História, Mulher e Gênero Gisele Ambrósio Gomes Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar uma breve discussão sobre os caminhos seguidos pela relação entre a questão do feminino e a história nas últimas décadas, que desembocaram nos estudos de gênero. Palavras-chave: Historiografia, História das Mulheres, Gênero. Abstract: This article aims to provide a brief discussion of the paths followed by the question of the relationship between the female and the history in recent decades that resulted in studies of gender. Key words: Historiography, Women’s History , Gender. “Da História, muitas vezes a mulher é excluída”. 1 Essa afirmação, feita por Michelle Perrot, uma das mais renomadas historiadoras sobre as mulheres, reflete uma preocupação que há muito envolve os intelectuais. Podemos destacar, concentrando-nos ainda nas vozes do século XX, a figura da importante escritora inglesa Virginia Woolf, que se empenhou em militar a favor do sexo feminino, através de seus escritos. Na sua obra A romm of one’s owen (Um teto todo seu) de 1929, dedicada a refletir sobre a mulher e a literatura, deixou em evidência, entre outras opiniões, seu posicionamento sobre a prática historiográfica em relação às mulheres. Woolf acusou a tendência da historiografia existente de seguir uma postura parcial e insuficiente, deixando claro seu perfil eminentemente masculino e excludente. 2 Do lado francês, vinte anos depois, temos a presença da filósofa Simone de Beauvoir que, em sua obra O segundo sexo, reafirmou categoricamente a “incompletude” da história, pois, embora ela se pretendesse “Universal”, na realidade Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 1 PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 2 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter. (org.) A Escrita da História: novas perspectivas. 4 ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 1992, p. 75. desconsiderava uma metade da humanidade, as mulheres. Estas, em conseqüência, espoliadas de seu passado, não tinham o porquê de orgulharem-se de si mesmas. 3 Vale notar que essas mulheres, de uma forma mais geral, estavam no bojo das críticas que insidiam sobre uma persistente tradição intelectual, de Aristóteles a Freud, passando pelos historiadores, que enfatizava a dicotomia homem/cultura e mulher/natureza marcada por estereótipos, preconceitos e uma hierarquia de valores. Essa bipolaridade era sustentada pela idéia da “desigualdade” entre os dois sexos, separando e opondo-os: o universo masculino relacionado à cultura, sinônimo de objetivo, de racional e de público, determinava a sua dita “superioridade” em relação ao universo feminino enquadrado à natureza “reveladora” de sua suposta propensão ao emocional, ao subjetivo e ao privado. Não era de se estranhar, portanto, a predominância na narrativa histórica de preocupações com o político e com o público, as quais entronizavam os homens em suas façanhas e heroicidade, excluindo duplamente, quase que por completo, as mulheres enquanto personagens e produtoras da história.4 O desmascaramento desse arcabouço intelectual e cultural assumiu um tom provocativo e subversivo, insuflador da proliferação de pesquisas sobre o sexo feminino nas décadas seguintes que favoreceram o surgimento da História das Mulheres. Segundo Joan Scott, o nascimento desse campo específico de pesquisa, na Europa e nos Estados Unidos, relacionou-se à política, mais precisamente à política feminista que atingiu seu ápice entre os anos de 1960 e 1970, 5 período no qual as mulheres assumiram o controle de sua vida reprodutiva, com a disseminação da pílula anticoncepcional, e ampliaram sua participação na educação, no mercado de trabalho e na política. 6 A história das mulheres, inicialmente construída pelas militantes feministas, estava integrada à tentativa de acompanhar as novas “indagações” que essa realidade trazia para a vida das mulheres. 7 Nesse sentido, tornou-se imprescindível retirar o sexo feminino da clausura representada pela exclusão, pelo esquecimento e pelo privado, intenção favorecida pelos trabalhos dedicados a demonstrar que as mulheres também 3 HUFTON, Olvem. Mulheres/homens: uma questão subversiva. In: BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique (Orgs). Passados recompostos: campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: ED. UFRJ; Ed. FGV, 1998, p. 243. 4 GONÇALVES, Andréa Lisly. História & Gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p.48 e 49. 5 SCOTT, Joan. Op. cit., p. 63 e 64. 6 COSTA, Suely Gomes. Gênero e História. In: ABREU, Marta e SOIHET, Rachel. Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 190. 7 Idem, p. 191. faziam parte do processo histórico e que eram vítimas da injustiça e da exploração. 8 Em conseqüência, evocavam-se as “heroínas” dos séculos anteriores dadas a conhecer em suas “trajetórias similares aos congêneres masculinos, o que muitas vezes significava o mesmo que realçar-lhe a visibilidade através do reconhecimento de sua atuação na esfera pública, confirmando-lhes a excepcionalidade.” 9 Nas ruas e nos círculos acadêmicos, portanto, ocorreu todo um esforço de demonstrar a importância do papel e das ações das mulheres no contemporâneo e no passado.10 De acordo com Suely Costa, Muitas militantes feministas nessa época, ocupariam posições de destaque em importantes instituições políticas, criando acesso a várias fontes de financiamento de pesquisa, com inúmeras publicações de qualidade em circulação. 11 Entretanto, no limite das universidades, nesse primeiro momento, os estudos sobre as mulheres eram vistos com grande desconfiança pela maioria dos historiadores, constituindo-se, na prática, como uma espécie de “adendo à história geral”, tarefa quase exclusiva das pesquisadoras, cujo estudo sobre seu próprio sexo era apenas “tolerado ou marginalizado”. 12 Joan Scott deixou bem claro essa dificuldade de penetração da história das mulheres, acusada de ideologismo, no círculo acadêmico estadunidense e como foi importante buscar “estratégias” para sua inserção. Ao defender novos cursos sobre as mulheres, diante um comitê curricular universitário em1975, argumentei como exemplo que a história das mulheres era uma área recente de pesquisa, assim como os estudos da região ou das relações internacionais. Em parte, esse foi um artifício tático (uma jogada política) que tentava, em um contexto específico, separar os estudos das mulheres daqueles intimamente associados ao movimento feminista. Em parte, resultou da crença de que o acúmulo de bastante informação sobre as mulheres no passado, inevitavelmente atingiria sua integração na história padrão. 13 8 DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres: As vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p. 220. 9 GONÇALVES, Andréa Lisly. Op. cit., p. 64. 10 DEL PRIORE, Mary. Op. cit., p. 220. 11 COSTA, Suely Gomes. Op.cit., p. 191. 12 DEL PRIORE, Mary. Op. cit., p. 220 e 221. 13 SCOTT, Joan. Op. cit., p. 81. O avanço da História das Mulheres deveu-se também aos novos rumos seguidos pelas tendências historiográficas, no exterior e no Brasil, que ganhavam força nesse período. Lembremos que até a década de 1970 predominavam as análises estruturalistas que se apoiavam nos recortes macrossociais, nas explicações globalizantes, nas conjunturas econômicas e nas categorias sociais em sua busca pela compreensão do passado histórico. Nesse processo, o “indivíduo” e as questões referentes ao âmbito privado eram ignorados, o que trazia em seu bojo, conseqüentemente, a invisibilidade das mulheres na história. 14 Com a crise do estruturalismo, a história procurou novos parceiros disciplinares para colocar em cena os distintos atores que compunham a trama social, em suas experiências cotidianas, em suas relações entre si e com o poder. Temos, por exemplo, a relação entre historiadores e antropólogos que favoreceu novas perspectivas ao enfatizar investigações sobre as “pessoas comuns”, os valores, o simbólico, os rituais, os comportamentos e as crenças. Nesse contexto de tentativa de aprimorar os instrumentos conceituais das análises incluíram-se nas pesquisas as dimensões do privado e as relações entre homens e mulheres trazendo o outro lado da realidade histórica desnudada em sua complexidade. 15 [...] temas da intimidade mostram sua face política, sistemas de poder e subordinação ganham relevância, tudo isso sem perder de vista a dialética de curta e longa duração histórica na construção desses mesmos processos. 16 As mulheres, agora protagonistas ao lado dos homens, foram pouco a pouco reveladas tanto na esfera pública (motins, organizações políticas, mercado de trabalho...) como em aspectos privados até então relegados (família, maternidade, lar...). Surgiam enquanto “rebeldes” e “amotinadas”, “donas-de-casa” e “trabalhadoras”, nas praças e nas casas, transformando e sendo transformadas nas teias do poder e das resistências. 17 Vale frisar que as “mulheres”, nesse momento, seriam uma categoria homogênea, consideradas como “uma categoria social fixa”, ou seja, “pessoas 14 COSTA, Suely Gomes. Op.cit., p. 188. Idem, p. 188 e 189. 16 Idem, ibidem. 17 Ver os trabalhos de PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992 e THOMPSON, Edward P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das letras, 1998. 15 biologicamente femininas que se moviam dentro e fora de contextos e papéis diferentes, [..] mas cuja essência - enquanto mulher - não se alterava”.18 Esse posicionamento solidificou a oposição homem/mulher, importantíssima para uma mobilização política feminista.19 A historiografia brasileira, como já foi indicado, não ficou neutra diante de tais mudanças. Em um primeiro momento, a mulher foi vista como o resultado das condições sócio-econômicas e como vítima, despida de qualquer consciência e atuação histórica. Já na década de 1980 as pesquisas, ainda focadas na “condição feminina” (sempre em contraste e separada da experiência masculina), tentaram preencher este vazio e passaram a investigar as mulheres enquanto sujeitos históricos, analisando seu cotidiano a partir das idéias de resistência e da transformação da sua realidade. Simultaneamente, este foi o período de efervescência também de trabalhos inseridos na forte tendência dos estudos “das mentalidades” ganhando destaque as temáticas que auxiliavam as análises do feminino (a sexualidade, o amor, o corpo, o pecado, o medo, a morte, os desvios...) e as relações entre o público e o privado. Assim, as mulheres tornavam-se sujeitos sociais que engendravam a História, que lutavam contra as declarações de poder e produziam percepções e experiências próprias. 20 Assim, nos rumos da historiografia no Brasil21 as mulheres foram reintegradas ao passado que, embora nebuloso, encontrava-se repleto de vestígios de seus anseios, de suas articulações, de suas lutas e de suas transgressões. Analisadas através da inovação e releitura das fontes (processos eclesiásticos e civis, obras literárias, tratados médicos e morais, imprensa, literatura de viagem...) figuravam nas mais variadas abordagens temáticas tais como: sexualidade, família, moralidade, maternidade, feminismo e construção de estereótipos femininos.22 18 SCOTT, Joan. Op. cit., p. 82. Idem, p. 83. 20 RAGO, Margareth. As Mulheres na Historiografia Brasileira. In: SILVA, Zélia Lopes da (org.). Cultura Histórica em Debate. São Paulo: Editora da Unesp, 1995, p. 82, 83 e 85. 21 Não temos a pretensão de oferecer um detalhamento minucioso da produção historiográfica brasileira referente à mulher uma vez que, a nosso ver, o assunto é por demais vasto para abarcarmos neste trabalho. Sendo assim, optamos por estabelecer uma breve reflexão sobre a produção historiográfica através do pontuamento de alguns trabalhos publicados que se tornaram referenciais, em nossa perspectiva, nos estudos das mulheres no Brasil a partir das tendências citadas no corpo do texto. 22 ABREU, Martha. Meninas perdidas: o cotidiano do amor na Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres na colônia. Condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, Brasília, EDUNB, 1993; ALMEIDA, Ângela Mendes. O gosto do pecado. Rio de Janeiro: Rocco, 1992; BELLINI, Lígia. A coisa obscura, mulher, sodomia e inquisição no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1989; CUNHA, Maria Clementina Pereira da. Loucura, gênero feminino: as mulheres de Juquery na São Paulo do início do século XVIII. Revista Brasileira de História, v.9, n.18, ago/set, 1989; DEL PRIORE, Mary. 19 Os anos de 1980 também foram o cenário no qual a escrita histórica sobre a mulher em diversos países, sobretudo nos EUA, começou a ser repensada e criticada pelos seus produtores. Em tal contexto refletia-se sobre quais foram as contribuições dos estudos sobre a mulher no tocante as inovações epistemológicas e metodológicas da história em seu âmbito geral. 23 A resposta a essa questão foi desanimadora: percebeu-se que a História das Mulheres continuava sendo um “anexo”, pois ela padecia “[d]a falta de reflexão sobre a especificidade do objeto e [d]a aplicação de categorias de pensamento que não eram egressas da história das mulheres, mas da história „tradicional‟”.24 É inegável que as décadas de 1970 e 1980 foram de grande valia para a incorporação das mulheres na produção historiográfica ao colocar em discussão a visão monolítica do “Homem Universal.” Entretanto, essas abordagens não romperam totalmente com o “silêncio” que teimava em rodear os estudos sobre as mulheres. De acordo com Mary Del Priore, essas personagens subiam ao palco apenas quando tentavam desequilibrar o predomínio masculino ou quando eram inseridas nos estudos sobre as minorias. 25 Então, tornaram-se necessárias novas interrogações e outro olhar sobre as fontes investigando não mais a divisão binária homem/mulher ou a Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia. Rio de Janeiro: José Olympio, Brasília, EDUNB, 1993; DIAS, Maria Odila Silva. Cotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984; D‟INCAO, Maria Angela (org). Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989; ENGEl, Magali. Meretrizes e doutores, saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: Brasiliense, 1989; FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas gerais no século XVIII. José Olympio, Brasília, EDUNB, 1993; LEITE, Miriam L. Moreira. Outra face do feminismo. Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984; LIMA, Lana Lage da Gama.(org). Mulheres, adúlteros e padres. Rio de Janeiro: Dois pontos, 1987; MENEZES, Lená Medeiros de. Os estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio (1890-1930). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; MOTT, Luiz. O lesbianismo no Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987 e O sexo proibido, virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição. Campinas: Papyrus, 1988 e Rosa Egipciáca, uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, Brasília, EDUNB, 1993; PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas, mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis, EDUSFC, 1994; PENA, Maria Valéria Junho. Mulheres e trabalhadoras. Presença feminina na constituição do sistema fabril. Rio de Janeiro: Paz e terra. 1981; QUINTANEIRO, Tania. Retratos de mulher: o cotidiano feminino no Brasil sob o olhar dos viajeiros do século XIX. Petrópolis: Vozes, 1996; RAGO, Margareth. Os prazeres da noite, prostituição e códigos da sexualidade feminina. Campinas: Unicamp, 1990 e Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; ROSA, Alice. Condições de trabalho na indústria têxtil paulista (1870-1930). São Paulo Hucitec/Unicamp, 1988; SAMARA, Eni Mesquita. As mulheres, o poder e a família. São Paulo: Marco Zero, 1989; SOARES, Luiz Carlos. Rameiras, ilhoas, e polacas... A prostituição no Rio de janeiro do século XIX. São Paulo: Ática, 1992; SOIHET, Raquel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana 1890-1910. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989; SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo, Companhia das Letras, 1986; VAINFAS, Ronaldo. Trópicos dos pecados. Rio de Janeiro: Campus, 1989. 23 DEL PRIORE, Mary. Op. cit., p. 222. 24 Idem, p. 223. 25 DEL PRIORE, Mary. Op. cit, p. 224. compreensão de um universo feminino paralelo, 26 mas sim o masculino e o feminino em suas interações sociais “buscando nas atitudes e sensibilidades coletivas, nos fatos e práticas cotidianas, os espaços onde se abrigava a relação homem-mulher.” 27 Nesse percurso, as problemáticas fizeram-se muito mais complexas, tais como: descobrir por quais mecanismos pautavam-se as supostas “superioridade” e “dominação” 28 masculinas; estabelecer a desconstrução das “identidades globalizantes” e redefinir as relações de poder e subordinação entre os dois sexos. 29 Os novos métodos e abordagens nas últimas décadas da História Cultural muito contribuíram na tentativa de encontrar respostas para os questionamentos provenientes dessas outras problemáticas que passavam a instigar os pesquisadores. De um lado, a discussão ganhou força com o auxílio da interdisciplinaridade (literatura, antropologia, psicanálise...) que permitia entender o feminino em vários aspectos, ou seja, entre outros, no imaginário social, nas representações, na subjetividade, e nas práticas. Por outro lado, a categoria gênero ampliou o seu espaço na produção historiográfica trazendo a dimensão analítica do sexo para as experiências sociais em detrimento do determinismo “biológico” e “natural” que supostamente regia as distinções e relações entre homens e mulheres. 30 A partir de então, A solução foi mudar a abordagem. Tornava urgente abraçar o campo histórico como um todo, sem restringi-lo ao território do feminino. Era preciso interrogar as fontes documentais sobre as mulheres de outra maneira. Doravante, a divisão sexual dos papéis é que seria sublinhada. 31 A História cultural que busca compreender como o homem organiza, pensa e lê sua realidade - emaranhando-se no simbólico, na construção dos sentidos e das interpretações, nas representações e na linguagem 32 - muito se beneficiou da emergência da gender history (História do Gênero) uma vez que esta “se interessa pelo processo de definição tanto do masculino como do feminino numa sociedade particular [...]”. 26 33 O Idem, p. 224 e 225. Idem, p. 225. 28 Idem, ibidem. 29 COSTA, Suely Gomes. Op.cit., p. 192 30 SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In: CARDOSO, Ciro F. S. e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios da teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 276 e 279. 31 DEL PRIORE, Mary. Op. cit, p. 224. 32 Ver CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1988. 33 HUFTON, Olvem. Op. cit., p. 246 e 247. 27 “gênero” enquanto instrumento analítico tem por objetivo principal demonstrar que o “masculino” e o “feminino” são formulados em suas relações e interações num determinado tempo e espaço, ou seja, são construções socioculturais e, portanto, históricas.34 Esse instrumento analítico também foi salutar ao trazer à tona a questão da “diferença” em noções que focalizavam a idéia de unicidade nas categorias masculino e feminino no seio da História. 35 Não podemos esquecer que uma das queixas aos tradicionais estudos sobre as mulheres era “a utilização da categoria “mulher” como entidade social e empírica fixa, numa perspectiva essencialista que perde as multiplicidades de sujeitos subsumidos em tal categoria.”36 Desta forma, são privilegiadas as suas múltiplas identidades que passam a ser encaradas em prismas diversificados, tais como: classe, raça, etnia e sexualidade. 37 Nas palavras de Andréa Gonçalves, a partir da categoria gênero, mesmo esta não negando por completo o “sexo biológico” como um “fator de identidade” em seu sentido coletivo ou individual,38 [...] estaria consumada a superação de noções universais, fossem de homens, fossem de mulheres. A introdução da categoria gênero, relacionada ao contexto social, portanto, levou á consideração da “diferença na diferença”. Não cabia assim a utilização do termo mulher sem adjetivá-lo: mulheres mestiças, negras, judias, trabalhadoras, camponesas, operárias, homossexuais. 39 Percebe-se que novos posicionamentos referentes às concepções de “diferença e semelhança” e “igualdade e desigualdade” sobem no palco das pesquisas. Passa-se a considerar a diversidade humana não apenas em sua porção biológica, mas também em outras diferenças que produzem e legitimam os sistemas de poder e as desigualdades sociais entre opostos (como nas relações entre homens e mulheres) ou entre os 34 GONÇALVES, Andréa Lisly. Op. cit., p. 74. Idem, ibidem. 36 RAGO, Margareth. Op. cit., p. 86 e 87. 37 SCOTT, Joan. Op. cit., p. 87. 38 GONÇALVES, Andréa Lisly. Op. cit.,p. 74. 39 Idem, p. 74 e 75. Dentre essas preocupações de obscurecer as visões de “sujeitos universais” surgem na historiografia e em outros campos do saber (antropologia, sociologia, psicanálise...) os estudos sobre os “homens” em sua pluralidade e sobre as construções da masculinidade. Ver, por exemplo, JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. Nordestino: uma invenção do falo - uma história do gênero masculino (Nordeste 1920/1940). Maceió: Edições Catavento, 2003 e MATOS, Maria Izilda Santos de. Por uma história das sensibilidades: em foco - a masculinidade. In: História: Questões & Debates, ano 18, n.34, jan/junho, 2001, p. 45-63. 35 indivíduos, por exemplo, “do mesmo sexo, da mesma classe, de mesma etnia”. 40 Em outras palavras, Tal pluralidade de experiências indicaria que as práticas sociais presentes nos sistemas de poder e subordinação e as desigualdades sociais podem conter outras, de complementaridades e de consentimentos, situações transversas, o tempo todo de mão dupla, dialéticas, enfim. 41 A partir desse momento emergia os estudos cuja preocupação era ir além da dicotomia vítima/rebelde traçada para as mulheres até então. O enfoque passava a ser a atuação feminina em toda a sua complexidade abrindo caminho para novas concepções de poder muito bem representadas e enriquecidas, por exemplo, nas reflexões de Michel Foucault.42 Em suas teses, Foucault defendeu que o poder possui uma natureza fragmentada na vida cotidiana, redimensionando assim as análises de suas práticas que não se restringem apenas ao âmbito da política formal. Logo, as mulheres aparecem enquanto sujeitos históricos atuantes no tecido social exercendo seus “poderes” informais. 43 As suas contribuições para os estudos das mulheres não param por aí. Segundo Margareth Rago, esse pesquisador deixou em evidência sua crítica severa aos estudos que enfatizavam as análises das “identidades prontas” e aos que marginalizavam “as construções simbólicas e culturais dos agentes em suas experiências de vida”.44 No interior de sua proposta da desnaturalização dos sujeitos e dos objetos históricos e da concepção dos discursos como práticas instituintes de “realidades”, tem-se a necessidade de entender os indivíduos em suas facetas de “produtores” e “produtos” das construções sociais e culturais. Desse modo, historiza-se as identidades sexuais e o feminino passa a ser pensado como uma construção das relações sociais, das práticas disciplinadoras e dos saberes (discursos) instituintes.45 Nos últimos anos, portanto, são perceptíveis os ganhos obtidos pela historiografia com a simbiose entre História Cultural e a categoria gênero. Ampliam-se as condições para se “trabalhar com relações e perceber por meio de que procedimentos 40 COSTA, Suely Gomes. Op.cit., p. 196 e 197. Idem,p. 197. 42 SOIHET, Rachel. Op.cit., p. 278. 43 GONÇALVES, Andréa Lisly. Op. cit., p. 60. 44 RAGO, Margareth. Op. cit., p. 86. 45 Idem, p. 87 e 88. 41 simbólicos, jogos de significação, cruzamentos de conceitos e relações de poder nossas referencias culturais são sexualmente construídas”,46 afastando-se das dicotomias entendidas enquanto fixas e naturais. 47 46 Idem, p. 89. Idem, p. 88 e 89. Ver os trabalhos de MATOS, Maria Izilda e Faria, Fernando. Lupicinio Rodrigues, o feminino e o masculino em suas relações. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996; BASSANEZI, Carla. Virando as paginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996 e o artigo de ENGEL, Magali Gouvêa. Paixão, crime e relações de gênero (Rio de Janeiro, 1890-1930). Topoi, Revista de História do PPGH da UFRJ, Rio de Janeiro, n. 1, p. 153-177, 2000. 47