FAMÍLIA OUVINTE: DIFERENTES OLHARES SOBRE SURDEZ E EDUCAÇÃO DE SURDOS DORNELES, Marciele Vieira – UFSM [email protected],.br Eixo Temático: Diversidade e Inclusão Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Muitos estudos discutem sobre a educação dos sujeitos surdos. Entretanto, a questão da escolha pelo tipo de escola e a modalidade de ensino para crianças surdas, ou seja, optar por uma escola de ensino regular para ouvintes ou uma escola para surdos, é uma decisão importante que remete a questões relativas ao que se entende sobre a surdez, cultura, comunidade e identidade surda. E, geralmente, essa escolha é feita pelos familiares ouvintes, a partir de suas representações a cerca do sujeito surdo e da surdez. Devido a isso, o presente trabalho busca problematizar as representações do surdo e da surdez da família ouvinte que levam à escolha pelo tipo de escola e a modalidade de ensino para o filho surdo. Para maior enriquecimento do suporte teórico, foi realizada uma pesquisa qualitativa com familiares ouvintes em Santa Maria/RS, a fim de obter relatos de pais que tenham filhos surdos no período de escolarização. Ao todo foram seis famílias entrevistadas, sendo que quatro tem filhos em escolas para surdos e as outras duas os filhos são incluídos em escolas para ouvintes. Portanto, embasada na sustentação teórica dos autores e nas narrativas coletadas nas entrevistas, foi possível concluir que as representações dos familiares ouvintes, quanto ao surdo e a surdez, influenciam na escolha pela escola da criança surda, porém, quando esses familiares optam pela escola para surdos e passam a ter contato com a comunidade surda, essas representações podem ser modificadas. Devido a isso, é ressaltada a importância de que, não só os familiares ouvintes, mas os profissionais da área da saúde, da educação e os próprios membros da sociedade possam refletir sobre suas representações, para que o sujeito surdo possa – de fato – ser reconhecido e respeitado na sua diferença. Palavras-chave: Surdez. Representações Sociais. Educação de surdos. Introdução Desde o início da educação de surdos (por volta do século XVIII) até os dias atuais, existem várias pesquisas e discussões acerca da surdez e da educação de surdos. Tais discussões permeiam diversos campos, como: o clínico, o político, o educacional, o 5665 linguístico, entre outros. Isso implica nas inúmeras concepções e visões em relação ao sujeito surdo. Entender que a surdez é uma deficiência, uma patologia e que esta precisa ser tratada e corrigida com terapias de fala é uma visão clínico-terapêutica da surdez. Nesse sentido, a educação destinada aos sujeitos surdos configura-se em uma abordagem oralista (RAMPELOTTO, 1993), na qual é feito um treinamento para que o surdo possa falar e, assim, igualar-se aos ouvintes. Ainda com essa visão, encontra-se a abordagem da comunicação total, na qual recorre a todos os recursos linguísticos, tanto orais quanto visuais para educar os surdos (RAMPELOTTO, 1993). Por outro lado, se a surdez é vista como uma diferença, na qual os sujeitos surdos fazem parte de uma comunidade linguística e culturalmente diferente, entendemos a surdez por uma visão sócio-antropológica. Com isso, a educação configura-se em uma abordagem bilíngue (SKLIAR,1999). É a partir dessas visões de “surdo” e “surdez” que se dá a educação do sujeito, na qual é escolhida uma modalidade de ensino. Ou seja, se pensada por um modelo clínicoterapêutico da surdez, a educação do sujeito surdo será em uma abordagem oralista – na escola para ouvintes. Já se a surdez for vista pela visão sócio-antropológica, aquela que precisa de uma educação bilíngue, esta se dará em uma escola para surdos com tal abordagem. A questão da escolha pelo tipo de escola e a modalidade de ensino para crianças surdas, ou seja, optar por uma escola de ensino regular para ouvintes ou uma escola para surdos, é uma decisão importante que remete a questões relativas ao que se entende sobre surdez, cultura, comunidade e identidade surda. Certamente a escolha a ser feita, geralmente pelos pais, será feita a partir de representações que são construídas a respeito da alteridade surda. A alteridade é aqui entendida como “a condição daquilo que é diferente de mim; a condição de ser o outro” (SILVA, 2000, p.16). Em vista disso, o presente trabalho busca problematizar as representações do surdo e da surdez da família ouvinte que levam à escolha pelo tipo de escola e da modalidade de ensino para a criança surda. Para isso, foi utilizado o conceito de Representações Sociais de Serge Moscovici. E, para maior enriquecimento do suporte teórico, foi realizada uma pesquisa qualitativa com familiares ouvintes em Santa Maria/RS, a fim de obter relatos de pais que tinham filhos surdos no período de escolarização. Ao todo foram seis famílias entrevistadas, 5666 sendo que quatro tem filhos em escolas para surdos e as outras duas os filhos são incluídos em escolas para ouvintes. A análise deste estudo é relevante, pois quem faz a opção da modalidade de ensino não é, na maioria dos casos, a criança surda, mas sim sua família ouvinte. E, como dito anteriormente, essa escolha tem relação com a visão que essa família tem do sujeito surdo e tudo o que implica as diferentes concepções de surdez. Deficiência e Diferença: Visões antagônicas do surdo e da surdez A surdez pode ser representada como uma deficiência – abarcando o pressuposto do modelo clínico-terapêutico; ou como uma diferença – representada pelo modelo sócioantropológico. E essas diferentes visões e formas de representar a surdez deixaram – e ainda deixam – marcas na educação e na vida dos surdos. A surdez, entendida como deficiência, supõe que o surdo tenha uma patologia que precisa ser tratada e curada. E a “cura” mais eficaz para resolver a surdez é ensinando o surdo a falar, utilizando-se o método da oralização. Nessa perspectiva oralista, o sujeito surdo é visto como deficiente e anormal, distinguindo-se dos ouvintes falantes. Com isso, o surdo é considerado uma pessoa que não ouve e, consequentemente, não fala, sendo definido por suas características negativas. Segundo Soares (1999), o oralismo, ou método oral, é um processo que busca capacitar o surdo na compreensão e na produção da linguagem oral, partido do princípio de que: mesmo não possuindo a audição para receber os sons da fala, o surdo pode constituir-se como um interlocutor. Com essa concepção de que o sujeito surdo deve ser treinado a falar, que faça leitura orofacial e que use aparelhos de amplificação sonora, para assim reabilitá-los e igualá-los aos ouvintes, temos uma visão clínico-terapêutica da surdez. O modelo clínico-terapêutico, preocupado principalmente com o diagnóstico e a reabilitação, reforça a visão de educação como método reabilitador colocado em cena a partir do diagnóstico médico, orientando a atenção para a cura do problema auditivo, correção de defeitos de fala e treinamento de habilidades como leitura labial (SKLIAR, 1997). A aprendizagem da língua oral, dirigida para a normalização do sujeito e sua adaptação à sociedade, é o principal objetivo das intervenções educacionais e terapêuticas, e esse modelo foi predominante até o final da década de 70. 5667 Ainda nesse cenário de normalização do surdo e correção da surdez, está inserida a abordagem de educação denominada Comunicação Total, na qual defende a utilização de todos os recursos linguísticos, tanto orais quanto visuais, simultaneamente. Isso implica a fala, a leitura orofacial, o treinamento auditivo, a expressão facial e corporal, a mímica, a leitura e escrita e os sinais. Porém, o sinal nessa concepção, não é tratado como uma língua de sinais, e sim como mais um recurso. Entretanto, tanto a abordagem da Comunicação Total quanto a Oralista, pertence a uma perspectiva Ouvintista, no qual ouvintismo é aqui entendido como na perspectiva de Skliar (1998, p.15), “um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte”. Nesse sentido, tem-se a ideia de que a identidade ouvinte é superior à identidade surda, e essa superioridade é manifestada através de representações e de práticas pedagógicas. Por outro lado, tem-se outra maneira de entender a surdez, a partir do reconhecimento de que a língua de sinais utilizada pelos surdos é uma língua natural, como quaisquer outras línguas de modalidade oral, no qual a surdez passa a ser representada pelo modelo sócioantropológico. Nesse modelo, é proposto que a surdez seja vista como uma diferença cultural e linguística, garantindo assim o direito dos sujeitos surdos terem acesso à língua de sinais e serem reconhecidos como pertencentes a uma minoria linguística. Nesse sentido, o modelo sócio-antropológico desloca o conceito de surdez da ordem médica para uma visão epistemológica, visto que o sujeito surdo pertence a uma comunidade linguística minoritária na qual utiliza uma língua de natureza espaço-visual. Com isso, o sujeito surdo deixa de ser visto como deficiente e patológico e passa a ser representado como diferente, surgindo assim a abordagem bilíngue de educação. Assim, Skliar (1999) descreve que, além da oposição à prática educativa tradicional dada ao surdo, o bilinguismo é considerado como um reconhecimento político da surdez como diferença, que leva conta o grupo linguístico e cultural no qual o surdo está inserido. Ancoradas nessa compreensão da surdez como diferença, as propostas bilíngues de educação norteiam-se pelo fato de que o acesso à linguagem dos sujeitos surdos deve dar-se através da língua de sinais, no caso do Brasil, pela Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Essa proposta pedagógica é defendida como sendo a maneira de os sujeitos surdos desenvolverem sua língua e se constituírem sujeitos. Na proposta bilíngue, deve ser considerado que comunidade surda possui uma cultura própria que precisa ser respeitada. Diante disso, a proposta deve ser também bicultural, para 5668 assim “permitir o acesso rápido e natural da criança surda à comunidade ouvinte e para fazer com que ela se reconheça como parte de uma comunidade surda” (QUADROS,1997, p.28). E, dessa forma, adquira além da língua de sinais, uma identidade surda. Outro fator relevante na proposta bilíngue é que a língua de sinais é reconhecida como a língua natural do surdo, na qual a criança surda pode adquiri-la espontaneamente no contato com surdos fluentes na língua. E isso assegura um papel de destaque aos adultos surdos, uma vez que eles representam uma referência positiva às crianças surdas na construção de suas identidades e garantem o acesso destes à cultura surda. A educação bilíngue assume que, segundo Góes (1996, p.43), “a língua de sinais como a primeira da criança surda, deve ser aprendida o mais cedo possível; como segunda língua está àquela utilizada pelo grupo social majoritário”, que é a língua oral escrita, pois a maioria das crianças surdas são filhas de pais ouvintes. Diante dos aspectos apresentados, sabe-se que, tanto a modelo de pensamento clínicoterapêutico quanto o sócio-antropológico, perpassam por questões de como o surdo e a surdez são representados e narrados. Portanto, de acordo com o que se entende sobre surdez (sendo pela deficiência ou pela diferença), adota-se um modelo de pensamento. Além disso, pode-se perceber que essas percepções estão diretamente relacionadas com a educação do sujeito surdo. Surdo/Surdez x Reações das famílias ouvintes No período da gestação, os pais constroem sonhos e imagens a cerca do filho, ou seja, idealizam o filho que está para nascer. Porém, se o filho tão desejado nasce com alguma necessidade especial, os sonhos construídos são substituídos por dúvidas e anseios, fazendo emergir neles o sentimento de perda do filho sonhado. Em se tratando do nascimento de crianças surdas, quando estas são filhas de pais surdos, pode-se dizer que é um acontecimento alegre, pois “é uma ocorrência naturalmente benquista pelo povo surdo que não vêem esta criança um ‘problema social’ como ocorre com a maioria das famílias ouvintes” (STROBEL, 2008. p.49). Pois, para esses pais, o filho nasceu com a mesma diferença que eles. Entretanto, mais de 90% das crianças surdas são filhas de pais ouvintes, sendo muitas vezes o único membro surdo da família. Por isso, quando é dado o diagnóstico da surdez, 5669 muitos pais “ficam chocados, deprimem-se e culpam-se por terem gerado um filho dito ‘não normal’ e ficam frustrados porque vêem nele um sonho desfeito” (STROBEL, 2008, p.50). Após a descoberta da surdez do filho, muitas famílias passam por momentos de choque, tristeza ou raiva. Pois, “é natural que, se os pais esperam nove meses por um filho que significa o sonho esperado, e ele não veio como planejado, o grande sentimento que venham a ter é o de frustração” (RIBAS, 2007, p.29), ou seja, o sonho dos pais não se realizou, transformou-se em luto. O sentimento de luto, pela perda do filho sonhado, emerge em muitas narrativas de pais que têm filhos com necessidades especiais, podendo ser observado também nos familiares ouvintes das crianças surdas, como os que fizeram parte desta pesquisa. Para alguns familiares ouvintes, ao receber o diagnóstico de surdez da criança, é como se estivessem recebendo o diagnóstico de uma doença, uma deficiência, algo que invalidaria o filho. Isso é consequência do que eles entendiam (ou entendem) sobre sujeito surdo, ou seja, as suas representações da surdez. Quanto às representações, Moscovici (2009, p.39) explica: Uma palavra e a definição de dicionário dessa palavra contêm um meio de classificar indivíduos e ao mesmo tempo teorias implícitas com respeito à sua constituição, [...]. Uma vez difundido e aceito este conteúdo, ele se constitui em uma parte integrante de nós mesmos, de nossas inter-relações com os outros, de nossa maneira de julgá-los e de nos relacionarmos com eles. Passado o choque inicial, os familiares percebem que precisam verificar de que forma irão lidar com a situação. Nesse momento, podem surgir falsos sentimentos de coragem e de dever moral de cuidar do filho, entrelaçados, ou não, com a sensação de culpa ou de ter sido a vontade de Deus ou do destino (RIBAS, 2007). Esses são alguns dos recursos que muitos familiares utilizam na tentativa de passarem do luto à luta, como foi narrado pelas famílias entrevistas. Para conseguirem aceitar a perda do filho sonhado, muitos familiares ouvintes recorrem aos profissionais (como médicos e fonoaudiólogos, por exemplo) para aconselhálos, buscando a “cura” para o filho surdo. Outros, porém, preferem acreditar que o filho surdo é uma espécie de “presente de Deus”, uma predestinação divina, como se acreditava que eram os deficientes na sociedade medieval. Os familiares ouvintes, após procurarem recursos dos quais os ajudassem a aceitar a surdez do filho, tanto buscando apoio na religião quanto as orientações com profissionais, 5670 mesmo sem saberem, adotaram concepções de surdez. E, muitos familiares adotam a concepção que caracteriza o filho surdo como alguém que não ouve – um deficiente – que, com tratamentos, poderá ser “curado”. Desse modo, Moscovici (2009, p.34) afirma: Mesmo quando uma pessoa ou objeto não se adéquam exatamente ao modelo, nós o forçamos a assumir determinada forma, entrar em determinada categoria, na realidade, se tornar idêntico aos outros, sob a pena de não ser nem compreendido, nem decodificado. Alguns familiares ouvintes, porém, não passam – ou melhor, não reconhecem que passaram – pelo período de luto pela perda do filho idealizado. Essa negação pode ser uma maneira na qual encontraram para aceitarem o filho, na sua diferença. De certa forma, esses familiares tentam “mascarar” os próprios sentimentos, com o intuito de não deixar transparecer o que realmente sentiram com o diagnóstico da surdez. Surdo/Surdez x Representações de familiares ouvintes Uma criança surda, filha de pais surdos, adquire sua língua natural – a língua de sinais – espontaneamente, apenas interagindo com os seus pais, que são fluentes na língua. Com isso, essa criança identifica-se desde cedo com pessoas que possuem a mesma diferença que ela, já que tem acesso à comunidade surda desde seu nascimento. Ou seja, a criança surda cresce com uma liberdade comunicativa como qualquer criança ouvinte filha de pais ouvintes. Entretanto, quando se trata de uma criança surda filha de pais ouvintes, a problemática não está apenas no tipo de linguagem utilizada na interação familiar (seja com uma língua oral ou gestual-visual), mas sim em tudo o que permeia a surdez e suas concepções. Ou seja, a criança sofre influência do tipo de representação da surdez que os familiares ouvintes possuem. Isso significa que, segundo Moscovici (2009, p.209), “as representações se mostram semelhantes a teorias que ordenam ao redor de um tema [...] de proposições que possibilita que coisas e ou pessoas sejam classificadas, que seus caracteres sejam descritos”. Em se tratando das representações acerca do sujeito surdo e da surdez, que os familiares ouvintes possuem, sabemos que estas não são criadas conscientemente por eles. Com isso, Moscovici (2009, p.41) afirma: Representações, obviamente, não são criadas por um indivíduo isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma vida própria, circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão oportunidade ao nascimento de novas representações, enquanto velhas representações morrem. 5671 Isso significa que, de acordo com o que os pais conhecem e entendem sobre surdez, com as orientações que receberam dos profissionais que os atenderam e com a expectativa que constroem em relação aos filhos surdos, esses pais representam o sujeito surdo e a surdez de uma determinada maneira. Ou seja, mesmo sem saberem, as escolhas que os pais fazem em relação ao filho (pelo tipo de linguagem que a criança utilizará, pela escola em que vai estudar e se usará aparelhos de amplificação sonora, por exemplo) são representações da surdez que eles possuem, abarcando todos os conceitos que existe referente a essa determinada concepção. Em sua teoria, Moscovici (2009, p.37) propõe que: É, pois, fácil ver por que a representação que temos de algo não está diretamente relacionada à nossa maneira de pensar e, contrariamente, por que nossa maneira de pensar e o que pensamos depende de tais representações, isto é, no fato de que nós temos, ou não temos, dada representação. Eu quero dizer que elas são impostas sobre nós, transmitidas e são o produto de uma seqüência completa de elaborações e mudanças que ocorrem no decurso do tempo e são resultado de sucessivas gerações. Linguagem, Comunicação e Interação Frequentemente, quando a surdez da criança é diagnosticada – por volta dos dois ou três anos de idade – é possível observar uma cobrança dos pais em relação ao desenvolvimento da linguagem do filho, sendo que o maior anseio de muitos desses pais é que a criança fale, já que esses pais sofrem influência das informações recebidas dos profissionais os quais procuram. Embora usem aparelhos de amplificação sonora e façam tratamentos fonoaudiológicos, muitas crianças aprendem a língua de sinais (pelo fato de estudarem em uma escola para surdos, por exemplo). Porém, muitos familiares ouvintes, com o intenso desejo de que o filho desenvolva a fala, passam a enxergar a língua de sinais com certa discriminação, não aceitando que seja utilizada em casa. Com isso, as crianças surdas acabam enfrentando alguns obstáculos em relação à aquisição de uma língua. Nesses casos, não há uma liberdade de comunicação, uma vez que a língua oral é imposta à criança, independente de sua vontade, como aconteceu com parte das crianças surdas da pesquisa. Outra questão relevante a ser pensada em relação a essa situação é a formação da identidade das crianças surdas. Pois, ora esses familiares as representam como deficientes auditivos (já que buscam tratamentos com fonoaudiólogos) e ora as representam como sujeitos surdos (pois matricularam as crianças em uma escola para surdos). Então essas 5672 crianças, quando estão na escola, utilizam a língua de sinais e, quando chegam em casa, são obrigadas a oralizar, já que estão sendo representadas de duas maneiras opostas. A partir disso, é possível perceber que esses familiares ouvintes estão tentando representar o surdo e a surdez de outra maneira, como uma diferença linguística, embora ainda possuam atitudes contrárias (muitas vezes inconscientes). Nesse sentido, Moscovici (2009, p.35) afirma: Podemos, através de um esforço, tornar-nos conscientes do aspecto convencional da realidade e então escapar de algumas exigências que ela impõe em nossas percepções e pensamentos. Mas nós não podemos libertar-nos sempre de todas as convenções, ou que possamos eliminar todos os preconceitos. Melhor que tentar evitar todas as convenções, uma estratégia melhor seria descobrir e explicar uma única representação. Já outros familiares ouvintes, como alguns dos que participaram da pesquisa, vêem na língua de sinais uma possibilidade para facilitar a inserção social da criança surda e, além de permitirem que o filho use a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais), procuram aprender essa língua para interagirem em casa. Nesse caso, os familiares ouvintes entendem que a comunicação através da língua de sinais é importante para seus filhos surdos. Além disso, como a teoria de Vygotsky (2000) propõe, a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação, mas é através dela, e com ela, que o ser humano elabora conceitos sobre o mundo e sobre si mesmo. Ela é um modo de interação e, é nessa interação, que o sujeito se constitui como pessoa. Muitos familiares ouvintes só começam a aceitar a língua de sinais e a representar como uma diferença linguística e cultural, depois que perceberam que os tratamentos fonoaudiológicos não tiveram resultados satisfatórios. Com isso, os familiares começam a aceitar alteridade da criança surda e buscam aprender a língua de sinais para existir uma interação cotidiana e uma comunicação efetiva com a criança, como aconteceu com duas das famílias entrevistadas. Essa trajetória de ir compreendendo a surdez, desvinculando dos conceitos que remetem à “deficiência”, é um caminho importante que os familiares ouvintes precisam percorrer. Pois, como afirma Moscovici (2009, p.56), “quando a alteridade é jogada sobre nós na forma de algo que ‘não é exatamente’ como deveria ser, nós instintivamente a rejeitamos, porque ela ameaça a ordem estabelecida.” Só assim esses familiares passarão a entender, verdadeiramente, a surdez como uma diferença. 5673 Deficiência/Diferença x Processo de escolarização Muitos estudos apontam para a questão da escolha da modalidade de linguagem (para a comunicação das crianças surdas) como o principal fator para os familiares ouvintes optarem por uma escola para os filhos. Ou seja, se os familiares ouvintes considerarem que os filhos devam falar (usar a modalidade oral da Língua Portuguesa) será escolhido uma instituição de ensino que priorize a linguagem oral, buscando incluir a criança surda em uma escola para ouvintes. Se, por outro lado, os familiares ouvintes optarem pelo uso da língua gestual-visual, escolherão uma instituição como a escola para surdos, na qual as crianças surdas são expostas à língua de sinais. Nesse sentido, podemos constatar que as representações dos familiares ouvintes – quanto ao sujeito surdo e a surdez, em relação à linguagem utilizada para a interação, influenciam na escolha da escola em que os filhos surdos irão estudar. Porém, se os familiares ouvintes optarem por oralizar a criança surda e, depois de um tempo, esses familiares conhecem outra realidade linguística (normalmente quando conhecem surdos bilíngues, a partir da escola para surdos), começam a modificar o modo de pensar, como no caso de duas das famílias entrevistadas. Os familiares da criança surda, pelo fato de serem ouvintes, privilegiam a fala do filho, já que esta é a forma habitual de interação na sociedade ouvinte. Entretanto, quando conhecem a língua de sinais, entram em contato com a cultura surda e notam que, através da língua-gestual visual os filhos surdos conseguem se comunicar melhor, esses familiares adotam outra representação de surdez. Isso significa dizer que, em relação à escolha da escola para os filhos surdos, os familiares adotam representações da surdez nas quais privilegiam o tipo de linguagem que será melhor para que o filho possa ser alfabetizado. Essas representações podem ser identificadas a partir dos modelos de pensamento clínico-terapêutico e o sócio-antropológico. No modelo de pensamento em que a surdez é concebida como uma deficiência, os familiares ouvintes procuram escolas em que a língua oral será a língua de instrução para os filhos surdos, pois acreditam que a escola para ouvintes é a melhor (ou a única) modalidade de ensino para as crianças surdas. Esses familiares acreditam que, como a criança surda usa aparelhos de amplificação sonora e faz tratamentos fonoaudiológicos, a surdez está sendo “curada” e, por isso, os filhos devem estudar em escolas para ouvintes, utilizando apenas a modalidade oral de 5674 comunicação. Com isso, fica comprovado que esses pais, como no caso de dois dos entrevistados, representam o sujeito surdo e a surdez (e consequentemente a educação de surdos) através dos princípios do modelo clínico-terapêutico. Ou seja, a surdez é entendida como uma deficiência e que o surdo tem uma patologia que precisa ser tratada e curada. Com relação aos familiares ouvintes nos quais os filhos estudam na escola para surdos, muitas vezes, a visão que eles tinham em relação ao sujeito surdo e à surdez foi modificada quando os filhos ingressaram na escola, pois passaram a reconhecer a importância do contato com a comunidade surda e a utilização da língua de sinais. Com isso, passaram a ter a visão da surdez como uma diferença, como o que aconteceu com duas das famílias da pesquisa. Com isso, podemos dizer que essas famílias representam a educação dos surdos a partir do modelo de pensamento sócio-antropológico, atribuindo que seja importante uma educação que priorize a língua de sinais. Assim, esses familiares ouvintes entendem que, além de que a educação do sujeito surdo deve ser dada em uma escola para surdos, a surdez precisa ser representada como uma diferença, tanto linguística quanto cultural e política. Para isso, os familiares ouvintes precisam aceitar de fato a alteridade do filho surdo e perceberem o quão fundamental é para o desenvolvimento da criança o convívio com outros surdos fluentes na LIBRAS e que a interação em casa também se dê através da língua de sinais. Por outro lado, muitos familiares ouvintes, mesmo os filhos estudando em escolas para surdos, ainda representam o sujeito surdo e a surdez a partir de uma visão clínica, pois muitas vezes a criança usa aparelhos de amplificação sonora, a comunicação em casa se dá por meio da fala, entre outros aspectos. Isso mostra que, mesmo tendo contato com a comunidade surda e com a língua de sinais, a representação da surdez como uma deficiência não foi totalmente alterada, sendo que isso ocorreu com duas das famílias participantes da pesquisa. Considerações Finais Desde o momento em que descobrem a surdez do filho, os familiares ouvintes constroem suas representações acerca do sujeito surdo e da surdez. Essas representações são expressas pelas atitudes e reações que os familiares tiveram diante do diagnóstico da surdez, tais como: tristeza, medo, culpa, procuram apoio na religião, buscam ajuda profissional, além de não demonstrarem reação alguma. Essas representações também são expressas quando 5675 esses familiares ouvintes escolhem uma modalidade de linguagem para a comunicação do filho – seja a partir da fala ou através da língua de sinais. Com isso, de acordo com as representações referentes ao sujeito surdo e a surdez, os familiares ouvintes escolhem uma escola para a criança surda, seja uma escola para ouvintes ou uma escola para surdos. Entretanto, quando a criança está em seu processo de escolarização, as representações dos familiares podem ser modificadas parcialmente, podem ser totalmente modificadas ou, ainda, continuarem inalteradas. Muitas vezes, as famílias que têm filhos em escolas para ouvintes entendem que a surdez da criança está sendo “curada” pelo uso do aparelho de amplificação sonora. Nesse sentido, esses familiares ouvintes representam a surdez como uma deficiência, assim como pensavam quando receberam o diagnóstico. Por isso, pode-se afirmar que esses familiares não tiveram suas representações alteradas com a escolarização da criança, uma vez que optaram por uma escola para ouvintes e não tiveram contado com a comunidade surda, como aconteceu com duas das famílias que participaram da pesquisa. Quanto às famílias cujas crianças estudam na escola para surdos, algumas ainda podem acreditar que a surdez da criança será “curada” e que a melhor forma de comunicação com o surdo é através da fala. Então, é possível afirmar que essas famílias, como duas das que participaram da pesquisa, tiveram suas representações – quanto ao surdo e à surdez – parcialmente alteradas, já que, mesmo tendo contato com a comunidade surda, algumas representações continuam presentes. Entretanto, essas famílias fazem com que os filhos adquiram duas identidades: a de sujeito surdo, quando está na escola e com a comunidade surda; e de deficiente auditivo, quando está em casa e com os demais ouvintes. Por outro lado, as famílias que têm filhos na escola para surdos, a partir do contato que tiveram com a comunidade surda, perceberam que suas representações da surdez e do sujeito surdo não correspondiam à realidade e passaram a entender (ou tentam entender) a surdez como a diferença cultural e linguística que ela é, como o que acontece com duas das seis famílias que participaram da pesquisa. Como as Representações Sociais surgem no momento em que nos defrontamos com algo novo, diferente, alheio ao nosso domínio cognitivo, pode-se dizer que, quando pensamos, nós formamos uma opinião sobre o tema, e isso significa que representamos, uma vez que, representar é uma forma de nos aproximarmos do desconhecido. Porém, como fica evidenciado neste trabalho, a maioria dos familiares ouvintes não está ciente da representação 5676 que tem da surdez, ou seja, sua representação – quanto ao sujeito surdo e à surdez – podem variar com as informações que vão obtendo dos profissionais ligados tanto à área da saúde quanto da educação. Contudo, ao ser analisado as Representações Sociais dos familiares ouvintes acerca do sujeito surdo e da surdez, identifica-se o quão complexo é a escolha que esses familiares fazem pela escola da criança surda, uma vez que é a partir das informações que vão obtendo dos profissionais a quem procuram que os familiares ouvintes vão construindo suas representações em torno do sujeito surdo e da surdez. Portanto, cabe ressaltar a importância de que, não só os familiares ouvintes, mas os profissionais da área da saúde, da educação e os próprios membros da sociedade possam refletir sobre suas representações, para que o sujeito surdo possa – de fato – ser reconhecido e respeitado na sua diferença, visto que as Representações Sociais expressam o que se acredita e defende, permitindo a identificação de um mesmo grupo sócio-cultural e, assim, gerando uma opinião coletiva. REFERÊNCIAS GÓES, Maria Cecília Rafael. Linguagem, surdez e educação. Campinas: Autores associados, 1996. MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigação em psicologia social. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. QUADROS, Ronice Muller de. Educação de surdos: aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. RAMPELOTTO, Elisane Maria. O Processo e o Produto na Educação de Surdos. (Dissertação de Mestrado). Santa Maria, Curso de Pós-Graduação, UFSM, 1993. RIBAS, João. 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