1 A IMPORTÂNCIA DA LÍNGUA DE SINAIS NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA SURDA: UMA DISCUSSÃO A PARTIR DOS PRESSUPOSTOS DE JEROME BRUNER Tatiana Bolivar Lebedeff - UPF O objetivo deste trabalho é o de discutir o desenvolvimento lingüístico da criança surda sob a luz dos pressupostos teóricos de Jerome Bruner. Para tanto são apresentados os conceitos de Language Acquisition Device e Language Acquisition Support System, bem como o conceito de formatos, utilizados pelo autor. Bruner salienta a importância do interlocutor mais experiente no processo de desenvolvimento lingüístico da criança, para ele este desenvolvimento ocorre pela e nas interações sociais. Tomando por base as concepções de desenvolvimento lingüístico de Bruner, há que se repensar a qualidade das interações lingüísticas precoces das crianças surdas, no sentido de que a imersão na Língua de Sinais deve ser o mais precoce possível. Palavras-chave: Desenvolvimento lingüístico – Jerome Bruner – Língua de Sinais Jerome Bruner é um importante teórico americano que estudou, principalmente, a aquisição e desenvolvimento da linguagem infantil. Bruner tem sido utilizado para sustentar propostas educativas de educação infantil. Entretanto, pouco empregado com relação à aquisição e desenvolvimento da Língua de Sinais de pessoas surdas. Acredita-se ser interessante estreitar intersecções entre os pressupostos de Bruner e o desenvolvimento lingüístico dos surdos. Sua concepção interacionista do desenvolvimento da linguagem pode ser muito útil ao se justificarem programas educativos de caráter bilíngüe–bicultural para surdos. Bruner (1989, 1994) salienta que seria impossível para as crianças adquirirem linguagem se não possuíssem uma predisposição para esta aprendizagem, algo semelhante ao que Chomsky chamou de Language Acquisition Device (LAD). Entretanto, salienta também que este mecanismo não funcionaria sem a ajuda dada pelo adulto. Esta interação, inicialmente controlada pelo adulto, resulta no que Bruner chamou de Language Acquisition Support System (LASS). A interação entre LAD e LASS é o que torna possível que a criança entre na comunidade lingüística e, ao mesmo tempo, na cultura a qual a linguagem o permite aceder. Outra questão importante salientada por Bruner é que vivemos a maior parte de nossas vidas em um mundo construído de acordo com as regras e recursos das narrativas. Nesse sentido, a criança não aprende a linguagem per se, mas adquire linguagem porque necessita utilizá-la. Com relação as crianças surdas, sabe-se que a grande maioria é proveniente de lares ouvintes, ou seja, a língua da criança é diferente da língua utilizada pelos pais que buscam na área médica, em primeira instância, respostas e curas para esta diferença. Os profissionais envolvidos nos primeiros anos de vida das crianças surdas, como médicos, fonoaudiólogos, etc., geralmente aconselham os pais a evitarem o contato de seus filhos surdos com os grupos de surdos adultos. Na opinião desses profissionais, o contato com a língua de sinais impediria a aprendizagem da língua oral. Os pais costumam relacionar a surdez de seus filhos com uma falta: a falta de audição, a falta de fala. Desta maneira, a surdez é entendida como doença, o que provoca nos pais a busca por paliativos médicos e oralização. Entretanto, apesar dos pais rechaçarem a idéia de que seu filho possui uma outra língua, geralmente 1 desenvolvem com as crianças surdas um pseudo-vocabulário de gestos icônicos, que servem para expressar idéias sobre o aqui/agora. Quando a criança ouvinte entra na escola ela já possui uma fluência conversacional em sua língua nativa. Já a criança surda não apresenta as mesmas habilidades de formação de sentenças, vocabulário e conhecimento de mundo como as ouvintes. Ou seja, chegam na escola sem língua, o que demonstra que o pressuposto de um Sistema de Apoio de aquisição de linguagem de Bruner não está sendo colocado em ação. Além disso, essas crianças não estão submetidas às incontáveis narrativas a que somos expostos no dia-a-dia, e nem possuem ferramentas que as permitam aceder, adequadamente, à cultura adulta. Deste modo, torna-se necessário propiciar à criança surda o contato precoce com a Língua de Sinais, do contrário, corre-se o risco de prejudicar o desenvolvimento dessas crianças. O bilingüismo parte do reconhecimento da coexistência de duas línguas no meio ambiente da criança, às quais se atribui valor como instrumento de comunicação, sendo ambas respeitadas, independentemente do prestígio que seja atribuído à língua do grupo dominante (Sanchéz, 1990). Nesse sentido, Skliar (1999) salienta que a educação bilíngüe não pode ser assimilada à escolarização bilíngüe, isto é, não se deve justificar somente como ideário pedagógico a ser desenvolvido dentro das escolas. Há que se cuidar, portanto, do que Skliar (1999) define como uma renovação da prática “ouvintista”, ao deslocar-se o foco do oral para a leitura e escrita, uma imposição cultural que acabaria originando uma falsa condição de bilingüismo. Dessa maneira, segundo o autor, é necessário uma política de educação bilíngüe, de práticas e de significações que devem ser pensadas em diferentes contextos históricos e culturais. Sanchéz (1990) ressalta que a educação bilíngüe para surdos deve basear-se na utilização plena da língua de sinais para garantir o desenvolvimento intelectual e de linguagem, para otimizar o aproveitamento desses na aprendizagem escolar e para facilitar a aprendizagem da língua falada nas suas formas oral e escrita. Isso significa dar à criança surda as mesmas possibilidades psicolingüísticas da criança ouvinte. Essas possibilidades psicolingüísticas traduzem-se, para Quadros (1997), na aquisição da língua de sinais como a primeira língua da criança surda. As línguas de sinais, de acordo com a autora, são sistemas lingüísticos que passaram de geração em geração de pessoas surdas e não são derivadas das línguas orais, mas fluíram de uma necessidade natural de comunicação entre pessoas que não utilizam o canal auditivo - oral, mas o canal viso-espacial. Quadros (1997) afirma que as línguas de sinais são sistemas lingüísticos independentes dos sistemas de línguas orais e são línguas naturais porque: 1) desenvolvem-se no meio em que vive a comunidade surda; 2) refletem a capacidade psicobiológica humana para a linguagem; 3) são produtos da necessidade específica e natural dos seres humanos de usar um sistema lingüístico para expressarem idéias, sentimentos e ações. Nesse sentido, Brito (1997) ressalta que, em razão de sua estrutura, permitem a expressão de qualquer conceito: descritivo, emotivo, racional, literal, metafórico, concreto, abstrato. Enfim, permitem a expressão de qualquer significado decorrente da necessidade comunicativa e expressiva do ser humano. Brito (1997) argumenta que as línguas de sinais podem ser consideradas naturais tanto pelo seu surgimento (espontâneo, a partir da interação entre pessoas) como por permitirem a expressão de qualquer significado que parta da necessidade comunicativa do homem, além da similaridade de formação entre língua de sinais e língua oral. Além 1 disso, para Karnopp (1999), as línguas de sinais também são consideradas naturais por atenderem às características estipuladas por Chomsky (1957): produtividade ilimitada; criatividade; multiplicidade de funções; arbitrariedade da ligação entre significado e significante, e entre signo e referente, e articulação desses elementos em dois planos – o do conteúdo e o da expressão. Sanchéz (1990) faz uma interessante distinção entre língua materna, língua nativa e língua natural: língua natural é a que as pessoas falam, que utilizam normalmente para comunicação, para expressar conceitos e para referir-se a fatos da experiência. São as línguas que as crianças aprendem e que se transmitem de pais para filhos, ou de geração em geração; são as línguas que podem expressar os pensamentos e as emoções mais profundas. Não foram inventadas por alguém, mas foram criadas pelos grupos que as falam. As línguas naturais são as únicas que permitem o acesso da criança à linguagem mediante aprendizagem espontânea. Língua materna, para o autor, é a que se fala na casa de uma criança; para uma criança cujos pais falam castelhano, sua língua materna é o castelhano. Isto é, independentemente da língua que se fale na comunidade, a língua nativa é a língua que se fala na comunidade a que pertence a criança. Com relação à questão da língua materna, Luft (1985) argumenta que toda a língua - a semântica, o léxico, a morfologia, a fonologia e fonética - é uma questão de uso, ou seja, vale o que a comunidade dos falantes tacitamente determina que vale. A língua é autodeterminada pelos seus usuários. Desse modo, pode-se dizer que a língua é uma norma consuetudinária, ou seja, norma determinada pelo costume, e não por outros critérios, como origem, lógica, autoridade, etc. Depreende-se, então, que, para as crianças surdas, independentemente da língua materna ou nativa, a sua língua natural é, necessariamente, a língua de sinais. Karnopp (1999) salienta que, apesar das diferenças nas modalidades de percepção e produção entre línguas orais (auditivo-oral) e línguas de sinais (gestual-visual), existe um paralelo entre os processos de aquisição e desenvolvimento das duas línguas. Nesse sentido, Goldin-Meadow e Mylander (1994) mostram que as línguas de sinais possuem propriedades estruturais como a língua falada: níveis de análise de sintaxe, morfologia e fonologia. Além disso, as autoras chamam a atenção para o fato de que crianças surdas filhas de pais surdos, expostas desde o nascimento à língua de sinais convencionais, adquirem linguagem naturalmente, ou seja, progridem através de estágios de aquisição da língua de sinais de maneira similar às crianças ouvintes adquirindo a língua oral. Esses dados do desenvolvimento similar de linguagem, em termos de tempos e tipos produções, entre crianças surdas e ouvintes, reflete o que Bruner explica sobre o início do desenvolvimento de linguagem, que seria quando mãe e filho criam uma estrutura previsível de ação recíproca que pode servir como um microcosmo para comunicação e para constituir uma realidade compartilhada. Bruner ressalta que as transações que ocorrem dentro desta estrutura constituem o input a partir do qual a criança conhece a gramática, a forma de referir e de significar, e a forma de realizar suas intenções comunicativamente. Essas estruturas, denominadas por Bruner (1989, 1994) de formatos, são, em realidade, relações sociais. O formato é um microcosmo, definido por regras no qual o adulto e a criança fazem coisas um para o outro e entre si. Os formatos, ao regularem a interação comunicativa entre a criança e o adulto cuidador, antes que comece a fala 1 léxico-gramatical, constitui-se em um instrumento fundamental no processo de evolução da simples comunicação para a utilização da linguagem. O formato pressupõe suma interação contingente. Entretanto, o formato possui a característica de assimetria com relação ao que Bruner denomina de consciência, entre os membros participantes. Consciência, neste caso, está relacionada ao sentido em que Vygotsky utiliza, ao discutir como o adulto ajuda a criança a atravessar a Zona de desenvolvimento Proximal. Ou seja, o adulto funciona como modelo, organizador e monitor até que a criança possa assumir suas responsabilidades. Bruner cita como formatos momentos em que ações e linguagem estão circunscritas à própria situação, como, por exemplo, a hora do banho, a brincadeira de “cuco”, a leitura de livros infantis, a hora da comida, entre outras. Bruner (1989, 1994) salienta que a aquisição de linguagem pode ser explicada como um sutil processo no qual os adultos organizam de forma artificial o mundo, para que a criança possa ter um bom desenvolvimento cultural, participando das atividades de modo natural e em cooperação com os outros. A criança aprende o que pode ser feito com a linguagem no mesmo tempo em que a utiliza nas situações organizadas pelo adulto. Retomando a questão da surdez, percebe-se que crianças surdas filhas de pais ouvintes, ou seja, quase 90% da população surda, estão com seu processo de aquisição de linguagem em situação de vulnerabilidade por várias razões, sendo que aqui se enumeram apenas três. Primeiro, o fato de o Teste da Orelhinha ainda não ser obrigatório na rede pública de saúde implica em atraso na detecção da surdez; segundo, quando as famílias descobrem o diagnóstico passam por um período de luto e negação que tende a atrasar uma interação precoce com a língua de sinais. E, finalmente, sabe-se que as famílias, na sua maioria, tendem a evitar o contato com a língua de sinais por ordens médicas, por medo de que a criança não aprenda a falar por estar usando sinais, ou, simplesmente, por medo e preconceito desta nova língua. Tendo em vista que as crianças surdas necessitam estar precocemente expostas a situações de interação lingüística a fim de que tenham desenvolvimento lingüístico e cognitivo, na medida do possível, adequados, chama-se a atenção para a necessidade de que profissionais de saúde e educação estejam em consonância no que se refere a encaminhar as crianças surdas e suas famílias para ter contato com a comunidade surda, o mais cedo possível, a partir da detecção da surdez. Enfatizando, neste sentido, um desenvolvimento bilíngüe-bicultural desta criança. Adultos surdos não serão substitutos de familiares ouvintes, mas poderão ser modelos e incentivar situações de interação lingüística muito ricas, bem como possibilitar o acesso, às famílias ouvintes, as novas possibilidades culturais que estão agregadas ao domínio da língua de sinais. O que não pode seguir acontecendo é que crianças surdas cheguem à escola sem domínio de nenhuma língua, crianças de 7, 8 anos que só sabem se referir ao aqui e agora e que sofregamente tentam recuperar o tempo perdido de interações lingüísticas não realizadas. 1 Referências Bibliográficas BRITO, L.F. Língua Brasileira de Sinais – Libras. Em: L.F.Brito (Org.). Língua Brasileira de Sinais. Brasília: MEC/SEESP, 1997. BRUNER, Jerome. Acción, pensamiento y lenguaje. Madri: Alianza, 1989. BRUNER, J. El habla del niño. Barcelona: Paidós, 1994. GOLDIN-MEADOW, S. E MYLANDER, C. The development of morphology without a conventional language model. Em: V. Volterra e C.J. Erting (Orgs.), From gesture to language in hearing and deaf children. Washington: Gallaudet University Press, 1994. KARNOPP, L.B. Aquisição fonológica na Llíngua Brasileira de Sinais: Estudo longitudinal de uma criança surda. Tese de Doutorado não-publicada. 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