ENSINO TÉCNICO E EDUCAÇÃO CRÍTICA: OBSERVAÇÕES SOBRE A INSERÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS NO MUNDO TECNOCIENTÍFICO (BRASIL, SÉCULO XXI) Denilson de Cássio Silva1 Modalidade: Comunicação. Eixo Temático: Educação e trabalho. Resumo: A presente comunicação aborda a relação entre ensino técnico e educação crítica, a partir de observações sobre a inserção das Ciências Humanas no mundo técnico-científico brasileiro do século XXI. Têm-se como objetivos discutir a relação entre ensino técnico e educação crítica, examinar o discurso formal-oficial no tocante àquela relação e compreender a inserção das Ciências Humanas no devir de construção de uma educação técnica, científica e humanística. O referencial teórico sustenta-se nos pensamentos arendtiano e habermasiano. A metodologia é de cunho bibliográfico, documental, qualitativo e exploratório. Os resultados iniciais alcançados apontam para o adensamento da compreensão das Ciências Humanas no processo de fortalecimento da relação entre as dimensões técnica e crítica da EPT. Palavras-chave: Educação; Técnica; Crítica; Ciências Humanas. INTRODUÇÃO A presente comunicação aborda a relação entre ensino técnico e educação crítica, a partir de observações sobre a inserção das Ciências Humanas no mundo técnico-científico brasileiro no século XXI. São considerados, sobretudo, os âmbitos da Educação Profissional Técnica de Ensino Médio e das instituições de ensino superior, especializadas na oferta de educação profissional e tecnológica. Parte-se do pressuposto de que as noções de ensino técnico e educação crítica referem-se a uma realidade dinâmica na qual tais aspectos são concatenados de forma interativa e interdependente (SILVA, 2014). Se, por um lado, o termo “ensino” pode sugerir uma delimitação, demasiadamente, acentuada, atrelada ao fator cognitivo, por outro, a ideia de “educação” pode comportar determinada imprecisão, posta sua abrangência (MORIN, 2012). Entende-se, aqui, que o ensino técnico compõe o processo educacional formal e que a crítica intervém ou deve 1 Professor de História do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Unidade Belo Horizonte. intervir na construção do saber técnico, formando um movimento de transmissão, de apropriação e de inovação no âmago do ensino-aprendizagem e da elaboração do mundo humano. Nesse sentido, os apontamentos sobre a condição epistemológica das Ciências Humanas, em meio a uma modernidade tecnológica, ensejam a problematização da relação entre técnica e crítica. Desvelam-se as peculiaridades de disciplinas caracterizadas pela coincidência entre o sujeito e o objeto de conhecimento em meio a um paradigma vigente de teor cartesiano. Por meio dessa abordagem, têm-se como objetivos discutir a relação entre ensino técnico e educação crítica; examinar o discurso formal-oficial no tocante àquela relação e compreender a inserção das Ciências Humanas no processo de construção de uma educação técnica, científica e humanística. De modo análogo, são aventadas as seguintes hipóteses de que: a) A relação entre técnica e crítica é dialética, multilateral e dinâmica; b) Os discursos formais e/ou oficiais sugerem a articulação entre ensino técnico e educação crítica, atendendo aos valores educacionais em voga; c) As Ciências Humanas tornam-se cruciais para a concretização de uma Educação Profissional Tecnológica de viés emancipatório e humanista. As principais fontes utilizadas foram livros, artigos, teses, leis, diretrizes, planos e parâmetros. A metodologia, pois, é de cunho bibliográfico, documental, qualitativo e exploratório. Realizou-se o levantamento, a leitura, a sistematização e a análise de obras afins, considerando-se tanto a produção acadêmica quanto dados oficiais, relativos à situação do ensino técnico e tecnológico e da educação humanística. Na sequência, foram analisados os pontos nevrálgicos para o atendimento aos objetivos da investigação e testada a validade do escopo teórico e empírico empregado. A seguir, no primeiro tópico, serão expostas as tentativas de articulação entre ensino técnico e educação crítica, a partir da análise de documentos formais. No segundo tópico, discutir-se-ão os contornos do tecnicismo e a relevância das Ciências Humanas. Por fim, seguem as considerações finais. 1. ENSINO TÉCNICO E EDUCAÇÃO CRÍTICA: SOLILÓQUIO TEÓRICO OU CONJUGAÇÃO POSSÍVEL? No início do século XX, o trabalho e o ensino técnico, após séculos de escravismo, apresentavam um caráter pedagógico conservador, voltado para o exercício do controle sobre os grupos sociais, economicamente, marginalizados (GONÇALVES, 2012). A função técnica, naquele contexto, demarcava lugares sociais de subalternidade e atuava na reprodução da ordem estabelecida. No ano de 1909, foi instituído o Decreto 7.566, que criava nas capitais dos Estados as Escolas de Aprendizes Artífices, predecessores dos atuais CEFET’s e IFET’s. Desde então, acompanhando as diferentes tendências político-pedagógicas pelas quais passou a educação formal, escolar-acadêmica, no Brasil, as discussões sobre as finalidades, os meios, os públicos-alvo e os resultados do ensino técnico-tecnológico vêm sofrendo mutações, ligadas a cenários estruturais de reformulação dos preceitos educacionais. Da pedagogia tradicional, religiosa e leiga, passando pela pedagogia nova, até a configuração de uma pedagogia tecnicista, têm se manifestado as disputas em torno dos projetos, das ações e das orientações fundamentais da educação brasileira. No que tange ao ensino técnico e tecnológico, adentrado o século XXI, a relação entre a razão instrumental e a razão crítica, constituem um dos problemas centrais da teoria e da prática educacionais. Tal questão vem sendo apontada em diferentes estudos, com linhas teóricas variadas (FRIGOTTO & CIAVATTA, 2006; BOLZAN, 2010) e reflete as tensões em torno do desafio de se equacionar lutas sociais e indagações histórico-filosóficas. No primeiro caso, há um cenário no qual se afere um aumento na escala, na diversidade e, por conseguinte, nos conflitos da democracia, em face de uma sociedade heterogênea e organizada em diferentes grupos religiosos, étnicos, sexuais, etários, profissionais e outros, que lutam para ascender, socialmente, por meio da educação, inclusive, de base técnica e tecnológica (DAHL, 2012). No segundo, surge a demanda de elaboração de uma compreensão teórica, políticopedagógica, capaz de fundamentar uma prática pautada pela conciliação e complementaridade entre a técnica-ciência e a crítica humanista. Em ambos os aspectos, os discursos afins, de base legal, tendem a ensejar os valores sócio-éticos-educacionais acalentados a partir da sociedade civil brasileira, assinalando para o enfretamento de “um dos grandes problemas dessa nova perspectiva para a EPT (Educação Profissional e Tecnológica)”, que é “construir uma visão da formação profissional e do trabalho que ultrapasse o sentido da subordinação às restritas necessidades do mercado”. Sob tal perspectiva, espera-se que a EPT “contribua com o fortalecimento da cidadania dos trabalhadores e democratização do conhecimento em todos os campos e formas” (PACHECO, CALDAS & SOBRINHO, 2012, p. 19). Essa avaliação faz eco a orientações já presentes na Constituição Federal vigente, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nos Parâmetros Curriculares Nacionais e em Planos de Desenvolvimento Institucional. No 1º artigo da Carta Magna brasileira, lê-se que, enquanto Estado Democrático de Direito, a República tem como fundamentos “I – a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político”. Cidadania, pessoa humana e trabalho aparecem, aqui, encadeados, e convergem para os objetivos republicanos fundamentais, assinalados no artigo 3º: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL, 1988). Nesse devir, a educação é concebida como projeto social, fator estrutural e estruturante, devendo ser “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Art. 205). No artigo 214, ao designar que a lei estabelecerá o plano nacional da educação, fica exposto que as ações deste deverão conduzir à erradicação do analfabetismo, à universalização do atendimento escolar, à melhoria da qualidade de ensino e às “IV -formação para o trabalho; V – promoção humanística, científica e tecnológica do País”. “Formação para o trabalho” e “promoção humanística”, novamente, emergem, lado a lado, nos enunciados da LDB nº 9394/96: “Art. 2º. A educação, [...] tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Adiante, no artigo 35º, são reconhecidas como finalidades do ensino médio, dentre outras, “III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;” e “IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina” (BRASIL, 1996). Tal perspectiva ainda se manifesta nos PCNs, reafirmando a interdependência entre “cidadania” e “trabalho”, “humanização” e “qualificação”, buscando sintonizar a realidade escolar e as demandas formativas. Após discorrer sobre a concepção de educação escolar como uma prática incorporadora da “possibilidade de criar condições para que todos os alunos desenvolvam suas capacidades” e “aprendam os conteúdos necessários para construir instrumentos de compreensão da realidade e de participação em relações sociais, políticas e culturais diversificadas”, salienta que a “formação escolar deve possibilitar aos alunos condições para desenvolver competência e consciência profissional, mas não restringir-se ao ensino de habilidades imediatamente demandadas pelo mercado de trabalho.” (BRASIL, 1997, p. 33-34). Acompanhando as ambiguidades das legislações supra, que absorvem as disputas e os interesses em curso na sociedade e buscam uma síntese entre valores tecnicistas e humanistas, o CEFET MG aponta suas orientações institucionais e político-pedagógicas. No ano de 1993, ecoando parte do elã de sua longa história2, foi estabelecida como missão institucional “Promover a formação do cidadão – profissional qualificado e empreendedor – capaz de contribuir ativamente para as transformações do meio empresarial e da sociedade” (CEFETMG, 1993). O feitio tecnicista estava escancarado. Ao mesmo tempo, afere-se certa preocupação em assinalar os valores humanos como húmus do processo de ensinoaprendizagem e de pesquisa, indicando que a “(...) educação tecnológica pressupõe desenvolvimento humano.” (CEFET-MG, 1993). Essa ambivalência demarca um ponto nevrálgico das diretrizes institucionais cefetianas que continua presente na vida escolar-acadêmica. No Plano de Desenvolvimento Institucional para os anos de 2011 a 2015, nota-se que a ênfase atribuída à tecnologia e à ciência aplicada compõe a expertise da instituição. Se comparado com as perspectivas dos anos 1990, parece ter ocorrido um avanço na busca por uma reflexão mais atenta ao liame entre técnica e crítica, na ânsia em se alcançar uma possível coexistência entre as demandas de qualificação e a resistência à lógica produtivista de mercado, por meio de uma educação emancipatória. No PDI 2011-2015 verifica-se o fito de aprimorar documentos anteriores, no que se refere à “valorização do caráter humanista e tecnológico da instituição, em prol da educação tecnológica, promoção da cidadania e rejeição de políticas e práticas de exclusão” (CEFET, 2012, p. 15). Dentre os princípios institucionais adotados, constam a “promoção de 2 No decorrer das décadas, o CEFET MG assumiu diferentes denominações e funções, chegando ao século XXI com sua sede situada em Belo Horizonte. Constituindo-se em um centro de excelência educacional e científica, a instituição arrosta o dilema entre tradição e inovação didático-pedagógica. Tal situação parece estar presente também em outras instituições de ensino técnico e tecnológico. Ver: (FRIGOTTO & CIAVATTA, 2003). Esses autores adotam um viés teórico marxista com o qual dialogamos, não nos limitando, porém, ao mesmo. Ver, adiante, o tópico “2. Neotecnicismo e a condição das Ciências Humanas”. educação com valores democráticos e de cidadania com responsabilidade ambiental” e a “construção de projetos político-pedagógicos de cursos em consonância com a realidade local e nacional, buscando uma estreita relação entre formação geral, técnica e humanística” (CEFET, 2012, p. 93-94). A transformação das concepções institucionais, claro é, situam-se em um quadro mais amplo de fatores políticos, sociais, econômicos e culturais, integradores da história nacional e internacional. Para se compreender o dilema em pauta, cabe levar em consideração a complexidade das relações entre essas diferentes instâncias, elucidando os vínculos estabelecidos, mantidos ou rompidos entre o local e o global, as escalas micro e macro. A fim de que se possa adentrar na análise dessa realidade, é tomada como chave explicativa a posição das Ciências Humanas no painel da segunda metade do século XX e do século XXI, avaliada, por diversos autores, como uma situação problemática ante o predomínio da lógica racionalista (ADORNO & HORKHEIMER, 1985) e do dogmatismo cientificista (HABERMAS, 2013). Rompendo-se com a perspectiva binária-dicotômica da inter-relação entre técnicaciência e crítica emancipatória e auferindo a apreensão da complexidade, cabe indagar: Qual seria a condição das Ciências Humanas? Como as disciplinas das Humanas, alicerçadas em suas peculiaridades epistemológicas, atuam ou podem atuar no processo de construção de uma educação técnica e crítica? Qual o risco de se apregoar uma educação técnica e tecnológica, preocupada com o fortalecimento da cidadania, resvalando-se em um discurso vazio? Um vislumbre sobre esses questionamentos indica que a relação entre ensino técnico e educação crítica não se trate de um mero solilóquio teórico. Em vez disso, é explicitado o desafio de se pensar e de se colocar em prática um projeto sócio-educacional emancipador. Assim, as respostas a tais indagações reivindicam pesquisa teórica e empírica aprofundada, cujo teor escapa aos limites do presente artigo. Passa-se, pois, ao afunilamento da discussão proposta, centrando a atenção nas ingerências do tecnicismo e nas possibilidades de inserção das Ciências Humanas na modernidade. 2. O NEOTECNICISMO E A CONDIÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS 2.1.Tecnicismo e neotecnicismo Em fins da década de 1960 e no decurso dos anos 1970 foi traduzida e publicada, no Brasil, uma série de obras, que defendiam, de alguma forma, a imbricação entre capital, trabalho, desenvolvimento e educação (SAVIANI, 2013, p. 369). Não por acaso, as reformas do ensino no Brasil, nesse ínterim, obedeceram à demanda de “grupos ligados ao regime instalado com o golpe militar de 1964 que buscavam vincular mais fortemente o ensino superior aos mecanismos de mercado e ao projeto político de modernização”, subordinandose às exigências do capitalismo internacional (SAVIANI, 2013, p. 374). Sob esse prisma, o tecnicismo tornou-se a corrente pedagógica predominante naquele período, caracterizando-se, em geral, pela crença no pressuposto da imparcialidade científica, ancorada nas ideias de racionalidade, produtividade, eficiência e eficácia. Em termos da educação profissionalizante, dava-se ênfase “no treinamento para fazeres práticos [...] sobretudo voltados a atividades produtivas e de serviços”, preparando os alunos para “uma especialidade laboral dissociada de uma formação geral mais ampla” (BRASIL, 1997, p. 8). Os professores e demais agentes educacionais e escolares, eram concebidos como executores burocráticos de um planejamento – sistêmico e padronizado, feito por técnicos outros voltado para reduzir ao mínimo a intervenção da subjetividade e atingir a famigerada eficiência. Segundo Dermeval Saviani, a pedagogia tecnicista, ao ensaiar transpor para a escola a forma de funcionamento do sistema fabril, perdeu de vista a especificidade da educação, ignorando que a articulação entre escola e processo produtivo se dá de modo indireto e por meio de complexas mediações (SAVIANI, p. 383). Patentemente, essa tendência político-pedagógica, embora predominante, não era a única em curso, interagindo com concepções tradicionais, escolanovistas e libertadoras. Nas décadas de 1980 a 2000, o tecnicismo perdeu seu posto de hegemonia, mas se reinventou e, com a ascensão do neoliberalismo, adequou-se ao modelo toyotista de flexibilização do trabalho e do maquinário tecnocientífico e informacional. Esse novo tecnicismo aflora tanto na produção acadêmica3 quanto no campo legislativo4 e se alinha a um contexto em que os Estados nacionais encontram-se sob diferentes pressões (ALVES, 2001). Os contornos desse neotecnicismo cruzam diferentes níveis de ensino e seus pressuposto e premissas transitam em espaços, outrossim, diversos. Deveras, a técnica-ciência vê-se ameaçada pela subordinação ao poderio financeiro-econômico (GIDDENS, 1991). Universidades têm aquiescido a pressões de patrocinadores e substituem pesquisas de longo prazo pelas de curto, ciência pura por aplicada, mirando o lucro. Afere-se que a “universidade americana de pesquisa se tornou francamente empresarial na estrutura institucional, na escala, nas rotinas financeiras e em muitas de suas formas de avaliação do mérito” (GIBBONS et al. apud BURKE, 2012, p. 173). Naquele mesmo país, as universidades corporativas saltaram, ao longo da década de 1990, de quatrocentas para cerca de duas mil (SAVIANI, 2013, p. 441). Ao preço do apoio empresarial, perde-se autonomia acadêmica e o calibre da responsabilidade científica. Caso algum cientista isolado ou algum grupo independente revela que determinado produto ou procedimento é nocivo para o ambiente ou os seres humanos, as grandes corporações dispõem logo dos recursos necessários para financiar estudos na direção oposta, desmoralizando os cientistas autônomos e desqualificando os resultados de suas experiências (SEVCENKO, 2001, p.101). Acima dos valores humanos têm sido colocados os interesses mercadológicos, na presunção de que a sociedade deva estar a serviço da técnica e, não, o contrário. Ao mesmo tempo, “é preciso escapar à alternativa da ‘ciência pura’, totalmente livre de qualquer necessidade social, e da ‘ciência escrava’, sujeita a todas as demandas político-econômicas” (BOURDIEU, 2004, p. 21). Com efeito, urge atentar para a relativa autonomia do campo científico e ter em conta como as pressões externas ao mesmo são exercidas por intermédio de componentes do próprio campo. No Brasil, o produtivismo acadêmico, à guisa toyotista, também tem sido tonificado por uma crescente expectativa quantitativa, via mensuração do número de publicações de artigos, relatórios, livros, projetos, presença em seminários, simpósios, encontros, acumulação 3 Ver, por exemplo, o artigo publicado no primeiro número da Revista Brasileira de Educação Profissional e Tecnológica, intitulado “Educação tecnológica para a indústria brasileira”, de Alberto Borges de Araújo. (ARAÚJO, 2008). 4 Além das ambivalências já tratadas no primeiro tópico, convém salientar a Emenda Constitucional nº 85, de 26 de fevereiro de 2015, promovida por um Parlamento de maioria conservadora e, explícita e prioritariamente, alinhada aos anseios do meio empresarial. de pesquisa com encargos administrativos etc, amiúde alheia ao crivo qualitativo e à participação deliberativa (TREIN & RODRIGUES, 2011). Constata-se, pois, que o direcionamento didático e político-pedagógico relaciona-se com outras alçadas e tem acolhido não apenas uma visão crítico-histórica como também um viés neotecnicista, mediatizando os embates entre um projeto sócio-educacional emancipatório de fortalecimento dos direitos humanos e outro, mais próximo do telos da produtividade lucrativa. Qual seria, pois, o fundamento das Ciências Humanas ante tal realidade? 2.2. Crise, crítica e a necessidade das Ciências Humanas Se é factível a sombra de uma comunidade totalitária tecnicista, há de ser ressaltado que a técnica talvez não seja capaz de abolir a crítica, “pelo simples fato de que precisa dela para descortinar novos horizontes” (SEVCENKO, 2001, p. 17). Segundo Sevcenko, os “sistemas políticos que tentaram banir a crítica morreram, sintomaticamente, por obsolescência tecnológica.” Portanto, a crítica “é a contrapartida cultural diante da técnica, é o modo de a sociedade dialogar com as inovações, ponderando sobre seu impacto, avaliando seus efeitos e perscrutando seus desdobramentos” (SEVCENKO, 2001, p.17). O termo “crítica”, derivado do verbo grego “krínein” significa decidir e discernir, referindo-se “à pessoa capaz de elaborar juízos ou proceder a julgamentos”, com base em critérios - do grego “kritérion” – ligados “aos valores mais elevados de uma sociedade” (SEVCENKO, 2001, p. 18-19). Tolhida de sua capacidade crítica, a sociedade desnorteia-se, dilui sua identidade e seus fundamentos espirituais, incorrendo em grave crise. As noções de crítica, de critério e de crise, logo, interagem e abrem perspectivas para a elaboração de respostas às vicissitudes da modernidade. Nesse ponto, a inserção das Ciências Humanas avulta-se como vetor imprescindível à superação da retórica da formação da cidadania e à concretização de uma educação emancipada e emancipadora. Seria plausível referir-se a uma educação crítica menosprezando-se os estudos do processo histórico, filosófico, sociológico e geográfico no qual os indivíduos constroem suas vidas? Seria razoável supor que os alunos e as alunas têm condições de se posicionarem ante o esforço e os obstáculos para se erigir uma sociedade livre, justa e solidária, ignorando as questões abarcadas pelas Ciências Humanas? Pensa-se, aqui, que uma educação cidadã, abrangendo o ensino técnico, requer o saber sobre o ser humano e, não apenas, sobre o mundo natural ou instrumental. Consoante ponderação de Hilton Japiassu, Não é tanto pelo custo das ciências humanas, tampouco pelo medo de seu potencial crítico, que o sistema capitalista busca desqualificá-las e abatê-las, mas porque, por definição mesma, no plano ontológico, estão destinadas a opor, à sua pura e simples instrumentalização, o não fechamento de seu objeto: o ser humano social. (JAPIASSU, 2012, p. 126) A problematização das Ciências Humanas também se manifesta a respeito da objetividade de tais saberes, ainda mais difícil de ser alcançada, em virtude da situação na qual o ser humano é, simultaneamente, sujeito e objeto do conhecimento. Essa condição acarreta ora a tentativa limitada de se aplicar procedimentos das ciências naturais ou exatas, ora o reconhecimento e o manejo da subjetividade e da parcialidade, sob o risco de se incorrer em um relativismo cético (RIBEIRO, 2000). Tal inquietação alcança, holisticamente, o campo científico, palco de desconfianças e disputas intrínsecas e extrínsecas (BOURDIEU, 2004). Há um abalo dos fundamentos epistemológicos na evidenciação do húmus ideológico do discurso sobre a verdade científica, afetando mesmo filósofos que mais obstinadamente defendem a reivindicação da ciência à certeza, como Karl Popper, ao assumir que “toda ciência repousa sobre areia movediça” (POPPER, apud GIDDENS, 1991, p.50). Nesse enredo, inexistem comprovações empíricas ou verificações lógicas capazes de firmar um saber completo, definitivo e imutável, senão, antes, aberto ao debate, à dúvida, à refutação e/ou ao aperfeiçoamento. Na sociedade da informação, há muita desinformação, “seja porque lhe chega tendencialmente informação residual, ou porque se lhe impõe informação oficial, ou porque se entope atabalhoadamente.” (DEMO, 2000, p. 40). Na sociedade do conhecimento, há também muita ignorância, oriunda, em parte, da superespecialização, que elitiza, mutila e confina o saber (MORIN, 2012). Adorno e Horkheimer não hesitam em asseverar que “o esclarecimento é totalitário como qualquer outro sistema.” Segundo os autores, “sua inverdade não está naquilo que os inimigos românticos sempre lhe censuraram: o método analítico, o retorno aos elementos, a decomposição pela reflexão, mas sim o fato de que para ele o processo está decidido de antemão”. Em outras palavras, “o que aparece como triunfo da racionalidade objetiva, a submissão de todo ente ao formalismo lógico, tem por preço a subordinação obediente da razão ao imediatamente dado” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 32-34). Nesse quesito, pode-se arrazoar que a relevância das Ciências Humanas aflora, ao atuar no desmantelamento do racionalismo, cujo modelo, tomado previamente, limita e condiciona a própria razão. Porém, ao se atestar que os saberes científicos, incluindo o campo das Humanas, orientam-se pela racionalidade, não estariam também sendo portadores da imediaticidade, capaz de reduzir e enquadrar a realidade? Nesse caso, ter-se-ia uma aporia, dificilmente, solucionável. Apelando para uma reelaboração da racionalidade, capaz de afastar o irracionalismo da razão, que a tudo rebaixa e fornece uma aparente segurança e estabilidade, Hannah Arendt assinala: O perigo de trocar a necessária insegurança do pensamento filosófico pela explicação total da ideologia e por sua Weltanschauung não é tanto o risco de ser iludido por alguma suposição geralmente vulgar e sempre destituída de crítica quanto o de trocar a liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela camisa de força da lógica, que pode subjugar o homem quase tão violentamente quanto uma força externa. (ARENDT, p. 626) Nesse processo, a “ascensão da vida biológica como bem supremo”, traduz “a vitória do animal laborans”, extrapolando o estado do homo faber. Este, na medida em que “é apenas um fabricante de coisas e em que pensa somente em termos dos meios e fins que decorrem diretamente de sua atividade da obra”, torna-se “tão incapaz de compreender o significado como o animal laborans é incapaz de compreender a instrumentalidade” (ARENDT, 2014, p. 192). A técnica, dessa perspectiva, descuida da práxis, isto é, pensa a fabricação, a ação do homem sobre a matéria tornada objeto, em detrimento da interação humana. Segundo Arendt, se for “comprovado o divórcio entre o conhecimento técnico e o pensamento, então passaríamos a ser, sem dúvida escravos indefesos, nem tanto de nossas máquinas quanto de nosso conhecimento técnico”, transformando-nos em “criaturas desprovidas de pensamento e à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja” (ARENDT, 2014, p. 4). Contudo, tal condição não constituiria uma essência humana, pois a efetiva significação do mundo continuaria acessível aos seres humanos, por meio da comunicação. Arendt recusa qualquer perspectiva fatalista e assinala que os “homens no plural, isto é, os homens na medida em que vivem, se movem e agem nesse mundo, só podem experimentar a significação porque podem falar uns com os outros e se fazer entender aos outros e a si mesmos” (ARENDT, 2014, p.5). De modo análogo, a despeito de trilhar um caminho filosófico próprio e criticar determinados aspectos do pensamento de Arendt, Habermas investiga as atribulações da tecnociência e da emancipação humana, bem como a experiência intersubjetiva do agir comunicativo, extrapolando a avaliação monista da racionalidade moderna, identificada por Adorno e Horkheimer como “totalitária” 5. O autor reavalia análises que, na ânsia de criticar a ideologia da tecnocracia, terminam por situarem-se no plano dessa mesma ideologia. Há interpretações que ressaltam ora o Estado técnico, obediente “à lógica das legalidades objetivas”, dissolvendo “a dominação política na administração orientada de maneira racional” (Schelsky), ora, inversamente, reduzindo não a dominação à técnica, mas a técnica à dominação (Marcuse). Em ambos os ângulos de investigação, prossegue, ocorre a maximização de “um tipo de entrelaçamento de sistemas tecnicamente orientados e regulados com o sistema da sociedade industrial em seu todo”, como se “o progresso da técnica no contexto de vida social colocasse apenas problemas que somente o progresso técnico poderia solucionar” (HABERMAS, 2013, p. 527-528). No entender de Habermas, a ação comunicativa do mundo da vida, embora condicionada, é e permanece sendo condicionante do sistema e dos subsistemas (HABERMAS, 2012). Ao contrário do que apregoa a tecnocracia, não basta a competência e as soluções técnicas para decidir sobre os fins, devendo-se “colocar em marcha uma discussão politicamente eficaz que relacione de modo racionalmente vinculante o potencial social do saber e do poder técnicos com nosso saber e querer práticos” (HABERMAS, 2013, p. 538). Dito de outra maneira, “a força libertadora da reflexão não pode ser substituída pela propagação do saber tecnicamente utilizável” (HABERMAS, 2013, p.539). Destarte, a contribuição das Ciências Humanas ao equacionamento entre ensino técnico e educação crítica liga-se nem tanto ao aspecto, intrinsecamente, operacionalprocedimental, e, sim, à dimensão comunicativa, interativa, criativa e, por conseguinte, competitiva e colaborativa. 5 Na Teoria do agir comunicativo, a racionalidade é entendida como um fenômeno complexo e dinâmico, detentor de uma interação entre a esfera instrumental e estratégica e o âmbito comunicativo e intersubjetivo. CONCLUSÕES Ao se concentrarem sobre as ideias da formação do cidadão produtivo e da cultura de mercado no ensino médio técnico, Frigotto e Ciavatta estimam que a educação do cidadão produtivo “onde o mercado funciona como princípio organizador do conjunto da vida coletiva, distancia-se dos projetos do ser humano emancipado para o exercício de uma humanidade solidária e a construção de projetos sociais alternativos.” (FRIGOTTO e CIAVATTA, p. 68). Tal perspectiva avigora um projeto social e educacional mais amplo, que prioriza a constituição do ser humano e faz frente ao tecnicismo. A presente comunicação subscreve essa proposição e, ao argumentar sobre a relação dialética entre técnica e crítica e explicitar as tensões daí emanadas, a partir de discursos oficiais, enfatiza o problema e os embates em torno de qual concepção política e pedagógica deve orientar o ensino-aprendizagem escolar-acadêmico no Brasil. No fito de perscrutar um possível caminho para se promover uma educação crítica e técnica, cidadã e qualificada, não subordinada aos ditames do mercado nem aos grilhões do próprio campo científico e educacional, afere-se a relevância da atuação das Ciências Humanas. Nesse afã, ao postular a significativa contribuição dos pensamentos de Arendt e de Habermas para o enfrentamento da questão em pauta, endossamos as hipóteses, inicialmente, levantadas. Em outro momento, serão adensadas as discussões teóricas e o arcabouço empírico, ora tracejados. REFERÊNCIAS ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade. O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011. ARAÚJO, Alberto Borges de. Educação tecnológica para a indústria brasileira. Revista Brasileira de Educação Profissional e Tecnológica. v. 1, n. 1, (jun. 2008). Brasília: MEC, SETEC, 2008, p. 68-82. ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo: Antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. Cia. das Letras: SP, 2012. _____ A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. BOLZAN, José. Habermas e a educação: uma contribuição crítica à formação científica. Tese (Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. PPGE, 2010, Porto Alegre. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: Por uma sociologia clínica do campo científico. Trad. Denise Bárbara Catani. São Paulo: Ed. UNESP, 2004. BRASIL. Constituição Federal, 1988. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento II: Da Enciclopédia à Wikipédia. Trad. Denise Bottman. RJ: Zahar, 2012. DEMO, Pedro. Ambivalências da sociedade da informação. Ci. Inf., Brasília, v. 29, n. 2, p. 37-42, maio/ago. 2000. CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS Conselho Diretor. Resolução CD n. 034 de 12 de novembro de 1993. Aprova o Plano Institucional do CEFET-MG. Belo Horizonte: CEFET-MG/CD, 1993. CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS. Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI). 2012. DAHL, Robert A. A democracia e seus críticos. Tradução Patrícia de Freitas Ribeiro. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2012. FRIGOTTO, Gaudêncio & CIAVATTA, Maria (Orgs.) A formação do cidadão produtivo: a cultura de mercado no ensino médio técnico. Brasília: INEP, 2006. GONÇALVES, Irlen Antônio (Org.). Progresso, trabalho e educação profissional em Minas Gerais. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012. HABERMAS, Jürgen. Teoria e práxis: estudos de filosofia social. Trad. Rúrion Melo. São Paulo: Editora Unesp, 2013. _____Teoria do agir comunicativo.Trad. Flávio Beno Siebeneichler. SP: Editora WMF Martins Fontes, 2012. 2 vol. RIBEIRO, Renato Janine. Documento de Síntese para a Reunião Temática: Ciências Humanas. Seminário do Ministério da Ciência e Tecnologia. Ano: 2000. Disponível em <http://www.renatojanine.pro.br/ciencia/reuniaotematica.html> Acesso em 07 jun. 2015. JAPIASSU, Hilton. A crise das ciências humanas. São Paulo: Cortez, 2012. MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. PACHECO, Eliezer Moreira et. al. Institutos Federais de Ciência e Tecnologia: limites e possibilidades. In: PACHECO, Eliezer Moreira & MORIGI, Valter (Orgs.) Ensino técnico, formação profissional e cidadania: a revolução da educação profissional e tecnológica no Brasil. Porto Alegre: Tekne, 2012, p. 15-31. PARÂMETROS Curriculares Nacionais. Brasília: MEC: SEF, 1997. SAVIANI, Demerval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007. SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: No loop da montanha russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. SILVA, Denilson de Cássio. A relação entre técnica e crítica: dominação ou emancipação? Educação &Tecnologia. Belo Horizonte . v. 19 . n. 3 . Set./dez. 2014. p. 59-75. TREIN, Eunice; RODRIGUES, José. O mal-estar na academia: produtivismo científico, o fetichismo do conhecimento-mercadoria. Rev. Bras. Educ. vol.16, n.48, pp. 769-792, 2011.