual na cultura contemporânea
indubitavelmente levanta questões básicas para o povo da fé. Por
exemplo, será que verdadeiramente entendemos até que ponto
nossa vida e cosmovisão são influenciadas pela mídia visual —
particularmente pela mídia de entretenimento baseada em ima­
gens? Outrossim, que respostas uma visão como a que Postman
George Lucas, diretor do film e Guerras
nas Estrelas e, por conseguinte, moderno fa­
bricante de mitos, declara que o cinema e a
televisão suplantaram a igreja como grandes
comunicadores de valores e crenças. (Veja
D ale Po llack, Skywalking: The Life and
Films o f George Lucas [Andando nas Estre­
las: A Vida e os Film es de George Lucas]
[Nova York: Harmony Books, 1973], pp.
139-144.) Apresentando a série de PBS exi­
bida cm 1994, American Cinema (Cinema
Americano), John Belton comparou ir ao ci­
nema com uma experiência relig io sa e
extática. Até o grande Teatro Roxy de 6.200
lugares, em Nova York, foi anunciado como
“ a catedral do cinema". (American Cinema/
American Culture [Cinema Americano/Cul­
tura Americana] [Nova York: M cG raw -H ill,
1994], pp. 3 ,4 .) “O fato é indisputável” , es­
creveu W illiam Kuhns. “As pessoas hoje v i­
vem ‘pela mídia’, ao passo que outrora v iv i­
am ‘pelo livro ’ ” (The Electronic Gospel:
Religion and Media [O Evangel ho Eletrônico: Religião e M ídia] [Nova York: Hcrder &
Herder, 1969]). A possibilidade de que a
mídia substitua o papel historicamente vital
desempenhado pela igreja na formação dos
valo res
de
uma
com unidade
é
desconcertante, mas compreensível. Para
muitos, o cinema se tornou uma igreja virtu­
al.
Mesmo dentro de nossa casa, verificamos
que as devoções fam iliares são suplantadas
pelos deuses domésticos eletrônicos. A tele­
visão pode funcionar como santuário priva­
do ao deus das imagens — um deus do lar
grego ou olímpico da ESPN , um Buda pes­
soal da Televisão P ú b lica ou um deus
dionísio da T V a cabo. Cada um oferece sua
própria visão da vida boa. E frequentemente
jazemos prostrados diante de nosso deus, fi­
cando até preguiçosos e indolentes.
A transformação de uma cultura oral
centrada na palavra para uma cultura eletrônica centrada na imagem apresenta desafio
especial para estudiosos e estudantes cris­
tãos, sobretudo levando-se em conta o po­
der hoje reconhecido das imagens. Os valo­
res promovidos na cultura popular da televi­
são e do cinema raramente são os da fé cris­
tã. O egoismo, o hedonismo, a cobiça, a vin­
gança, a luxúria, o orgulho e uma legião de
outros vícios são muito bem-sucedidos em
competir com o fruto do Espírito de amor,
alegria, paz, longanimidade, benignidade,
bondade, fé, mansidão e temperança (Gálatas
5.22,23). A tarefa dos cristãos é descobrir se
algum destes valores bíblicos existe em ex­
OS CRISTÃOS E A CULTURA DA MÍDIA DE ENTRETENIMENTO
3 9 5
tem da cultura extraem de nós? Cristãos pensativos procuraram
formar suas respostas dentro do entendimento que tinham das E s­
crituras. É para algumas destas questões bíblicas centrais que agora
nos voltaremos brevemente.
A Criação e a Queda
Uma compreensão do relacionamento do cristão com a cultura
pode ser fundamentada em duas doutrinas bíblicas: a Criação e a
Queda. Cada uma enfatiza uma verdade particular relativa à con­
dição humana que parece contradizer ou opor-se à outra. Porém,
ambas são verdadeiras e devem existir numa tensão saudável e
frutífera. Caso contrário, se nos alinharmos a uma das duas dou­
trinas, nossas respostas à cultura diferirão consideravelmente, e se
pressões particulares da cul tura popular, para
expor o falso e celebrar o bom e o verdadei­
ro. Neste sentido, a recomendação de Paulo
aos cristãos filipenses permanece verdadei­
ra: “ Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é
verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que
é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amá­
vel, tudo o que é de boa fama, se há alguma
virtude, e se há algum louvor, nisso pensai”
(Filipenses 4.8). Nossa contribuição à cul­
tura popular, seja como espectador (o con­
sumidor) ou como artista (o produtor), deve
seguir a exortação de Paulo para abranger a
integridade, a virtude e a beleza em nossos
pensamentos e ações, independente da ênfa­
se comum demais que a cultura popular dá
aos valores opostos.
Dissemos que a cultura popular contem­
porânea raramente se preocupa com o que é
bom. Portanto, os cristãos devem ser extre­
mamente seletivos nas atividades da cultura
popular nas quais escolhem participar. A in ­
da que a escolha entre o que é popular e o
que é biblicamente apropriado não seja fá­
c il, é necessária a fim de mantermos um re­
lacionamento saudável com o Senhor.
Trabalhos a consultar: No seu estudo
provocativo The Electronic Golden Calf:
Images, Religion and the Making ofMeaning
(O Bezerro Eletrônico de Ouro: Imagens,
R elig ião e a Fabricação do Significado
(Cambridge, Massachusetts: Cowley, 1990),
Gregor T. Goethals entra nas artes visuais
populares, expondo como elas medeiam va­
lores e form am o caráter. W illia m D.
Romanowski analisa com perícia o papel
religioso do entretenimento na vida ameri­
cana em sua obra alegre Pop Culture Wars
(G uerras da Cultura Popular) (Downers
Grove, Illin ó is: InterVarsity Press, 1996).
Três artigos que exploram a idéia, promessa
e ameaça dos cristãos e film es contemporâ­
neos são, respectivam ente, “ C h ristia n
Perspective on Film ” (“ Perspectiva Cristã
sobre o Cinema” ), de M ark Coppenger, em
Christian Imagination (Imaginação Cristã),
de Lei and Ryken (Grand Rapids: Baker,
19 81), pp. 285-302; “ Sp ectacular
Transcendence: Cinematic Representation of
A fric a n
A m erican
C h ris tia n ity ”
(Transcendência Espetacular: Representação
Cinemática do Cristianismo Americano A fri­
cano), de Terry L in d v a ll, The Howard
Journal o f Communications, volume 7, n.°
5, 1996, pp. 205-220; e “ Yikes! Nightmares
From H o llyw o o d ” (U i! Pesadelos de
Hollywood), de Roy M . Anker, Christianity
Today, 16 de junho de 1989, pp. 18-23.
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TERRENCE R. LINDVALL E J. MATTHEW MELTON
interpretarmos uma doutrina isoladamente da outra ou propormos
uma das duas como meio exclusivo para lidar com a cultura popu­
lar, seu significado pode ser torcido e abusado. Escolhi rotular
estas duas respostas: criacionista e conversionista.6
Por um lado, colocamos a doutrina de Deus como Criador. As
Escrituras declaram, como o faz a natureza, que Deus criou tudo e
que E le criou tudo muito bom e agradável. O Credo Apostólico
confessa crença em Deus Pai, Criador do céu e da terra. Estudan­
do a doutrina da Criação, descobrimos de Génesis o bom funda­
mento para toda a vida. O salmista declara a glória de Deus na
Criação (Salmo 19), e Paulo mostra que todas as pessoas podem
entender a natureza divina claramente contemplando a ordem cri­
ada (Romanos 1.19,20). Rastros, pistas, sugestões, sussurros e
rumores do poder e graça de Deus estão espalhados neste mundo, e
os seres humanos, de acordo com Paulo, têm a visão para ver a beleza
da bondade de Deus. Cada sarça, se pudéssemos vê-la como sarça
ardente, é uma mensagem de Deus para nós como foi para Moisés.
A abordagem criacionista celebra a bondade em tudo. Tende a
ser otimista, romântica, às vezes até ingénua, em sua abordagem à
vida. Olhando pelas barras da prisão, olha as estrelas. É uma res­
posta cheia de alegria e gratidão, esperança e deleite, sabendo que
o próprio Deus fez este mundo e que tudo nele é bom. O criacionista
recebe o mundo com regozijo, pois ele tem os olhos da fé para ver
Deus que trabalha para o bem daqueles que o amam e são chamados
de acordo com os seus propósitos (Romanos 8.28). Porém, o
criacionista pode negligenciar o problema do pecado, do mal e da Que­
da e preferir, como Forrest Gump, ver a bondade em todas as coisas.
Ao lado desta doutrina afirmante da mais excelente obra de
Deus está a clara e bíblica doutrina da Queda. Aquilo que foi cri­
ado bom foi “ depravado” (termo de João Calvino) ou “ eclipsado”
(termo de Agostinho).7As Escrituras declaram que, porque Adão
e Eva comeram o fruto da árvore da ciência do bem e do m al, seus
descendentes e toda a criação em si foram
amaldiçoados e colocados sob o julgamento
"A Criação e a Queda — estas
de Deus. Sendo assim, toda a criação tem de
duas doutrinas definem nosso
esperar e gemer por sua redenção (Romanos
3.10; 8.22). Estudando a doutrina da Queda,
predicamento. Fomos criados bons,
descobrimos a tendência de todas as coisas a
mas caímos".
apodrecer, ou se estragar, tanto a imaginação
humana quanto uma salada de ovo. Assim , com
justiça somos suspeitos da corrupção e perversão do pecado hu­
mano. Informado pela doutrina da Queda, o conversionista vê a
necessidade de todas as coisas serem mudadas e acertadas.
Relacionada com a Criação e a Queda está a natureza dos seres
humanos, criaturas feitas à imagem de Deus, mas que repudiam
seu Criador. O fato da Queda requer redenção; as pessoas preci­
sam ser co n vertid as, transform adas, fe ita s de novo. O
conversionista nota a observação de Paulo em Romanos, onde ele
OS CRISTÃOS E A CULTURA DA MÍDIA DE ENTRETENIMENTO
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destaca que embora a grandeza sublime de Deus seja evidente,
sua criação humana recusou dar-lhe honra ou gratidão. Eles “mu­
daram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem
de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis”
(Romanos 1.23). A humanidade adorou suas imagens falsas em
vez do próprio Deus. E assim, todos nos tornamos escravos da
perversão e depravação e necessitamos desesperadamente sermos
redimidos e salvos de nosso pecado. O conversionista acredita que
até os crentes vivem em um mundo corrupto e caído, com armadi­
lhas e ciladas colocadas diante de nossos pés. Estamos num mun­
do perigoso e devemos ser cautelosos, pois Satanás está na ronda,
buscando nos devorar.
A Criação e a Queda — estas duas doutrinas definem nosso
predicamento. Fomos criados bons, mas caímos. Ainda trazemos
a imagem de Deus, mas esta está arruinada. Fazendo-nos como
E le , o Deus que fala (ou, como Francis Schaeffer escreveu, O Deus
que não está em Silêncio ) nos deu uma característica importante
de sua natureza: E le nos fez comunicadores. E le também nos fez,
na palavra de Tolkien, subcriadores.8 E como
subcriadores, nossa obra de comunicação é a
"Embora a Queda subvertesse os
cultura. A prim eira cultura do ser humano
(como nos diz a Escritura) foi a agricultura, a
resultados completamente bons do
chamada para cultivar um jardim , para colocámandamento cultural, não mudou
lo em ordem. Então, no jardim , Adão, não
o mandamento em si."
Deus, nomeou os animais e criou uma cultura
da língua humana. E Adão e Eva receberam o
“ domínio” , a responsabilidade de manter a or­
dem na sua cultura de jardim . Deus abençoou Adão e Eva com o
mandamento cultural de reger a Criação, que E le viu como muito
boa (Génesis 1.31).
Embora a Queda subvertesse os resultados completamente bons
do mandamento cultural, não mudou o mandamento em si. Já no
primeiro capítulo de Génesis, temos a ordem de atender a totali­
dade da criação e reger como regentes no nome de Deus e para a
sua glória.9 Independente da Queda, nós os seres humanos, rece­
bemos esta chamada especial para sermos subcriadores da cultu­
ra, nomeadores e identificadores de nossas criaturas companhei­
ras. E ainda estamos investidos com o desafio de manter a ordem
na terra. Mas a Queda tornou ambas as tarefas culturais infinita­
mente mais difíceis. Há a confusão das línguas, por assim dizer,
na prática corrente de “nomear” e o egoísmo excessivo, que foi
resultado da Queda, tornou o desenvolvimento de uma cultura
redimida num desafio contínuo.
As discordâncias entre a visão criacionista e a conversionista
sobre a cultura popular, originam-se das atitudes acerca dos efei­
tos da Queda. Ingrid Shafer caracteriza os dois grupos como os
que primariamente “ vêem o mundo corrompido pelo pecado ori­
ginal contra os que vêem o mundo ligado pela bênção original” .10
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TERRENCE R. L1NDVALL E J. MATTHEW MELTON
A posição criacionista adota uma perspectiva do jardim do Éden,
na qual a bondade e a beleza são vistas a estar no centro, ou na
base, de toda a arte e cultura popular. Por outro lado, o
conversionista vê um mundo corrompido em dilemas medonhos.
Qualquer coisa feita pelo esforço humano não é melhor que ester­
co (F ilip e n se s 3 .8 ). N ossa m elhor resp osta, d iriam os
conversionistas, é estarmos separados do mundo para rejeitar a
ele e aos seus produtos.
Os cristãos precisam reconhecer a validade de ambas as pers­
pectivas. As vezes, precisamos fugir do prazer que nos é ofereci­
do, como fez José (e não fez Pinóquio na Ilha do Prazer). Em
outros momentos, temos de participar do que nos é apresentado e
desfrutar livremente o luar da cultura popular, mas reconhecendo
que não passa de luz do sol de segunda mão. No mundo do cinema
de hoje, o prazer de olhar o caminho surpreendente do homem
com uma virgem (como diz Provérbios 30.18,19) parece como
uvas suculentas em tais comédias românticas como o film e de
Frank Capra, Aconteceu Naquela Noite (1934), ou a comédia de
Steve M artin, Roxanne (1987).
A justificação para os cristãos que participam da cultura popu­
lar deriva dos princípios de liberdade e discernimento. Cada um
de nós é convidado não só a desfrutar Deus, mas desfrutar de sua
criação e criaturas. Podemos trabalhar e representar a glória de
Deus, sendo livres e cautelosos. Nas seções mais finais deste capí­
tulo consideraremos dois modelos para nos envolver com a cultu­
ra popular. Nossa meta é encontrar um modelo equilibrado que
integre as duas doutrinas da Criação e da Queda e que venham a
moldar nossa alma e nossos apetites. Ao mesmo tempo, lembrome do engano do homem mundanamente sábio de O Peregrino,
de John Bunyan, que saboreou as doutrinas do mundo e deixou
que moldassem sua alma tanto quanto o estômago. Portanto, vol­
temos noss
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