IMPORTÂNCIA DE ‘HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA’ PARA A FORMAÇÃO INICIAL DE BIÓLOGOS José Carlos da Silva Simplício1 Keici Silva de Almeida2 RESUMO: Este trabalho inspira-se na pesquisa monográfica intitulada “Importância de ‘História e Filosofia da Ciência” para a Formação Inicial de Biólogos”. Tal pesquisa encontra-se em fase inicial e tem como finalidade verificar como os graduandos -turmas 2006.1 a 2010.2- do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da UESB - Vitória da Conquista) compreendem as contribuições da Filosofia e da História da Ciência para a sua formação. Nossa pesquisa justifica-se pelo fato de que, embora tenha ocorrido ultimamente uma reaproximação significativa entre esses campos, o ensino de ciências desenvolveu-se, via de regra, bastante dissociado da filosofia e da história da ciência. Nosso texto parte do pressuposto de que o conhecimento da História da Ciência e a reflexão filosófica acerca da mesma (Filosofia da Ciência) potencializa, dentre outras coisas: a percepção e a compreensão da complexidade inerente ao conhecimento humano; a análise da Ciência a partir de seu ensino e a construção, por parte dos alunos, de concepções bem mais elaboradas e bem mais realistas sobre a ciência, os cientistas e seu papel na construção de um mundo melhor. Palavras-chave: Filosofia da Ciência. História da Ciência. Ensino de Biologia. Formação de Professores. Muitos dos documentos de reformas educacionais produzidos nas últimas décadas enfatizaram a importância da Filosofia e da História da Ciência para a construção do conhecimento científico culminando no ideal de ensinar ciência acompanhada por uma aprendizagem acerca da própria ciência. Esse desafio sugere que a utilização da História e Filosofia da Ciência (HFC) é um dos possíveis caminhos para a melhoria do ensino de ciências, seja como conteúdo em si, seja como estratégia didática facilitadora da compreensão de conceitos, modelos e teorias, de 1Professor de Filosofia do Dfch/UESB e Coordenador da Rede de Estudos da Complexidade. E-mail: [email protected] 2 Aluna do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da UESB [email protected] [Digite texto] 2 modo a contribuir para criar no aluno competências e habilidades que permitam entender o processo de construção das ciências como uma atividade humana. Fomentar um ensino que vá além de uma retórica de conclusões não se trata somente de incluir uma abordagem dos processos de construção do conhecimento científico, mas de considerá-los no contexto histórico, filosófico e cultural em que a prática científica tem seu lugar. Em face deste contexto, esta pesquisa parte da curiosidade em verificar como os graduandos do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – Campus Vitória da Conquista, compreendem as contribuições da Filosofia, da Filosofia da Ciência e da História da Ciência para a sua formação uma vez que, no currículo de graduação é oferecida, como obrigatória, no primeiro semestre, uma disciplina intitulada História e Filosofia da Ciência. No entanto, ao longo do curso pode-se perceber que há um distanciamento entre os diferentes campos de conhecimento, o que dificulta enormemente a possibilidade de analisar a Ciência a partir de seu ensino. A concepção “absolutista” sobre a ciência durante a formação de professores de Ciências Biológicas é um dos principais obstáculos à implementação de uma perspectiva didática inovadora, afirma Scheid (2008). Esta concepção aborda a Ciência de forma anacrônica, fragmentada em pacotes fechados à argumentação, ao questionamento e à dúvida, permitindo que teorias e leis científicas sejam divulgadas como se fossem dogmas. Uma percepção errônea de ciência como conjunto acabado e estático de verdades definitivas, trazida pelos professores de biologia para sua prática diária, reflete no crescente índice de “analfabetismo científico” em que, conforme Vasconcelos et al (2002), 99% dos estudantes que emerge do ensino fundamental não sabe o que é ciência e o que é um cientista. A inclusão de componentes de história e de filosofia da ciência em vários currículos nacionais pode, por um lado, nos possibilitar ir além do registro de fatos ocorridos e das meras crônicas dos conhecimentos científicos restritas, muitas vezes, à descrição de nomes, datas e resultados. Por outro lado, nos torna possível conhecer melhor a história da construção do conhecimento, propiciando uma educação científica mais adequada, pois prioriza o aspecto dinâmico do saber científico, despertando no aluno a possibilidade de reflexão. Matthews (1995; apud Scheid, 2008, p.16) argumenta que é preciso ensinar História e Filosofia da Ciência para que os estudantes: a) possam estabelecer parâmetros entre o que existe atualmente e o passado; b) sejam capazes de caracterizar o processo de produção do conhecimento 3 como uma dinâmica de busca da realidade; c) conheçam os aspectos e os fatores que contribuíram para o surgimento e o desenvolvimento dos temas tratados nos manuais. Deste modo, através da interpretação e compreensão, via pressupostos históricos e filosóficos o aluno, ao se aproximar de conteúdos dispersos, poderá contextualizá-los de forma significativa, e construir uma concepção mais adequada da natureza da ciência. Assim, poderá melhor perceber que o conhecimento científico não se faz de forma inerte, uma vez que sua evolução está relacionada tanto com as mudanças históricas, quanto sociais. Enfim, trata-se de compreender que não se pode ignorar as relações entre o processo de produção de conhecimento na Ciência e o contexto social, político, econômico e cultural em que essa Ciência se faz. A filosofia e a história da ciência como elos da dimensão transdisciplinar no processo de formação de professores de biologia, emerge com caráter desafiador, articulador e integrador no processo de construção de conhecimento científico pelo aluno, visto que a evolução do pensamento científico está intimamente ligada à evolução das idéias filosóficas e à própria cultura na qual ele foi gerado. Goulart (2005) aborda que o processo histórico de construção de conceitos de uma ciência revela a lógica do pensamento nessa ciência e sua própria natureza. A ciência não é apenas uma coleção de leis, um catálogo de fatos nãorelacionados entre si. É uma criação da mente humana, com seus conceitos e idéias livremente inventados. As teorias... tentam fomentar um quadro da realidade e estabelecer sua conexão com o amplo mundo das impressões sensoriais. Assim a única justificativa para as nossas estruturas mentais é se de que maneira as nossas teorias formam tais elos (EINSTEIN e INFELD, 1976, p. 235 apud GOULART, 2005, pg. 3-4). O estudo da História da Ciência propõe, assim, o restabelecimento dos elos entre modelos do real e o mundo das impressões sensoriais, cabendo aos cientistas compreender a origem das teorias, suas limitações, reconstruí-las e compará-las com a realidade. Há uma filosofia da ciência que, por sua vez, “tem se voltado predominantemente para confecção de uma lógica da pesquisa; devota-se na maioria de seus estudos à análise de constituintes sintático-semânticos da racionalidade científica”, caracteriza Oliva (2003, p. 14). Esta referência sugere também que a filosofia da ciência objetiva-se descobrir em que 4 operações da razão a Ciência fundamenta seus trabalhos, propondo-nos que esta não pode ser definida em função de seu conteúdo. No mesmo sentido, Alves (2001) põe em xeque a questão do método, quando a ciência o apresenta embalado, engessado, sob o invólucro de um conhecimento cristalizado. É relevante ressaltar que a discussão sobre o método nos remete à questão filosófica e às suas implicações epistemológicas pois, conforme Hüne (1999), as construções de vários métodos científicos colocam em jogo várias posições epistemológicas. Hüne afirma, entretanto, que “muitos cientistas se limitam a construir os seus métodos sem levar em consideração o enfoque filosófico que eles traçam para o seu trabalho” (1999, p. 151). ALGUMAS REFLEXÕES PROVISÓRIAS Não podemos, pelo caráter provisório de nossa pesquisa, oferecer nenhum resultado conclusivo. Apresentamos aqui apenas algumas reflexões que têm brotado de experiências nossas em sala de aula, de pesquisas bibliográficas e de práticas transdisciplinares. O Curso de Licenciatura em Biologia da Uesb (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) oferece, no I Semestre, a disciplina História e Filosofia da Ciência na tentativa de promover o encontro entre Filosofia e Ciência. A ementa da disciplina propõe abordagens acerca do nascimento da Ciência, de sua história e de seu sentido epistemológico, bem como incita-nos à análise das implicações do surgimento de novas Ciências a partir da modernidade. Por fim, nos coloca frente às questões sobre a Revolução nas Ciências Biológicas no século XIX e sobre a demarcação das fronteiras das Ciências no século XX. A disciplina História e Filosofia da Ciência objetiva, sobretudo, refletir sobre os problemas da Ciência Moderna a partir dos pressupostos filosóficos da racionalização das imagens de mundo e de ética científica. Para tanto, buscamos: a) Estabelecer as bases da aproximação e da distinção entre os conhecimentos filosófico e científico b) Refletir sobre a relação constitutiva entre Filosofia e Ciência c) Abordar histórica e sistematicamente o itinerário da Ciência no Ocidente d) Fomentar a reflexão crítica acerca da relação ciência-ética nos diversos períodos históricos. 5 e) Abordar e estabelecer, de forma reflexiva, as bases epistemológicas do conhecimento científico a partir da Modernidade f) Promover discussão consequente acerca da relação intrínseca entre Ciência e Sociedade, bem como das implicações sócio-políticas da atividade científica. Num primeiro momento, a disciplina História e Filosofia da Ciência enfrenta o debate acerca do conceito de ciência e do conceito de filosofia. Tal debate é preponderante para a correta compreensão de cientistas em sua fase inicial de formação, uma vez que a maioria dos estudantes que chegam a um curso de graduação, quase sempre, apresentam concepções bastante limitadas, por vezes, bastante preconceituosas, sobre estas duas formas de conhecimento. A ciência, nesse primeiro momento, tende a ser vista como um saber perfeito, total, completo, absoluto, infalível. Além disso, as fases iniciais da formação discente apresentam, mormente, uma tendência a propagar uma compreensão de ciência envolta em mitos nocivos como o do progresso total, o da neutralidade do cientista e de seu saber científico. Demora bastante para que os estudantes percebam o caráter provisório, aberto, inconcluso, incerto e prenhe de interesses que constituem as ciências. Por outro lado, da filosofia há um preconceito que se expressa em forma de desprezo, muitas vezes velado; de vez em quando, assumido. Por vezes, ouvimos: “é muito difícil”; “é muito complicada, é coisa de doido”. Ou, o que é mais comum: “é inútil e sem sentido”; “não tem caráter prático, não se aplica”; “é muito abstrata” e, por isso, “nada tem a ver com a vida”. Também demora muito tempo para que se compreenda melhor o significado, a finalidade e a importância da filosofia para a vida e para a compreensão e o exercício pleno da própria ciência. Mas, quando isso ocorre a alguns estudantes, estes começam a decifrar o estatuto epistemológico da ciência e da filosofia e, junto com isso, aprendem a distingui-las e, sobretudo, a perceberem as imbricações, os flertes, os compromissos, as cumplicidades em que ambas estão envolvidas; enfim, descobre-se mais claramente o parentesco que lhes aproximam desde as origens de nossa civilização, uma vez que, como nos lembra Morin, “não há fronteira ‘natural’ entre filosofia e ciência” (1999, p.28). Nem todos conseguem se desvencilhar da visão estereotipada acerca da filosofia e das ciências. O percurso é demorado e processual; depende de muitas variáveis. Uma delas, talvez 6 a mais importante, é a subjetividade. Ela está na origem, na estrutura e nas finalidades inerentes ao próprio ato de conhecer. Não se pode separar o sujeito que conhece do conhecimento que o mesmo tem de si, dos outros e do mundo que lhe é circundante pois, como nos diz Morin (1999, p.57), “o conhecimento da vida introduz-nos na vida do conhecimento de maneira extraordinariamente íntima”. As discussões acerca do estatuto epistemológico da filosofia e das ciências, quando atingem maior vigor, tendem a colocar em novas bases, geralmente mais maduras e, portanto, mais abertas, o tema da relação Filosofia/Ciência. Quando isso começa a acontecer, estamos prontos para dar um segundo passo. O segundo momento experimentado na trajetória pedagógico-crítica da disciplina História e Filosofia da Ciência diz respeito ao percurso da ciência na história ocidental. Agora é o momento de descobrir, para além do conceito hegemônico da moderna ciência, que o desejo de conhecimento, sua produção e reprodução parasitam os humanos de todos os tempos e lugares. Como nos lembra Maria da Conceição de Almeida, Todas as épocas têm seus pensadores e intelectuais: pessoas que se distinguem pela maneira de observar os fenômenos com mais atenção e criar métodos específicos para conhecê-los, decifrá-los e explicá-los. Desde que o mundo é mundo, desde o aparecimento da espécie humana na Terra, os homens procuram responder aos problemas que lhe são postos em todos os domínios de sua vida, sejam esses problemas individuais ou coletivos, materiais ou espirituais (2006, p. 107). Por isso, os estudos e debates acerca das ciências na história, bem como a reflexão sobre a historicidade do conhecimento científico coloca-nos a todos diante de um enorme compromisso, a saber: desmascarar o caráter etnocêntrico do qual se revestem boa parte das teorias do conhecimento modernas. Estas, pautadas na absolutização do modelo galileanocartesiano de conhecimento, assumem uma postura preconceituosa frente a tantas outras formas de conhecimento legitimamente válidos porque construídos a partir das experiências dos humanos na proximidade com a natureza. A consciência do caráter situacional, circunstancial, portanto, cultural do conhecimento humano exige de nós o reconhecimento de que 7 todas as épocas têm seus sábios, mas nem todas as pessoas que produziram conhecimentos relevantes nas diversas culturas tiveram seus nomes divulgados, conhecidos. Na época de Isaac Newton, Galileu Galilei ou Nicolau Copérnico, certamente outros saberes estavam sendo construídos sobre os mesmos temas por eles estudados, mesmo que não saibamos onde e quem se dedicava a responder as mesmas perguntas formuladas por esses grandes homens da ciência (ALMEIDA, 2006, p. 107). Se, num primeiro momento, o debate em torno do conceito de ciência nos alerta para seu caráter de saber provisório, parcial e inconcluso agora, olhando para sua história, descobrimo-la plural, múltipla, diversa, multifacetada. A descoberta da historicidade do conhecimento humano, lança-nos mesmo no âmago do conhecimento como problema. Eis nosso terceiro passo: Enfrentar o problema do conhecimento. Esse parece ser, nos alerta Morin (1999), nosso maior desafio, pois a noção de conhecimento, embora nos pareça evidente (progresso científico, crescimento vertiginoso de informações, crença na universalidade da razão...), encontra-se envolta em sombras e ignorância. Quando desejamos conhecer bem e profundamente nosso conhecimento, ele deixa de nos ser familiar e íntimo e nos aparece como algo muito estranho e desconhecido. Por isso, o conhecimento é, em primeiro lugar, um problema a ser enfrentado e não uma resposta a ser aderida. Dessa forma, o itinerário aberto pela disciplina História e Filosofia da Ciência começa a concluir-se quando nossas noções comuns de conhecimento começam a ser vistas menos como soluções e mais como parte do problema. Isso não é percebido por todos, não ocorre ao mesmo tempo, nem é vivenciado num mesmo nível de engajamento-responsabilidade. Ainda estamos muito longe de admitir e aceitar, com a necessária tranquilidade, que o auto-engano, os erros e as incertezas são experiências constitutivas do ato-processo chamado conhecimento. Por isso, acreditamos e apostamos na continuação do diálogo HistóriaFilosofia-Ciência. Tal diálogo não garante que superaremos definitivamente o afastamento, a fragmentação, a disciplinarização. Esse encontro permite-nos, no entanto, exercitar a mínima abertura necessária para mantermos acesas as chamas da descoberta, da invenção, da criatividade e da ousadia. Explicitamos aqui, em forma de testemunho e análise, parte de uma experiência bem mais ampla. Certamente, o sentir-dizer-testemunhar de outros sujeitos envolvidos nesse processo 8 reduzirá os limites embutidos em nossa experiência e em nosso discurso. Porque, como Morin, acreditamos que há uma enorme diversidade de ‘estilos cognitivos’: estilos de inteligência, de pensamento e de consciência. (...) Daí a importância dos confrontos e das discussões, não somente para estabelecer informações corretas e completas, mas sobretudo para que uma complementaridade de estilos cognitivos possa favorecer um conhecimento e um pensamento mais correta e completamente organizados” (1999, p. 220). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Maria da Conceição de. Uma Ciência perto da natureza. In: ALMEIDA, Maria da Conceição de & PEREIRA, Wani Fernandes (Orgs). Lagoa do Piató: fragmentos de uma história. 2ª ed., revista e ampliada. Natal-RN: 2006. ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência: Introdução ao jogo e a suas regras. 3ª edição: agosto de 2001, Edições Loyola, São Paulo, 2000. GOULART, Moreira Silvia. História da Ciência: Elo da dimensão transdisciplinar no processo de formação de professores de Ciências. Libaneo, J.C & Santos, Akiko (orgs). Campinas, SP: Alínea, 2005. HÜNE, Leda Miranda. Metodologia Científica: caderno de textos e técnicas. 7ª ed. Agir, Rio de Janeiro: 1999. MATTHEWS, Michael R. História, Filosofia e Ensino de Ciências: A Tendência Atual de Reaproximação. In: Cad. Cat. Ens. Fis., vol. 12, n. 3: p. 164 – 214, dez. 1995. MORIN, Edgar. O Método 3: Conhecimento do conhecimento. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto alegre: Sulina, 1999. OLIVA, Alberto. 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