ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO EXMO SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA ____ VARA EMPRESARIAL DA COMARCA DA CAPITAL - RJ. COMISSÃO DE DEFESA DO CONSUMIDOR DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, órgão vinculado à Assembléia Legislativa (CNPJ n.º 30.449862/0001-67), sem personalidade jurídica, especialmente constituída para defesa dos interesses e direitos dos consumidores, estabelecida à Rua Dom Manoel s/n, sala 506, Praça XV, Rio de Janeiro – RJ, CEP: 20010-090 vem, por seus procuradores, propor a presente: AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA Em face de BV FINANCEIRA S.A CREDITO FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO (GRUPO VOTORANTIN), inscrita no CNPJ sob o nº 01.149.953/0001-89, com matriz à Avenida das Nações Unidas, 14.171, Torre A, 8º andar conjunto 82, Vila Gertrudes, São Paulo, SP, CEP 04.794-000; ABN AMRO REAL FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITÓRIOS AYMORE FINANCIAMENTO E ARRENDAMENTO MERCANTIL (LEASING) DE VEÍCULOS, _____________________________________________________________________________________________ COMISSÃO DE DEFESA DO CONSUMIDOR DA ASSEMBLÊIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO inscrito no CNPJ sob o nº 07.647.909/0001-85, com matriz à Avenida Paulista, 1.374, 3º andar, Bela Vista, São Paulo, SP, CEP 01.310-916; SANTANDER LEASING S.A ARRENDAMENTO MERCANTIL, inscrito no CNPJ sob o nº 47.193.149/0001-06, com matriz à Alameda Araguaia, 731, pavimento superior parte A, Barueri, Barueri, SP, CEP 06.455-000; BANCO PANAMERICANO S.A., inscrito no CNPJ sob o nº 59.285.411/0001-13, com matriz à Avenida Paulista, 2.240, Cerqueira Cesar, São Paulo, SP, CEP 01.310-300; BFB LEASING S.A ARRENDAMENTO MERCANTIL, inscrito no CNPJ sob o nº 43.425.008/0001-02, situado à Alameda Pedro Calil, n.º 43, Vila das Acácias, Poá-SP, CEP: 08557-105, BANCO BRADESCO FINANCIAMENTOS S A - FINASA BMC, inscrito no CNPJ sob o nº 07.207.996/0001-50, com filial à Avenida Rio Branco, nº 116, Centro, Rio de Janeiro – RJ, CEP: 20040-001; HSBC BANK BRASIL S.A., inscrito no CNPJ sob o nº 01.701.201/0001-89, com filial à Rua Uruguaiana, nº 118, Lojas A/F, Centro, Rio de Janeiro - RJ, CEP: 20050-091; BANCO VOLKSWAGEN S.A., inscrito no CNPJ sob o nº 59.109.165/0001-49, com matriz à Rua Volkswagen, 291, Jabaquara, São Paulo, SP, CEP: 04.344-020; BANCO FIAT S.A., inscrito no CNPJ sob o nº 61.190.658/0001-06, com matriz à Alameda Pedro Calil, 43, Vila das Acácias, Poá, SP, CEP: 08.557-105; BANCO FORD S.A., inscrito no CNPJ sob o nº 90.731.688/0001-72, com matriz à Avenida do Café, 277, 1º andar torre B, Jabaquara, São Paulo, SP, CEP 04.311-000 e BANCO GMAC S.A., inscrito no CNPJ sob o nº 59.274.605/0001-13, com matriz à Avenida Indianópolis, 3.096, Indianópolis, São Paulo, SP, CEP: 04.062-003; BANCO SOFISA S.A., inscrito no CPNJ sob o nº 60.889.128/0001-80, com matriz à Alameda Santos, 1.496, Jardim Paulista, São Paulo, SP, CEP 01.418-100, com fundamento nos artigos 6º, III, do CDC; art.18, §1º c/c I, II, III e §6º; art. 30 c/c 35, I, II, III, do CDC e 441, 475 e 476, do C.C; art. 884 do C.C, entre outros, e pelas razões fáticas e jurídicas que passa a expor: DOS FATOS A autora vem recebendo um considerável número de reclamações de consumidores noticiando que estes adquiriram automóveis usados pagando o preço destes por meio de “financiamentos” concedidos por uma das rés no próprio estabelecimento do revendedor, e que, por força de vícios cobertos pela garantia (do CDC e/ou pela garantia concedida pelo revendedor), manifestados no prazo desta, reclamados tempestivamente e não sanados, ou em razão do descumprimento de obrigações assumidas pelas revendedoras que importavam para o uso útil do veículo, ficaram de posse de um produto impróprio ao fim a que naturalmente se destinava. Mesmo diante de tais situações as rés continuam exigindo do consumidor a remuneração pelo capital colocado à disposição. A aquisição de automóveis com o pagamento do preço por meio de financiamento concedido no próprio estabelecimento do vendedor, em regra, engloba a celebração de dois contratos aparentemente distintos: o de compra e venda propriamente dito e o de concessão de crédito. Sendo que este último comumente vem “revestido na forma” de alienação fiduciária ou de arrendamento mercantil (leasing). As reclamações recebidas pela a autora - que não param de chegar, por isso o ajuizamento da presente - demonstram que após a escolha dos automóveis nas revendedoras, os agentes destas (vendedores) apresentam aos consumidores uma série de opções de financiamento. Por meio de simulações financeiras feitas no próprio local de venda, os consumidores obtêm acesso a diversas propostas e modalidades de financiamento (CDC ou leasing) para aquisição do seu veículo. No psiquismo do consumidor, as instituições financeiras são apresentadas como se parceiras no negócio de compra e venda fossem, já que, ao conceder o crédito necessário, viabilizam a comercialização dos automóveis das revendedoras. A “permanência” de uma das rés dentro dos estabelecimentos das revendedoras de automóveis (fisicamente ou virtualmente) é anunciada por estas, ainda que de forma não direta, como lastro de idoneidade, fato que gera uma sensação de segurança no consumidor no sucesso do negócio, o que, conseqüentemente, torna mais atrativo o mercado de revenda de veículos. Porém, as revendedoras não são as únicas favorecidas com os negócios de compra e venda de automóveis com financiamentos: o aumento do número de contratos de compra e venda de veículos usados celebrados, que decorre da maior facilitação do acesso ao crédito, aumenta o número de contratos de financiamentos celebrados, favorecendo as instituições financeiras rés. O favorecimento das instituições financeiras com o aumento do número de contratos de compra e venda de veículos com financiamento fica ainda mais evidente se for levado em consideração que os veículos envolvidos servem como garantias contra o inadimplemento. Em alguns casos, como é possível verificar no site da primeira ré (anexo), a “venda” de financiamentos para aquisição de automóveis é estimulada e até premiada. Através de campanhas e distribuição de prêmios, a primeira ré estimula as revendedoras de automóveis a comercializarem seus produtos (financiamentos), que ganham amplitude no mercado por força do empenho dos funcionários das revendedoras. Note-se que é costume entre as revendedoras o recebimento de prêmios, por parte de todas as rés, por cada contrato de financiamento oferecimento. As regras de experiência demonstram isto (artigo 335, CPC): as revendedoras não concedem mais descontos para pagamentos à vista, não concedem vantagens para quem efetua o pagamento à vista (raras as vezes em que se consegue um tapete de carro gratuitamente em razão do pagamento à vista do preço do veículo). Inegável, portanto, que os contratos de financiamento estão cada vez mais incorporados aos contratos de compra e venda de veículos oferecidos por revendedoras de automóveis. Os problemas ocorridos nas operações de compra e venda de automóveis usados são inúmeros. De acordo com as diversas reclamações recebidas pela autora tratando sobre o tema, os problemas nos contratos de compra e venda de veículos usados podem ser resumidos nos seguintes exemplos: 1) problemas de registro e documentação dos veículos junto ao órgão administrativo de trânsito (DETRAN), fato que muitas vezes impede o seu uso útil; 2) manifestação de vício oculto no automóvel fornecido pela revendedora que não é sanado, ainda que manifestado dentro do prazo de garantia e reclamado tempestivamente; 4) manifestações seguidas de vícios ocultos que obrigam o consumidor a reclamar junto ao fornecedor inúmeras vezes; e 5) descumprimento de obrigações assumidas expressamente pela revendedora no contrato de compra e venda do veículo (como transferência da titularidade do veículo) que importam para o uso útil deste. Os problemas acima expostos estão associados à conduta das revendedoras, e são capazes de modificar os contratos de compra e venda, inclusive levando-os, em alguns casos, à extinção. Como se verá adiante, problemas que ocorrem com o contrato de compra e venda de veículos usados, quando decorrentes de fato imputável ao vendedor, produzem efeitos nos contratos de financiamento, incluindo a sua extinção e restabelecimento do status quo ante. As rés elegem revendedores de automóveis como parceiros para aproximar o seu produto (financiamento) do consumidor. Atuando assim, viabilizam, por conseguinte, a celebração dos negócios jurídicos destas revendedoras e conferem aparência de segurança a estes contratos. Em razão disso, devem assumir os riscos de ver os efeitos destes negócios jurídicos de compra e venda de veículos refletindo nos contratos de financiamento que oferecem. Ou seja, a forma de atuar das rés em relação aos contratos de financiamento que são oferecidos em revendedoras de automóveis não permite que estes contratos sejam vistos como autônomos, e sim intimamente ligados com “a sorte” dos contratos de compra e venda de veículos, visto que eles são a causa destes. Acrescente-se que, reforça a tese de que há uma ligação estreita entre contrato de compra e venda de veículo e financiamento o fato de que as rés colocam a disposição de suas parceiras revendedoras de veículos, através de acessos a endereços eletrônicos, sistemas para simulação de negócios jurídicos de financiamento para serem oferecidos aos compradores de veículos. Atuando assim, delegam às revendedoras a responsabilidade de transmitir ao consumidor todas as informações – adequadas, claras e precisas (art. 6º, III, do CDC) – acerca dos negócios jurídicos (uma das modalidades de financiamento) que serão junto a elas celebrados. Neste sentido as revendedoras e seus prepostos, eleitos pelas rés para a oferta dos produtos no mercado de comercialização de automóveis, agem como verdadeiros longa manus destas, o que acaba por reduzir o custo da operação de concessão de crédito e ampliando o mercado de consumo dos financiamentos. 1) No que tange aos vícios jurídicos – talvez a maior prova da ausência, por parte das rés, de critérios conforme a boa-fé objetiva para escolha do parceiro contratual – é possível verificar situações em que as rés financiam automóveis que jamais atenderão aos fins a que se destinam (art. 18, § 6º, III, do CDC). A preexistência de problemas de registro e documentação dos veículos junto ao DETRAN e a não transferência prévia da titularidade do antigo proprietário do veículo para o nome do revendedor são exemplos de hipóteses de vícios jurídicos, que podem ou não ser sanáveis, e, se podem, a solução pode ou não ser demorada, o que depende dos esforços empenhados pela revendedora ou até de algo que as incentivem (o reconhecimento de que um direito do consumidor de resolver um contrato de compra e venda de veículo usado pode refletir no contrato de financiamento é um bom exemplo de incentivo para a revendedora solucionar com rapidez um vício jurídico). Segundo reclamações recebidas pela autora, há casos em que os veículos comercializados pelas revendedoras, e financiados pelas rés, jamais poderiam ter a sua propriedade regularmente transferida aos adquirentes (consumidores), ou mesmo o financiamento registrado junto ao órgão administrativo de trânsito, obrigação legal expressa para os contratos de financiamento de automóveis prevista na Lei 4728/65, no Decreto-Lei 911/69, no artigo 1.361, § 1º, CC 2002, e na Resolução Contran nº 320, de 05 de Julho de 2009. Neste sentido, reclamações indicam que as rés deixam de verificar (previamente) premissas jurídicas básicas antes de conceder o crédito, tais como: regularização cadastral dos veículos junto ao órgão administrativo de trânsito; pendências financeiras do veículo junto ao mesmo órgão; existência de gravames (registro de financiamentos) sobre o veículo em nome de outras instituições financeiras e proprietários (ver reclamação 90282/2010); registro de roubo e furto para o veículo a ser financiado (ver reclamação 89592/2010 – anexo); problemas relacionados ao Certificado de Registro do Veículo – CRV (recibo de compra e venda) financiado; etc. A inobservância destas condições legais (sine qua non), que demonstram o total desinteresse das rés em relação à pessoa do consumidor, pode facilmente resultar em impedimento do uso regular do bem objeto do contrato. A reclamação de número 89496/2010 (anexo) é um exemplo eloqüente do que foi mencionado acima. Nesta reclamação é narrada uma situação em que o consumidor adquiriu um automóvel; contratou, conjuntamente, um financiamento para pagamento do preço do bem; iniciou o pagamento das parcelas deste; e, posteriormente, deparou-se com a existência de pendência (outro gravame financeiro) anterior sobre o veículo, fato que impediu o registro da transação de compra e venda financiada junto ao DETRAN, e, por conseqüência, o uso útil do bem. Tais situações são agravadas pelo fato de que em muitos casos as revendedoras encerram suas atividades comerciais (constatados pela autora através da devolução de seus ofícios pelos Correios - AR negativo com a opção “mudou-se” assinalada) ou os antigos proprietários (os que venderam o veículo para a revendedora) encontram-se em local incerto e não sabido, impossibilitando a solução dos problemas. Na prática os consumidores acabam ficando com um veículo inadequado para o uso, mas remunerando o capital concedido pela instituição financeira. Além da reclamação acima citada, outras reclamações mencionadas anteriormente demonstram claramente que veículos fornecidos por revendedoras (e financiados pelas rés) comumente não possuem, quando da celebração dos negócios jurídicos de compra e venda de veículos com financiamento, condições mínimas para comercialização no mercado, ou para ser objeto de financiamento. Entretanto, tais circunstâncias não chegam a ser aventadas durante a análise de crédito feita pelas rés, fato que permite a celebração de contratos que não trará qualquer dos benefícios legitimamente esperados pelo consumidor (incluindo o contrato de financiamento, cujo benefício legitimamente esperado é o de dar condições para aquisição de bem útil). Ao atuar sem um lastro mínimo de comportamento segundo a boa-fé objetiva as rés assumem os riscos de ver o contrato onde figura como fornecedora de crédito seguir a mesma sorte do contrato de compra e venda. 2) O raciocínio de que os contratos de financiamento devem seguir a mesma sorte da do contrato de compra e venda deve ser aplicado também em relação ao descumprimento de obrigações assumidas pelas revendedoras que não são da natureza dos contratos de compra e venda de veículos. Em alguns casos analisados pela autora, as revendedoras assumem perante os consumidores uma série de obrigações correlatas à venda dos veículos (ver reclamação 89838/2010 anexo), principalmente referentes ao processo de transferência da titularidade do bem para o nome do adquirente. Embora integrem o contrato em todos os seus termos (art. 30, do CDC), estas obrigações em muitos casos terminam não sendo cumpridas pelas revendedoras, fato que enseja a resolução do contrato (art. 35, III, do CDC). Neste caso, sendo certo que a aparência de idoneidade da revendedora decorre da existência de parceria entre esta e a instituição financeira (tendo em vista a tese de que “banco não entra em negócio para perder”) o contrato de financiamento não pode ser visto como autônomo ao de compra e venda. Não cumprida, pois, obrigação assumida pela revendedora, ainda que não obrigatória aos contratos de compra e venda de veículos, que importe em impossibilidade de utilização do veículo utilmente, e tendo ocorrido a resolução por este motivo, o contrato de financiamento deve seguir a mesma sorte. 3) Além das situações acima expostas, os casos de maior reincidência e repercussão no mercado de automóveis, e que na prática trazem maior desgaste ao consumidor, estão associados à venda de veículos com problemas mecânicos ocultos, ou seja, vícios de adequação em sentido estrito (os vícios jurídicos, a rigor, são também vícios de adequação, por isso necessária a classificação) que comprometem o regular uso do veículo (ver reclamações 89967/2010, 89856/2010 e 89827/2010 anexo). Tais hipóteses podem modificar ou extinguir os contratos de compra e venda. Hipóteses de modificação podem ocorrer quando o vício não é reparado e o consumidor opta pela substituição do bem ou pelo abatimento proporcional do preço. A extinção do contrato pode ocorrer quando verificada a hipótese prevista no artigo 18, § 1º, II, ou § 3º, CDC. De acordo com as reclamações recebidas pela autora que tratam de vícios de adequação ocultos em sentido estrito, as revendedoras de veículos usados costumam tratar estas questões de forma inadequada: antes de ofertarem os veículos ao público não realizam, ou realizam de forma inadequada, vistorias nos veículos para que estes possam atingir o resultado legitimamente esperado pelo consumidor; reparam os vícios de forma inadequada, obrigando o consumidor a dispor do bem para reparos seguidamente; não reconhecem o direito do consumidor de desfazer o negócio de forma extrajudicial, ainda que o vício tenha se manifestado mais de uma vez ou o reparo não tenha sido realizado no prazo de até trinta dias; não reparam alguns vícios ocultos alegando não estarem estes cobertos pela garantia – esta justificativa é comumente utilizada nos contratos de compra e venda de veículos usados, em que a garantia concedida pelo vendedor abrange tão-somente motor e caixa de marchas. Tais ocorrências demonstram que as rés, no momento de firmar parceria com revendedoras (momento em que decidem colocar suas marcas nos empreendimentos), não verificam a idoneidade destas no que se refere ao tratamento que estas dispensam aos casos de vícios de adequação ocultos em sentido estrito, mesmo sabendo que suas marcas apostas em estabelecimentos comerciais geram expectativas. Considerando a aparência gerada pela presença de uma das rés no momento da celebração do contrato de compra e venda do veículo, aparência esta que cria uma “atmonsfera” de confiança na segurança do contrato (como, por exemplo, de que os veículos ofertados foram devidamente vistoriados), os efeitos ocorridos nos contratos de compra e venda de veículos usados devem ser produzidos, na mesma medida, nos contratos de financiamento: o desconto proporcional do preço deverá se refletir no contrato de financiamento, mantendo-se as condições no que se refere à taxa de juros, data de vencimento; a extinção do contrato de compra e venda do veículo importará na extinção do contrato de financiamento e na colocação do consumidor no estado em que estaria caso não tivesse contratado, sem prejuízo de eventuais perdas e danos. Tais situações são agravadas pelo fato de que em muitos casos as revendedoras encerram suas atividades comerciais (constatados pela autora através da devolução de seus ofícios pelos Correios - AR negativo com a opção “mudou-se” assinalada), impossibilitando a solução dos problemas através do uso da garantia legal e contratual, esta última quando existir. Vê-se que, se encarados como autônomos os contratos de compra e venda e de financiamento, e ocorrendo a hipótese de extinção do contrato de compra e venda em razão de vício de adequação do produto ou vício jurídico, o consumidor teria que continuar remunerando o financiamento sem estar com o bem financiado - já que devolvido ao vendedor como contrapartida à extinção do contrato de compra e venda - ou continuar remunerando o financiamento permanecendo com um bem impróprio ao fim a que se destina, ou seja, um bem inútil (um “elefante branco”), seja porque o revendedor não reconhece o direito do consumidor de extinguir o contrato de compra e venda previsto no artigo 18, seja porque o revendedor não existe mais. Importante, portanto, reconhecer a existência de um liame entre contrato de compra e venda de veículo e contrato de financiamento quando este for a causa daquele. Por óbvio, em razão do princípio da confiança, o fornecedor do contrato de financiamento deve ser sabedor, ou dever ser sabedor, de que o contrato de compra e venda é a causa do contrato de financiamento. Conclusão Considerando que as rés vêm (1) concedendo crédito para que consumidores adquiram veículos usados em revendedoras – sabendo, ou devendo saber, que este (contrato de compra e venda de veículo) é a causa daquele (contrato de financiamento) - independentemente da situação do bem; (2) continuam exigindo dos consumidores a remuneração pela concessão de crédito mesmo quando o contrato de compra e venda é extinto por fato imputável à revendedora, ou, quando deixam de exigir a remuneração em razão da extinção do contrato por fato imputável à revendedora, se recusam a colocar o consumidor na situação que estaria caso não tivesse contratado (devolvendo os valores já pagos); (3) se recusam a receber o bem financiado, e conseqüentemente extinguir o contrato de financiamento colocando o consumidor na situação que estaria caso não tivesse contratado, quando o consumidor tem o direito à resolução do contrato de compra e venda, mas encontra resistência injustificada da revendedora, incluindo aí a hipótese de a revendedora ter desaparecido e a exigência desta em submeter o veículo a reparos mesmo depois de o mesmo já ter sido submetido a reparo anteriormente, a autora foi obrigada a ajuizar a presente demanda para que (i) seja reconhecido que os contratos de financiamento fornecidos pelas rés para pagamento do preço de contratos de compra e venda de veículos usados, quando intermediados pelas revendedoras ou celebrados nas dependências destas, devem seguir a mesma sorte do contrato de compra e venda, (ii) para que, nas hipóteses de injustificada recusa da revendedora, incluindo as hipóteses de esta ter “desaparecido”, em reparar vícios manifestados dentro do prazo de garantia e reclamados tempestivamente, sejam as rés obrigadas a responderem por estas, e, (iii) para que, nos casos de injustificada recusa da revendedora, incluindo a hipótese de esta ter “desaparecido” ou ter exigido a realização de reparo no veículo mesmo depois de o mesmo já ter sido submetido a reparo anteriormente, em aceitar o desfazimento do contrato de compra e venda quando o consumidor se enquadra nas hipóteses previstas nos artigos 18, §§ 1º, II, 3º, 35, III, ambos do CDC, sejam as rés condenadas a responderem como se revendedoras fossem. DO DIREITO INCIDÊNCIA DO CDC E LIMITES DA DEMANDA Os contratos de financiamento para aquisição de automóveis usados junto a revendedoras são inegavelmente de consumo. A discussão acerca da inaplicabilidade do CDC aos contratos de financiamento, hoje, é estéril, tendo em vista o notório posicionamento do STF em relação à questão (entende-se que se o capital se destina à aquisição de bem para uso próprio de seu tomador há destinação final para o capital; apenas a questão das taxas de juros remuneratórios estariam fora do alcance do CDC, o que não se discute na presente demanda, logo desnecessário tecer comentários a este respeito). Todavia, isto não impede que alguns possam alegar que, em determinadas hipóteses, a aquisição do veículo financiado se destina ao incremento de determinada atividade econômica, por isso, se afigura conveniente limitar os possíveis efeitos desta demanda aos contratos de financiamento de veículos usados onde figure um consumidor (artigos 2º, caput e parágrafo único, 17 e 29, todos do CDC) como parte. Acrescente-se que, conforme se verificará logo abaixo, há fundamento para se reconhecer que há situações em que se pode “visualizar” um estreito liame entre o contrato de compra e venda de veículo usado comercializado por revendedora e o contrato de financiamento do preço deste suficiente para se afirmar, com propriedade, que as financeiras respondem direta e indiretamente por obrigações das revendedoras. Todavia, não se pode afirmar que a responsabilidade acima mencionada incide em todos os casos em que o preço de um contrato de compra e venda de veículo usado foi pago por um financiamento. É necessário que o contrato de compra e venda do veículo usado seja a causa do contrato de financiamento e que o fornecedor deste tenha ciência desta relação de causalidade. Por este raciocínio, pode-se afirmar, sem prejuízo de outras situações, que sempre que as tratativas do contrato de financiamento ocorrerem com a intervenção da revendedora, seja porque funcionários destas ofereceram o contrato, seja porque as tratativas, ou parte destas, tenham ocorrido no estabelecimento da revendedora, a financeira tem ciência de que o contrato de compra e venda do veículo é a causa do contrato de financiamento. Eis os limites da demanda. DA SOLIDARIEDADE “ESPECIAL” ENTRE REVENDEDORAS DE VEÍCULOS USADOS E AS RÉS Contratos distintos, em princípio, não interferem uns nos outros, ainda que haja identidade de partes. Todavia, quando há coligação entre eles os efeitos produzidos em um refletem no outro. A coligação contratual pode ter três origens distintas: convenção entre as partes, previsão legal ou o princípio da boa-fé objetiva (a rigor esta origem pode ser considerada como “previsão legal”, tendo em vista que o princípio da boa-fé objetiva encontra-se expresso em lei – artigos 422, CC 2002, e 4º, III, in fine, CDC -, porém, por se tratar de cláusula geral, interessante, para fins didáticos, destacar o princípio da boa-fé objetiva). “Já afirmamos que a coligação negocial não é algo que decorra simplesmente da integração econômica. É necessário que as partes assim o estipulem, a lei o determine, ou... a boa-fé indique que as partes geraram expectativas legítimas no sentido de que houvesse um tratamento unitário dos contratos”. (KATAOKA, Eduardo Takemi. A Coligação Contratual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, 175) No caso dos contratos de financiamento de veículos inexiste previsão contratual, em regra, ou dispositivo legal “preciso” prevendo a coligação destes com os contratos de compra e venda de automóveis usados oferecidos por revendedoras. Por isso, necessário verificar se o princípio da boa-fé objetiva a impõe. Segundo Cláudia Lima Marques, “boa fé objetiva significa... uma atuação refletida, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes”. (Contratos no Código de Defesa do Consumidor, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo 2002, pp. 181/182). O princípio da boa-fé objetiva, segundo a doutrina, possui três funções básicas: 1) fonte de deveres de conduta, chamados anexos, ou, como preferem alguns autores, laterais ou instrumentais, que visam “implementar uma ordem de proteção entre as partes” (MARTINSCOSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil, volume V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. FIGUEREDO TEIXEIRA, Sálvio – coord. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 78); 2) limitação ao exercício de direitos subjetivos (antes considerados lícitos e agora considerados abusivos) e 3) interpretação da relação contratual (através de uma visão total dessa) para que se alcance “o justo”. “Efetivamente, o princípio da boa-fé objetiva na formação e na execução das obrigações possui muitas funções na nova teoria contratual; 1) como fonte de deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os chamados deveres anexos, e 2) como causa limitadora do exercício, antes lícito, hoje abusivo, dos direitos subjetivos e 3) na concreção e interpretação do contrato. A primeira função é uma função criadora (pflichtenbegrundende Funfktion), seja como fonte de novos deveres (Nebenpflichten), deveres de conduta anexos aos deveres de prestação contratual, como o dever de informar, de cuidado e de cooperação; seja como fonte de responsabilidade por ato lícito (Vertrauenshaftung), ao impor riscos profissionais novos e agora indisponíveis por contrato. A segunda função é uma função limitadora (Schranken-bzw.Kontrollfunktion), reduzindo a liberdade de atuaçãodos parceiros contratuais ao definir algumas condutas e cláusulas como abusivas, seja controlando a transferência dos riscos profissionais e libertando o devedor em face da não razoabilidade de outra conduta (pflichenbefreinde Vertrauensubstande). A terceira é a função interpretadora, pois a melhor linha de interpretação de um contrato ou de uma relação de consumo deve ser a do princípio da boafé, o qual permite uma visão total e real do contrato sob exame. Boa-fé é cooperação e respeito, é conduta esperada e leal, tutelada em todas as relações sociais. A proteção da boa-fé e da confiança despertada formam, segundo Couto e Silva, a base do tráfico jurídico, a base de todas as vinculações jurídicas, o princípio máximo das relações contratuais. A boa-fé objetiva e a função social do contrato são, na expressão de Waldírio Bulgarelli, ´como salvaguardas das injunções do jogo do poder negocial´”. (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. São Paulo: RT, 2002, pp. 180/181) “Na relação obrigacional a boa-fé exerce múltiplas funções, desde a fase anterior à formação do vínculo, passando pela sua execução, até a fase posterior ao adimplemento da obrigação: interpretação das regras pactuadas (função interpretativa), criação de novas normas de conduta (função integrativa) e limitação dos direitos subjetivos (função de controle contra o abuso de direito). (...) A função integrativa da boa-fé permite a identificação concreta, em face das peculiaridades próprias de cada relação obrigacional, de novos deveres, além daqueles que nascem diretamente da vontade das partes. Ao lado dos deveres primários de prestação, surgem os deveres secundários ou acidentais da prestação e, até mesmo, deveres laterais ou acessórios de conduta. Enquanto os deveres secundários vinculam-se ao correto cumprimento dos deveres principais (v.g. dever de conservação da coisa até a tradição), os deveres acessórios ligamse diretamente ao correto processamento da relação obrigacional (v.g. deveres de cooperação, de informação, de sigilo, de cuidado).(...) Na sua função de controle, limita o exercício de direitos subjetivos, estabelecendo para o credor, ao exercer o seu direito, o dever de aterse aos limites traçados pela boa-fé, sob pena de uma atuação antijurídica. Evita-se, assim, o abuso de direito em todas as fases da relação jurídica obrigacional, orientando a sua exigibilidade (pretensão) ou o seu exercício coativo (ação)”. (SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no código do consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 59) De sua função interpretadora da relação obrigacional, denominada por Judith Martins Costa como cânone hermeneutico-integrativo, a boa-fé atua de forma a preencher lacunas, a corrigir o que não é justo e a auxiliar a busca, considerando todas as circunstâncias que envolvem a relação obrigacional, do sentido do conjunto do contrato. “Essa mesma tríplice função existe para a cláusula geral de boa-fé no campo contratual, porque justamente a idéia é ajudar na interpretação do contrato, adjuvandi, suprimir algumas das falhas do contrato, isto é, acrescentar o que nele não está incluído, supplendi, e eventualmente corrigir alguma coisa que não é de direito no sentido de justo, corrigendi”. (AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. In: Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 1, 2000, p-. 7) A “presença” de uma renomada instituição financeira no estabelecimento de um revendedor de automóveis usados cria no psiquismo do consumidor, ainda que não desejado pela financeira, a aparência (logo, uma expectativa) de que existe uma parceria entre revendedora e financeira, e, conseqüentemente, em razão do reconhecimento de que instituições financeiras sempre adotam cautelas para celebrar negócios jurídicos vantajosos (ou seja, “não entram em um jogo para perder”), de que a revendedora é idônea, atua de forma a não prejudicar o consumidor. Não se pode negar que uma aparente parceria entre um renomado fornecedor de produtos ou serviços com outro fornecedor “desconhecido” é decisivo para que o consumidor contrate com este (fornecedor “desconhecido”), tendo em vista a confiança que aquele (renomado fornecedor) transmite. Uma vez criada a expectativa da existência da parceria com a revendedora de automóveis usados, o princípio da boa-fé atua, através de sua função interpretadora da relação obrigacional, de forma a proteger a expectativa do consumidor, obrigando o agente financeiro (o responsável pela criação da expectativa) a atuar como se verdadeiro parceiro da revendedora fosse. É como se colocasse o agente financeiro no contrato de compra e venda como um garantidor especial para com o adimplemento útil das obrigações assumidas pelo revendedor do automóvel. “Em tema de interpretação e integração dos contratos, a boa-fé objetiva também desempenha exponencial papel nos casos de aplicação da teoria da aparência. É importante sublinhar que, neste campo, atuam, conjuntamente, a boa-fé subjetiva e a objetiva: a primeira concerne à valoração da conduta do lesado, porque agiu na crença (condição psicológica, interna, subjetivamente avaliável), a segunda à valoração do comportamento da parte que permitiu, por ação ou omissão, que a aparência errônea fosse criada. Mais do que à doutrina, apelo à jurisprudência para evidenciar esta afirmação. A senhora X intentou ação de cobrança contra a sociedade Y, visando à devolução do valor expendido junto àquela para a aquisição de uma casa pré-fabricada, em razão do inadimplemento contratual, por não ter a sociedade vendedora entregue o bem. Em contestação, alegou esta não manter nenhum vínculo com o vendedor, o senhor Z, que firmara o contrato de compra e venda, uma vez tratar-se o mesmo de vendedor autônomo, que utilizando os formulários com o timbre da empresa, em sua sede, ajustara o contrato e recebera o valor pactuado. Julgada procedente em primeira instância a demanda da compradora, a ação foi apreciada, por força de apelação, pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que condenou a empresa com fundamento na seguinte linha de argumentação: ‘Trata-se, a espécie, de caso típico de aplicação da teoria da aparência (...). Esta se funda, basilarmente, na boa-fé objetiva e na pacificação das relações sociais’” (COSTA, Judith Martins. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 2000, p. 435) Tal idéia torna ainda mais clara quando o bem adquirido é destinado a garantir o contrato de financiamento: a eleição do bem como garantia transmite a idéia de que este, no momento em que foi adquirido e constituído como garantia do contrato de financiamento, possuía as qualidades “ocultas” (pois os vícios aparentes o consumidor tem condições de avaliar no momento da escolha) que todos os bens similares possuem. Nos contratos de financiamento de imóveis, por exemplo, o agente financeiro, antes de aprovar o financiamento verifica as condições do imóvel para se certificar sobre a adequação do imóvel com as condições impostas pelo vendedor, justamente porque o bem será a garantia do contrato de financiamento. Esta cautela nestes tipos de contrato é adotada independentemente se o agente financeiro atua como parceiro do vendedor (é comum verificar a participação de agentes financeiros em grandes empreendimentos). Em relação à sua função de limitação ao exercício de direitos subjetivos a boa-fé objetiva atua de forma a tornar ilícito o exercício de um direito aparentemente lícito. É o que ocorre quando o fornecedor atua de forma a gerar expectativa no consumidor e, depois, atua de forma contrária, frustrando a expectativa. A atuação contrária, ainda que abstratamente lícita (sem considerar a relação obrigacional como um processo, isto é, como um todo), torna-se, em razão da boa-fé objetiva, ilícita. “Trata-se de uma aplicação da boa-fé em seu sentido negativo ou proibitivo: vedando comportamentos que, embora legal ou contratualmente assegurados, não se conformem aos standards impostos pela cláusula geral. Aqui a doutrina utiliza freqüentemente a expressão exercício inadmissível de direitos, referindo-se ao exercício aparentemente lícito, mas vedado por contrariar a boa-fé. Nesta função, situa-se uma vasta gama de comportamentos que o direito privado liberal permitiria fossem praticados por excessiva reverência à autonomia privada dos contratantes”. (SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 83/84) “A coligação resultante da boa-fé representa uma proteção da confiança gerada em terceiros contratantes, ou nas próprias partes quando haja coligação envolvendo as mesmas partes, de que certos comportamentos contratuais serão respeitados”. (KATAOKA, Eduardo Takemi. A Coligação Contratual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, 180) Para que um comportamento abstratamente lícito seja considerado lícito é necessária a presença de três pressupostos: um comportamento não vinculante à luz de norma legal positivada ou do contrato, uma legítima crença na continuidade do comportamento, uma contradição em relação ao comportamento gerador da legítima crença e um resultado danoso, ou um potencial resultado danoso, ligado ao comportamento contraditório. “A função do nemo potest venire contra factum proprium é, como já se esclareceu, a tutela da confiança. Os pressupostos de sua aplicação devem, portanto, ser informados por este fim.(...). À luz destas considerações, pode-se indicar quatro pressupostos para a aplicação do princípio de proibição ao comportamento contraditório: (i) um factum proprium, isto é, uma conduta inicial; (ii) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; (iii) um comportamento contraditório com este sentido objetivo (e, por isso, violador da confiança); e, finalmente, (iv) um dano ou, no mínimo, um potencial de dano a partir da contradição”. ((SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 124) Ao atuar de forma a criar uma aparência de parceria com o revendedor de automóveis a financeira adota um comportamento que não a vincula à luz do direito positivo e nem contratualmente quando o contrato de compra e venda e o de financiamento nadam mencionam. Ao atuar de forma a criar uma aparência de parceria com o revendedor de automóveis a financeira gera uma legítima confiança de que a parceria efetivamente existe. Quando acionada a cumprir obrigações inerentes, abstratamente, apenas ao contrato de compra e venda do veículo usado, a financeira, ao negar qualquer vínculo com o contrato de compra e venda, comporta-se de maneira contraditória, contrária à boa-fé objetiva, logo, por força do disposto no artigo 187, CC 2002, de maneira ilícita. A expectativa gerada no consumidor, no sentido de existir uma parceria entre revendedor de automóvel usado e fornecedor do crédito destinado a pagar o preço do contrato de compra e venda e, em razão desta parceria, de idoneidade da revendedora do automóvel usado, coloca a instituição financeira, por força do princípio da boa-fé objetiva, na posição de “garante” do adimplemento útil do contrato de compra e venda do veículo usado, ou seja, cria uma coligação entre o contrato de compra e venda e o de financiamento do contrato, uma solidariedade “especial”. “Chamam-se coligados os contratos em que pelos menos uma das partes é a mesma e nos quais há, apesar de sua autonomia, uma ligação de dependência ou subordinação entre os contratos, porque ambos decorrem do mesmo fato. Há, de certa forma, uma relação de acessoriedade entre eles. Para Ruy Rosado Aguiar, contratos coligados ‘são os que, embora distintos, estão ligados por uma cláusula acessória, implícita ou explicita’. Almeida Costa, citado pelo mesmo autor, os define como aqueles que ‘estão ligados por um nexo funcional, podendo essa dependência ser bilateral (vende o automóvel e a gasolina); unilateral (compra o automóvel e arrenda a garagem, ficando o arrendamento subordinado à compra e venda); alternativa (compra a casa na praia ou, se não for para lá transferido, loca-a para veraneio). No escólio de Giselda Hironaka, os contratos coligados possuem os seguintes elementos constitutivos fundamentais. São eles: a) a celebração conjunta de dois ou mais contratos; b) a manutenção da autonomia de cada uma das modalidades que integra a modalidade nova; c) a dependência recíproca ou apenas unilateral dos contratos amalgamados; d) a ausência de unicidade entre os contratos jungidos; e) e sua regência jurídica pelas normas típicas alusivas a cada um dos contratos que se coligam”. (GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini, Vícios do produto e do serviço por qualidade, quantidade e insegurança: cumprimento imperfeito do contrato. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. pág. 231 e 232). A jurisprudência não tem dificuldade em reconhecer a existência de estreita ligação entre o agente financeiro e a revendedora de automóveis usados nas situações abrangidas por esta demanda. “EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO DE CONTRATOS E PERDAS E DANOS. COMPRA E VENDA DE VEÍCULO E FINANCIAMENTO. VISTORIA DO DETRAN. REPROVAÇÃO. CARACTERIZAÇÃO DO VÍNCULO ENTRE OS CONTRATOS. SOLIDARIEDADE RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE PROFLIGAÇÃO. UTILIZAÇÃO DE CÓPIAS DAS CONTESTAÇÕES. 1. O apelo da primeira requerida não tem condições de ser conhecido por ausência de profligação. O mesmo se diz de parte do apelo da segunda ré. Não se conhece de apelação cujas razões constituem mera cópia, nitidamente facilitada pelo sistema informatizado, da petição inicial, porquanto desatendido o disposto no art. 514, II, do CPC. 2. Na parte conhecida do recurso da segunda ré, entende-se que há estreita relação entre a compra e venda do automóvel e o financiamento realizado. Há imbricação entre os contratos na medida em que a empresa financeira tem interesse na ocorrência de o maior número possível de compra e venda de automóveis, tanto que fomenta tais negócios credenciando vendedores. Solidariedade reconhecida. APELO DA RÉ SEA VEÍCULOS NÃO CONHECIDO, APELO DA RÉ BV FINANCEIRA PARCIALMENTE CONHECIDO E, NA PARTE CONHECIDA, DESPROVIDO”. (Apelação Cível Nº 70030667224, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elaine Harzheim Macedo, Julgado em 09/07/2009) (grifos nossos) “1. - Cuida-se de recurso especial interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro proferido em autos de ação revisional de contrato de financiamento em que são discutidas suas cláusulas. 2. - Sustenta o agravante a violação do art. 14, § 3º, II do Código de Defesa do Consumidor, ao argumento de ser a empresa vendedora do veículo a responsável pelo ato ilícito, bem como do próprio agravado, que assinou o contrato sem lê-lo, enfatizando que apenas efetuou as cobranças dos valores contidos no contrato assinado pelo agravado. 3. - Inadmitido o recurso na origem, adveio o presente agravo de instrumento. É o breve relatório. O recurso não merece prosperar. 4. - Conforme consta do acórdão recorrido, o agravante financiava os veículos vendidos pela empresa revendedora de automóveis que se encarregava, inclusive, do preenchimento e coleta da assinatura do contrato, fls. 200/201. Desse modo, não há como excluir da cadeia de fornecimento e serviços o ora agravante, que como bem asseverou o juiz sentenciante, se o segundo réu demonstrou a excessiva confiança de avalizar um financiamento assinado na sede da primeira ré deve, também, assumir com esta o flagrante engodo realizado perante o consumidor. 5. - Ademais, a aferição do grau de responsabilidade do agravante é questão de mérito, cuja apreciação desborda dos limites do recurso especial, uma vez que depende de prova, que como é cediço, encontra obstáculo na Súmula 7/STJ. 6. Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo de instrumento. Intimemse”. (STJ, AgIn Nº 1.063.529/RJ, Rel. Min. SIDNEI BENETI, Julg.19/08/2008) (grifos nossos) Apelação cível. Compra de veículo em agência de automóveis com financiamento concedido por instituição financeira por aquela indicada. Relação de consumo. Subsunção à Lei 8078/90. Veículo que passa a apresentar vícios ocultos. Autora que descobre que o veículo fora adulterado, não se tratando de carro 0 km, que várias peças não eram originais e que a documentação do mesmo estava em nome de terceiro. Responsabilidade objetiva. Inteligência do art. 14 CDC. Ausência de prova de excludentes do nexo causal, ônus da demonstração que incumbe aos réus (§ 3º art. 14 CDC). Risco do empreendimento. Réus que falham com o dever de adequação-qualidade e adequaçãosegurança na colocação no mercado de seus produtos e serviços. Inteligência dos arts. 8º c.c. 24 CDC. Solidariedade entre os fornecedores, conforme parágrafo único do art. 7º e §1° do art. 25 CDC. Dano material comprovado. Dano moral decorrente dos aborrecimentos, desgastes, perda de tempo, insegurança e enganosidade da boa-fé impostos à autora. Recurso interposto somente pelo 2º réu, instituição financeira, contra a parte da sentença que rescindiu o contrato de financiamento do veículo, tendo condenado aquele, solidariamente, à devolução à autora dos valores relativos às parcelas pagas. Dever da instituição financeira de tomar as cautelas necessárias no sentido de checar a procedência dos bens que se dispõe a intermediar. Empresa vendedora de automóveis que vem sendo reiteradamente acionada na justiça comum e na especial. Dever de cuidado do 2° réu na escolha de seus parceiros comerciais. Recurso desprovido. (TJ/RJ - APELACAO 0355723-45.2008.8.19.0001 - QUINTA CAMARA CIVEL - DES. CRISTINA TEREZA GAULIA - Julgamento: 11/05/2010) (grifos nossos) Dúvida reside apenas em relação ao alcance da coligação, ou seja, até que ponto o agente financeiro responde pelas obrigações inadimplidas pelo seu parceiro. Inúmeras situações podem ocorrer nos contratos de compra e venda de veículos usados com preço financiado, por isso impossível delimitar genericamente os efeitos da coligação entre os contratos de compra e venda e de financiamento do preço deste. Logo, necessário analisar as situações que podem advir dos contratos de compra e venda e fixar as responsabilidades dos agentes financeiros. DA SOLIDARIEDADE “ESPECIAL” DAS RÉS PELAS FALHAS NOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA DE VEÍCULOS COM PREÇO POR ELAS FINANCIADO Conforme visto anteriormente, o princípio da boa-fé objetiva possui três funções básicas: 1) fonte de deveres de conduta, chamados anexos, ou, como preferem alguns autores, laterais ou instrumentais, que visam “implementar uma ordem de proteção entre as partes”; 2) limitação ao exercício de direitos subjetivos; e 3) interpretação da relação contratual para que se alcance “o justo”. As duas últimas funções foram devidamente abordadas anteriormente, e, conforme visto, fundamentam a tese de que há uma coligação entre os contratos de compra e venda de veículos usados e de financiamento do preço daquele. Quanto à função de fonte de deveres de proteção, a boa-fé objetiva impõe aos contratantes o cumprimento de deveres, ainda que não previstos no contrato ou não querido pelas partes, para que ambas possam cumprir adequadamente as obrigações assumidas, obterem utilmente aquilo que buscaram no contrato e não sofrerem danos. “... os deveres instrumentais ‘caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes’, servindo, ‘ao menos as suas manifestações mais típicas, o interesse na conservação dos bens patrimoniais ou pessoais que podem ser afetados em conexão com o contrato (...).’” (COSTA, Judith Martins. A Boa-Fé no Direito Privado, sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 2000, p. 440) O descumprimento dos deveres de proteção configura inadimplemento contratual, o que, em se tratando de responsabilidade civil contratual, configura o pressuposto “inadimplemento contratual”. “Indica a doutrina que, em cada relação contratual, se alocam certos deveres de prestação, os quais se subdividem nos chamados deveres principais, ou deveres primários de prestação – constituindo estes o núcleo da relação obrigacional e definindo o tipo contratual (por exemplo, o dever de entregar a coisa e de pagar o preço, na compra e venda, o dever de cedência temporária da coisa locada e de satisfação do aluguel, na locação), os deveres secundários e os deveres laterais, anexos ou instrumentais. (...) O que aqui importa destacar, contudo, são os deveres instrumentais, ou laterais, ou deveres acessórios de conduta, deveres de conduta, deveres de proteção ou deveres de tutela, expressões todas que se reportam, direta ou indiretamente, às denominações alemãs Nebenpflichten (Esser), a qual é predominante na doutrina de língua portuguesa, Schultzpflichten (Stoll) e wiitere Verhaltenspflichten (Larenz), uma vez ter sido a doutrina germânica a pioneira em seu tratamento. Esses deveres, assinala Mario Julio de Almeida Costa, são derivados ou de cláusula contratual, ou de dispositivo da lei ad hoc ou da incidência da boa-fé objetiva. Podem situar-se autonomamente em relação à prestação principal, sendo ditos ‘avoluntarísticos’ nos casos de inidoneidade da regulamentação consensual para exaurir a disciplina da relação obrigacional entre as partes. São ditos, geralmente, ‘deveres de cooperação e proteção dos recíprocos interesses’, e se dirigem a ambos os participantes do vínculo obrigacional, credor e devedor. (...) Os deveres de correção e de boa-fé, como requisito da conduta, constituem um dos pontos cardeais da disciplina convencional e legal de cada particular relação obrigacional, seja no que concerne às obrigações principais, seja no que concerne às obrigações colaterais de cooperação e proteção dos recíprocos interesses econômicos; daí decorre que a mera inércia consciente e voluntária, que seja obstáculo à satisfação do direito da contraparte, repercutindo negativamente no regulamento negocial e legal dos interesses (contratuais), contrasta com os aludidos deveres de correção e boa-fé e pode configurar inadimplemento”. (COSTA, Judith Martins. A Boa-Fé no Direito Privado, sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 2000, pp. 437/442) (Grifei) “Pessoalmente, tendo em vista nossa idéia de que o contrato é um processo (uma sucessão de ‘tempos’, como ocorre com o próprio negócio jurídico), que vai, desde a fase pré-contratual, passando à fase contratual, distribuída em três fases menores (conclusão do contrato, eficácia do contrato e execução/adimplemento do contrato), e indo até a fase pós-contratual, todas subordinadas à boa-fé objetiva, pensamos que, embora surgindo de ato ilícito, a responsabilidade pré-contratual, por se tratar de descumprimento de deveres específicos, gerados pela boa-fé objetiva, deva se submeter ao tratamento da responsabilidade contratual; haverá lugar, portanto, para presunção de culpa, capacidade contratual, prescrição idem etc... Os danos emergentes e os lucros cessantes devem ser os do interesse negativo”. (AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Responsabilidade Pré-Contratual no Código de Defesa do Consumidor: Estudo Comparativo com a Responsabilidade PréContratual no Direito Comum. Revista Direito do Consumidor n.º 18. São Paulo: RT, p. 24) No caso concreto da demanda, o fornecedor do crédito necessário ao pagamento do preço do contrato de compra e venda tem, ou deveria ter, ciência de que a celebração do contrato de fornecimento de crédito tem como causa única e exclusiva o contrato de compra e venda do automóvel usado. Além disso, sabe que os contratos de crédito em geral possuem riscos naturais, riscos estes que podem produzir efeitos negativos na dignidade do consumidor, especialmente no que se refere às suas condições econômicas. Por isso, o fornecedor de crédito que atua em (aparente) parceria com o revendedor de automóvel usado deve, por força do princípio da boa-fé objetiva - que, como visto, “coliga” o contrato de fornecimento de crédito com o de compra e venda do veículo usado -, cumprir determinados deveres para assegurar que o contrato de crédito será útil para o consumidor, ou seja, possibilitará a aquisição de produto adequado ao fim a que naturalmente se destina. Um veículo usado adequado ao fim a que naturalmente se destina é aquele que, basicamente, possibilita o deslocamento dos passageiros do local de partida para o local de destino. A sua aparência não entra no conceito, apenas o “seu oculto”, isto é, “as partes” do veículo que o consumidor, em razão de sua hipossuficiência, não tem condições de avaliar. Por óbvio, por se tratar de veículo usado, pode o consumidor adquiri-lo por um preço menor do que o de mercado em razão de vícios ocultos, porém somente quando devidamente informado sobre o vício. Inexistindo, pois, informações, o veículo deve ser adequado ao fim a que naturalmente se destina. Por isso, o fornecedor do crédito, no caso concreto da demanda, tem o dever verificar as condições ocultas do veículo usado, para que o consumidor, posteriormente, não seja colocado na situação em que permanece com a obrigação de remunerar o capital concedido para pagar o preço do contrato de compra e venda, mas sem poder usar o bem na forma naturalmente esperada. O consumidor pode ser colocado na situação acima descrita em razão de dois tipos de vícios: vícios jurídicos, que podem ser definidos como “problemas com a documentação do veículo”; ou vícios ocultos em sentido estrito, que podem ser definidos, para fins de distinção com os vícios jurídicos (que não podem deixar de ser definidos como vícios de adequação), como os ligados ao funcionamento do veículo. Não verificar a situação jurídica do bem financiado e destinado a garantir o contrato, assim como a forma de atuar da revendedora parceira em relação aos vícios ocultos em sentido estrito dos produtos que ela comercializa, o que pode ser facilmente feito pela financeira, significa não proteger o consumidor de situações que possam causar danos a ele (se, por exemplo, o veículo possui vícios ocultos propriamente ditos, que não são reparados, ainda que manifestados dentro do prazo de garantia e reclamado tempestivamente, e havendo recusa da revendedora em resolver o contrato, o consumidor, além de não poder usufruir o produto, terá que continuar remunerando o capital emprestado), significa não observar o princípio da boa-fé objetiva. DAS FALHAS EM ESPÉCIE E ABRANGÊNCIA DA SOLIDARIEDADE “ESPECIAL” Dos vícios jurídicos A autora recebeu diversas reclamações de consumidores que, após terem adquirido automóveis por meio de financiamentos concedidos por uma das rés, constataram a existência de problemas de ordem legal que impediram a regularização dos veículos junto ao órgão administrativo de trânsito, principalmente no que se refere à transferência de propriedade e registro do contrato de financiamento (CDC e leasing). O grande número de reclamações tratando do mesmo tema fez com que a autora concluísse que a revenda de automóveis usados tem se tornado extremamente negativa no que se refere às condições legais destes. As práticas retratadas nas reclamações revelam que consumidores vêm sendo lesados por práticas que podem ser classificadas como verdadeiras fraudes no mercado de consumo, em regra, “avalizadas” e viabilizadas através de contratos de financiamento (leasing e CDC) concedidos pelas rés. Hipóteses como a venda e financiamento de veículos que possuem gravames financeiros pendentes junto ao DETRAN (outros financiamentos), com busca e apreensão decretada em ações judiciais, com problemas de emissão de Certificado de Registro do Veículo – CRV (recibo de compra e venda) e até com a numeração de chassis adulterada, não só violam os direitos dos consumidores diretamente atingidos, como, também, “prostituem” o mercado da revenda de automóveis, prejudicando os bons fornecedores do setor por levarem ao descrédito. Apenas a título exemplificativo, vale dizer que grandes pólos de comércio de automóveis, como o situado na Estrada Intendente Magalhães (Zona Oeste), considerado um dos maiores “shoppings” automotivos a céu aberto, têm também sido considerados ícones de má prestação de serviços e comercialização de automóveis em péssimas condições de uso. Tal conclusão é corroborada pelo grande número de reclamações contra revendedoras lá estabelecidas e pelo encerramento das atividades de muitas destas. Não obstante esta realidade, muitas destas revendedoras que encerraram suas atividades continuam figurando como parceiras das rés nos sites destas. O fato é que, tratando-se de bens móveis, cuja utilização é regulamentada e normatizada pela administração pública (Lei 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro), e seu uso em desconformidade com a legislação de trânsito é vedado, seus atributos de qualificação para o comércio no mercado diferem dos demais bens móveis. Veículos automotores “requerem”, necessariamente, aptidão material e jurídica para a revenda. Em outras palavras, a qualidade objetiva de um automóvel, para ser objeto de comércio e satisfação das necessidades do consumidor, é avaliada em duas esferas: pela sua qualificação mecânica (ausência de vícios nas partes mecânica e elétrica) e pelo atendimento das condições legais que permitam o seu livre trânsito em vias públicas (ausência de vícios jurídicos). A aquisição de veículos automotores impõe, ao adquirente, uma série de obrigações legais, dentre elas, a transferência da propriedade junto ao órgão executivo de trânsito (DETRAN) e a expedição de novo Certificado de Registro de Veículo (artigos 120 e 123, I da Lei 9503/1997 – CTB) em seu nome. Estes procedimentos, segundo previsão legal, devem ser realizados em até trinta (30) dias da aquisição do bem (art. 123, § 1º, do CTB), e dependem necessariamente da apresentação dos documentos elencados nos incisos do artigo 124 da mesma lei (CTB). Art. 124. Para a expedição do novo Certificado de Registro de Veículo serão exigidos os seguintes documentos: I - Certificado de Registro de Veículo anterior; II - Certificado de Licenciamento Anual; III - comprovante de transferência de propriedade, quando for o caso, conforme modelo e normas estabelecidas pelo CONTRAN; (...) VII - certidão negativa de roubo ou furto de veículo, expedida no Município do registro anterior, que poderá ser substituída por informação do RENAVAM; VIII - comprovante de quitação de débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas; Acrescente-se que o veículo usado com preço financiado, além de possibilitar a transferência de titularidade, deve permitir a anotação dos dados do contrato de financiamento junto aos DETRANs para ser considerado adequado. Logo, há vício de adequação (gênero) quando, embora o veículo apresente, em sua estrutura funcional (mecânica e elétrica), perfeitas condições de uso, subsiste vício de ordem legal que impeça o cumprimento dos imperativos da legislação de trânsito - e conseqüentemente sua livre circulação pela via pública - e o registro do contrato de financiamento junto ao órgão público competente. “Questão também importante refere-se ao vício que pode não estar presente na coisa propriamente dita, como no exemplo tirado do direito romano, em que o imóvel era considerado viciado porque o ar local estava pesteado, ou, de forma mais clara, quando o imóvel adquirido se encontrava em local sujeito a inundações. Chamamos de vício jurídico quando ele é ‘externo’ e, além disso, está ligado a uma situação de direito que impeça o completo uso ou diminua o valor da coisa. (...) Estarão dentro do vício jurídico, por exemplo, a falta de entrega de documentos relativos aos bens transacionados, como o certificado de propriedade de veículo, o ‘habite-se’ de um prédio, ou o alvará de licenciamento”. (Guimarães, Paulo Jorge Scartezzini, Vícios do produto e do serviço por qualidade, quantidade e insegurança: cumprimento imperfeito do contrato. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. pág. 216 e 217). No momento da contratação dos financiamentos, as rés recebem, ou deveriam exigir, de suas parceiras (revendedoras), informações relativas ao consumidor adquirente e ao bem negociado, que, em ultima análise, será (o bem negociado) de sua “propriedade” (leasing) ou servirá de garantia ao contrato de financiamento (CDC). No entanto, conforme demonstram reclamações em anexo, muito embora as rés tenham informações, ou fácil acesso a estas, sobre o bem a ser financiado, como a sua natureza e situação jurídica junto ao órgão administrativo de trânsito, a análise que fazem para avaliar a segurança no fornecimento de crédito recai meramente sobre o potencial financeiro do consumidor e o risco de seu inadimplemento. Confiando “cegamente” na idoneidade das parceiras, ou simplesmente atribuindo pouca importância à qualidade do veículo para ser comercializado, as rés não fazem – embora tenham meios para isso – qualquer verificação formal acerca da qualidade do bem jurídico para ser transferido ao adquirente (consumidor), ou para ser objeto de um contrato de financiamento, que depende de registro junto ao órgão administrativo de trânsito (artigo 66, § 10º, da Lei 4728/65, com redação dada pelo art. 1º do Decreto-Lei 911/69 e artigos 2º e 3º, da Resolução Contran nº 320, de 05 de Julho de 2009). O vício jurídico é fato que leva ao inadimplemento do contrato de compra e venda por parte de seu fornecedor pela inadequação jurídica do bem negociado, pois, justamente por isso, não é capaz (o bem) de atingir o fim a que naturalmente se destina. Acrescente-se que, os automóveis comercializados pelas revendedoras, e financiados pelas rés, normalmente servem como garantia do contrato de concessão de crédito, fato que por si só justificaria maior diligência destas na concessão de créditos destinados a este fim. Logo, sendo o contrato de financiamento coligado ao de compra e venda, celebrado no mesmo ato com a participação de prepostos das revendedoras e em benefício das rés, surge para estas a obrigação de verificar, antes da assinatura do contrato, a procedência e documentação do bem a ser financiado. De outra forma estarão induzindo o consumidor a celebrar contrato de financiamento que sabidamente poderá não atingir ao fim esperado pelo consumidor, ou seja, a aquisição da propriedade de um automóvel livre e desimpedido para a circulação no trânsito. Tratar esta responsabilidade de forma diversa é negligenciar a segurança jurídica esperada e almejada nas relações de consumo, significa violar o princípio da boa-fé objetiva (art. 4º, III do CDC) e ignorar que o consumidor é um vulnerável no mercado de consumo. Ao procurar uma revendedora de automóveis para adquirir determinado veículo, o consumidor legitimamente espera que este esteja livre e desembaraçado de quaisquer ônus, principalmente aqueles que possam impedir a transferência de sua propriedade junto ao DETRAN, e, conseqüentemente, a sua circulação no trânsito (sem que esteja sujeito à apreensão pelas autoridades policiais). Por isso, pode-se insistir que a concessão de financiamento pelas instituições financeiras rés atua no psique do consumidor como “aval” para o negócio que será celebrado, como uma certidão de regularidade do bem financiado. Reparação de danos A inobservância da obrigação de verificar, antes da assinatura do contrato, a procedência e documentação do bem a ser financiado configura inadimplemento por parte do revendedor e do agente financeiro, logo, estes devem responder solidariamente (art. 23, 24 e 25, § 1º, do CDC) pelos danos daí decorrentes. “DIREITO CIVIL E CONSUMERISTA. VEÍCULO IMPORTADO USADO ADQUIRIDO DE AGÊNCIA DE AUTOMÓVEIS SENDO O PREÇO PAGO EM PARTE COM RECURSOS PRÓPRIOS E PARTE ATRAVÉS DE FINANCIAMENTO COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. VÍCIO DO PRODUTO CONSISTENTE EM IRREGULARIDADE NA DOCUMENTAÇÃO QUE IMPOSSIBILITOU A CONTRATAÇÃO PELA ADQUIRENTE DE SEGURO FACULTATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA E SOLIDÁRIA DO VENDEDOR E DO AGENTE FINANCIADOR QUE NÃO VERIFICARAM COM EFICIÊNCIA A DOCUMENTAÇÃO E, ASSIM, NÃO CONSTATARAM A IRREGULARIDADE DA QUAL A AUTORA TEVE CONHECIMENTO INDISCUTÍVEL E DEIXOU TRANSCORRER O PRAZO DE NOVENTA DIAS PARA PLEITEAR A RESCISÃO DO CONTRATO (ART. 26 PAR. 3º DO CPDC). RECONHECIMENTO DA DECADÊNCIA QUANTO A ESSA PRETENSÃO. CONDENAÇÃO EM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITO INDEPENDENTE E DESMEMBRADO DAQUELE QUE CADUCOU. POSSIBILIDADE. VEÍCULO QUE SE ENVOLVEU EM COLISÃO COM TERCEIRO GERANDO DANOS À PROPRIETÁRIA QUE DESEMBOLSOU VALORES NECESSÁRIOS AOS REPAROS. APLICAÇÃO DAS TEORIAS DA CONCAUSA E DO RISCO DO EMPREENDIMENTO. AGRAVO RETIDO CONHECIDO E PROVIDO PARA EXCLUIR DA CONDENAÇÃO A RESCISÃO DOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA E FINANCIAMENTO E A CONSEQUENTE DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS UNICAMENTE PELA SEGUNDA APELANTE (SW VEICULOS). PRIMEIRO APELO (SANTANDER LEASING) PROVIDO”. (TJ/RJ, APELACÃO CÍVEL 010574270.2004.8.19.0001 (2008.001.04766) – REL. DES. MAURO NICOLAU JUNIOR - Julgamento: 18/03/2008 - DÉCIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL) (grifos nossos) “CONSUMIDOR - COMPRA E VENDA DE VEÍCULO ARRENDAMENTO MERCANTIL - FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO - DEVER DE INDENIZAR. I - Contrato de compra e venda de veículo celebrado com revendedora de automóvel, mediante alienação fiduciária e garantia em favor do HSBC Bank Brasil S/A Banco Múltiplo. Impossibilidade de transferência da titularidade do bem, após o pagamento do financiamento, perante o Detran, por constar gravame no sentido de que o aludido bem já estava arrendado para a Cia. Itauleasing de Arrendamento Mercantil. Falha na prestação do serviço. Ofensa aos princípios da probidade e boa-fé, por acreditar a autora que estava realizando um negócio com total segurança, o que era de se esperar. II Danos causados ao consumidor. Dever de indenizar. Por se tratar de venda procedida pela revendedora de automóvel, sem as cautelas devidas, mediante financiamento, garantido por alienação fiduciária, operacionalizado pela Instituição Financeira, sem averiguar a origem do veículo, afasta-se a tese de inexistência de ato ilícito dos fornecedores. Ambos estão inseridos na mesma cadeia negocial. Ambos agiram conjuntamente para a realização do negócio de compra e venda do veículo pelo consumidor e, por não propiciarem a segurança jurídica necessária, devem responder, de forma solidária, pelos danos causados. Dano material e moral que se impõe de forma solidária.III Conhecimento e provimento parcial do primeiro recurso e desprovimento do segundo”. (TJ/RJ - APELACAO 001240617.2006.8.19.0203 (2009.001.15902) - DES. RICARDO COUTO Julgamento: 27/05/2009 - SÉTIMA CAMARA CIVEL) (grifos nossos) “Apelações cíveis. Ação cominatória cumulada com pedido de indenização por danos materiais e morais. Relação de consumo. Lei 8078/90. Autor que adquiriu veículo usado em agência de automóveis e não logrou receber o bem livre e desembaraçado. Anterior proprietário do veículo, que o deixara em consignação na agência, que se recusa a subscrever o CRV. Impossibilidade de transferência do veículo. Valor parcial do veículo pago através de financiamento. Alienação fiduciária. Instituição financeira que não promove a inscrição do gravame junto ao Detran-RJ. Descumprimento de dever que decorre da norma ínsita no art. 1361 §1º NCC. Portaria nº 3091/03 do Detran-RJ que determina a obrigatoriedade de as instituições financeiras promoverem a inclusão ou baixa de gravames em veículos através de meio eletrônico. Solidariedade. Inteligência dos arts. 7º e 25, §1º, do CDC. Conduta dos réus que foge às regras da boa-fé. Dano material comprovado (pagamento pelo autor de IPVA em atraso). Dano moral decorrente dos desgastes, aborrecimentos, e perda de tempo impostos ao autor que resta impedido de circular com o veículo adquirido, por oito meses, pena de tê-lo apreendido. Fixação da verba indenizatória que deve levar em conta o lapso temporal de inação dos réus e de absoluto descaso com os reclamos do autor. Duplo viés do instituto na esfera de consumo. Apelo do autor para haver reparação por dano moral. Recurso da instituição financeira ré alegando ser parte ilegítima a figurar no pólo passivo da ação e a inexistência de dever de registro do gravame. Provimento parcial do apelo do autor. Desprovimento do recurso do réu. (TJ/RJ - APELACAO 0004652-47.2005.8.19.0045 (2009.001.01436) - DES. CRISTINA TEREZA GAULIA - Julgamento: 03/03/2009 - DÉCIMA OITAVA CÂMARA CIVEL) (grifos nossos) APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA CUMULADA COM OBRIGAÇÃO DE FAZER AJUIZADA EM FACE DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. RITO SUMÁRIO. CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE VEÍCULO COM CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. INEXISTÊNCIA DE TRANSFERÊNCIA DA DOCUMENTAÇÃO DO VEÍCULO (CRV). A COMPRA E VENDA DE VEÍCULO SE APERFEIÇOA COM A TRADIÇÃO DA COISA, CABENDO AO COMPRADOR PROVIDENCIAR A TRANSFERÊNCIA NO ÓRGÃO DE TRÂNSITO, EX VI DO ART. 123 C/C 233 DO CTB. A COMUNICAÇÃO QUE COMPETE AO VENDEDOR PROCEDER, NA ESTEIRA DO ART. 134 DO CITADO DIPLOMA LEGISLATIVO, É DE ÍNDOLE MERAMENTE ADMINISTRATIVA, DE FORMA QUE A SUA INOBSERVÂNCIA NÃO ENSEJA A RESPONSABILIDADE POR CULPA. AO REALIZAR UM CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE AUTOMÓVEL COM CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA, A FINANCEIRA DEVE TER O BEM EM SEU NOME, UMA VEZ QUE ELA É A EFETIVA COMPRADORA DO BEM, TRANSMITINDO A POSSE DIRETA AO CONSUMIDOR. SENDO ASSIM, COM O TÉRMINO DO PAGAMENTO DE TODAS AS PARCELAS RELATIVAS AO FINANCIAMENTO PELO CONSUMIDOR, A CONDIÇÃO RESOLUTIVA DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA OPERA-SE. POR ISSO, O CONSUMIDOR PASSA A SER O NOVO PROPRIETÁRIO PLENO DO BEM, O QUE O FAZ SE ENQUADRAR NO ART. 123 C/C 233 DO CTB, E ASSIM, INCUMBE A ELE A TRANSFERÊNCIA DO VEÍCULO PARA O SEU NOME. CONTUDO, O FATO DE A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA NÃO TER PROVIDENIADO A TRANSFERÊNCIA DO VEÍCULO PARA SEU NOME ANTERIORMENTE, DEIXANDO O BEM EM NOME DE TERCEIRO ESTRANHO À RELAÇÃO CONTRATUAL ESTABELECIDA ENTRE AS PARTES, TORNA INVIÁVEL OU, NO MÍNIMO, DE DIFÍCIL CUMPRIMENTO O DEVER DO CONSUMIDOR CONSISTENTE EM EFETUAR A TRANSFERÊNCIA DO BEM PARA SEU PRÓPRIO NOME NO ÓRGÃO COMPETENTE. LOGO, NOS TERMOS DO ART. 14 CDC, CONSUBSTANCIOU-SE A FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO POR PARTE DA FINANCEIRA, QUE NÃO ATUOU DE FORMA DILIGENTE A FIM DE EFETUAR A DEVIDA TRANSFERÊNCIA NO DETRAN, O QUE, COMBINADO COM A APREENSÃO DO VEÍCULO E CONSEQÜENTE IMPOSSIBILIDADE DE SE REAVÊ-LO EM RAZÃO DESTA IRREGULARIDADE RELATIVA À DOCUMENTAÇÃO, ULTRAPASSA OS LIMITES DO MERO ABORRECIMENTO E INGRESSA NA SEARA DO DANO MORAL. ADEMAIS, O CONHECIMENTO DO CONSUMIDOR DE QUE O CARRO ADQUIRIDO AINDA ESTAVA COM A "DOCUMENTAÇÃO ATRASADA" NÃO EXCLUI, DE FORMA ALGUMA, A RESPONSABILIDADE DA APELANTE, UMA VEZ QUE A SIMPLES CIÊNCIA DESTE FATO NÃO TEM O CONDÃO DE AFASTAR DELA SEU DEVER DE PROVIDENCIAR A REGULARIZAÇÃO DA TRANSFERÊNCIA DO CERTIFICADO DE REGISTRO VEICULAR. SOMA-SE A ISTO O DEVER DA FINANCEIRA DE PAGAR PELAS DESPESAS DO VEÍCULO REFERENTE ÀS MULTAS DE TRÂNSITO E TAXAS DE TRANSFERÊNCIA EXISTENTES ANTES MESMO DA AQUISIÇÃO. DE FATO, É DEVER DA FINANCEIRA ARCAR COM TAIS VALORES, UMA VEZ QUE, SE TODA A CADEIA RITUALÍSTICA DE TRANSFERÊNCIA DO REGISTRO DO AUTOMÓVEL FOSSE RESPEITADA, ELE JÁ CHEGARIAS ÀS MÃOS DO CONSUMIDOR LIVRE DE QUALQUER GRAVAME, POSTO QUE TAIS PROCEDIMENTOS DE TRANSFERÊNCIA REALIZADOS PELO DETRAN SÓ SE CONCRETIZAM SE O VEÍCULO ESTIVER COM TODAS AS SUAS DÍVIDAS PAGAS. RECURSO CONHECIDO, MAS DESPROVIDO. UNÂNIME. (TJ/RJ APELAÇÃO 0019572-60.2007.8.19.0205 (2009.001.04317) - DES. GABRIEL ZEFIRO - Julgamento: 14/04/2009 OITAVA CÂMARA CÍVEL) (grifos nossos) Inquestionável, portanto, a solidariedade entre os agentes financeiros e as revendedoras pelos danos decorrentes de vícios jurídicos sempre que aqueles (agentes financeiros) saberem que o contrato de compra e venda é a causa do contrato de financiamento. Resolução dos contratos Além de responderem pelos danos advindos do vício jurídico do bem financiado, as fornecedoras de crédito são obrigadas a aceitar a resolução do contrato de financiamento quando o consumidor possui e exerce o direito de resolver o contrato de compra e venda em razão do vício jurídico. Conseqüentemente o consumidor deve ser colocado na situação em que estaria caso não tivesse contratado o financiamento. Acrescente-se que, havendo injustificada recusa da revendedora em aceitar o pedido de resolução do contrato de compra e venda, o que incluí a hipótese de a revendedora ter encerrado suas atividades, as fornecedoras de crédito devem colocar o consumidor na situação em que estaria caso não tivesse contratado o financiamento e contratado com a revendedora, desde que o consumidor lhe disponibilize o bem. Dos vícios ocultos de adequação em sentido estrito Do reflexo dos efeitos produzidos no contrato de compra e venda sobre o contrato de financiamento No caso da revenda de veículos, esta realidade é uma constante. Por sua própria natureza e complexidade técnica, o automóvel é um produto que traz para o consumidor médio grande dificuldade de avaliação. Poucos consumidores são capazes de apurar a fundo a qualidade de um automóvel antes de seu regular uso, fato que compromete a identificação de determinados vícios que só serão constatados com o passar do tempo. Na elevada condição de vulnerável, especialmente no aspecto técnico, eventuais problemas mecânicos (e elétricos) terminam passando ao largo da percepção dos consumidores e das negociações com as revendedoras no ato da compra. Entende a autora que, em regra (que cabe exceções), nem todas as obrigações e posições assumidas pelas revendedoras nos contratos de compra e venda, coligados a contratos de financiamentos (CDC e leasing), obrigam as rés, como uma relação de solidariedade (não “especial”). O liame existente entre revendedora e financeira não é suficiente, juridicamente falando, para fundamentar uma regra geral de que as financeiras são obrigadas, junto com as revendedoras, a reparar veículos detentores de vícios sempre que estes (os vícios) se manifestarem durante o prazo de garantia do bem e reclamados tempestivamente - ou mesmo para dar cumprimento a obrigações contratuais, não naturalmente inerentes aos contratos de compra e venda, assumidas pelas revendedoras perante os consumidores (emplacamento, vistoria, etc.). Ou seja, a coligação existente entre contrato de compra e venda e financiamento do preço daquele não fundamenta regra geral de que as financeiras são solidárias (não “especialmente”) para com as obrigações assumidas pelas revendedoras (contratuais e legais), porém, conforme visto, isso não importa em afastar a possibilidade dos contratos de financiamento sofrerem reflexos de eventuais descumprimentos destas obrigações. Porém, se o bem não se presta ao fim natural a que se destina (artigo 18, § 6º, III, do CDC), e a revendedora não efetua os reparos necessários na forma do artigo 18, CDC, os contratos de compra e venda e de financiamento não podem atender os fins perseguidos pelo consumidor – salvo se o consumidor tiver adquirido o bem para fim outro que não o seu fim natural -, fato que justifica (por exemplo) a resolução conjunta dos mesmos. Tendo em vista a coligação existente entre o contrato de compra e venda e o contrato de financiamento, ou, como entendem alguns, a relação de acessoriedade do segundo com o primeiro, o destino de um, como regra, induz reflexos no outro, independentemente de haver solidariedade (não “especial”) entre os fornecedores. Entendimento semelhante vem sendo aplicado à matéria pela jurisprudência, que defende haver entre os contratos de compra e venda e financiamentos de automóveis, em alguns casos, não uma coligação propriamente dita como sustentado pela autora, mas uma relação de acessoriedade. “Apelação cível. Rescisão de contratos. CDC. Danos materiais e moral. Relação de consumo. Alegação de defeitos nos veículos objetos do financiamento que impedem seu uso. Sentença que julgou o pedido procedente em parte. Inexistência de cerceamento de defesa. Agravo retido não provido. Inconformismo do apelante que não encontra razão eis que a rescisão do contrato de financiamento firmado foi conseqüência natural da rescisão do contrato de compra e venda dos veículos, em razão dos vícios ocultos. Sentença que determinou ao apelante a devolução dos valores pagos pela apelada. Possibilidade de ação própria do banco para reaver tais valores junto ao segundo réu, que ensejou a rescisão. Condenação por danos material e moral que só se impôs à agência de veículos, segunda ré, que pode ser responsabilizada pelas más condições do veículo, pois foi quem vendeu o automóvel, não tendo como imputar tal ônus ao apelante, que somente financiou a aquisição do veículo, não tendo dado causa à rescisão de compra e venda do automóvel. Sentença que merece manutenção, com esclarecimentos. Recurso parcialmente provido”. (TJRJ, APELAÇÃO CÍVEL 0115497-79.2008.8.19.0001 (2009.001.61386) – REL DES. NANCI MAHFUZ - Julgamento: 30/03/2010 - DÉCIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL). (grifos nossos) “APELAÇÃO CÍVEL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AGÊNCIA DE AUTOMÓVEIS E FINANCEIRA. SOLIDARIEDADE. INEXISTÊNCIA.1. A autora, ao firmar o contrato com a recorrente, entregou, no ato da contratação, o veículo em alienação fiduciária à financeira que, por sua vez, terá o domínio resolúvel até pagamento integral da dívida.2. Temse, então, que a compra e venda é realizada pela agência de automóveis e não pela financeira, que apenas concede o crédito e obtém o veículo como garantia. 3. Pode até ser que o momento da celebração do contrato de compra e venda e do contrato de financiamento seja o mesmo, mas a realidade é que se formam três contratos: um de compra e venda e outro de financiamento que tem o contrato de alienação fiduciária como acessório. 4. Dessa maneira, não há como se entender pela solidariedade entre os réus, porque a solidariedade não se presume, decorre da lei ou do contrato, o que não é o caso dos autos. Precedentes deste Tribunal. 5. A apelante não responde pelos vícios do produto e, conseqüentemente, não se pode falar em sua responsabilidade pelo dano material e moral sofrido, tampouco em devolução das quantias pagas. Contudo, possui legitimidade passiva para a pretendida rescisão contratual. 6. Contrato de alienação fiduciária só existe por força do contrato de compra e venda firmado com a concessionária do veículo, de modo que rescindido este, rescindido estará aquele. 7. Recurso parcialmente provido”. (TJRJ – APELACAO 0149404-11.2009.8.19.0001 - DES. JOSÉ CARLOS PAES Julgamento: 11/03/2010 - DÉCIMA QUARTA CÂMARA CÍVEL). (grifos nossos) “CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. RELAÇÃO DE ACESSORIEDADE. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE AUTOMÓVEL. BANCO-FINANCIANTE. ILEGITIMIDADE AD CAUSAM PARA DEFESA DA VALIDADE DO CONTRATO PRINCIPAL. Impossível a rescisão do contrato acessório de financimento, sem a desconstituição prévia do contrato principal (compra e venda), uma vez que ambos estão interligados pela relação de acessoriedade. É possível afirmar que o contrato de financiamento não se encontra eivado de nenhum vício e sua rescisão só poderia ter ocorrido caso constatado pelo juízo alguma mácula no contrato de compra e venda do automóvel. Ainda que considerado que o pleito autoral de rescisão do contrato acessório abarcava o de desconstituição do contrato principal, outra não seria a solução, uma vez que a primeira-ré não tem legitimidade ad causam para defender a validade do aludido contrato de compra e venda. A demandante incluiu a verdadeira legitimada para discussão a respeito da obrigação principal, no pólo passivo da demanda, porém desistiu erroneamente da mesma. Provimento do recurso”. (TJ/RJ - APELAÇÃO 0012405-67.2008.8.19.0007 (2009.001.59847) DES. EDSON VASCONCELOS - Julgamento: 28/10/2009 - DÉCIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL) (grifos nossos) “COMPRA E VENDA. AUTOMÓVEL. PREÇO FINANCIADO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. CHASSI ADULTERADO. VÍCIO DO PRODUTO. RESCISÃO CONTRATUAL. PRISÃO. PROCESSO CRIMINAL. DANO MORAL CONFIGURADO. O autor busca restituição dos valores pagos na compra e venda e financiamento de veículo e a reparação por danos morais e materiais, tendo como causa de pedir a compra e financiamento de veículo com chassi adulterado, situação que ensejou sua prisão e responsabilização penal. Sendo certo o vício redibitório do automóvel adquirido pelo autor, que não só tornou o bem impróprio para o uso a que é destinado, como também lhe retirou o valor comercial, porquanto o bem foi apreendido pela autoridade policial, não estando mais o autor na posse do bem impõe-se a rescisão do negócio jurídico, sem prejuízo das perdas e danos, tal como proclamado nos arts. 441 do CC e 18 § 3º do CPDC. O contrato de alienação fiduciária está vinculado ao pacto de compra e venda desfeito, também quanto a este se impõe a rescisão. Corolário lógico da rescisão dos negócios jurídicos é o retorno das partes aos status quo ante, com a restituição das quantias recebidas pelas rés oriundas dos contratos desfeitos. Malgrado seja plausível a boa-fé da primeira ré (concessionária) ao revender ao autor um carro com chassi adulterado adquirido de terceiro, na relação contratual entabulada nos autos - compra e venda de veículos usados - o fato se situa no risco do empreendimento, ou noutras, palavras, trata-se de fortuito interno. Desse modo, no caso concreto o alegado fato de terceiro não exclui o nexo causal. Ante o contexto probatório dos autos, evidenciando o inadimplemento contratual e a ausência de falta intencional da primeira ré (concessionária), fixa-se o valor de R$ 5.000,00, quantia que se apresenta adequada e suficiente para a reparação do dano extrapatrimonial sofrido. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO”. (TJRJ - APELAÃO 0000134-38.2007.8.19.0079 (2009.001.46301) - DES. ROBERTO DE ABREU E SILVA - Julgamento: 15/09/2009 - NONA CÂMARA CÍVEL). (grifos nossos) Os julgados acima transcritos deixam claro o posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro acerca da existência de estreita ligação entre os contratos de financiamento de automóveis com os de compra e venda. É, pois, necessário o cumprimento perfeito deste, por parte da revendedora, para a preservação daquele. Logo, embora no caso de vícios ocultos (art. 18 c/c 26, § 3º do CDC) inexista solidariedade não “especial” passiva entre as rés e as revendedoras de automóveis, no que se refere ao cumprimento das regras previstas no artigo 18, CDC, as modificações impostas nos contratos de compra e venda, por força de vícios ocultos, devem refletir diretamente sobre os de financiamento, seja modificando-os (hipóteses de substituição do bem ou redução de seu preço), seja resolvendo-os, de acordo com a vontade do consumidor (art. 18, § 1º, I, II, III e § 3º, do CDC). Manifestado e identificado o vício oculto de adequação em sentido estrito dentro do prazo de garantia (legal ou contratual), reclamado o vício tempestivamente pelo consumidor e não exercido (que inclui o exercício sem êxito), pelo fornecedor, o “seu direito” de reparar o vício no prazo legal (art. 18, § 1º, do CDC), por motivo outro que não um fato imputável ao consumidor, a opção feita por este - substituição do bem (inc. I), restituição da quantia paga (inc. II) ou abatimento proporcional no preço (inc. III) - deve refletir sobre os contratos das rés na mesma medida: se a opção do consumidor for a substituição do bem o contrato de financiamento deverá ser ajustado conforme o valor do bem, mantidas as demais condições originais do contrato; se a opção do consumidor for o desfazimento do negócio o contrato de financiamento deverá também ser desfeito com a conseqüente restituição dos valores pagos a título de remuneração do capital emprestado (o consumidor deverá ser colocado na situação em que estaria caso não tivesse contratado); e, por fim, se a opção do consumidor for a de reduzir o preço do contrato de compra e venda o contrato de financiamento deverá ser revisto, para que se ajuste ao novo preço, mantendo-se as demais condições. Acrescente-se à hipótese de resolução do contrato que, havendo injustificada recusa da revendedora em aceitar o pedido de resolução do contrato de compra e venda, o que incluí a hipótese de a revendedora ter encerrado suas atividades, as fornecedoras de crédito deverão colocar o consumidor na situação em que estaria caso não tivesse contratado o financiamento e contratado com a revendedora, desde que o consumidor lhe disponibilize o bem. De outra forma, estaria o consumidor sendo responsabilizado por vício ao qual não deu causa, e assumindo perante as rés o ônus pela má prestação do serviço de suas parceiras comerciais (as revendedoras). Dos limites do direito do fornecedor de reparar vícios de adequação manifestados dentro do prazo de garantia e reclamados tempestivamente Questão importante a ser delimitada na seara da redibição do contrato de compra e venda em razão de vícios ocultos está ligada à contagem do prazo contido no CDC para exercício do direito de saná-los após sua identificação. Em muitos casos analisados pela autora, percebe-se que os veículos comercializados são submetidos a várias intervenções técnicas após a sua retirada da revendedora; fato que leva o consumidor a permanecer longos períodos sem o bem (muitas vezes essencial), por vezes ultrapassando, isolada ou cumulativamente, o prazo máximo de 30 dias imposto pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 18, § 1º) para que o vício seja sanado. O CDC criou uma disciplina excepcional para os vícios de produtos de consumo. Tal excepcionalidade pode ser observada se comparados os sistemas de vício do CDC e do CC 2002: no primeiro, o fornecedor tem, conforme entendem alguns autores, o “direito” de reparar o vício no prazo de até 30 dias, o que se justifica com o argumento de que é impossível analisar detalhadamente cada produto fabricado em escala industrial; enquanto que no segundo este “direito” não existe. “No mundo moderno, de produção em massa, é praticamente impossível ao fornecedor evitar que alguns produtos colocados no mercado apresentem vícios. Puni-lo imediatamente, sem permitir-lhe tentar solucionar o problema, parece não estar em harmonia com o espírito do Código”. (GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Vícios do produto e do serviço por qualidade, quantidade e insegurança: cumprimento imperfeito do contrato. São Paulo: RT, 2004, p. 300) Se se considera adequado o produto que atende ao fim a que se destina (art. 18, § 6º, do CDC) a expressão “sanar em até 30 dias”, contida no parágrafo primeiro do artigo18, CDC, deve ser compreendida como “tornar o produto adequado em até 30 dias”, por isso, e por força da obrigatória interpretação sistemática, lembrando que o “direito de sanar o vício no prazo máximo de 30 dias” é uma excepcionalidade comparando-se com o sistema de vícios do CC 2002, tal prazo de 30 dias não pode ser interpretado de outra forma que não a de que ele corre de forma continua, sem interrupções ou suspensões, ou seja, o direito de sanar o vício somente pode ser exercido uma única vez. Não tornado o produto adequado deve ser reconhecido o direito do consumidor de resolver o contrato de compra e venda, independentemente de o vício ter sido sanado em prazo inferior a trinta dias, de forma a cair por terra a alegação de que o direito de sanar o vício poderia ser exercido no prazo restante, e independentemente de o vício ser diverso do vício anterior, de forma a cair, também, por terra, a tese de que o direito de sanar pode ser exercido sempre que um vício “inédito”, diverso do vício anterior, se manifeste. Acrescente-se que, com relação à justificativa de que o legislador concedeu ao fornecedor o direito de reparar no prazo de 30 dias decorre da impossibilidade de o fornecedor examinar produto por produto em um processo de fabricação em escala industrial, o fornecedor, quando está com o produto para repará-lo em até 30 dias, poderá examiná-lo de forma mais detida e, assim, verificar a existência de outras imperfeições além da que motivou a reclamação do consumidor, o que reforça a tese acima. “O direito do fornecedor ao saneamento do vício, entretanto, só existirá uma única vez. Significa que, se o vício permanecer, não terá ele direito a uma nova oportunidade de conserto, mesmo que ainda esteja dentro do prazo previsto na lei”. (GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Vícios do produto e do serviço por qualidade, quantidade e insegurança. São Paulo: RT, 2004, p. 301) Pensar diferente significa tornar lícita uma prática corriqueira adotada por grande parte das revendedoras de veículos usados: a de obrigar o consumidor a retornar sucessivas vezes para reparar vícios que foram (supostamente) reparados no passado em prazo inferior a 30 dias ou reparar vícios que não haviam se manifestado até então. Ressalte-se que tal prática comumente resulta em outra prática, qual seja a de alegar ao consumidor, depois de expirado o prazo de garantia contado pelas revendedoras sem observância do parágrafo 3º do artigo 26 CDC, não existir mais qualquer responsabilidade em razão do término do prazo de garantia, ainda que o vício manifestado contemporaneamente já tenha sido submetido a outro reparo e ainda que o vício, inédito, seja oculto. Ademais, o “direito” de sanar o vício em até trinta dias, que, vale repetir, não se encontra no Código Civil, reconhecidamente uma lei para iguais, encontra-se em uma lei que se propõe a defender o consumidor perante uma pessoa que se encontra em posição superior. Se se entender de forma diversa da forma requerida não se estará defendendo o consumidor, e sim o fornecedor faltoso. Inadimplemento de obrigações contratuais dos contratos de compra e venda Dispõe o artigo 30, CDC, que “toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”. Segundo o artigo 35, CDC, “se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: I – exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; II – aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; III – rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos”. Conforme se pode concluir da leitura dos dispositivos legais acima transcritos, o consumidor beneficiário de obrigações assumidas pelo fornecedor poderá, caso este não cumpra as obrigações na forma convencionada, exigir o cumprimento forçado, aceitar outra prestação ou desfazer o negócio onde as obrigações foram assumidas. Vê-se, que o mesmo raciocínio apresentado no item anterior pode ser utilizado em relação à assunção de obrigações administrativas (oferta) assumidas pelas revendedoras perante o consumidor. Se determinada revendedora assume perante o consumidor, expressamente no contrato de compra e venda do veículo usado, o compromisso de transferir o veículo para o seu nome, ou de emplacá-lo, por certo as rés não poderiam ser consideradas devedoras solidárias (não “especiais”) destas obrigações. No entanto, mesmo nestes casos, modificado (o que pode ocorrer nas hipóteses em que não é possível realizar a transferência do veículo junto ao órgão de trânsito em razão de vício jurídico e o consumidor opta por outro veículo) (artigo 35, II, CDC) ou desfeito o contrato de compra e venda (artigo 35, III, CDC), em decorrência do descumprimento da oferta (artigo 35, CDC), a opção feita pelo consumidor deverá refletir na mesma medida sobre os de financiamento. “APELAÇÃO CÍVEL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS, CUMULADA COM RESCISÃO DE CONTRATO. AQUISIÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. RECURSOS DO AUTOR E DAS 1ª E 3ª EMPRESAS RÉS. NÃO CONHECIMENTO DO AGRAVO RETIDO. APELO DO AUTOR PARCIALMENTE PROVIDO E DESPROVIDOS OS DAS RÉS. 1 - Não houve o expresso requerimento, nas razões e contra-razões da 3ª ré, de apreciação do Agravo Retido interposto nos autos em apenso aos principais, pelo que do mesmo não se conhece, nos termos do art. 523, § 1°, do CPC. 2 Pedido exordial autoral que se dirige à rescisão do contrato de compra de um veículo novo FIAT Idea ELX Flex, ano 2006/2007, realizado pelo autor junto à ITAVEMA Rio Veículos e Peças Ltda, mediante contrato de financiamento firmado com ABN AMRO Aymoré Financiamentos, cumulada com pedido de indenização por danos materiais e morais. 3 - A 1ª ré, empresa ITAVEMA, descumpriu o compromisso assumido de entregar o veículo na data aprazada ao autor, Oficial da Marinha de Guerra do Brasil em época de transferência para Base em Estado outro da Federação, sabedora que não o poderia cumprir, e que, ademais, procurou entregar, três meses após, um veículo com aparência de usado, quando a compra foi de um automóvel novo (0km). 4 - A 3ª ré, AYMORÉ CRÉDITO, FINANCIAMENTO E INVESTIMENTOS S.A., apesar da não entrega do bem financiado e de insistentes pedidos de anulação da compra e venda e do respectivo financiamento, ameaça o autor de cobrança judicial e de inserção de seu nome nos cadastros restritivos do SERASA, o que somente é impedido pela ação judicial. 5 - Dano moral majorado para R$ 20.000,00 (vinte mil reais), atendendo aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e às finalidades repressiva, preventiva e pedagógica do instituto. 6 - A montadora FIAT AUTOMÓVEIS S.A., 2ª ré, não participou do acordo e do compromisso e não foi responsabilizada por entrega de veículo com defeito ou vício de fabricação, pelo que correta sua exclusão do pólo passivo da relação processual. 7 - Não conhecimento do Agravo Retido, 1º recurso (de Sandro Soares Laudiauzer) parcialmente provido e os demais desprovidos”. (TJ/RJ – APELAÇÃO CÍVEL 0099657-63.2007.8.19.0001 (2008.001.64767) - DES. ROBERTO GUIMARAES - Julgamento: 02/09/2009 - DÉCIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL). (grifos nossos) INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA Dos veículos usados legitimamente não se espera que estejam em condições iguais às de veículos novos. Porém, legitimamente não se espera que os componentes internos destes tipos de veículos não tenham sido revisados antes de colocados no comércio, de forma que os mesmos possam fazer aquilo a que naturalmente se destinam: se movimentar, levar pessoas de um lugar para o outro. Com efeito, o veículo usado, adquirido no comércio, que obriga o adquirente a levá-lo, dentro do prazo de garantia, sucessivas vezes para reparar vícios, ou que está impossibilitado de ser transferido na forma legal para o nome do adquirente, é, conforme o disposto no artigo 18, § 6º, III, CDC, impróprio ao uso. Porém, em se tratado de veículo usado, o seu preço sofre reduções devido à existência de imperfeições. Tratando-se de vícios aparentes o consumidor consegue avaliar o custo benefício sem a necessidade de informações do vendedor, porém, tratando-se de vício oculto, somente a informação de sua existência permite a reflexão do consumidor para avaliar o custo benefício do negócio. “No que toca aos bens usados, sabemos que todas as coisas, em decorrência do tempo e do uso, têm uma deterioração normal, porém isso não exclui a possibilidade de haver imperfeições além das normalmente previsíveis e, por conseqüência, responsabilidade por vício. Romano Martinez, após trazer a divergência doutrinária sobre a questão, esposa o mesmo entendimento aqui defendido, afirmando que: ‘o bem usado pressupõe-se com um desgaste normal em função da utilização (por exemplo, no carro o número de quilômetros percorridos) ou do tempo (p. ex, número de anos a contar da data de fabrico), mas não tem de ser defeituoso. Para além do desgaste normal, a coisa usada pode ter um vício oculto’. Obviamente, não se pode exigir dos bens usados as mesmas características e condições das coisas novas, mas deverão ter as mesmas qualidades de outros bens similares ou as qualidades indicadas pelo alienante. Assim, o fato de a casa vendida ter sido construída há dez anos não desobriga o vendedor da responsabilidade pelo vício se ela contiver, por exemplo, cupim. Só ficariam exclusos da garantia os vícios efetivamente previsíveis em decorrência do uso normal da coisa. (...) ... a 1ª Câm. do 1º TACivSP afirmou haver vício em veículo usado, posto que apresentava problemas no ar condicionado, falhas elétricas e mecânicas, contendo peças não originais (painéis frontal, intermediário e de instrumento, módulo DME, porta retorcida etc.), erros de montagem e com falta de detalhes, desalinhamento no teto, no teto solar, portas e repintura de 100%. Ficou ainda consignado no v. acórdão que era irrelevante o fato de constar do recibo que o adquirente o recebia ‘no estado’. Quanto às vendas de ocasião (‘pontas de estoque’), não se poderá falar em vício se o consumidor teve conhecimento de eventual imperfeição na coisa. Em outras palavras, se o adquirente tomou ciência de que determinado produto estava viciado e mesmo assim comprou, mas descobriu posteriormente à aquisição, outra imperfeição, por esta poderá propor as ações redibitórias, a substituição do bem ou a sanação do vício”. (GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Vícios do produto e do serviço por qualidade, quantidade e insegurança: cumprimento imperfeito do contrato. São Paulo: RT, 2004, pp. 185/187) Poderá ocorrer, em um caso concreto, de se alegar que o consumidor tinha ciência do vício reclamado, de forma a enquadrá-lo em uma situação tal que tornaria a sua reclamação um comportamento contraditório. Em regra o consumidor não possui acesso a meios de prova que lhe permitam provar, com segurança, que não recebera informação sobre a existência do vício reclamado, tendo em vista a sua hipossuficiencia que decorre de sua posição natural num contrato de consumo. Na grande maioria das situações, ao consumidor resta apenas confiar. Não se afigura razoável entender que ele adote sempre cautelas para resguardar eventuais direitos no futuro (como gravar informações prestadas, sempre negociar acompanhado de pessoas cujo testemunho terá valor de prova testemunhal). Por isso, é justo e possível impor às rés o ônus de provar que o consumidor recebeu informações sobre a existência do vício reclamado. Dispõe o artigo 6°, VIII, CDC, que é direito básico do consumidor “a inversão do ônus da prova a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele (consumidor) hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”. A exigência de ser verossímil as alegações do consumidor deve ser interpretada de acordo com a ratio do Código de Defesa do Consumidor, de facilitação da defesa da parte vulnerável da relação, no caso o consumidor (artigo 6°, VIII, primeira parte, CDC). A alegação do consumidor, para que possa ser considerada verossímil, deve parecer verdadeira, não repugnar a verdade, ou seja, o caso narrado pelo consumidor deve ser plausível. O outro requisito exigido pelo dispositivo ora em comento é ser o consumidor hipossuficiente. Hipossuficiência do consumidor, segundo Luiz Paulo da Silva Araújo Filho “deve ser interpretada em sintonia com a sua vulnerabilidade no mercado de consumo, devendo ser reconhecida todas as vezes que, por sua situação de inferioridade em relação ao fornecedor, seja do ponto de vista econômico e cultural, seja sob o aspecto do acesso à informação, do pleno conhecimento sobre os elementos técnicos do produto ou do serviço, ou da carência de estrutura organizacional, a produção da prova se mostre mais fácil ao fornecedor, ou deva ser simplesmente a ele imposta, como natural assunção dos riscos da atividade empresarial”. (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: direito processual. São Paulo: Saraiva, 2002, pág. 15). As reclamações recebidas pela autora (anexo), e os julgados apresentados nesta peça processual, demonstram que a ausência de informações sobre a existência de vícios ocultos nos veículos usados comercializados por revendedoras é uma constante no comércio. Pode-se afirmar, portanto, que, em princípio, a alegação do consumidor no sentido de que não recebeu informações sobre a existência concreta de vícios ocultos é verossímil, cabendo às rés demonstrarem, no caso concreto, ou seja, em ações individuais “ligadas” com a presente ação, o contrário, sob pena de restar caracterizada a ausência de informações sobre a existência de vício oculto no veículo usado. Presentes, pois, os requisitos que ensejam o pedido de inversão ope judicis do ônus da prova (art. 6º, VIII, do CDC), para que as rés provem que o vício (ou vícios) reclamado manifestado em veículo usado, que serviu de fundamento ao exercício de um dos direitos previstos no artigo 18, § 1º, CDC, foi (ou foram) informado previamente ao consumidor, sob pena de se considerar não informado (ou informados). DA ABUSIVIDADE DA COBRANÇA DA REMUNERAÇÃO DO FINANCIAMENTO ENQUANTO NÃO SANADOS VÍCIOS (JURÍDICOS OU DE ADEQUAÇÃO EM SENTIDO ESTRITO) OU CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES ASSUMIDAS PELAS REVENDEDORAS O atual estágio do mercado de revenda de veículos usados permite afirmar que quando vício de inadequação – jurídico ou de inadequação em sentido estrito – é descoberto pelo consumidor dentro do prazo de garantia e reclamado tempestivamente há grandes chances de não haver solução favorável ou consumidor. O mesmo pode ser dito em relação ao cumprimento, na forma convencionada, de obrigações assumidas pelas revendedoras. Isto se deve, talvez, em razão da falta de “estímulo” das revendedoras. A expansão do fornecimento de crédito aos consumidores no mercado de revendas de veículos usados tornou o lucro das revendedoras mais fácil, mas, por outro lado, tornou-as mais negligentes em relação ao cumprimento de obrigações legais e contratuais. É necessário, pois, criar estímulos para que as revendedoras atuem de forma honesta. As poucas ações individuais, aliadas à impossibilidade e, talvez, à ineficácia prática de se ajuizar ações coletivas contra todas as revendedoras, reclama a adoção de medidas contra os agentes que fomentam o mercado de revenda de veículos usados, desde que juridicamente possível. Partindo do raciocínio de que existe estreita ligação entre contratos de compra e venda de veículos usados e contratos de financiamento do preço daqueles, por ser estes a causa daqueles, é possível, pois, juridicamente falando, adotar medidas eficazes contra as rés. Estando o veículo com seu uso suspenso, em razão de vícios (jurídicos ou de adequação em sentido estrito) manifestados dentro do prazo de garantia e reclamados tempestivamente, ou descumprimento de obrigações contratuais que importam para o uso útil do bem, desde que o consumidor tenha optado pelo cumprimento da obrigação (e não pelo desfazimento do negócio), é razoável e em conformidade com os princípios da função social dos contratos e da boa-fé objetiva, especialmente com sua função de criação de deveres de proteção, que a remuneração do capital disponibilizado para pagar o preço da compra e venda fique igualmente suspenso, aguardando a solução relativa ao contrato de compra e venda, que pode, facilmente, residir no desfazimento do negócio (o atual estágio da atividade de revenda de veículos usados prova isso). Uma vez solucionado o problema, no sentido de não desfazimento do contrato de compra e venda, a remuneração do capital disponibilizado suspensa deverá ter seu vencimento prorrogado para depois do vencimento da última remuneração, sem qualquer tipo de acréscimo para o consumidor. Por óbvio, deve o consumidor informar à financeira contratada sobre a situação do contrato de compra e venda para fazer jus à suspensão da remuneração do capital disponibilizado. A medida requerida possui fundamento jurídico e tem o condão de, a um só tempo, estimular o bom cumprimento dos contratos de compra e venda de veículos usados e não onerar o consumidor desnecessariamente. Ressalte-se que o deferimento do requerido não importará em danos irreversíveis para as rés, tendo em vista a possibilidade de retomada das cobranças em havendo a solução favorável ao consumidor e/ou ação regressiva contra o revendedor responsável. DA ANTECIPAÇÃO DA TUTELA Conforme demonstrado, no mercado de revenda de automóveis usados com financiamentos é comum encontrar situações em que o consumidor fica de posse de um automóvel impróprio ao fim a que naturalmente se destina e com a obrigação de continuar pagando as parcelas do financiamento, mesmo quando se encontra na situação prevista no artigo 18, § 1º, ou § 3º, do CDC. Portanto, antecipar os efeitos da tutela no sentido de suspender a cobrança das parcelas do financiamento enquanto os vícios manifestados no veículo financiado não forem satisfatoriamente sanados, desde que manifestados dentro do prazo de garantia, reclamados tempestivamente e informado à ré fornecedora do crédito, é medida possível (juridicamente falando) que se faz urgente. Vedar a cobrança das parcelas do financiamento enquanto não cumpridas obrigações contratuais assumidas pelas revendedoras em contratos de compra e venda de veículos usados ligados àquele é medida que também se faz urgente, desde que as obrigações tenham sido inadimplidas, ou seja, não tenham sido adimplidas na maneira convencionada, e desde que o consumidor tenha optado pelo cumprimento e não pelo desfazimento do contrato. Dispõe o parágrafo 3º do artigo 84 do CDC, repetido no artigo 461 do CPC, que, “sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu”. O dispositivo supramencionado cuida da concessão de tutela liminar para garantir a total satisfação do direito do consumidor nos casos em que a espera pelo provimento final da demanda interfere de forma negativa. Trata-se, portanto, de verdadeira antecipação de tutela, logo deve o dispositivo ora em comento ser interpretado em harmonia com o artigo 273 do Código de Processo Civil, que trata do assunto de forma geral. O artigo 273 do CPC exige, para que seja concedida a antecipação parcial ou total da tutela pretendida, que exista prova inequívoca que convença o juiz sobre a verossimilhança das alegações do autor, e que “haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação”. A antecipação da tutela não será concedida caso exista “perigo” de irreversibilidade do provimento antecipado. Doutrina e jurisprudência já se manifestaram acerca da contradição existente nas expressões “prova inequívoca” e “que convença da verossimilhança da alegação”, contidas no artigo 273 do CPC, concluindo que, havendo uma prova inequívoca haverá certeza, e não simples verossimilhança, cujo real significado é parecer ser verdadeiro o alegado, logo a melhor interpretação que deve ser dada ao dispositivo legal ora em comento é a de haver probabilidade da existência do direito alegado para que possa ser concedida a antecipação da tutela. “O artigo 273 condiciona a antecipação da tutela à existência de prova inequívoca suficiente para que o juiz se convença da verossimilhança da alegação. A dar peso ao sentido literal do texto, seria difícil interpretá-lo satisfatoriamente porque prova inequívoca é prova tão robusta que não permite equívocos ou dúvidas, infundindo no espírito do juiz o sentimento de certeza e não mera verossimilhança. Convencer-se da verossimilhança, ao contrário, não poderia significar mais do que imbuir-se do sentimento de que a realidade fática pode ser como a descreve o autor. Aproximadas as duas locuções formalmente contraditórias contidas no artigo 273 do Código de Processo Civil (prova inequívoca e convencerse da verossimilhança), chega-se ao conceito de probabilidade, portador de maior segurança do que a mera verossimilhança”. (DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil, 2ª edição, São Paulo 1995, ed. Malheiros, p.143) RESPONSABILIDADE CIVIL DO FABRICANTE. ANTICONCEPCIONAL INERTE. DEFEITO DO PRODUTO RECONHECIDO. INGESTÃO PELA AUTORA NÃO PROVADA. IMPOSIÇÃO DO PAGAMENTO DE DESPESAS DO PARTO EM ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. A prova inequívoca, para efeito de antecipação da tutela, quando se trata de relação de consumo, é de ser interpretada sem rigorismo, pois, nessa matéria, mesmo em sede de cognição plena, dispensa-se juízo de certeza, bastante a probabilidade extraída de provas artificiais da razão. DECISÃO MANTIDA (TJRS, AI 599374303, 9ª Câm.Cív., Rel. Desa. Mara Larsen Chechi, j. 25-8-1999). Portanto, para que a antecipação de tutela possa ser concedida é necessário que: haja prova (ou mesmo indícios) demonstrando que há probabilidade de a alegação do autor da demanda é verdadeira, e o fundado receio de que possa ocorrer dano irreparável ou de difícil reparação. A medida não poderá, contudo, ser concedida quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. Considerando a solidariedade “especial” existente entre as revendedoras de veículos usados e as rés, em razão da coligação entre contrato de compra e venda de veículo usado e de financiamento intermediado pelo vendedor por qualquer forma, ou de relação de acessoriedade se preferir, uma vez cientificadas da reclamação do consumidor adquirente de veículo usado com financiamento sobre a existência de vício jurídico que impeça a transferência de propriedade do veículo para o consumidor ou o registro do contrato de financiamento junto ao órgão executivo de trânsito, da reclamação tempestiva de vício oculto coberto pela garantia contratual e/ou legal manifestado dentro do prazo de garantia ou do incumprimento de obrigações contratuais por parte da revendedora, as rés devem ser obrigadas a suspender as cobranças das parcelas do financiamento até que o vício seja solucionado ou a obrigação contratual inadimplida seja cumprida. Uma vez solucionado o vício as parcelas eventualmente vencidas no prazo de suspensão deverão ser cobradas ao final, sem qualquer acréscimo para o consumidor, tendo em vista a ausência de culpa deste pelo vício. Tal medida se mostra necessária, urgente, possível e justa, tendo em vista que trará maior segurança para os consumidores nos contratos de compra e venda de veículos usados oferecidos por revendedoras com preço financiado; evitará a propagação de mais situações danosas e irremediáveis (cujo número vem crescendo de forma assustadora, conforme comprovam as reclamações em anexo), ou de dificílima solução; está associada com a tese, aceita pela jurisprudência, de que nos contratos de compra e venda de veículos usados com preço financiado o financiamento é causa do contrato de compra e venda; e impedirá que o vulnerável sofra prejuízos injustos em favor de pessoas que atuam no mercado sem observar o princípio da boa-fé objetiva. Vale lembrar que em muitas situações atendidas pela autora, os adquirentes de veículos financiados não obtiveram respostas positivas de suas reclamações, por isso foram obrigados a ingressar em juízo com ações de obrigação de fazer e de resolução contratual, passando anos pagando por um veículo que sequer podiam colocar em uso. Para tal situação, ver reclamação 63630/2008 (anexo) que culminou no processo nº: 2009.001.089995-5, até a atualidade aguardando execução de sentença. A medida, caso deferida, não será capaz de causar danos irreversíveis às rés, pelo menos não injustos (a defesa do consumidor, vale lembrar, é limite ao exercício da livre iniciativa e dever do estado – artigos 5º, XXXII, e 170, V, CF), tendo em vista que não importará em isentar o consumidor de cumprir as obrigações assumidas no contrato de financiamento e nem prejudicará o eventual direito de regresso contra a revendedora responsável pela venda do produto detentor de vício. Ademais, o acolhimento da noção de dano injusto é de extrema importância para a questão, tendo em vista que, se assim não fosse, a gama de situações que reclamam antecipação dos efeitos da tutela seria radicalmente comprometida, pois é normal que medidas tais causem danos na parte “prejudicada” pela medida. “Essa noção normativa justifica a adjetivação do dano juridicamente tutelado como dano injusto, o que, no dizer de Alpa et alii, não é uma qualificação que possa ser tida como descontada de inútil e repetitiva do caráter já de per si ilícito do ato que o gera. Pelo contrário, é uma expressão que sublinha a extrema relevância que tem, para o Direito civil, a situação subjetiva prejudicada”. (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil, volume V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. FIGUEREDO TEIXEIRA, Sálvio – coord. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 170) Inegável a presença dos pressupostos necessários, fumus boni iuris, periculum in mora e relevância do direito para a concessão da medida antecipatória. Para que a medida possa surtir os efeitos desejados, como se espera, e assim evitar, de fato, danos aos consumidores, necessário se faz a fixação de multa para o caso de descumprimento da ordem judicial, conforme previsto nos artigos 461, § 1º, do CPC, e 84, § 4º, do CDC. DOS PEDIDOS Por todo o exposto, requer: 1) A citação das rés, via mandado próprio, para, querendo, contestarem a presente; 2) seja reconhecido que os contratos de financiamento fornecidos pelas rés para pagamento do preço de contratos de compra e venda de veículos usados, quando intermediados pelas revendedoras ou celebrados nas dependências destas, devem seguir a mesma sorte da dos contratos de compra e venda, na mesma medida, quando, em razão de vícios (jurídicos ou de adequação em sentido estrito) manifestados dentro do prazo de garantia, reclamados tempestivamente e não solucionados conforme o artigo 18, CDC, forem modificados ou desfeitos; 3) seja reconhecido que, para fins de desfazimento ou modificação do contrato de compra e venda por parte do consumidor, e conseqüentemente do de financiamento de seu preço, o “direito” de permanecer com o produto para sanar vício em automóvel usado - jurídico ou de adequação em sentido estrito – em até 30 dias, previsto no artigo 18, CDC, só pode ser exercido uma única vez; 4) sejam as rés condenadas a aceitarem o desfazimento do contrato de financiamento sem ônus para o consumidor, ressarcindo a ele todos os valores pagos a qualquer título (parcelas, taxas, etc.), desde que assim tenha ele se manifestado, na hipótese de desfazimento do contrato de compra e venda de veículo usado em razão de descumprimento, por parte da revendedora, de qualquer oferta ou serviço agregado à compra e venda do veículo usado, como transferência de propriedade, emplacamento, auxílio de despachante; 5) sejam as rés, nos casos de injustificada recusa da revendedora, incluindo as hipóteses de esta ter encerrado suas atividades ou ter exigido a realização de reparo no veículo mesmo depois de o mesmo já ter sido submetido a reparo anteriormente, obrigadas a aceitarem o desfazimento do contrato de financiamento, recebendo o veículo detentor do vício e devolvendo todos os valores pagos, tanto os inerentes ao contrato de financiamento quanto os inerentes ao contrato de compra e venda, quando o consumidor se enquadrar nas hipóteses previstas nos artigos 18, §§ 1º, II, 3º, 35, III, ambos do CDC; 6) seja reconhecida a solidariedade passiva entre as rés e as revendedoras de automóveis pelos danos decorrentes de vícios jurídicos, sempre que a titularidade dos veículos financiados não possa ser transferida para os consumidores adquirentes e/ou o contrato de financiamento não possa ser registrado junto ao órgão executivo de trânsito; 7) a inversão ope judicis do ônus da prova (art. 6º, VIII, do CDC), para que as rés provem que o vício (ou vícios) reclamado manifestado em veículo usado, que serviu de fundamento ao exercício de um dos direitos previstos no artigo 18, § 1º, CDC, foi (ou foram) informado previamente ao consumidor, sob pena de se considerar não informado (ou informados); 8) seja vedado às rés a cobrança da remuneração do capital disponibilizado para pagar o preço do contrato de compra e venda de veículo usado quando este estiver com seu uso suspenso, em razão de vícios (jurídicos ou de adequação em sentido estrito) manifestados dentro do prazo de garantia e reclamados tempestivamente junto ao vendedor, desde que informado pelo consumidor, ou do descumprimento de obrigações contratuais previstas no contrato de compra e venda que importam para o uso útil do bem, desde que o consumidor tenha optado pelo cumprimento da obrigação (e não pelo desfazimento do negócio) e informado previamente, até que haja a solução do problema que não seja o desfazimento do contrato de compra e venda, somente podendo ser exigida a remuneração suspensa depois do vencimento da última remuneração, sem qualquer acréscimo para o consumidor; 10) a antecipação de tutela em relação ao pedido anterior, e, em caso positivo, a fixação de multa para o caso de descumprimento da medida; 11) a intimação do Ministério Público; 12) a condenação das rés ao pagamento dos ônus sucumbenciais. Protesta por todos os meios de prova admitidos. Dá-se à causa o valor de R$ 30.700,00 (trinta mil e setecentos reais). Rio de Janeiro, 16 de novembro de 2010. ANDRÉ LUIZ DE SOUZA CRUZ OAB/RJ 150.514 PAULO GIRÃO BARROSO OAB/RJ N. 107.255 ADRIANA MONTANO LACAZ OAB/RJ 78.46O