CONSIDERAÇÕES ACERCA DA INFLUENCIA RELIGIOSA NA FORMAÇÃO
MORAL DE MULHERES PERTENCENTES AO MOVIMENTO BANDEIRANTE
NO INÍCIO DO SÉCULO XX.
Samara dos Santos Carvalho – UNESP-Marília – GT1-“Sociedade, cultura e religiosidades”
- CNPq1.
1)CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O método de Baden-Powell, com sua promessa, seu código, seu lema, seus exercícios e
provas, se destina a desenvolver na bandeirante todos os dons que recebeu, para que eles
sejam empregados no serviço de Deus e do próximo. A boa ação diária vem lembrar o
mandamento máximo do Cristo, a caridade que devemos ter para com o próximo, que é
uma manifestação de nosso amor a Deus. (FBB, 1961, p.10)
O presente trabalho tem como objetivo estabelecer uma breve discussão acerca dos
preceitos morais que norteiam o Movimento Bandeirante, em seu método de co-educação para
meninas e moças2, e como tais valores estão intimamente ligados à religiosidade Católica. Desta
forma, pretende-se, através de uma análise mais minuciosa dos itens que fundamentam a promessa
Bandeirante e o código de leis, estabelecer um diálogo entre alguns elementos da religiosidade
Católica e a formação moral destas meninas e moças. Consequentemente, de que maneira estes
preceitos aliados à religiosidade refletem na construção de um tipo de representação feminina,
idealizado e compartilhado na instituição.
2) ORIGEM E FUNDAMENTOS DO BANDEIRANTISMO
Antes de suscitar qualquer discussão acerca da relação entre religiosidade católica e gênero
proposta neste artigo, se faz necessário compreender o que é o Movimento Bandeirante, qual sua
origem e de que maneira esta instituição se estabelece como um pertinente objeto investigativo
sobre a compreensão da influência religiosa na construção de um modelo de feminilidade criado e
compartilhado na própria instituição que muito reflete o papel atribuído à mulher burguesa na
sociedade brasileira, sobretudo no decorrer do século XX.
A origem do Movimento Bandeirante está intrinsecamente ligada à origem do Escotismo,
preconizado por Baden-Powell no início do século XX. O Escotismo é um movimento mundial,
educacional, voluntariado, apartidário, sem fins lucrativos. A sua proposta é auxiliar no
1
Programa de pós-graduação em Ciências Sociais – Nível Mestrado – UNESP-Marília. Orientação: Prof. Dr. Andreas
Hofbauer.
2
Atualmente o Bandeirantismo é destinado tanto para moças como para rapazes. Entretanto, neste trabalho nos
ateremos a discuti-lo apenas nas primeiras décadas de atuação, perídio este que só era permitido a participação
feminina.
desenvolvimento do jovem, por meio de um sistema de valores que prioriza a honra, baseado na
Promessa e na Lei escoteira, e através da prática do trabalho em equipe e da vida ao ar livre, fazer
com que o jovem assuma seu próprio crescimento, tornando-se um exemplo de fraternidade,
lealdade, altruísmo, responsabilidade, respeito e disciplina3.
Quando Baden-Powell publicou a coletânea de artigos “Escotismo para Rapazes”, lançado
inicialmente em seis fascículos quinzenais de janeiro a março de 1908 4, jamais imaginou que este
material teria uma repercussão tão grande entre os jovens ingleses e que traduzido para diversos
idiomas, faria com que em um breve período de tempo os ideais do Escotismo se espalhassem por
diversos países em todo o mundo.
O Movimento Escoteiro foi fundado por Robert Stephenson Smith Baden-Powell em 1907
na Inglaterra. Militar de família anglicana, Baden-Powell ficou famoso por atuar em missões
imperialistas do exército inglês em diversas regiões do continente africano e Índia. Após sua
aposentadoria como militar Baden-Powell decide juntar os diários de suas viagens e livros sobre
educação de diversas épocas e culturas para criar um método de co-educação destinado aos jovens,
com o intuito de lhes ensinar civismo, técnicas de sobrevivência, primeiros socorros e
solidariedade.
Em 1909, um grupo de meninas se apresentou a Baden-Powell trajando uniformes
similares aos utilizados pelos rapazes escoteiros no Palácio de Cristal em Londres, onde seria
realizada uma demonstração técnica coma participação de cerca de 11 mil escoteiros. Estas moças
manifestaram a vontade de serem reconhecidas como escoteiras e o direito de participarem do
Movimento Escoteiro assim como os rapazes. Baden-Powell aceitou a solicitação destas moças
dando-lhes a designação de guias. Este evento é considerado o marco de fundação do Guidismo5.
Após a 1ª Guerra Mundial, tornavam-se cada vez mais evidentes fortes mudanças no papel
social desempenhado pelas mulheres, que refletia novas necessidades e transformações na
educação feminina. Baden-Powell defendia o exercício de uma Educação capaz de atender às
novas necessidades de moças e mulheres. Na busca de proporcionar uma nova proposta
pedagógica que atendesse as necessidades femininas, Baden-Powell sintetiza os objetivos do
Guidismo pautados em uma perspectiva educativa que fosse além das atividades desenvolvidas no
ambiente escolar, capaz de promover uma Educação plena.
O Guidismo, segundo as palavras de seu idealizador, deveria ser compreendido como um
3
Conforme o site oficial União dos Escoteiros do Brasil: http//www.escoteiros.org.br.
Baden-Powell, R. Prefácio à edição da Fraternidade Mundial do Escotismo para rapazes, p. 05.
5
Será mantido nessa seção o termo original estabelecido ao grupo de moças que receberam a designação de meninas
guias (Girls Guides) enquanto for discutida a origem do Guidismo antes deste ser difundido no Brasil onde passa a ser
denominado como Movimento Bandeirante ou Bandeirantismo. O termo refere-se a um grupo de guias de montanhas
formado por mulheres que Baden-Powell conheceu na fronteira no Noroeste da Índia, ao longo de suas missões no
Exército inglês.
4
programa que tinha como objetivo educar e não apenas instruir. Assim como os rapazes, as moças
deveriam ser estimuladas a internalizarem os princípios e idéias da pedagogia escoteira por
vontade própria, pois para ele o Guidismo contribuía para a educação geral da mulher em face do
seu novo papel na sociedade6.
Está muito bem que uma moça saiba ler, escrever, contar e que tenha os conhecimentos
exigidos a colegiais. Entretanto, estas são apenas as bases sobre as quais deverá edificar
outros conhecimentos; se quisermos que uma jovem esteja tão apta a trabalhar no mundo
quanto seus irmãos, devemos dar-lhe as mesmas ocasiões de formar o caráter, de torna-se
habilidosa, de disciplinar-se, de saber comportar-se. Só então poderemos esperar dela as
mesmas possibilidades de ação que tem um rapaz. (Cf. BADEN-POWELL, 1955, p. 210)
Pautado nesse ideal de emancipação da mulher, o Guidismo aporta no Brasil em 1919, por
intermédio de Jerônima Mesquita, uma das fundadoras da Cruz Vermelha no Brasil, que teve
contato com a pedagogia escoteira durante o período em que trabalhou como enfermeira na
Primeira Guerra Mundial. No Brasil o Guidismo recebe o nome de Movimento Bandeirante,
sugerido pelo pedagogo Jonathas Serrano. Segundo os documentos oficiais da instituição, o
pedagogo sugeriu à instituição o nome “Bandeirante” ao buscar na historia do Brasil um termo
que fizesse referência a ideia de pioneirismo, desbravamento.
O Movimento Bandeirante chega ao Brasil com a proposta de proporcionar uma
participação mais ativa da mulher na sociedade. Dentro de um panorama político e social, o
Movimento Bandeirante é inserido no Brasil por intermédio da elite da capital nacional, Rio de
Janeiro e rapidamente se populariza entre as moças e meninas da classe média carioca. Neste
período, era quase um escândalo um grupo de mulheres se uniformizar e se reunir para atuar em
um movimento7.
Embora a trajetória do Movimento Bandeirante no Brasil esteja envolta ao conceito de
emancipação feminina, ao analisarmos os manuais metodológicos, a publicação de revistas e
periódicos internos e algumas referências bibliográficas, percebe-se que a concepção de
feminilidade compartilhada entre estas moças e mulheres está intimamente ligada à religiosidade
católica, que segundo Tindade (2005) e Azzi (1993) exerceu um papel fundamental na tentativa de
conter as transformações sociais do período que corroboravam para uma maior autonomia do
gênero feminino.
A influência religiosa é central para a compreensão dos valores atribuídos à conduta
familiar e feminina que balizam a educação Bandeirante. Segundo Baden-Powell, “a religião não
é uma roupa de domingo, mas uma diretriz para cada hora do dia”. Os princípios da pedagogia
Escoteira e Bandeirante eram fundamentados através da tríade Deus, pátria e próximo cuja base
era a prática da boa ação e conseqüentemente o auxílio a outrem, pois
6
7
NASCIMENTO, op. Cit., p. 76.
FBB. Chama acesa: o livro do Bandeirante, 2008, p. 59.
cumprir o dever para com Deus não consiste, unicamente, em inclinar-se face a Sua infinita
bondade, mas em executar sua vontade pela prática do amor a nossos semelhantes. E o
curioso é que esta obrigação do serviço ao próximo através de boas ações é uma das coisas
que os escoteiros executam com grande satisfação (Cf. BADEN-POWELL, 2000, p. 95)
No Brasil, diferentemente do ocorrido com o Guidismo originalmente inglês, que tinha
forte influência do protestantismo, o Catolicismo é adotado como a religião oficial da Federação
de Bandeirantes do Brasil. Segundo o manual do Guia do assistente religioso da FBB,
uma vez implantado, o Movimento recebeu logo o apoio da Igreja, sem que esta dele se
apropriasse: mantendo-se entidade única, desenvolveu-se em sentido inter-confessional,
acolhendo-se, sem discriminação, elementos, singulares ou agrupados, de diversas
procedência religiosa (FRANÇA, 1967, p. 10)
Embora Baden-Powell, desde o início da formulação de seu método educativo sempre
defendera a liberdade de culto religioso entre os jovens participantes do Escotismo e
Bandeirantismo, algumas publicações internas contrariam essa premissa uma vez que julgam “o
Movimento fundamentalmente cristão, não só de origem, mas principalmente de Filosofia”,
considerando efetivamente que “o laicismo na pedagogia escoteira é um erro de compreensão do
Espírito de Baden-Powell, ou uma ignorância do s eu método”.
Na década de 1950, o Grupo Escoteiro Avanhandava composto por pessoa da
comunidade judaica de São Paulo, tinha sua parcela feminina filiada à Organização Paulista de
Escoteiras (OPE) e não à Federação das Bandeirantes do Brasil (FBB). A entidade ligada às
Bandeirantes insistia na adesão das moças, já que praticamente todas as organizações femininas
estavam ligadas à FBB, que obtivera o reconhecimento internacional como entidade brasileira
junto à WAGGGES8.
Muitos eram as barreiras que justificavam a relutância da adesão das moças judias à FBB
se balizavam pela discordância dos conteúdos programáticos entre ambas as entidades. Muitos dos
impasses se justificavam pela questão financeira. A FBB em geral, era frequentada por moças das
classes mais abastadas. Entre elas, destacam-se os elevados custos dos uniformes utilizados pelas
bandeirantes que eram inacessíveis às moças e meninas de recursos modestos9.
Segundo Zuquim e Cytrynowicz (1999) para além da questão financeira,
Os obstáculos consistiam em disposições contidas nos estatutos e na organização da FBB,
que eram incompatíveis com leis religiosas judaicas e com o princípio de imparcialidade
8
Word Association of Girl Guides and Girl Scouts.
ZUQUIM, Judith; CYTRYNOWICZ, Roney. 60 anos de Escotismo e Judaísmo (1938-1968): A construção de um
projeto para a juventude. Uma história do Grupo Escoteiro e Distrito Bandeirante Avanhandava, São Paulo:
Congregação Israelita Paulista, 1999, p.125.
9
religiosa estabelecido pelo movimento escoteiro criado por Baden-Powell. [...] Além disso,
a FBB preconizava formalmente tolerância religiosa, mas não igualdade de direitos.
Este delicado episódio de imposição religiosa por parte da FBB às moças judias fere o
princípio básico do método pedagógico do Movimento Bandeirante e Escoteiro que visa a não
distinção entre classe, raça e religião para a participação dos jovens e o reconhecendo do
“comportamento moral (individual e social) e a capacidade pedagógica” como único critério para
a nomeação de chefes e monitoras10.
Par que possamos compreender a amplitude da influência religiosa observa-se mais
detalhadamente, no que consiste a promessa Bandeirante e o código de lei e, de que maneira
ambos os preceitos devem ser vivenciados por este grupo de meninas e moças. Para tal, será
apresentado o Livro de Orações da Bandeirante (1961) que estabelece um diálogo direto entre o
código e passagens bíblicas. Mas é válido reafirmar que o Código estabelecido por Baden-Powell
em sua essência não há nenhuma associação direta com as passagens bíblicas.
A Promessa Bandeirante11
Prometo, sob minha palavra de honra, ser leal a Deus e à minha Pátria, ajudar o
próximo em todas as ocasiões e obedecer ao código das Bandeirantes.
A promessa é a forma com que a menina se integra ao grupo; que a possibilita fazer parte
da “família bandeirante”, ela deve ser compreendida não como um compromisso particular com a
instituição e sim uma afirmação pública. A finalidade da promessa Bandeirante pode ser
compreendida através dos dois mandamentos que encerram toda a lei de Deus “Amar a Deus
sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”.
A simplicidade tanto do Código como da promessa é determinante para as mesmas
possam ser compreendidas pela menina desde a infância. Mas a medida em que cresce e passa da
adolescência à maturidade essas palavras tomam um sentido mais profundo, tornando-se desta
maneira um código ético para sua vida adulta12.
Embora seja simples sua dimensão é séria, pois exprime o desejo de viver um ideal. Este
ideal é a Lei. Lei esta que dá vivacidade ao grupo. O espírito do Código é a vida e a vida
bandeirante deve ser viver a Lei que possibilita viver o princípio fundamental do Bandeirantismo
que é religioso e, como toda religião é ético, isso é moral. Conforme os propósitos de formação
moral do Movimento Bandeirante, a Lei responde a uma necessidade psicológica da criança e de
10
ZUQUIM; CYTRYOWICZ, 1999, p. 127.
São permitidas ligeiras diferenças na redação da Promessa e do Código para cada país, contanto que não afetem
seus princípios fundamentais.
12
FBB, 1964, p. 31.
11
qualquer grupo, pois lhe dá unidade. É a consciência coletiva, uma necessidade psicológica, social
e moral13.
O Código original14
1)
2)
3)
4)
5)
6)
7)
8)
9)
10)
O sentimento de honra da Bandeirante é sagrado.
A Bandeirante é leal e sincera.
A Bandeirante ajuda o próximo em todas as ocasiões.
A Bandeirante estima a todos e é irmã para as outras Bandeirantes.
A Bandeirante é cortes e delicada.
A Bandeirante vê Deus na criação, protege as plantas e os animais.
A Bandeirante obedece às ordens.
A Bandeirante enfrenta alegremente todas as dificuldades.
A Bandeirante é econômica.
A Bandeirante é pura em pensamentos, palavras e ações.
3- FAMÍLIA, MULHER E CATOLICISMO.
A Revolução de 1930 e processo de industrialização foram significativos para o
fortalecimento do processo de urbanização brasileira, sobretudo no Sudeste. Esse desenvolvimento
de caráter socioeconômico foi acompanhado por uma mudança no comportamento dos grupos
sociais emergentes, que influenciados pelo crescente progresso industrial, refletem o
enfraquecimento do modelo familiar patriarcal originário do mundo rural. (AZZI, 1993, p. 101).
Esta nova configuração no âmbito familiar, influenciadas pela urbanização, possibilitou
uma maior inserção da mulher no mundo do trabalho e conseqüentemente impulsionou novas
demandas sociais que transformaram a trajetória feminina, como o enfraquecimento do sentido da
dependência com relação ao marido, novas abordagem sobre o corpo e a sexualidade, influenciada
pelo avanço na área médica e uma maior conscientização política levou à conquista do voto
feminino.
Neste período, a influência da Igreja Católica era fortemente percebida nas atividades
paroquiais, associações religiosas e instituições de ensino que frente a estas transformações que
estavam ocorrendo na estrutura familiar, sobretudo no papel social exercido pela mulher, atuou de
maneira expressiva visando conter de maneira conservadora as mudanças sociais que eram vistas
uma ameaça a ordem moral e a organização social.15 Tendo com base a incontestável influência da
igreja, o Movimento Bandeirante também expressava sua preposição frente a estas transformações
sociais no Brasil, em especial a organização familiar e o papel social da mulher.
13
Ibid., 1966, p. 06.
O Código Bandeirante, assim como a própria metodologia também sofreu modificações com as reformulações e
modernização do programa no final da década de 1960. Porém, será mantido o código utilizado no período em que as
discussões estabelecidas neste trabalho se referem.
15 AZZI, R. Família, Mulher e Sexualidade na Igreja do Brasil (1930-1964), 1993 p. 104.
14
Segundo Prado (1985), é através da família, menor célula organizada da sociedade, que o
Estado pode exercer um controle sobre os indivíduos, impondo-lhes diferentes responsabilidades
conforme cada momento histórico. A unidade familiar que deu condições para que se
desenvolvesse os principais dispositivos de inibição da sexualidade, como a atribuição da histeria
ao corpo da mulher, a sexualidade infantil e a regulação do sexo apenas para fins de procriação 16.
Nesta perspectiva, reafirmar o modelo patriarcal de família, baseado na figura do homem
provedor e da esposa circunscrita ao lar na função de organizar as atividades domésticas era, sem
dúvida, de extrema importância para a manutenção da ordem social. A Igreja mediante estas novas
configurações que ameaçavam o modelo familiar vigente, defendia a permanência da mulher
atuando no âmbito familiar, pois
O ideal feminino e seu destino natural – alheamento do mundo, perene sofrimento e
renúncia – configura-se através de virtudes como pureza, bondade, paciência e abnegação.
Alcança a mulher com essa conduta a recompensa da salvação eterna. (PRANDI, 1975,
p.30)
De acordo com Azzi (1993), é importante ressaltarmos que este modelo de conduta
feminina idealizada era compartilhado pelas famílias da classe média urbana, pois as mulheres
oriundas da classe operária desde o início do século XX, exerciam funções além do espaço
doméstico, sobretudo nas fábricas de tecido que em circunstância de receberem salários inferiores
aos dos homens, mantinham jornadas exaustivas de trabalho. Ademais, no espaço rural as
mulheres também exerciam atividades exteriores ao espaço doméstico.
Nos centros urbanos, os espaços de sociabilidade e lazer das mulheres católicas, em
particular as de camadas abastadas, estavam relacionados à obras assistencialistas como a
participação e organização de chás beneficentes, campanhas de higienização e proteção à
maternidade e a infância. Essas atividades caridosas, tomadas pelo discurso da filantropia, traziam
às mulheres a sensação de estarem contribuindo para o mandamento máximo de Cristo “Amai-vos
uns aos outros assim como amas a ti mesmo”, através de ações em prol dos mais necessitados.
As moças e mulheres Bandeirantes, através de sua conduta máxima de ajuda e doação ao
próximo, eram exemplo que expressava esse ideário de pureza e bondade atribuído à mulher. O
compromisso que as integrantes assumiam com o Bandeirantismo se fundamentava através da
vivência do código bandeirante que consistia em dez leis que deveriam ser vivenciadas
diariamente como prova de amor a Deus e compromisso não só com sua promessa, mas com as
demais Bandeirantes. Entre as leis que comprovem esta conduta destacam-se: “A Bandeirante
ajuda o próximo em todas as ocasiões” e “A bandeirante é pura em pensamentos, palavras e
16 FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber, 2006, p.25.
ações”.
As mulheres e moças da classe média além de serem bem instruídas para participarem da
vida em sociedade por uma formação intelectual que enfatizava o ensino de literatura, letras e
artes, recebiam através da religião ou de organizações oriunda desse segmento uma formação de
base moral, que complementava a instrução pela educação que visava
concretizar um nível ideal em que a mulher fosse, amiga e conselheira do marido,
companheira sedutora, boa doméstica e boa mãe de família, alcançando assim um
desejável meio termo de equilíbrio. (TINDADE, 2005, p.493)
Durante as primeiras décadas do século XX, o único espaço público aberto às mulheres da
classe média era o magistério. Poucas eram as possibilidades efetivas de participação feminina em
fronteiras que fossem além das fronteiras do espaço doméstico. O Bandeirantismo, mesmo
encontrando certas resistências por ser julgado como uma instituição ousada aos costumes da
época, estabeleceu-se como uma possibilidade real às moças e mulheres em exercer atividades que
fossem além das tarefas do lar. O direito ao voto feminino fez com que se abrissem as portas para
que as mulheres pudessem introduzir-se na esfera política. 17
Não obstante, de acordo com alguns pesquisadores, a abertura ao voto feminino pode ser
considerada como uma manobra destinada ao favorecimento da ala conservadora brasileira, como
salienta Linhares e Moreira (1987), o debate sufragista não ultrapassou a ideologia dominante,
mantendo intacta a imagem da mulher e de sua missão primordial – a maternidade. Fortalecida,
desta forma a organização familiar ao invés de contestá-la.
Diversas são as publicações internas da Federação de Bandeirantes do Brasil que fazem
alusão à sua dedicação em proporcionar uma educação capaz de elevar o nível moral da mulher,
bem como desenvolver práticas da instituição voltados ao auxílio [...] e estímulo em abrir amplas
perspectivas sobre novos gêneros de atividades e orientar a jovem para um desempenho mais
proveitoso dos mesmos. Uma característica interessante que é comumente discutida em diversas
publicação é quanto à critica sobre as escassas possibilidades dadas às mulheres em exercer
atividades que vão além do espaço doméstico, ou ainda sobre a dupla rotina de trabalho
constantemente exercida por mulheres em seus postos de trabalho e nos afazeres domésticos.
4) CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a breve apresentação das referidas problematizações, espera-se que este trabalho
possa ter trazido algumas questões pertinentes aos estudos sobre gênero e religiosidade. Ao
17 AZZI, R. Família, Mulher e Sexualidade na Igreja do Brasil (1930-1964), p. 120.
estabelecer discussões sobre a questão feminina, se faz necessário compreender em contexto
pretende-se estabelecer estas considerações, sobretudo quais outros elementos que permeia essa
discussão. A questão religiosa é ponto estratégico na problematização proposta neste trabalho
porque é central para averiguar-se, antes de tudo, que discurso sobre a feminilidade foi construído
no Movimento Bandeirante.
A influência da religiosidade Católica foi de extrema importância na consolidação do
Bandeirantismo no Brasil, sobretudo no que tange a sua contribuição na formulação da pedagogia
Bandeirante e na difusão de valores e preceitos morais compartilhado por um segmento social,
especificamente a classe média e elite urbana. Entretanto, estes aspectos da religiosidade Católica
expressam-se mais como uma imposição cultural e de crédito do que apenas uma essência que
balize os preceitos que organizam a instituição o que em certa medida, vai contra os princípios
básicos do método proposto por Baden-Powell de não distinção de credo, como também de raça e
classe social.
Esta característica pode ser interpretada como um elemento que comprove a dimensão da
religiosidade Católica na organização e manutenção social, pois seus dogmas e valores estão tão
enraizados na cultura brasileira que são vistos de forma naturalizada e estruturante por alguns
segmentos sociais. Esta mesma leitura pode estender-se ao Bandeirantismo, que mesmo baseado
em um discurso de respeito e valorização da diversidade, o mesmo pode ser interpelado na prática.
A investigação de aspectos culturais e dos preceitos que estruturam os valores
difundidos e compartilhados em uma instituição ou grupo é sem duvida uma tarefa árdua que
exige uma análise minuciosa capaz de compreender as transformações oriundas de diferentes
temporalidades sem cair em particularismo que por sua vez pode nos levar a uma análise
equivocada do objeto e conseqüentemente uma compreensão fragmentada sem levar em
consideração a totalidade em que o mesmo se insere. Neste artigo, procurou-se a levantar
discussões pertinentes a uma pesquisa de maior fôlego que se propõe a estabelecer um diálogo
mais substancial entre o Movimento Bandeirante e o debate sobre as relações gênero.
5) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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construção de um projeto para a juventude. Uma história do Grupo Escoteiro e Distrito
Bandeirante Avanhandava, São Paulo: Congregação Israelita Paulista, 1999.
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