DO CRISTAL-PEDRA, DE TEOFRASTO, À FÍSICA DO ESTADO SÓLIDO Por A. M. Galopim de Carvalho Por decisão oficial das Nações Unidas, 2014 foi declarado Ano Internacional da Cristalografia. O texto que se segue recorda os principais avanços de uma caminhada de mais de 2300 anos. Na Antiguidade, Aristóteles (384-322 a. C.) chamava cristal ao gelo (krystallos, em grego) e é sabido que, desde então e até ao século XVIII, se acreditou que os cristais de quartzo hialino, isto é, o incolor e transparente, eram ocorrências de água no estado sólido, num grau de congelação tão intenso que era impossível fazê-los voltar ao estado líquido, E foi assim, sob este nome, que a variedade hialina de quartzo passou aos domínios da alquimia, primeiro, e da mineralogia, depois. Theofrasto (372-287 a. C) distinguia o cristal-água (o gelo) do cristal-pedra (o quartzo hialino). Os romanos mantiveram este entendimento, latinizando o nome para cristallus, como se pode ler num dos 38 volumes da “História Natural”, de Plínio, o Velho, (23-79 d. C.). A expressão cristal-de-rocha, aplicada ao quartzo hialino, surgiu muito mais tarde (no séc. XIX) para distinguir o mineral do vidro de alta qualidade, produzido e comercializado sob o nome de cristal. A palavra cristal aplicou-se, depois, aos corpos sólidos, poliédricos minerais ou orgânicos, naturais ou artificiais, e acabou por se generalizar a toda a porção de matéria sólida, limitada ou não por faces planas, cuja estrutura interna se caracteriza pela repetição periódica de um motivo (composto por átomos) nas três direcções do espaço. O termo cristal pode, assim, ser usado em duas acepções, uma mais geral, outra mais restrita. Acrescente-se que o critério prático para o reconhecimento de uma estrutura como sendo cristalina consiste na obtenção de um espectro de difracção (de raios X) indexável. O mesmo termo foi usado como étimo do nome da disciplina – cristalografia – que estuda a matéria cristalina, afirmada como ciência, em finais do século XVIII, em França, com Romé de l'Isle (1736-1790) e RenéJust Haüy (1743-1822). Até então, se bem que Lineu (1707-1778) tenha reconhecido, em 1735, a natureza regular, constantemente reproduzida, do fenómeno da cristalização, os cristais eram vistos como simples resultados do acaso ou curiosidades da natureza. Domínio de investigação nascido da mineralogia e inicialmente de cariz geométrico e matemático, habitualmente referido por cristalografia geométrica, deu apoio, como complemento tido por indispensável, à caracterização e diagnose dos minerais até às primeiras décadas do século XX. Alargou-se, depois, com o advento dos raios X e com o desenvolvimento da cristaloquímica, para, a partir daí, se irmanar com a física do estado sólido, com recurso às modernas tecnologias de análise. Constituiu-se, então, como um nova linha de investigação, a cristalografia estrutural, de âmbito alargado a todos os sólidos cristalinos, sejam eles inorgânicos ou orgânicos, naturais e artificiais ou sintéticos. Tanto assim que, actualmente, é habitual definir-se cristalografia como sendo a análise das estruturas cristalinas. No século XVII, o anatomista dinamarquês Nicolau Steno (1638-1696) verificou, em 1669, que os “ângulos diedros, formados pelas faces homólogas dos cristais de quartzo, são constantes e independentes da forma e da dimensão das mesmas”. Esta sua observação, que ainda tem um âmbito restrito, mas que alguns referem como Lei de Steno, está na base da conhecida Lei da Constância dos Ângulos (esta, sim, uma verdadeira lei), formulada um século mais tarde, pelo francês Romé de l'Isle. Um pouco mais recentemente, Domenico Guglielmini (1655–1710), matemático e médico italiano, foi o primeiro a interessar-se pelos sais e pela cristalização destes, tendo chamado a atenção para a constância da formas cristalinas próprias de cada um deles, dando mais um passo no caminho do conhecimento dos cristais. Na Rússia, Mikhayl Vasilyevich Lomonosov (1711-1765) produziu valioso trabalho de prospecção mineira e foi autor de um catálogo de minerais com várias centenas de espécies e variedades. Independentemente de Nicolau Steno, apercebeu-se da constância dos ângulos diedros entre faces homólogas de cristais da mesma espécie mineral. Jean-Baptiste Louis Romé de l'Isle (1736-1790), antigo oficial de marinha francês, desenvolveu o gosto pela mineralogia durante um período de cerca de três anos em que, juntamente com Georges Balthazar Sage (fundador da École Royale des Mines de Paris), ficou prisioneiro dos ingleses nas Índias Orientais. Influenciado pelas ideias de Lineu, procurou estabelecer uma sistemática dos minerais em função das respectivas formas externas, em especial, dos seus cristais, tendo enunciado o conceito de “forma primitiva”. A mineralogia abriu-lhe o caminho da cristalografia. Autodidacta de génio, de l’Isle rodeou-se de colaboradores de grande craveira, como o naturalista e mineralogista francês, Arnould Carangeot (1742-1806), inventor do goniómetro de aplicação, em 1783, quando era assistente de l’Isle. Enquanto Carangeot produzia os primeiros modelos de cristais moldados em barro, servindo-se daquele instrumento rudimentar, de l’Isle mediu inúmeros ângulos diedros dos cristais. Tal permitiu-lhe enunciar a Lei da Constância dos Ângulos, conferindo o carácter de lei (isto é, de aplicação a todos os cristais) às observações anteriores de Steno, Guglielmini e Lomonosov. Esta lei fundamental, em termos actuais, diz que “à mesma temperatura, os ângulos diedros formados por faces homólogas são constantes para os cristais da mesma espécie mineral”. Reforça-se, assim, o início de uma nova disciplina que, durante mais de dois séculos, como se disse atrás, constituiu um precioso complemento na diagnose mineralógica. Romé de l'Isle teve, ainda, o apoio de Swebach Desfontaines, escultor que, com base nos elementos que lhe forneceu, produziu a primeira colecção de modelos cristalográficos em barro, num total de 448 “cristais” de referência. O “Essai de Cristallographie”, de Romé de l'Isle, editado em 1772, teve uma segunda edição, em 1783, em 3 volumes, acompanhada de um atlas, tendo sido esta edição, onde extensivamente aplicou o uso do goniómetro de contacto e a lei da constância dos ângulos diedros, que o tornou conhecido e lembrado como o “Pai da Cristalografia”. Sendo um mineralogista, celebrizou-se como cristalógrafo, distinção que lhe valeu ser eleito membro estrangeiro da Academia Real das Ciências da Suécia. Um outro francês, seu contemporâneo, o abade René Just Haüy (1743-1822) deu grande desenvolvimento à cristalografia geométrica que caracterizou o século XIX e boa parte do XX ao enunciar, em 1784, a Lei da Racionalidade dos Índices. Também conhecida por Lei de Haüy, tem uma importância capital para o estabelecimento da cristalografia como ciência. Em primeiro lugar, porque se sustenta numa hipótese sobre a estrutura interna dos cristais, estabelecida com base numa propriedade observada nos cristais, a clivagem; em segundo lugar e como uma consequência daquela teoria, porque corresponde a uma abordagem matemática. Esta lei, que é tida como um passo significativo no sentido da cristalografia moderna, diz: “as relações paramétricas que definem as faces possíveis dos cristais são sempre números racionais geralmente pequenos”. Para Haüy, a estrutura interna de um cristal correspondia, basicamente, ao empilhamento compacto de pequeníssimos paralelepípedos da substância em causa (“moléculas integrantes”) que assim se repetiam triperiodicamente no espaço. É, pois, uma notável antevisão da estrutura triperiódica da matéria cristalina, mais tarde idealizada por Bravais, em 1847, e que a difracção dos raios X pelos cristais viria a confirmar, já no século XX. Haüy foi ainda pioneiro no estudo e na compreensão da piroelectricidade. Na Alemanha, o mineralogista e cristalógrafo Christian Samuel Weiss (1780-1856), professor da Universidade de Berlim, encontrou maneira de definir matematicamente qualquer face de um poliedro cristalino. Para tal concebeu Weiss definiu o conceito de “zona cristalográfica” como o conjunto de faces paralelas a uma direcção cristalográfica designada por “eixo de zona” e foi o autor de uma lei da cristalografia geométrica, conhecida por Lei das Zonas, que não é mais que uma nova expressão da lei da racionalidade dos índices. Esta lei estabelece as relações algébricas entre os parâmetros das faces que pertencem a uma dada zona. Em termos actuais, dir-se-á que, para uma face cristalográfica pertencer a uma dada zona, é necessário que a soma dos produtos dos índices de Miller da face pelos índices correspondentes do eixo da zona seja nulo. Chamou a atenção para o facto de duas faces cristalográficas não paralelas serem sempre faces de uma dada zona, pois ambas são paralelas à linha de intersecção das mesmas. Por outras palavras, duas faces cristalográficas não paralelas definem sempre uma zona possível do cristal, a qual conterá outras faces, reais ou possíveis, do mesmo. Mais de meio século depois de Haüy ter concebido a sua “molécula integrante”, o físico francês Auguste Bravais (1811-1863), desenvolveu um valioso trabalho no domínio da estrutura cristalina dos minerais e da influência desta estrutura na geometria dos poliedros cristalinos, tida durante mais de um século como um complemento indispensável na diagnose mineralógica. Numa antecipação notável, este fundador da cristalografia estrutural viu no cristal um meio físico, no qual um dado motivo se repete nas três direcções do espaço ou, como também se diz, um meio físico triperiódico. Esta sua concepção, conhecida por Teoria Reticular de Bravais, desenvolvida numa importante memória, publicada em 1847, viria ser experimentalmente confirmada, no primeiro quartel do século XX com o advento dos raios X. Nesta sua inovadora concepção, Bravais idealizou a redução de cada “molécula” constituinte de um cristal a um ponto (nó), numa espécie de renascimento das ideias atomistas de Leucipo, Demócrito e outros filósofos gregos da Escola de Mileto. Este nó, segundo ele, tem os seus homólogos distribuídos segundo os vértices de um paralelepípedo a que chamou “malha elementar”, que se repete por empilhamento nas três direcções do espaço, constituindo uma rede triperiódica, cuja homogeneidade é determinada por essa mesma repetição. À semelhança do que Haüy imaginava com a sua “molécula integrante”, Bravais acreditava que era este empilhamento da “malha elementar”, que constituía o corpo do cristal. Na teoria reticular de Bravais, os elementos materiais não são os paralelepípedos, considerados como corpos maciços, tal como Haüy os concebeu, mas sim moléculas poliédricas que, abstractamente, reduz a nós. A distribuição triperiódica destes permite vê-los como vértices de um paralelepípedo (malha reticular). A forma dessa malha definidora da estrutura cristalina determina a simetria da rede tridimensional, tendo Bravais demonstrado que há apenas 14 malhas distintas e, portanto, 14 tipos distintos de redes tridimensionais, conhecidos por módulos ou modosde Bravais. Christian Hessel russo Alex Gadolin (1828-1892). Químico alemão pela Universidade de Göttingen, Eilhard Mitscherlich (1794-1863) trabalhou com o químico Berzelius, na Suécia, e aí verificou que os fosfatos de determinados metais e os correspondentes arseniatos cristalizam com a mesma forma, situação que o levou a descobrir o isomorfismo e a formular a chamada Lei do Isomorfismo, segundo a qual a forma de um cristal não depende da natureza dos seus átomos, mas da forma como eles se organizam. Verificou, ainda que determinadas espécies minerais podem cristalizar em simetrias diferentes, particularidade a que deu o nome de polimorfismo. Estas descobertas, que comunicou à Academia de Berlim, em 1819, marcam o início de uma nova disciplina designada por cristaloquímica, sendo Mitscherlich o seu fundador. Deve-se-lhe ainda a construção do primeiro polarizador. o médico alemão, Johann Friedrich Christian Hessel (1796-1872),conjuntos de poliedros cristalinos que possuem os mesmos elementos de simetria Aquando da publicação do seu trabalho “”, em 1830, nem todas as 32 classes de simetria possíveis tinham sido observadas em cristais reais. Hessel foi professor de mineralogia na Universidade de Marburgo, onde Em 1926, verificou que as plagioclases podem ser consideradas soluções sólidas de albite e anortite. Tal como acontecera com as suas conclusões no domínio da simetria dos cristais, esta outra sua valiosa descoberta só foi conhecida em 1865, divulgada pelo mineralogista austríaco Ainda na Alemanha, Carl Friedrich Naumann (1797-1873), geólogo, mineralogista e cristalógrafo, ensinou em Iéna, Leipzig e Freiberga, três importantes centros de ensino superior onde foi professor destas disciplinas. Entre as várias obras escritas que nos deixou, destacam-se um manual de cristalografia, Matemático e professor de mineralogia em Cambridge, o inglês William Hallowes Miller (1801-1880) é lembrado na cristalografia morfológica por ter desenvolvido e divulgado os índices concebidos pelo seu conterrâneo William Whewell (1794-1866) como os inversos dos parâmetros de Weiss. Conhecidos por Índices de Miller (h=1/m, k=1/n e l=1/p, em que h : k : l = 1/m : 1/n : 1/p , sendo h, k e l, os menores valores inteiros possíveis), definem a correcta posição de qualquer face de um poliedro cristalino, em relação aos respectivos eixos cristalográficos, constituindo um sistema de notação dessas faces, então indispensável à identificação das espécies minerais e ainda em uso em todos os trabalhos de cristalografia, para a identificação não só de faces (e formas cristalográficas) como de planos estruturais e, numa forma modificada, das difracções de raios X (e outras radiações) pelos cristais. Esta via de investigação foi amplamente divulgada no seu livro “Treatise on crystallography”, editado em 1839, hoje reconhecido como um clássico da cristalografia matemática. Nesta mesma obra, Miller introduziu a projecção estereográfica e expôs a chamada Lei de Miller, que estabelece a relação angular das faces do cristal com os respectivos índices h, k, l. O mineral millerite, um sulfureto de níquel, de fórmula NiS, é uma homenagem à sua memória. Axel Gadolin (1828-1892), militar e cientista russo nascido na Finlândia, distinguiu-se no campo da cristalografia. e de Christian HesselGadolin deixou-nos, Mémoire sur la déduction d'un seul principe de tous les systèmes cristallographiques, publicada em 1867, uma obra de muito mérito relativamente aos sistemas cristalográficos. François Ernest Mallard (1833-1894), geólogo e engenheiro de minas francês, ensinou mineralogia na Escola Nacional Superior de Minas de Paris, tendo sido professor de Friedel, e foi como mineralogista e cristalógrafo que se notabilizou ao levar a cabo alguns dos trabalhos científicos mais notáveis do seu tempo, com destaque para a memória Explication des phénomènes optiques anormaux que présentent un grand nombre de substance cristallines, publicada em 1876. Deve-se-lhe ainda a obra em dois volumes, Traité de cristallographie géométrique et physique, (1879 e 1884).Tendo dado particular atenção às maclas (geminações), inovou conhecimentos sobre este tipo de edifícios cristalinos, como a que ficou conhecida por Teoria das Maclas de Mallard. Na Rússia, alguns anos mais tarde, Yevgraf Stepanovich Fedorov (1853-1919), matemático, cristalógrafo e mineralogista, deduzia os 230 grupos espaciais na estrutura cristalina, independentemente do matemático alemão Arthur Moritz Schönflies (1853-1928) e do geólogo inglês William Barlow (1845-1934). Entretanto, o físico alemão Leonhard Sohncke (1842-1897) já havia derivado 65 dos referidos grupos. Doutorado pela Universidade de Berlim, em 1877, Schönflies aplicou a teoria dos grupos à cristalografia e, assim, acabou por deduzir os mesmos 230 grupos espaciais, que publicou em 1892, em paralelo e, como se disse, independentemente de Fedorov e de Barlow. Este dedicou-se inteiramente, como amador, ao estudo da matéria cristalina, tendo concluído também que apenas podiam existir 230 diferentes formas de simetria cristalina, conhecidas como grupos espaciais. Estes seus resultados só foram, porém, publicados em 1894, após terem sido anunciados separada e independentemente por Fedorov e por Schönflies. Os seus modelos estruturais de compostos simples, tais como o da halite (cloreto de sódio), foram confirmados posteriormente por difractometria de raios X. Este tema foi retomado um século depois pelo cristalógrafo norte-americano, Ralph Walter Graystone Wyckoff (1897-1994), ao publicar, em 1922, , um livro que, entre outros ensinamentos, contém as tabelas com as coordenadas de posicionamento, gerais e especiais, autorizadas pelos elementos de simetria. numa época em que a teoria atómica de Dalton já estava bem estabelecida, Em 1877, fundou a revista Zeitschrift für Krystallographie und Mineralogie e, posteriormente, serviu como seu editor até 1920. Em 1888, foi o primeiro a sugerir a possibilidade de átomos, que imaginou como crepúsculos esféricos, se disporem em posições bem definidas na rede cristalina, o que deu significado físico a uma ideia ainda um tanto ou quanto abstracta da repetição regular e simétrica do espaço. Nas pisadas de Mallard, o seu discípulo francês Georges Friedel (1865-1933) foi, sobretudo, um mineralogista e cristalógrafo que, na sua memorável obra, publicada em 1822, inovou grande parte da actual terminologia em uso na física dos cristais líquidos ou mesofases. Com recurso à difracção de raios-X, este engenheiro de minas aprofundou os trabalhos do fundador da cristalografia estrutural, Auguste Bravais, tendo publicado, em 1913, Sur les symétries cristallines que peut révéler la diffraction des rayons Röntgen, onde enunciou a que ficou conhecida por Lei de Friedel. Prémio Nobel de Física, em 1915, o inglês William Henry Bragg (1862-1942), juntamente com o seu filho, William Laurence Bragg, criaram e puseram em prática o espectrómetro de raios X, abrindo as portas a uma via de análise da estrutura dos cristais por difractometria desta radiação, uma tecnologia descoberta em 1912 pelo físico alemão Max von Laue (1879-1960), laureado, por isso, com o Nobel de Física, em 1914, criando as bases da cristalografia estrutural. Esta inovação, com reflexos imediatos e frutuosos na cristalografia estrutural e na mineralogia, valeu-lhe, a ele e ao filho, o referido galardão. O mineral braggite, um sulfureto de níquel, platina e paládio, associado aos noritos do complexo Bushweld, na África do Sul, o primeiro novo mineral a ser isolado e determinado recorrendo aos raios X, foi assim chamado em homenagem aos Bragg pai e filho. Numa derradeira ligação à cristalografia geométrica e matemática, o cristalógrafo e mineralogista francês, Charles-Victor Mauguin (1878-1958), fundador da União Internacional de Cristalografia, criou, em parceria com o alemão Carl Hermann (18981961), uma simbologia padrão para os grupos cristalográficos, internacionalmente adoptada, conhecida como a “notação de Hermann-Mauguin” ou “notação internacional”. Mauguin foi professor de Mineralogia nas Universidades de Bordéus, Nancy e Paris (Sorbonne), onde enveredou por estudos de mineralogia e cristalografia por difracção de raios X. ensinou na Politécnica de Darmstadt e na Universidade de Marburgo, como professor da recém-criada cadeira de Cristalografia, tendo aí ocupado o cargo de director do Instituto de Cristalografia. O termo hermannite, criado em sua homenagem, é sinónimo obsoleto da rodonite, uma espécie afim das piroxenas. Em 1983, o português José Lima de Faria propôs uma nova sistemática dos minerais com base na adaptação da classificação das estruturas inorgânicas que definiu em 1976, em colaboração com Maria Ondina Figueiredo. Trata-se de uma extensão da física do estado sólido (já experimentada nos silicatos, nos boratos e nos fosfatos) a todos minerais e baseia-se na distribuição e no carácter direccional das forças de ligação entre os átomos nas redes cristalinas. Esta nova abordagem foi aprovada pela Comissão de Nomenclatura da International Union of Crystallography, em 1990. A classificação estrutural de Lima de Faria, apresentada à comunidade científica internacional, em língua inglesa, comporta cinco grandes conjuntos. Atomic – configurado por átomos isolados num empilhamento compacto de átomos, exemplificado por espécies quimicamente muito diferentes entre si, como galena, halite, rútilo, zircão, ouro; group – definido pela predominância do carácter direccional das forças de ligação em arranjos de átomos associados em grupos finitos (anéis, por exemplo); reúne pirite e alguns carbonatos, nitratos, boratos e muitos silicatos. Chain - definido pela predominância do carácter direccional das forças de ligação em arranjos de átomos associados em grupos infinitos unidireccionais, em cadeias; reúne cinábrio, piroxenas, anfíbolas. Sheet – definido pela predominância do carácter direccional das forças de ligação em arranjos de átomos associados em grupos infinitos bidireccionais, desenvolvendo-se em superfície, em folhas; reúne micas, minerais das argilas, grafite. Framework - definido pela predominância do carácter direccional das forças de ligação em arranjos de átomos associados em grupos infinitos reticulados tridimensionais, em volume; reúne diamante, quartzo e feldspatos, entre outros. Acontece, porém, que as fórmulas estruturais e todo o conjunto de notações utilizadas na cristalografia estrutural não fazem parte da generalidade dos curricula, ao contrário do que se passa com as fórmulas químicas clássicas, em uso para a generalidade das espécies minerais. O salto em frente está a ser dado pelos defensores desta nova maneira de arrumar os minerais numa perspectiva de futuro. Está, porém, ainda longe de se impor nas colecções dos museus, das escolas e dos coleccionadores (cada vez mais numerosos, a nível mundial) e de figurar nos manuais de ensino. Se é certo que o progresso científico assenta na criatividade, a história mostra como é difícil mudar hábitos arreigados. A novíssima classificação de Lima de Faria goza de reputação internacional, mas a inovação não é fácil e necessita de tempo, As bases da classificação estrutural alargada a todos os minerais estão, pois, lançadas. Em conclusão, pode dizer-se que a cristalografia passou da forma exterior dos cristais à teorização sobre a sua estrutura interna. Por outras palavras, o seu objecto de estudo passou das propriedades geométricas dos poliedros cristalinos à descrição das estruturas cristalinas ideais e, actualmente, ao estudo das suas estruturas reais, das suas propriedades e dinâmica. Embora mais afastada da geologia e de se ter convertido numa física do estado sólido, com aplicações em muitos domínios científicos (física, química, mineralogia, ciência dos materiais, farmácia e biologia) e tecnológicos (tão diversos como da engenharia de cristais à biotecnologia e medicina, ou da nanotecnologia à química supramolecular), a sua actualidade e importância ficam demonstradas pela declaração oficial, pelas Nações Unidas, de 2014 como o Ano Internacional da Cristalografia. Agradeço ao Prof. Sodré Borges, da Universidade do Porto, a leitura crítica do texto.