TV Pública Digital: análise da política pública para um espaço midiático
interativo, participativo e democrático.1
Patrícia Cerqueira Reis2
Escola Superior de Propaganda e Marketing
Resumo
Este artigo é um resumo dos principais pontos abordados em pesquisa de mesmo nome
e autoria para o Instituto de Economia da UFRJ, curso de especialização em Análise de
Políticas Públicas. O objetivo da pesquisa foi levantar e avaliar a condução do processo de
formulação e implementação da gestão da TV pública, identificando os aspectos que
impactaram a natureza pública, democrática e participativa desta mídia. Para isso utilizou-se
arcabouços teóricos dos campos da economia, direito e comunicação e a análise empírica do
processo de criação da TV pública brasileira no ano de 2007. Concluiu-se que o modelo
adotado nessa política pública conduziu ao aparelhamento do modelo de TV pública pelo
governo. A conclusão da pesquisa estimulou o questionamento sobre a função das TVs
públicas na sociedade contemporânea.
Palavras-Chave
Televisão; Democratização; Política Pública; Mídia, Contemporaneidade
1
Trabalho apresentado no GT ABRAPCORP 6 - Comunicação pública, governamental e política do IV Congresso Brasileiro
Científico de Comunicação Organizacional e de relações Públicas.
2
Publicitária, mestre em comunicação (ECO/UFRJ), especialista em análise de políticas pública (IE/UFRJ) e em sistemas de
informação (UFF). Professora e pesquisadora da ESPM, autora do livro Comunicação, Cultura e Sustentabilidade (E-paper,
2008) e consultora na área de comunicação corporativa e pública.
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1.
Introdução
Em junho de 2006, o Governo Federal, através do poder executivo, publica o Decreto
5.820 e assim cria o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T). Esse vai
ser o primeiro movimento num complexo tabuleiro de xadrez que se formará nos anos
seguintes onde interesses públicos e privados, representados por intelectuais, políticos e
empresários, se articularão sobre o tema da criação de uma TV pública brasileira.
Simultaneamente, o conceito de uma comunicação pública aplicável ganha relevância
na academia, principalmente nas universidades de Brasília (UNB) e de São Paulo (USP). Seus
fundamentos remetem às estratégias de comunicação das instituições públicas, no primeiro e
terceiro setor, que têm, no seu modelo de atuação, objetivos voltados ao acesso à informação,
estímulo ao debate, exercício da cidadania e difusão dos princípios democráticos. Tais
fundamentos sustentam que uma TV pública seria a principal mídia em termos de capacidade
de penetração junto a todas as camadas sociais, democratização do acesso a informação e
possível criação de novos espaços para as produções independentes.
Este artigo é um resumo dos principais pontos abordados em pesquisa de mesmo nome
e autoria desenvolvida para o Instituto de Economia da UFRJ, curso de especialização em
Análise de Políticas Públicas. O objetivo da pesquisa foi levantar e avaliar a condução do
processo de formulação e implementação da política pública de criação da TV pública
brasileira, identificando os aspectos que impactam a natureza pública, democrática e
participativa que esta mídia pode exercer na sociedade.
A metodologia utilizada analisou a bibliografia disponível sobre o conceito de
comunicação pública, levantou os modelos de TVs públicas em outros países, remontou a
cronologia dos acontecimentos no processo de formulação e implementação da política
pública em questão através de notícias publicadas na web e cruzou esses dados no intuito de
atingir o objetivo proposto. Embora a política pública em questão inclua a criação da Empresa
Brasileira de Comunicação – EBC, por uma questão de objetividade a pesquisa focou sua
análise apenas na criação dos critérios de gestão da TV Brasil.
2.
Comunicação pública e o exercício da cidadania
Com a Constituição Federal de 1988 e a democratização das relações entre sociedade e
Estado, o conceito de Comunicação Pública ganhou força e passou a estar presente em
diferentes pesquisas e trabalhos acadêmicos em diversas universidades brasileiras. Alguns
2
pontos comuns entre os autores caracterizam-na como um modelo estratégico na construção
de discursos que tenham como foco a esfera pública, as disputas de interesses dos diversos
públicos e a criação de espaços participativos que permitam a existência e estimulem modelos
dialógicos.
A idéia de comunicação pública é melhor compreendida quando refere-se às estratégias
de comunicação de instituições públicas, sejam elas os órgãos de governo, administração
indireta ou entidades do terceiro setor que têm nos seus modelos de atuação questões
referentes à esfera pública e a articulação de interesses.
Numa ampliação da compreensão do conceito, pode-se dizer que também se trata das
atuais estratégias de comunicação adotadas por algumas empresas privadas que têm o objetivo
de agregar valor as suas marcas através da sua articulação com questões sobre
sustentabilidade social, ambiental, econômica e cultural nas comunidades onde elas impactam
o território ou podem ser impactada pelos agentes vinculados à elas. Nesse campo, a
comunicação de questões públicas instrumentaliza-se nas empresas pelo diálogo social, com
foco na compreensão, assimilação e resposta dos consumidores cidadãos envolvidos.
No âmbito das instituições públicas, Ana Lúcia Novelli (2006) utiliza os conceitos de
Bauman sobre liquidez, leveza, e inconstância do ambiente contemporâneo para explicar as
novas exigências do consumidor cidadão por transparência, agilidade, eficiência e
profissionalismo e que suscitam diferentes modelos de cidadania, de representatividade e de
participação.
Todo este processo de transformação implica em utilizar diversos instrumentos de
comunicação para a atuação direta ou indireta do cidadão que deve ser informado, consultado,
deliberado, regulado ou agente executor. Com isso, a comunicação passa a ser compreendida
como estratégia de informação, consulta e participação ativa (via fóruns, conselhos,
plebiscitos, referendos, audiências públicas, pesquisas de opinião, contratos de co-gestão com
entidades do terceiro setor, etc). Múltiplos mecanismos são adotados na tentativa de ampliar a
capacidade de gestão (governança), de articulação e de legitimação (governabilidade). Assim,
diferentes princípios ou premissas acabam por serem desenvolvidos para que haja uma efetiva
mobilização social e intercâmbio entre os atores sociais dos três setores. (NOVELLI, 2006).
Para Zèmor (1995) a comunicação pública só se legitima com a legitimação do interesse
geral, por isso ela corresponde àquela que ocorre nos espaços púbicos, sob o olhar do cidadão.
Seguindo essa lógica, sua finalidade não pode estar desassociada das finalidades das
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instituições públicas que são: (1) informar – dar conhecimento e prestar contas; (2) ouvir as
demandas, expectativas, interrogações e debate público; (3) assegurar as relações sociais no
sentido do sentimento de pertencimento; (4) acompanhar as mudanças comportamentais e da
organização social.
Zèmor identifica a informação como o objetivo principal das estratégias de abordagem
da comunicação de instituições públicas que podem ser descritas como: (1) responder à
obrigação que as instituições públicas têm de informar o público, (2) estabelecer uma relação
de diálogo de forma a permitir a prestação de serviço ao público, (3) apresentar e promover os
serviços da administração, (4) tornar conhecida a instituição através da comunicação externa e
interna e (5) divulgar ações de comunicação cívica e de interesse geral.
Alinhado com o conceito de comunicação de instituições públicas, Monteiro (2007)
afirma tratar-se do processo comunicativo entre Estado, Governo e Sociedade com o objetivo
de informar para a construção da cidadania. Conclui considerando que é o caminho para se
restabelecer a simetria de poderes na sociedade democrática dando mais espaço na mídia para
as diferentes vozes e gerindo espaços alternativos fora da mídia que permitam a formulação
de novas interpretações.
Soma-se ao conceito de comunicação pública como mecanismo de exercício de
cidadania, a compreensão de que ela também sustenta as discussões sobre as disputas de
poder nos espaços midiáticos. No decorrer da pesquisa percebeu-se que a discussão conceitual
sobre comunicação pública muita vezes alimentou e em tantas outras foi alimentada pela
formulação da política sobre a criação da TV pública brasileira.
3.
Conceituando a TV pública no Brasil
A Constituição Federal de 1988 prevê no Art. 223 a coexistência e a complementaridade
dos sistemas privado, público e estatal, embora seu texto dê ênfase ao processo de concessão,
permissão e autorização. Contrasta-se com o texto do Art 221 que obriga a todas as emissoras
de rádio e televisão dar preferência a programações educativas, artísticas, culturais e
informativas (remetendo ao Decreto 4.901/2003 de criação do Sistema Brasileiro de Televisão
Digital); a promover a cultura nacional e regional e estímulo a produção independente; a
regionalizar a produção cultural, artística e jornalística; e a respeitar os valores éticos e
sociais. (Constituição Federal – Saraiva).
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Para Cláudio Nazareno (2007), no relatório da consultoria legislativa sobre TV pública
para a Câmara dos Deputados, a confusão no texto da Constituição advém da origem do
sistema de radiodifusão do Brasil que se consolidou como comercial, não se preocupando em
formar uma rede única de televisão no campo público. A “Constituição Cidadã” de 1988
tentou corrigir este equívoco, mas não define em seu texto o que vem a ser uma TV pública.
A polêmica tomou relevância em 2007 com as declarações do então Ministro das
Comunicações sobre o lançamento de uma rede nacional pública de televisão. Desde então o
conceito de TV pública está presente na agenda dos principais representantes e intelectuais do
país. A realização do Fórum Nacional de TVs Pública em 2006 trouxe em seus cadernos
alguns pontos para a conceituação. Embora com algumas variações de pontos de vistas, é
unânime a opinião de que a principal característica da TV pública está no fato de ser
desvinculada do governo, ter sua programação focada em temas que promovam a educação e
o exercício da cidadania com ampla valorização da diversidade cultural brasileira e suas
regionalidades. Em todos os textos, o que se destaca é o debate a respeito do papel do governo
no processo de formação da TV pública e a análise sobre qual o modelo de gestão mais
adequado para a prevalência de sua natureza pública.
Orlando Senna (2006), considerado um dos idealizadores da TV pública no Brasil,
descreve como sendo sua missão “prestar serviços educativos e culturais à comunidade,
capacitar e ampliar os horizontes filosóficos e culturais do indivíduo e preparar melhor o
indivíduo para uma condição de protagonista nos processos de inserção social”. Ele considera
que através deste canal privilegiado diferentes grupos sociais podem ter contato com bens e
serviços do patrimônio simbólico nacional. Acrescenta ainda ser possível pensar em novos
modelos de negócios e novas maneiras de fazer e de ver televisão, chamando a sociedade a
participar de todo o processo.
A TV pública pode exercer um papel fundamental na geração de novos
paradigmas para a televisão brasileira, atuando como ambiente dinamizador
de novos modelos de negócio, novas maneiras de fazer e de ver televisão.
Modelos que chamem a participação da sociedade, por meio da
incorporação de novos atores no processo de elaboração de conteúdos e
serviços de interesse público, reunindo no seu entorno segmentos
representativos das diferentes áreas do conhecimento e de correntes de
opinião. (SENNA, 2006, p. 9)
Regina Mota (Tavares, 2007), em palestra no II Seminário TV pública na Era Digital
organizado pela Rede Minas em outubro de 2007, levantou questionamentos sobre como seria
possível garantir uma TV que efetivamente fosse um lugar para a expressão da diferença e
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que permitisse a invenção do mundo trazendo a discussão para as nossas relações com o
outro. Ela considerou equivocado o início das transmissões em São Paulo e nos grandes
centros urbanos por ser uma forma de reafirmar as desigualdades entre as cidades. Para ela, o
formato desta TV deve prever a criação de uma rede que parta do interior do país e que
coopere com o desenvolvimento da tecnologia e da linguagem a ser adotada. Ela também
reforça a importância das produções colaborativas possíveis através do incremento
tecnológico como forma de reduzir as diferenças.
Para Ivana Bentes (2007) em depoimento para a WebTV da UFRJ em novembro de
2007, este processo exige a compreensão da comunicação como extremamente estratégica, já
que não há governabilidade sem comunicação. Para ela, a TV pública deve ter um
investimento inicial do Estado, mas com Conselhos que permitam a participação da
sociedade. Lentamente este processo passaria o Estatal para o público, de forma gradativa,
numa sistemática aprendizagem do exercício de cidadania. Para isso tem que haver pressão
política da própria sociedade no sentido de tomar posse desta TV pública, utilizando-se dos
mecanismos digitais para participar.
4.
Análise do processo de política pública da TV pública brasileira
4.1. Etapas do processo de políticas públicas
Uma política pública caracteriza-se pela ação deliberada do Estado sobre a sociedade e
diferencia-se da rotina da administração pública pelo seu caráter pontual, inovador e mais
politizado. Seu objeto é sempre um tema empiricamente contextualizado e teoricamente
difundido. Embora seja uma ação governamental, ela deve representar as demandas e
interesses de grupos ou segmentos sociais.
Conforme demonstrado na figura 1, a questão a ser formulada no processo de
problematização vem a partir de um fato ocorrido, ou gerador, de interesse público, colocado
pela sociedade ao Estado e que toma forma através de agendas políticas que se originam a
partir da consciência sobre a questão, interesses compartilhados por uma parcela significativa
da sociedade ou pela agenda governamental (Cobb e Elder, 1976).
A percepção sobre a questão pela sociedade se dá em diferentes instâncias de
participação. Nos meios de comunicação se dá pela forma como os temas são tratados – seja
nos discursos da mídia definido por suas linhas editoriais e posicionamento político ou pela
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legitimação dos discursos dos atores através da mídia com sua capacidade de propagação e
mobilização. Nas comunidades científicas, a problematização das questões públicas surge
através das produções acadêmicas e dos resultados de pesquisas. Outra instância de
participação são as mobilizações sociais e políticas, onde grupos de atores diretamente
afetados pelo fato gerador se organizam e influenciam diretamente a problematização, seja
através de fóruns, consultas públicas, audiências públicas, plebiscitos, entre tantos outros
meios de se fazer ouvir.
Figura 1: Representação gráfica do processo de uma política pública
Fonte: desenvolvido pela autora
Ao inserir a questão no âmbito do Estado, ela perde seu caráter difuso e passa a
especificar o processo de formulação composto pelo processo decisório e pela implementação
burocrática (ver figura 1). Nesse momento a questão deixa de compor a opinião pública,
entendida com uma dimensão mais abstrata, e passa a fundamentar o saber público com a
concretização do tema relacionado a grupos e organizações da sociedade civil diretamente
influenciados ou influenciadores da questão.
O processo decisório caracteriza-se por ser a fase onde todos os grupos que possuem
algum interesse sobre o tema podem manifestar suas posições, articular seus discursos e
utilizar de mecanismos de pressão como o lobby. É a fase onde é possível a maior produção
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de conhecimento e difusão de informações, diagnósticos e proposições. Busca-se um
consenso sobre o tema, cuja utopia aumenta de acordo com a sua complexidade.
A etapa da implementação ocorre dentro do aparelho burocrático do Estado e
caracteriza-se pelo processo no qual a estratégia escolhida para desenvolvimento da questão é
colocada em prática. Envolve agências governamentais de diferentes níveis, organizações
privadas, parcerias público-privado, grupos de interesse e a aqueles que são afetados direta ou
indiretamente da política.
Já a fase de avaliação compreende um exame retrospectivo das operações e análise dos
resultados alcançados. Depende fortemente da existência de indicadores de desempenho
consistentes que devem ser produzidos ainda na fase de formulação para que se possa
transversalizar o tema. Da mesma forma, uma clara definição dos objetivos é fundamental na
criação de tais indicadores.
4.2. O processo de política pública adotada para a TV pública brasileira
Ao aplicar conceitualmente o processo de uma política pública sobre a cronologia da
criação da TV pública é possível analisar de que forma ela ocorreu e como se caracterizou, ou
não, em um processo democrático e participativo. Este trabalho considera que o processo de
construção de uma política pública para o estabelecimento da estrutura funcional de uma TV
pública deve levar em consideração tanto os mecanismos de criação da TV em si quanto sua
dimensão midiática e interativa como um espaço de problematização, formulação e avaliação
de outras políticas públicas.
A problematização se dá quando o Projeto Nacional de TV Pública entra na agenda do
governo na carona da implantação da tecnologia para TV digital, reconhecendo as
transformações que essa tecnologia vai promover na forma de comunicação e na capacidade
de interação e participação do público no processo de produção de conteúdos e programação.
A cronologia do processo decisório demonstra que seu início caracteriza-se pela
participação de grupos representativos de diferentes setores econômico, social e cultural. A
criação do Fórum, os grupos de trabalhos e a formulação de dois Cadernos conduzem os
primeiros passos de forma democrática e participativa. O ponto alto desta fase é a elaboração
da Carta de Brasília e o início dos debates regionais sobre o processo.
29 de junho de 2006: Publicação do Decreto 5.820, que cria o Sistema Brasileiro de
Televisão Digital Terrestre (SBTD-T).
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2º semestre de 2006 – Criação do Fórum Nacional de TVs Públicas com o objetivo de
discutir o desenvolvimento da TV pública no Brasil. Coordenado pelo Ministério da
Cultura com o apoio da Casa Civil, Radiobrás, TVE e das associações
representativas das entidades do setor de radiodifusão pública: Abepec (Associação
Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais), ABTU (Associação
Brasileira de Televisão Universitária), Astral (Associação Brasileira de Televisões e
Rádios Legislativas) e ABCCOM (Associação Brasileira de Canais Comunitários).
2º semestre de 2006 - Reuniões dos oito grupos temáticos: Missão e Finalidade das
TVs
Públicas,
Configuração
Jurídica
Institucional,
Legislação
e
Marcos
Regulatórios, Programação e Marcos de Negócios, Tecnologia e Infra-Estrutura,
Migração Digital, Financiamento e Relações Internacionais.
9 de abril de 2007 – Lançamento do Caderno de Debates: Relatórios dos Grupos
Temáticos de Trabalho (volume II), no Rio de Janeiro, pelo ministro da Cultura,
Gilberto Gil. A publicação traz a síntese do trabalho dos grupos temáticos que
desenvolveram o mapeamento do diagnóstico do segmento do campo público de
televisão assim como a elaboração das pautas a serem levadas para as plenárias do I
Fórum Nacional de TVs Públicas.
8 a 11 de maio de 2007 – Fórum Nacional de TVs Públicas, em Brasília, com a
presença dos Ministros da Educação, Cultura, do Secretário de Comunicação Social
da Presidência da República e do Presidente da República, o que reforça a idéia de
que o tema virou política prioritária do Governo Federal. Ponto de destaque foi a
criação de categorias entre as emissoras do campo público. As emissoras “cabeças”
seriam a TVE e a Radiobrás. O Fórum também serviu para reforçar o anseio das
televisões ligadas aos Poderes Executivos, nos três níveis, de receberem uma
chancela “social” na sua gestão e financiamentos e, assim, poderem se
autodenominar emissoras públicas de televisão.
Entretanto, em meados de 2007, após a realização do Fórum, o governo assume uma
postura centralizadora. Decide, mesmo sem o apoio das principais entidades do setor, que a
gestão da TV pública será indicada pelo executivo.
Julho de 2007 – Uma reunião do comitê que discute questões relativas à nova emissora
pública confirmou que o conselho gestor será mesmo uma composição de
“personalidades notáveis” escolhidas pelo executivo, ainda sem critérios definidos. A
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idéia de representação pela sociedade civil foi descartada pelo ministro Franklin
Martins. O comitê foi composto pelo(a): Presidente da Radiobrás, José Roberto
Garcez; Diretora-executiva da TVE Brasil, Beth Carmona; Assessor especial do
Ministério da Cultura, Mário Borgneth; Diretor da Rádio MEC, Orlando Guilhon;
Assessor da Casa Civil, André Barbosa; Professor da Escola de Comunicações e
Artes da USP, Laurindo Leal Filho e por três assessores da Secretaria de
Comunicação Social – SECOM.
A indicação do conselho gestor e da diretoria executiva da EBC pelo governo reforça o
temor de que a TV pública se materialize em uma TV estatal camuflada. Com conselho e
diretoria indicados pelo governo, sua autonomia fica fragilizada e inócua enquanto
mecanismo de representação social.
30 de julho de 2007 – Reunião entre representantes da sociedade civil e do governo
sobre o desenho da futura TV pública. A principal discordância é em relação ao
Conselho Gestor que, para as entidades, aponta para uma composição de um
“conselho de notáveis do governo”, quando se previa uma composição por entidades
representativas.
Final de julho de 2007 – reunião com representantes do executivo e as associações de
TVs educativas, comunitárias, universitárias e legislativas. As associações sentem-se
frustradas pela forma do governo concentrar a formação da TV Brasil. Há o consenso
de que outras questões de interesse do chamado “campo público” de televisão, como
a possibilidade de integrar a chamada televisão aberta com a implantação da TV
digital, devem mesmo ficar para um outro momento, podendo, inclusive, não se
concretizar.
No decorrer das discussões, as atenções são desviadas para o debate sobre a localização
da sede da EBC, o que toma uma dimensão surpreendente, sendo amplamente veiculada. A
decisão sobre a sede no Rio de Janeiro é alterada pelo governo após sua divulgação.
Em setembro de 2007 inicia-se intenso debate sobre os rumos da política pública
adotada para a TV pública, com manifestação de várias entidades e acadêmicos:
Bernardo Kucinski – jornalista, professor da USP e autor – publica na Carta Maior
texto onde discute qual seria a forma consistente de uma TV pública.
Entidades e organizações da sociedade civil aderem ao manifesto “Pela gestão
democrática da nova TV pública”.
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Abepec – Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais –
entrega ao ministro Franklin Martins uma carta aberta propondo princípios e fazendo
sugestões que possam nortear a criação de uma nova rede pública de televisão.
FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação – e Espaço Cultural
Casa dos Bancários do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região promovem
o painel “Caráter público ou OSCIP? A TV pública do Rio Grande” em resposta à
intenção da governadora Yeda Crusius de transformar a Fundação Cultural Piratini,
mantenedora da TVE e da FM Cultura (uma fundação pública de direito privado) em
OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) com uma possível
terceirização.
Parlamentares discutem o porquê da necessidade de se criar uma TV pública por
Medida Provisória, o que traz autoritarismo para o processo.
Gaudêncio Torquato – jornalista, professor titular da USP e consultor político –
publica no O Estado de S. Paulo artigo questionando se a TV pública é ou não
representativa dos brasileiros sob o título “TV pública, um olhar dos brasileiros?”.
Audiência pública na Comissão de Serviços Públicos da Assembléia Legislativa do
Rio Grande do Sul realizada com o ministro Franklin Martins no painel “TV pública
brasileira: modelo e desafios”.
Frente Parlamentar Mista da Radiodifusão, presidida pelo deputado Paulo Bornhausen
(DEM-SC), debate a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), por meio de
medida provisória com a presença da jornalista Tereza Cruvinel, nomeada para a
presidência da EBC.
Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação Social – divulga uma nota em que defende
a iniciativa da criação da Empresa Brasileira de Comunicação – EBC, mas pontua
com críticas seu processo de construção e os mecanismos de gestão da nova empresa.
A implementação da política ocorreu em 02 de dezembro de 2007 com o lançamento da
TV Brasil a partir da fusão da TV Nacional, TV Educativa do Rio de Janeiro e Educativa do
Maranhão. O lançamento em rede nacional da TV Brasil foi impedido por falta de
equipamentos para transmitir o sinal para todo o país que entrou no apenas no Rio, Brasília,
São Luís (MA) e São Paulo. A transmissão em tempo real da programação pela internet
ocorreu somente durante a inauguração através de uma parceria com a Rede Nacional de
Ensino e Pesquisa.
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A total falta de aderência junto aos grupos sociais organizados ou mesmo a segmentos
do Estado, assim como a ausência de consenso faz com que a implementação da política
ocorra por Medida Provisória enfraquecendo o processo de representação e participação
social.
11 de janeiro de 2008 – Ministro da Cultura, Gilberto Gil, declara que o grupo de
oposição ao projeto é o mesmo que também fez oposição à CPMF, declarando que os
mesmos que derrubaram a CPMF, desejam “derrubar a legítima aspiração do Brasil
para criar a TV pública”. O DEM entrou com ação contra a criação da TV Brasil e o
PSDB pediu a suspensão do projeto.
19 de fevereiro de 2008 – O Plenário da Câmara aprova a Medida Provisória 398/07,
que cria a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), responsável pela gestão da TV
pública.
26 de fevereiro de 2008 – Votação na Câmara dos destaques da MP, depois de ter sido
adiada três vezes por falta de quorum. Oposição é derrotada nos principais pontos.
7 de março de 2008 – Grupo de debates organizado pela INTERVOZES discute a
necessidade de criação de um Sistema Público de Comunicação e de uma TV pública
em nível nacional.
12 de março de 2008 – Senado aprova a criação da TV pública via MP.
Para esclarecer a decisão de utilizar uma Medida Provisória, o assessor do ministro da
comunicação social, cita a possível instabilidade emocional dos funcionários da Radiobrás e
da Acerp (que seriam extintas) durante o tempo de tramitação do Projeto de Lei no
Congresso. Aqui vale um destaque, estes órgãos foram duramente questionados por terem
uma série de problemas trabalhistas e vínculos irregulares em seus quadros. Outro ponto para
justificar a MP foi o sinal digital estar previsto para iniciar naquela data, mas todo o
levantamento feito por esta pesquisa não indica a necessidade da simultaneidade dos fatos.
5.
Conclusão
No Brasil, desde a década de 60, diversos meios de comunicação estatal foram criados
como as TVEs, a Radiobrás e as rádios nacionais. Porém, o mais próximo que chegamos de
meios de comunicação público foram com os veículos comunitários os quais trazem em sua
essência as diretrizes do bem público, mas restringem suas atuações a territórios menores,
profundamente interconectados e articulados, como são as comunidades. Uma mídia pública
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mantém em sua base o foco no interesse público, mas seu raio de atuação e de penetração,
assim como sua capacidade de conectar e articular os mais diversos setores e suas
representações, são infinitamente maiores. O caso brasileiro torna-se ainda mais relevante do
ponto de vista investigativo quando confrontamos a existência de TVs estatais e comunitárias
com o monopólio em termos de audiência da Rede Globo – TV privada com altíssima
capacidade de penetração nos lares brasileiros nos cinco territórios.
A análise cronológica da política pública adotada para a TV pública, envolvendo a
criação da Empresa Brasileira de Comunicação – EBC e a formação de uma rede que soma
todos os veículos de comunicação pública sejam, estatais, comunitários ou universitários,
demonstra o quanto os meios de comunicação são estratégicos na sociedade contemporânea e
o quanto os governos reconhecem essa importância.
Junto minha análise às ponderações daqueles que compreendem que o início da
implementação de uma política pública requer uma participação maior do ente
governamental, já que é da natureza do Estado Democrático de Direito ser o gestor dos
processos que afetam a esfera pública e social. Porém, a indicação do primeiro conselho
poderia ser menos impactante no processo democrático se fosse feita em conjunto com a
criação de mecanismos de acompanhamento da gestão e controle social.
Enfim, também não fica claro no decorrer da análise de todo o processo o porquê do
governo mudar seu posicionamento frente à forma de conduzir o processo. Da mesma forma,
não é justificado porque utilizar mecanismos como decreto e medidas provisórias para
implementar uma política que por sua natureza deveria priorizar posturas democráticas. A
falta de clareza induz que pode se tratar de um processo de negociações de interesses
balizados pela extinção da CPMF, a votação do orçamento (que ocorreu no mesmo dia) e o
comprometimento junto aos aliados na reeleição presidencial.
Nessa direção, a análise indica que há interesse do governo em criar efetivamente uma
rede de comunicação governamental chancelada como TV pública e reestruturada
juridicamente na forma da EBC, de forma a obter um orçamento significativo, assim com
outras formas de financiamento. Destaca-se aqui que as duas principais instituições Radiobrás e Acerp (rede de TVEs) foram obrigatoriamente inseridas na estrutura da EBC. Já
as TVs universitárias, comunitárias, regionais tiveram opção de escolha, podendo usufruir da
chancela e do orçamento, no caso da sua inclusão na rede.
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Por fim, reforço minha percepção de que a utilização do mecanismo de formulação e
implementação de política pública sobre um tema com grande aderência social poderia
renovar a imagem do governo junto a segmentos estratégicos, posicionando-o frente à opinião
pública como democrático.
A conclusão da pesquisa remeteu-me a uma nova questão: qual o futuro, na sociedade
contemporânea, de uma TV pública. O exercício da cidadania vai ocorrer por estar atrelado à
disputas de interesses de grupos socialmente organizados. A democratização dos meios de
comunicação, incrementado pela convergência tecnológica, é o caminho com maior aderência
ao conceito de participação. As emissoras privadas, pela regulação natural do mercado, serão
cada vez mais representativas dos segmentos sociais para o qual trabalham, participativas e
interativas por conta das demandas do seu público. E os governos, com a profissionalização
do uso dos recursos de marketing e comunicação cada vez mais usarão os meios de
comunicação de forma estratégica, seja em produções cinematográficas, em campanhas
eleitorais pesadamente inseridas nas redes sociais da internet ou na criação de redes de
comunicação.
Cabe ao governo estimular a inclusão digital em todas as camadas, criando mecanismos
que facilite a chegada de sinais de TV, celular e internet, com qualidade, a todo o país.
Promover o exercício da cidadania e difundir os fundamentos democráticos através de uma
educação básica de qualidade para todos. Assim como, possuir veículos de comunicação de
governo através dos quais possa transmitir seu posicionamento, promover sua imagem a fim
de fortalecer as instituições políticas e prestar contas de suas ações e utilização dos recursos
públicos. As TVs governamentais podem ser veículos com atratividade para o público desde
que estejam claramente posicionadas como comunicação governamental, com sua função
social definida e compreendida dentre os diferentes meios de comunicação contemporâneos
onde co-existem os espaços de laser, entretenimento e participação.
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6.
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