Artigo A educação no período colonial: o sentido da educação na dominação das almas. * Jerusa da Silva Gonçalves Almeida* Gilson Ruy Monteiro Teixeira** RESUMO O presente estudo procura compreender o sentido do empreendimento colonial jesuítico, no seu aspecto educacional, enfocando a rápida difusão do ensino jesuítico no Brasil Colônia e o conteúdo cultural de que se faziam portadores os padres da Companhia de Jesus. Para tanto, realiza-se uma breve reflexão histórica acerca dos objetivos práticos da ação educacional jesuítica com a finalidade de suscitar uma discussão em torno da compreensão da educação como dominação das almas. INTRODUÇÃO O que significa fazer um exame do passado? Pensar a história exige, além de correlações refinadas, a maturação de um foco compreensível acerca do processo dinâmico que a própria história se encarrega de estabelecer; incluindo as capacidades de abstrair e concretizar, ao nos confrontar com um tempo e com um espaço que não nos é familiar, e uma vigilância constante para evitar o tão costumeiro presentismo. Afinal, ensinar a história afirmando que o presente é o que é, porque o passado foi desse ou daquele modo, parece não fazer mais sentido, quando nos propomos a admitir as diferenças, reconhecendo que tudo aquilo de que dispomos foi historicamente produzido, e como último desafio aos que se aventuram, neste país, a examinar o passado, não podemos deixar de destacar a necessidade de constante superação da formação precária que nós, PALAVRAS-CHAVE: Período colonial, educação brasileira, Companhia de Jesus, formação e dominação das almas, expulsão dos Jesuítas, cultura brasileira. brasileiros, em sua maioria, possui acerca da sua própria história. Nesse caso, as máquinas do tempo, possíveis apenas na ficção, seriam úteis, agora, para que pudéssemos examinar de perto, sem os riscos que esses fatos tão distantes apresentam ao pesquisador, a chamada educação no período colonial, desde a vinda da Companhia de Jesus ao Brasil em 1549, até a sua expulsão pelo marquês de Pombal em 1759. Embora o plano deste exame tenha por objetivo o desenvolvimento de um tema acerca da obra missionária, educativa e política, empreendida pelos jesuítas, torna-se necessário observar que a análise pormenorizada das condições da vida social na metrópole e na colônia, com todas as suas variáveis históricas, escapa ao âmbito deste estudo. Apenas pretendemos pensar a educação a partir do marco da história da educação no Brasil: o sistema educacional fundado pelos jesuítas. * Mestranda do Programa de Pós-graduação em educação: história, política, sociedade, da PUC/SP. Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. ** Mestrando do Programa de Pós-graduação em educação: história, política, sociedade da PUC/SP. Professor da Universidade da Amazônia – UNAMA. 38 Trilhas, Belém, v.1, n.2, p. 56-65, nov, 2000 Por se tratar de um estudo voltado para o processo educacional desenvolvido pelos jesuítas, achou-se de bem verificar o tempo de existência da Companhia de Jesus no Brasil. Ficamos perplexos diante do poder de conquista deste grupo, que durante 210 anos não relegou suas funções como dominadores espirituais, ancorando a sua linha curricular de forma muito competente, por fazer maciço investimento na erudição de seus alunos. Seriam os padres jesuítas meros controladores das mentes de brancos, índios e mestiços? Parece-nos que o controle das almas exigia extrema habilidade, pois era preciso, mediante o ensino, manter inabalável a estrutura da sociedade nascente com a predominância de uma minoria dominante sobre um grande número de escravos e agregados. No dizer de Sodré (1994): O ensino jesuítico, por outro lado, conservado à margem, sem aprofundar a sua atividade e sem preocupação outras senão as do recrutamento de fiéis ou de servidores, tornava-se possível porque não perturbava a estrutura vigente, subordinava-se aos imperativos do meio social, marchava paralelo a ele. Sua marginalidade era a essência de que vivia e se alimentava. (p. 17). Contudo, a nossa inquietação nos leva a perguntar: de que lado estavam os jesuítas? É possível pensar a história como um campo minado invadido por “mocinhos e bandidos”? Quem sabe, refletindo acerca das bases do ensino jesuítico, possamos entender um pouco melhor os motivos que tornam tão esgaçada a rede de relações que constitui a nossa cultura. Os dados históricos permitem-nos concluir e supor que, subordinando-se aos imperativos do meio social, o sistema educacional dos jesuítas, “completamente alheio à realidade da vida da colônia” (Romanelli, 1997, p. 35), pôde permanecer inviolável, fortalecendo, assim, as fileiras de fiéis e servidores. O seu papel conservador possibilitou que culturas inteiras, como aquelas pertencentes às comunidades primitivas indígenas, fossem esmagadas, sendo Trilhas, Belém, v.1, n.2, p. 56-65, nov, 2000 logo substituídas pela cultura alienada dos jesuítas. Mas, por que encarar o sistema educacional implantado pela Companhia de Jesus como possuindo um conteúdo alienante? Antes de considerarmos de perto esta questão, é importante observar que os jesuítas, desde as suas origens, tomaram uma posição de vanguarda, em defesa da Igreja, “ocupando uma posição proeminente nas lutas que se travavam na Europa contra a Reforma e o ‘modernismo’ que esta representava” (Werebe, 1997, p. 21). Cabe aqui, no entanto, analisar algumas conseqüências decorrentes da posição assumida pelos padres jesuítas. Como sabemos, a posição da Companhia de Jesus sempre foi a de restauradora do dogma e da autoridade. Sendo assim, a repulsa às atividades inovadoras, trouxeram-nos alguns prejuízos, claramente expostos por Fernando de Azevedo (1997) ... O livre exame, o espírito de análise e de crítica, a paixão da pesquisa e o gosto da aventura intelectual, que apenas amanheciam na Europa, teriam, sem dúvida, alargado o nosso horizonte mental e enriquecido, no campo filosófico, a nossa cultura que ficou sem pensamento e sem substância, quase exclusivamente limitada às letras. (p. 508). Com a rápida difusão do ensino jesuítico, parece-nos que a sociedade colonial esteve, durante todo o período de permanência da Companhia de Jesus, no Brasil, afastada das atividades criadoras que se faziam presentes na Europa, reduzida, portanto, ao domínio intelectual dos jesuítas – padres avessos à liberdade e defensores da autoridade. Poderiam esses homens serem vistos como os inventores de um triste começo para a história da educação no Brasil? É necessário destacar, como já salientado nesta introdução, que o ensino ministrado por esses padres mostrava ser “uniforme e neutro” (Romanelli, 1997, p. 34). Desse modo, como encarar a Companhia de Jesus, cuja cultura, numa época em que florescia na Europa idéias modernas, era de respeito à tradição escolástica? 39 É importante assinalar que “a ‘cultura brasileira’ não podia ser considerada ‘nacional’, pois tendia a espalhar sobre o conjunto do território e sobre todo o povo seu colorido europeu” (Sodré, 1994, p. 15). Deve-se ter em conta, por outro lado, que “a instrução em si não representava grande coisa na construção da sociedade nascente” (Romanelli, 1997, p 34). Sendo o “ensino destinado a formar uma cultura básica, livre e desinteressada, sem preocupações profissionais e igual, uniforme em toda a extensão” (Azevedo citado por Sodré, 1994, p. 15), percebe-se, dessa forma, que os jesuítas, inclinados a satisfazer o ideal europeu, forneciam, exclusivamente, aos elementos das classes dominantes uma educação clássica. “E assim se iniciou a educação no Brasil, respondendo aos interesses políticos da metrópole e aos objetivos religiosos da Companhia de Jesus” (Werebe, 1997, p. 21). Não se trata, portanto, de uma simples invenção de um começo difícil para a história da educação no Brasil. Como se pode perceber, interessa-nos saber com que propósito, a Companhia de Jesus veio ao Brasil, além de considerar os objetivos práticos da sua ação missionária. Outro desafio que emerge do nosso estudo diz respeito ao contato com o “estranhamento”, pois, como já salientado, é preciso ter coragem para ir a um tempo e um espaço que não nos é familiar. Nesse sentido, pretendemos, mediante reflexões acerca das muitas questões levantadas neste texto, desenvolver com clareza o tema proposto. EDUCAÇÃO BRASILEIRA: DOMINAÇÃO DAS ALMAS NO PERÍODO COLONIAL. Grupo organizado, homens intrépidos, determinados, zelosos, soldados de Cristo – os jesuítas. Que sentido emprestaram à educação no Brasil? É o que passaremos a enfocar, daqui para a frente. As dúvidas pairam sobre nossas cabeças. Sentimos fortemente a necessidade de pensar a história, contextualizando-a. 40 Nesse caso, não poderíamos deixar de recorrer, mais uma vez, a Fernando de Azevedo, pois na tentativa de organizar a leitura do Brasil e a leitura da educação em sua obra, A cultura brasileira, o autor construiu o paradigma da educação brasileira. Ao fazer as primeiras considerações sobre o sentido da educação colonial, Azevedo (1996) nos acrescenta: Quando naquele ano seis jesuítas aportaram à Bahia com o primeiro governador-geral Tomé de Souza, não tinha mais de nove anos de existência canônica a Companhia de Jesus (...) e que, apenas confirmada em 1540 por Paulo III, se dispersava, no continente Europeu, em missões de combate à heresia e, além dos mares, à propaganda da fé entre os incrédulos e à difusão do evangelho por todos os povos. (p. 495). Interessante observar que antes de sua vinda ao Brasil, os jesuítas ligados entre si e à Igreja Católica por uma disciplina extremamente rigorosa, já desbravavam terras à procura de novos seguidores. Parece-nos que a função militar desses homens esteve todo tempo visível aos seus olhos. Os fatos históricos apresentados por Azevedo ajuda-nos a entender que estamos lidando com algo muito maior – o poder da Igreja. Observamos que a conversão e o combate à heresia eram atividades específicas da Companhia de Jesus. Viviam a serviço da Igreja, divulgando seus dogmas e dispostos a todos os sacrifícios. Neste caso, os dados apresentados na citação ajudam-nos a compreender a posição assumida pelos jesuítas, no período em que a reforma protestante passou a espalhar pela Europa o gosto pela independência do espírito. Desse modo, a luta feroz da Companhia de Jesus contra a Reforma, deixa-nos uma pista bastante interessante. Sobre essa base, o movimento protestante, longe de proibir o espírito crítico, o exigia, o que, sem dúvida, atingia frontalmente o poder da Igreja. A autoridade e a disciplina estavam sendo postos à prova pelo protestantismo; e o espírito da Reforma corroía os pilares da verdade imposta pela Igreja. Trilhas, Belém, v.1, n.2, p. 56-65, nov, 2000 Imaginamos, agora, um terreno pronto para o combate. Lembrando que não estamos entre o bem e o mal, mas diante de um jogo de interesses estritamente político. Nesse sentido, ao comentar acerca das condições objetivas que favoreceram a ação educativa dos jesuítas no Brasil, Romanelli (1997) faz um comentário bastante esclarecedor: ... Daí os traços da cultura que elaboram, o seu teor desinteressado, a sua desvinculação com a realidade, a sua alienação quanto ao meio – transitando, finalmente, para uma sorte de erudição livresca, vazia, meramente ornamental, que satisfazia a vaidade do indivíduo, mas em nada concorria para a comunidade. (p. 17). A segunda condição consistia no conteúdo cultural de que se faziam portadores os padres. Que conteúdo era esse? Era, antes de tudo, a materialização do próprio espírito da Contra-Reforma, que se caracterizou sobretudo por uma enérgica reação contra o pensamento crítico, que começa a despontar na Europa, por um apego a formas dogmáticas de pensamento, pela revalorização da escolástica, como método e como filosofia, pela reafirmação da autoridade, quer da Igreja, quer dos antigos, enfim, pela prática de exercícios intelectuais com a finalidade de robustecer a memória e capacitar o raciocínio para fazer comentários de textos. (p. 34). Refletindo as palavras do autor, as perspectivas de ordem cultural para o Brasil Colônia não pareciam animadoras. O desinteresse quase total pela ciência, forçosamente, caracterizou toda a educação na colônia. A metrópole, por outro lado, reforçava essa realidade por manter-se fechada ao espírito crítico e de análise, à pesquisa e experimentação (Romanelli, 1997). Nesse sentido, o que contribuiu, na realidade, para que o começo da história da educação no Brasil fosse marcado pela descontextualização? Fernando de Azevedo (1996) faz um comentário interessante em sua obra, o qual, provavelmente, nos ajudará a refletir sobre o assunto: Interessante como a autora nos ajuda a perceber o movimento histórico da época. Romanelli aponta a organização social da colônia (uma minoria de donos de terras e senhores de engenho sobre uma massa de escravos) e o conteúdo cultural de que se faziam portadores os padres, como sendo as “molas propulsoras” para o rápido progresso da educação jesuítica no Brasil. É lícito destacar que a alienação, sem dúvida, caracterizava o ensino jesuítico. A sua tendência internacionalista, inspirada por uma ideologia religiosa católica, manteve-se, todo tempo, alheia às fronteiras políticas (Sodré, 1994). Conservado à margem, servia simplesmente à ilustração de alguns espíritos ociosos (Romanelli, 1997). Consideramos que correspondendo ao ideal Europeu da época, cujo interesse dirigia-se a formação do homem culto, os padres jesuítas não visavam a outra coisa a não ser formar letrados eruditos. No dizer de Sodré (1994), Trilhas, Belém, v.1, n.2, p. 56-65, nov, 2000 ... As diferenças de idéias e de processos de educação, na América do Sul e na do Norte, provêm não só da diversidade de temperamentos dos povos que conquistaram e colonizaram essas regiões, mas da oposição entre duas concepções cristãs: a que se manteve fiel à ortodoxia católica e a que implantou o cisma religioso, fixando-se nos países Europeus do Norte, enquanto os do Sul, como Portugal e Espanha, se conservaram católicos. (p. 507). Como vimos, Portugal e Espanha mantiveram-se católicos, o que significou para esses países a não independência de espírito. Quanto à diversidade de temperamentos dos povos colonizadores parece-nos que os nossos conquistadores não se preocupavam muito com os ditos processos da educação. Assim confirma Fernando de Azevedo (1996): 41 O governo de um país como Portugal, ‘que se exauria em tentativas coloniais desproporcionadas com seus recursos em homens e meios materiais’, tendia forçosamente a concentrar todo seu pensamento e todos os seus esforços na exploração e defesa das colônias: a educação não lhe interessava senão como meio de submissão e de domínio político, que mais facilmente se podiam alcançar pela propagação da fé, com a autoridade da Igreja e os freios da religião (p. 516). Nesse sentido, é provável que os “Soldados de Cristo” tenham servido como instrumentos poderosos nas mãos do governo português. Afinal, “o processo dito de ‘colonização’, sem dúvida, alinha numerosos aspectos predatórios, na sua exigência de produzir em grande escala” (Sodré, 1994, p. 12). Pelo que foi dito, a educação como meio de submissão e domínio político, nos ajuda a começar a entender a posição assumida pelos jesuítas, pela Igreja e pelo governo português. Os primeiros, com seu espírito de autoridade e de disciplina, possuindo uma incrível arma intelectual de domínio, representada por um ensino nitidamente dogmático e abstrato, exerceram um papel eminentemente conservador; a Igreja católica, ameaçada pelo espírito crítico que rondava a Europa, parecia empenhar-se, mediante o ensino jesuítico, pela reafirmação de sua autoridade; quanto ao governo português, observamos que confiou à Companhia de Jesus, já famosa pela superioridade de suas escolas, uma larga obra de penetração e de colonização das terras de Portugal. Afinal, o seu principal interesse era o de exploração e defesa das colônias (Azevedo, 1996). Em vista de tudo isso, entendemos que esses interesses, na realidade, convergiam para um único objetivo – a manutenção da ordem. Nesse sentido, a educação jesuítica refletia claramente o seu caráter elitista. Assim, 42 ... Os padres, acabaram ministrando, em princípio, educação elementar para a população índia (sic) e branca em geral (salvo as mulheres), educação média para os homens de classe dominante, parte da qual continuou nos colégios preparando-se para o ingresso na classe sacerdotal, e educação superior religiosa só para esta última. (Romanelli, 1997, p. 35). De acordo com Fernando de Azevedo (1996), a educação de elite, com o ensino literário de fundo clássico, tornou bastante influente o sistema educacional da Companhia de Jesus. Segundo os interesses políticos que predominavam, “a vocação dos jesuítas era outra certamente, não a educação popular primária profissional, mas a educação das classes dirigentes” (Idem, p. 520). Essas considerações nos levam a pensar que a educação no período colonial não visava à formação do povo. Pelo contrário, o povo foi excluído do sistema educacional dos jesuítas. A educação de elite possuía seu público alvo, e servia como patamar de ascensão social. Afinal, Já não era somente pela propriedade da terra e pelo número de escravos que se media a importância ou se avaliava a situação social dos colonos: os graus de bacharel e os de mestre em artes passaram a exercer o papel de escada ou de elevador, na hierarquia social da colônia (...) A universidade de Coimbra passou a ter, por isso, um papel de grande importância na formação de nossas elites culturais. (Azevedo, 1996, p. 512-513). Na verdade, além de fortalecer a organização social da época, por auxiliar na perpetuação de uma classe dominante, o sistema educacional dos jesuítas, alimentava uma “cultura intelectual transplantada, alienada e alienante” (Romanelli, 1997, p. 35). Trilhas, Belém, v.1, n.2, p. 56-65, nov, 2000 Desperta a nossa atenção, o fato de que o ensino das ciências humanas, das letras e das ciências teológicas, nada acrescentavam de realmente substancial ao pensamento colonial. Pelo contrário, “toda a vida intelectual, no que toca ao estudo do mundo externo, ficou reduzida a comentários. Comentar os livros da antigüidade; comentar, sutilizar, comentar” (Azevedo, 1996, p. 509). O que dizer do espírito crítico e de análise, da pesquisa e da experimentação? Aos brasileiros da época colonial era apenas permitida a formação do humanista e do filósofo. As forças da tradição imperavam na metrópole e a educação ministrada na colônia, refletia fortemente o seu espírito conservador. O poder de influência dessa mentalidade, oposta a liberdade de investigação, é muito bem expressa por Otaíza O. Romanelli (1997): questões acerca do tema escolhido para este estudo. O conceito de “civilização transplantada” poderá nos ajudar a desenvolver uma maior compreensão acerca da questão proposta, pois “o que se tem em vista, na cultura transplantada, é a imposição e a preservação de modelos culturais importados, sendo, pois, diminuta, uma minimização de suas funções” (Romanelli, 1997, p. 23). O primeiro ponto a ser levado em consideração é que com a “descoberta”, o Brasil surge na história e se incorpora ao mercado mundial. Contudo, não havia antes, no nosso território, nada que interessasse ao Europeu; o que tornou necessária a criação de riquezas, à base de mercadoria existente na troca (Sodré, 1994, p.28). Desse modo, convém não esquecer que Foi ela, a educação dada pelos jesuítas, transformada em educação de classe, com as características que tão bem distinguiam a aristocracia rural brasileira, que atravessou todo o período colonial e imperial e atingiu o período republicano, sem ter sofrido, em suas bases, qualquer modificação estrutural, mesmo quando a demanda social de educação começou a aumentar, atingindo as camadas mais baixas da população. (p. 35) Os elementos destinados à empresa de ‘colonização’, isto é, de ocupação produtiva – no caso do Brasil – provém do exterior, são para aqui transplantados, tanto os senhores – os que exploram o trabalho alheio – como os trabalhadores – os escravos. (...) Assim, provém do exterior tanto os elementos humanos como os recursos materiais. (p. 4-5). De fato, a educação jesuítica, com seus fundamentos clássicos, alcançou outros tempos e conseguiu manter as suas bases praticamente intactas. Não pretendemos abordar, com este exame, questões relacionadas aos períodos imperial e republicano ou os fatores que contribuíram para a permanência dos pressupostos do sistema educacional jesuítico na história da educação brasileira. Mas, simplesmente, destacar o poder de influência da Companhia de Jesus que, submissa à autoridade da Igreja, fincou raízes profundas na formação do povo brasileiro. Partindo desse princípio, poderíamos considerar os padres jesuítas os responsáveis pelo desenvolvimento de um sistema de educação alienante para o Brasil? Esta questão, pretende nos conduzir mais uma vez a reflexões e a novas Trilhas, Belém, v.1, n.2, p. 56-65, nov, 2000 Nesse sentido, qual a relação existente entre uma produção transplantada, montada em grande escala, e uma cultura transplantada? Ora, a última torna-se conseqüência da primeira. Desse modo, como já salientado neste estudo, “a ‘alienação’, inerente a qualquer transplante colonial, acrescentava-se, no ensino jesuítico, à ‘alienação’ que lhe conferia o seu caráter internacional” (Xavier, 1992, p. 21). Portanto, diante da questão, seria procedente refletir acerca do comentário de Fernando de Azevedo (1996) sobre a obra civilizadora dos jesuítas. Para ele, essa obra jamais poderá ser compreendida se não situada na sua época. Tornase necessário entender que, ao pensar a educação, não caberá ao examinador determinar a posição assumida pelos personagens da história, mas compreender nitidamente as circunstâncias 43 atenuantes de cada período. Ora, poderiam os jesuítas instituir bases contrárias à herança escolástica e à cultura clássica na disseminação da sua obra educativa? A servidão à Igreja e a luta pelo poder, possibilitariam um começo para a educação no Brasil, voltado à pesquisa e à experimentação? Um outro comentário de Fernando de Azevedo (1996) nos ajuda a resolver estas questões. Para apreciar com justiça essa cultura padronizada, de tendência universalista e tipo clássico, transmitida pelo ensino jesuítico, é preciso que não se veja à luz da civilização atual, mas que, remontando aos séculos XVI e XVII, se examine e se meça pelos costumes e ideais de então. (p. 502). É importante compreender que o autor, mediante as considerações feitas, alerta-nos contra o presentismo e nos convida à “des-familiarização” histórica. Assim, não nos cabe encarar a história como um campo de batalha, ou, nesse caso, responsabilizar a Companhia de Jesus pelo trágico começo da história da educação no Brasil. Porém, é possível nomeá-los como principais agentes de uma cultura transplantada. “Incontestavelmente, a influência da ação educacional dos jesuítas no Brasil ultrapassou os limites do período em que aqui estiveram. Essa ação marcou profundamente nossa cultura” (Werebe, 1997, p. 24). As considerações que acabamos de tecer podem ser melhor compreendidas, se entendermos, segundo Azevedo (1996), que os jesuítas forjaram, na unidade espiritual, a unidade política de uma nova pátria. Pelo visto, a Companhia de Jesus trouxe-nos, além do elemento da Contra-Reforma, a unidade nacional, graças às redes de colégios e missões. “Foi, de fato, em grande parte pela influência dos padres que se preparou a base da unidade nacional na tríplice unidade de língua, de religião e de cultura, em todo o território” (Idem, p. 521). Analisando o fato, os padres jesuítas como guias intelectuais e sociais na colônia, souberam como usar o tempo que dispuseram no Brasil. 44 Afinal, os dois séculos de permanência da Companhia de Jesus foram utilizados para o desenvolvimento e a extensão do sistema educacional, pois, no século XVI, os jesuítas possuíam, além de escolas e outros colégios menores, um total de onze colégios. No entanto, se acrescentarmos a estes, os seminários fundados no século XVIII, alcançaremos dezessete instituições de ensino e cultura mantidas pelos jesuítas (Azevedo, 1996, p. 510). Nesse contexto histórico, outra questão está a merecer nossa atenção: como encarar uma obra educativa que ao mesmo tempo que forja a unidade política e lança as bases da educação popular, mantém como base da sua educação, uma cultura clássica, resistente ao “gosto da aventura intelectual”? Deve-se atentar aqui para um fato de grande importância: as atividades dos padres jesuítas não foram apenas missionárias, mas também educadoras e políticas. Os interesses da religião ditavam os passos da Companhia de Jesus e, sem hesitar, os padres marchavam destemidos para a concretização dos seus objetivos. Para se ter idéia do plano que traziam e da rapidez com que entraram em ação, basta lembrar (...) que ‘na Bahia enquanto se fundava a cidade de Salvador, quinze dias depois de chegarem os jesuítas, já funcionavam uma escola de ler e escrever – início daquela sua política de instrução, que eles haviam de manter inalterável através dos séculos, de abrir uma escola onde quer que erigissem uma Igreja (Azevedo, 1996, p. 497). Contudo, uma de nossas maiores contradições reside no fato de que a política de educação, posta em ação pelos jesuítas, substituiu a catequese por uma educação de elite, a qual tornou-se instrumento eficaz na construção das estruturas do poder da colônia. “Casaram-se, assim, portanto, a grande propriedade, o mandonismo e a cultura transplantada expandida pela ação pedagógica dos jesuítas” (Romanelli, 1997, p. 36). Trilhas, Belém, v.1, n.2, p. 56-65, nov, 2000 É importante, mais uma vez, considerar que a cultura de elite criada pelos padres jesuítas era artificial e universalista em sua essência. Segundo os autores lidos para este estudo, foi especialmente por esse caráter artificial, distante da realidade da vida na colônia, que o sistema educacional jesuítico inteiro apresentou as primeiras fissuras em seus alicerces de base intelectualista. “O ensino jesuítico, na opinião de seus adversários, envelhecera e petrificava em várias gerações e, anquilosando-se nas formas mais antigas, já se mostrava incapaz de adaptar os seus métodos às necessidades novas” (Azevedo, 1996, p. 523). Nesse contexto, as campanhas realizadas na Europa, no século XVIII, não testemunhavam a favor dos jesuítas. Enquanto no Brasil Colônia, as obras educativas da Companhia haviam atingido o seu ápice, as críticas na Europa atacavam frontalmente o seu sistema educacional. As universidades, os parlamentos, as autoridades civis e eclesiásticas colocavam-se contrários à expansão da obra. Mas por que motivo houve da parte dessas autoridades uma reação adversa à Companhia de Jesus? Segundo Azevedo (1996): Alegava-se por toda parte que a Companhia de Jesus, perdido o antigo espírito de seu fundador, entrara em decadência, e que, dominada pela ambição do poder e de riquezas, procurava manejar os governos como um instrumento político, ao sabor de suas conveniências e contra os interesses nacionais (p. 522). Ora, desde a sua chegada em 1549, a Companhia de Jesus não servia como instrumento político, lutando incansavelmente pela reafirmação do poder da Igreja? Teriam sido os jesuítas “contaminados” pela sede de poder, claramente evidenciada pela Igreja – sua tutora oficial? São tantas as perguntas que o exame do passado faz emergir, que nos sentimos ansiosos para desenvolver, como já mencionado na introdução deste trabalho, um foco compreensível Trilhas, Belém, v.1, n.2, p. 56-65, nov, 2000 acerca dos processos dinâmicos da história. Retornando aos fatos, observamos que, Em Portugal, intervinham ainda, para tornar mais acirrada essa campanha tenaz, dois elementos de propaganda contra os jesuítas: o monopólio do ensino que eles exerciam desde 1555, quando D. João III lhes confiou a direção do Colégio das Artes, e a miséria econômica e intelectual do reino, pela qual esses religiosos eram apontados como os principais sacerdotes (Azevedo, 1996, p. 523). Diante dessas considerações, entendemos que as acusações sofridas pelos jesuítas, apresentavam elementos políticos, que, sem dúvida, embasaram as críticas referentes ao monopólio do ensino e a miséria econômica e intelectual do Reino. Podemos dizer, então, que “a principal razão que levou à expulsão dos jesuítas de Portugal e das colônias não estava, na verdade, ligada ao caráter religioso de suas atividades” (Werebe, 1997, p. 26) A ação educativa, que antes havia sido utilizada apenas como meio de submissão e domínio político, agora era vista como a responsável pelo descompasso entre o governo português e o resto da Europa, sendo os seus ministros acusados como “bodes expiatórios”. Teriam sido justas tais acusações? Interessa-nos saber que a metrópole e a colônia, já não poderiam continuar à parte da agitação modernizadora que invadia a Europa. Desse modo, o Marquês de Pombal, “cuja linha de pensamento estava estritamente vinculada ao enciclopedismo” (Romanelli, 1997, p. 36) expulsou, em 1759, a Companhia de Jesus do Reino e dos seus domínios. “Influenciado pelas idéias dos enciclopedistas franceses, Pombal pretendia modernizar o ensino, liberando-o da estreiteza e do obscurantismo que imprimiram os jesuítas” (Werebe, 19967, p. 26). Porém, a sua política radical não resultou numa reforma de ensino. A história confirma este fato: É, pois, toda a estrutura do ensino que entra 45 em derrocada; a reforma pombalina, que decorre de necessidades ligadas à expulsão dos jesuítas, não cria estrutura nova, limitando-se a prescrições gerais. Dela, no que afetou a colônia, a conseqüência ostensiva esteve na fragmentação, na dispersão, que passa a constituir, no ensino, a característica maior, e é o antípoda da unidade que tanto marcara aquele a que os jesuítas haviam emprestado o seu nome. (Sodré, 1994, p. 28). Apesar de imposta a necessidade de modernização, compreendemos que a reforma pombalina, ao tomar medidas de transformação radical, torna-se responsável pela falta de organização de um novo sistema educacional no Brasil. Pois, “inúmeras foram as dificuldades daí decorrentes para o sistema educacional. Da expulsão até as primeiras providências para a substituição dos educadores e do sistema jesuítico, transcorreu um lapso de treze anos”. (Romanelli, 1997, p. 36). Este fato é, sem dúvida, surpreendente. Um lapso de treze anos, para que o sistema educacional jesuítico pudesse ser substituído, deve ter causado uma grande confusão nos rumos da história da educação no Brasil. “Em vez de um único sistema, passaram a existir escolas leigas e confessionais, mas todas seguindo os mesmos princípios herdados do passado” (Werebe, 1997, p. 26). Contudo, na reorganização do ensino, algumas medidas foram tomadas. Como podemos notar, Suprimida, pois, a Companhia, e afastada do ensino, o Estado, que não intervinha na gestão das escolas elementares e secundárias, tomou a seu cargo, por iniciativa de Pombal, a função educativa, que passou a exercer em colaboração com a Igreja, aventurando-se a um largo plano de oficialização do ensino (Azevedo, 1996, p. 527). Interessante que a Igreja, que antes tinha na Companhia de Jesus o seu maior instrumento de conquista, após a reforma pombalina passa a colaborar com o Estado nas intervenções do ensino. Pelo visto, a Igreja continuou empenhada 46 pela reafirmação do seu poder, desta vez atrelada ao Estado. A educação, por outro lado, continuou como “pano de fundo” para este cenário político. Além disso, “a repercussão das reformas pombalinas no Brasil foram muito reduzidas e se fez indiretamente por intermédio da Universidade de Coimbra” (Werebe, 1997, p. 27). Finalmente, o que realmente mudou na vida da colônia, após a expulsão dos jesuítas? Com o financiamento e a administração a cargo do governo metropolitano, que obviamente pouco se interessava em equipar a colônia com o sistema educacional eficiente, a educação colonial ficou reduzida a algumas poucas ‘Escolas e Aulas Régias’ (Xavier, 1992, p. 22). Nesse sentido, a história da educação no Brasil, após a reforma pombalina, continuou reduzida a segundo plano pelas classes dirigentes; e foi desse modo que “chegou à independência destituído de qualquer forma organizada de educação escolar” (Ibidem). Importante salientar que desde o início da reorganização dos estudos, e do estabelecimento das aulas de primeiras letras, de gramática, latim e grego no Rio de Janeiro e nas principais cidades das capitanias, em 1772, meio século já havia passado até a independência em 1822. O Brasil, no entanto, ainda se encontrava sem qualquer forma organizada de educação escolar. Afinal, Não foi um sistema ou tipo pedagógico que se transformou ou se substituiu por outro, mas uma organização escolar que se extinguiu sem que essa destruição fosse acompanhada de medidas imediatas, bastante eficazes para lhe atenuar os efeitos ou reduzir a sua extensão (Azevedo, 1996, p. 524). Em suma, a história da educação esteve, durante o período colonial, a serviço de interesses alheios ao sentido real da instrução, ou seja, o da formação integral do indivíduo. Mesmo conscientes do fato de estarmos reforçando um velho conceito, sentimos a necessidade de tornálo explícito neste estudo, pois, o início da história Trilhas, Belém, v.1, n.2, p. 56-65, nov, 2000 da educação no Brasil, revela-nos claramente o sentido empregado pelos nossos conquistadores, ao ato de educar. Parece-nos que o domínio político constituía a palavra de ordem e a submissão dos colonizados, a meta mais importante. Eis aqui a educação como domínio de almas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo de todo este estudo, procuramos mostrar, segundo Romanelli (1997, p 19), que “a forma como se origina e evolui uma cultura define bem a evolução do processo educativo”. Ora, sendo a cultura “um fenômeno social que representa o nível alcançado pela sociedade em determinada etapa histórica: progresso, técnica, experiência de produção e de trabalho, instrução, educação, ciências, arte e instituições que lhes correspondem” (Rosental e Iundi citado por Sodré, 1994, p. 3-4), então, resolvemos, mediante as considerações postas neste trabalho, situar a cultura brasileira em seu desenvolvimento. Ao passo que avançávamos em nossas leituras, percebíamos que no campo especificamente educativo, é ilusório pensar que, simplesmente, a partir do diagnóstico de seus problemas, estaremos aptos para enfrentar e superar as dificuldades presentes nas relações que conectam poder e cultura. Além do diagnóstico preciso, entendemos que o elemento fundamental seja a vontade política daqueles envolvidos diretamente na prática escolar. Não assumir nosso lugar e responsabilidade nesse espaço, significa entregá-lo a forças que certamente irão moldá-lo de acordo com seus próprios objetivos. Este não é, contudo, um processo fácil e simples, pelo fato de sermos herdeiros de uma história, cujos alicerces são profundamente de base autoritária e alheia aos interesses da coletividade. Como vimos, os interesses religiosos e políticos da Companhia de Jesus, sem dúvida, moveram a ação educativa desses padres, que encontraram no ensino, um meio eficaz de Trilhas, Belém, v.1, n.2, p. 56-65, nov, 2000 submissão e domínio. O sentido da educação, portanto, na “dominação das almas”, parece-nos bastante evidente, referindo-se a um sentido de educação basicamente elitista. Isso porque esse tipo de educação não visava à formação do indivíduo, mas privilegiava, mediante um conteúdo clássico, a ascensão social de um pequeno grupo dominante. Portanto, é fundamental compreender que, As desigualdades econômicas e sociais se refletem no sistema educacional. Assim, ao lado de uma elite bem educada, formada em boas escolas, encontra-se uma população analfabeta ou semi-analfabeta que não conseguiu ingressar no sistema escolar ou foi dele excluída precocemente (Werebe, 1997, p. 283). Entretanto, a grande perspectiva que devemos ter é a de poder examinar criticamente o que há nas entrelinhas da história da nossa educação, no sentido de entender que tipo de democracia nós podemos, eventualmente, construir como perspectiva futura. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro/Brasília: UFRJ e UnB, 1996. ROMANELLI, Otaíza de O. História da educação no Brasil. 19 ed. Petrópolis: Vozes, 1997. SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de história da educação brasileira. 17 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. XAVIER, Maria Elizabete S. P. Poder político e educação de elite. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1992. WEREBE, Maria José G. Grandezas e misérias do ensino no Brasil. 2 ed. São Paulo: Ática, 1997. 47