FELICIDADE CLANDESTINA CLARICE LISPECTOR Professora Margarete Vida e obra Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 1925 e morreu no Rio de Janeiro ao 52 anos de idade. Veio para o Brasil com dois meses de idade. Seus pais eram imigrantes russos. Até doze anos viveu em Recife onde estudou até o início do curso secundário quando veio para o Rio de Janeiro. Enquanto cursava a Faculdade Nacional de Direito, escrevia, hábito que adquirira desde os seus 16 anos. Seu primeiro livro “Perto do Coração Selvagem” publicado no ano em que se formou em Direito, tinha 19 anos e trabalhava na mesma época como redatora da Agência Nacional. Casa-se com um diplomata e acompanha o marido à Europa onde vive por cinco anos. De 1952 a 1960, viveu nos Estados Unidos e dessa data em diante residia no Rio de Janeiro onde faleceu prematuramente em 1977. “Somos criaturas que precisam mergulhar na profundidade para lá respirar, como o peixe mergulha na água para respirar, só que minhas profundidades são no ar da noite. A noite é nosso estado latente. E é tão úmida que nascem plantas.” “Em casas as luzes se apagam para que se ouçam mais nítidos os grilos, e para que os gafanhotos andem sobre as folhas quase sem as tocarem, as folhas, as folhas, as folhas, _ na noite a ansiedade suave se transmite este através do oco do ar, o vazio é um meio de transporte.” características Clarice Lispector é o principal nome da literatura Modernista de 1945, juntamente com Guimarães Rosa. Seu estilo intimista, introspectivo, vasculha e pesquisa o ser humano buscando entender o que significa “estar no mundo”, o que se passa no íntimo das pessoas e, principalmente no íntimo da mulher. Ela mesma afirma: “não tem pessoas que cosem para fora? Eu coso para dentro.” Nesse mergulho e nessa busca do ser em oposição ao não-ser, Clarice utiliza o fluxo da consciência, expressão não linear e às vezes ilógica do monólogo interior. Seu mundo é abstrato e nebuloso como a mente humana que ainda procura um significado para a existência. Seus romances são, portanto, predominantemente de ação interna, onde o mundo da realidade concreta é apenas entrevisto em lampejos e frestas. Para Clarice Lispector o que interessa não é o fato em si, mas a repercussão do fato no indivíduo. A linearidade narrativa, ou seja, a seqüência lógica de começo, meio e fim perde também sua importância, pois ao desenrolar-se das emoções e reações das personagens pouco importam as origens ou as conclusões. Resumo dos contos FELICIDADE CLANDESTINA: a narradora descreve a filha de um livreiro. Trata-se de uma menina gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados, com talento para a crueldade. Apesar de ter muitos livros, não lê. A narradora, entretanto, adora ler. A menina sardenta então diz que emprestaria o livro As Reinações de Narizinho, se a narradora fosse buscá-lo na casa. A narradora vai. Mas a dona do livro diz que o emprestou a outra menina. A partir daí, diariamente a narradora vai à casa da menina, na esperança de conseguir o livro que tanto quer ler, mas sempre há uma desculpa. Um dia, a mãe da menina de cabelos ruivos percebe a contínua presença da outra menina e vai à frente da casa. Lá descobre a filha que tem: egoísta e cruel, pois o livro nunca saíra de casa. A narradora o recebe e o usufrui aos poucos, como quem não quer gastar a felicidade. Sua relação com o livro mais parece a de uma mulher com seu amante. Miopia Progressiva O narrador conta sobre um menino que usava óculos e sobre sua relação com os familiares, que agiam segundo suas falas mais ou menos originais. Iria passar uma semana na casa de uma prima que não tinha filhos. Passou os dias preparando-se, criando expectativas, imaginando o “dia inteiro” que passaria com ela e o amor inteiro que receberia. Surpreendeu-se, porém, de início: ela tinha um dente de ouro e o deixou à vontade para brincar. A forma de amá-lo era deixá-lo viver e ele sentiu-se amado, e “foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo ou a miopia mesmo é que o fizesse enxergar.” Uma amizade sincera O narrador conta a história de sua amizade com um moço do Piauí. Diz do início entusiástico, das longas conversas, da necessidade de contato, que aos poucos se foi esvaindo, pela falta do que dizer. A família do narrador mudou-se, então ele e o amigo foram morar juntos na casa vaga, mas apesar de unidos, sentiam-se sós. Eram sinceros um com o outro sempre. O amigo teve problemas com a Prefeitura; juntos lutaram pela solução. Venceram, mas estavam desiludidos. Não percebiam que estar era também dar. Então o amigo voltou do Piauí e o narrador tirou férias. Restos de carnaval A narradora lembra a expectativa do carnaval, quando tinha oito anos, mesmo dele quase não participando: ficava ao pé da porta com um lançaperfume e um saco de confete. Não a fantasiavam. Mas houve um carnaval diferente: sobrou papel crepom cor-de-rosa da fantasia da filha da vizinha, que resolveu premiar a menina com as sobras de uma fantasia de rosa. Os preparativos a deixaram tonta de felicidade. No dia do carnaval, cabelos enrolados, fantasia no corpo... Só faltava pintar os lábios e o rosto, a mãe adoeceu. Destino impiedoso! Ela teve que correr à farmácia buscar remédio. Correu entre serpentinas e gritos de carnaval. Horas depois, a casa calma, a irmã a pintou, mas o encanto havia fugido. Pôs-se à porta, mas não se animava. Até que um menino de uns 12 anos lhe sorriu e jogou confete sobre sua cabeça. Sentiu-se reconhecida. Enfim uma “rosa”. O grande passeio Conta a história de uma velha: Mocinha (Margarida), que vivia de esmolas no Rio de Janeiro, mas era natural do Maranhão. Uma senhora a trouxera para ficar num asilo, mas a abandonou. Dormia agora num quartinho de fundos de uma casa grande. A família que a acolheu pouco a percebia, mas depois de um tempo resolveram livrar-se dela e a levaram a Petrópolis, onde morava um dos irmãos. Não tiveram coragem de levá-la à casa do irmão, indicaram o caminho. O irmão não a quis. (No decorrer desses episódios, sabe-se que a Mocinha passeia por Petrópolis, bebe água na fonte, escorase numa árvore e morre. Perdoando Deus A narradora ia feliz. Sentia-se acariciar Deus. Ia plena e maternal. Então quase pisou num rato morto e tudo se transformou: apavorou-se, correu. Depois refletiu, quis ser lógica, entender o porquê do contraste. Decepcionava-se com Deus que estragara seu momento sublime com aquela imagem nojenta. Depois refletindo-se sobre si e sua vida, seus “talvez” e suas certezas, percebe que inventou “Deus” como ser contrário a ela. Então percebe que se ela não quiser a si mesma, a vida não fará sentido e enquanto “eu inventar Deus, Ele não existe.” Come, meu filho Relata a conversa de uma criança, Paulinho, com o pai ou mãe, na hora da refeição. Paulinho relata suas experiências, sua forma de ver o mundo, é prolixo. O adulto é sucinto e objetivo e quer que o filho coma e não fale. tentação É uma cena lírica. A menina ruiva com soluço sentada nos degraus de sua casa em frente à rua. Ninguém passava. Sol. A menina segurava uma bolsa velha com a alça partida. Então se aproximou sua outra metade: da esquina vinha um cão “basset” ruivo, acompanhando uma senhora. O cão estanca. Ambos se olham, se querem, se perdem, se identificam como se cada um fosse a metade de um inteiro. Entregues ao fascínio do reconhecimento. “Mas ambos eram comprometidos: ela com sua infância impossível, ele, com sua natureza aprisionada.” o “basset” ruivo finalmente saiu sonâmbulo, sem voltar-se para a menina vermelha, que o acompanhou com os olhos até dobrar a esquina. O ovo e a galinha O ovo, tema do conto, parece também um subterfúgio. Às vezes parece ser a representação da vida, outras da liberdade, ou a verdade, ou a opressão, ou algo para desviar a atenção da essência, ou a própria essência. Após muitas considerações, algumas lógicas outras alucinantes e subjetivas, sobre o ovo, a narradora passa a dizer de um “eles” indeterminado, que manipula, que permite, que sugere, que instrui, que obriga, mas que não consegue eliminar totalmente a vontade e a consciência. A palavra, no conto, funciona como disfarce da realidade. Muitas e convertidas palavras geram contradições que escondem a verdade. Cem anos de Perdão A narradora conta que quando menina, ficara fascinada por rosas e como começou a roubá-las em jardins. Diz também que roubava pitangas e comia, pois elas mesmas, maduras, pedem para serem colhidas, “em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.” A Legião Estrangeira A narradora, mãe de quatro filhos, conta que receberam de presente, em véspera de Natal, um pinto. Isso trouxe a sua memória um fato antigo: a relação com Ofélia e seus pais, vizinhos de apartamento. A família de Ofélia mostrava-se superior, mas um dia a menina Ofélia começou a freqüentar a casa da narradora, que não atinava com o motivo, principalmente porque a menina, empertigada, censurava as ações da narradora. Um dia, perto da Páscoa, a narradora comprou um pintinho para os filhos. Quando Ofélia soube da presença do pinto, incentivada pela narradora, assumiu (transformou-se) a criança que sufocava em si. Brincou com o bichinho e se fez silêncio no local. A narradora pôde trabalhar sossegada. Ofélia finalmente foi embora. A narradora, então inquieta, constatou que o pinto ficava morto no chão da cozinha. Os Obedientes Trata-se de um relato singular, que recria a rotina desmotivadora de um casal, que vai vivendo por viver, sem ter consciência nem de sua realidade medíocre, nem da realidade que os cerca. São pessoas anônimas, iguais a outras pessoas, que se submetiam ao irremediável da vida. Raramente percebiam algo diferente. A mulher, mais solitária e próxima do sonho, chegou a cogitar ter outro homem. O homem imaginou que a vida poderia ser os prazeres de muitas aventuras amorosas. Ela, porém, sob fantasia contínua, sentiu a vida mais alargada e complexa. Um dia, ela se viu no espelho, com cinqüenta e tantos anos, um dente quebrado e jogou-se pela janela do apartamento. Ele andava perplexo, como quem vai cair de bruços mais adiante. A Repartição dos Pães Era sábado, os convidados para o almoço não estavam à vontade. Cada um pensando no tempo perdido daquele encontro não desejado. A dona da casa, porém, recebeu a todos com prazer. Quando, finalmente, foram levados à sala de jantar, todos ficaram deslumbrados com a fartura e beleza da refeição preparada. Era algo que fascinava. Era a oferta do melhor a quem ali estivesse, não importava quem. E todos comiam fartamente, sem culpa e sem gula, com o prazer do sabor do alimento, cativados pela cordialidade honesta daquela ceia. Todos como um, repartindo o gozo e o pão. Uma Esperança O conto relata uma cena em família, quando um inseto “esperança” pousa na parede, os filhos vêem e exclamam. Descreve-se, então, a fragilidade do inseto, sua sutileza, lerdeza, incompetência... Como se falassem da outra esperança. Impedem que uma aranha coma o inseto e tudo termina com a reflexão da mãe, a narradora, que sentiu uma vez uma esperança pousando em seu braço e não soube o que fazer. Era como se uma flor nascera em sua pele, mas depois não lembra o que aconteceu. Macacos A narradora conta como, perto do Ano-Novo, um mico entrou em casa e lá permaneceu por uns dias, com sua vivacidade e reboliços, até que meninos do morro a livraram do suplício. Um ano depois, comprou na rua a Lisette, uma macaquinha, pensando nos filhos. Lisette era calma até demais. Aí a mãe estranhou e descobriu que a calma era doença. No veterinário, com oxigênio e soro melhorou um pouco. Ficou com o veterinário para curá-la, mas morreu no dia seguinte para dó das crianças. Os Desastres de Sofia Sofia conta como, com nove anos, tornara-se o suplício do professor. Ela o irritava, provocava-o, mas queria o seu bem, embora se sentisse odiada por ele. Ela não suportava vê-lo contendo-se para não expulsá-la da classe. Não gostava de estudar, as alegrias dos dias a ocupavam. Um dia tiveram que fazer uma composição a partir de um relato do professor. Ela foi a primeira a terminar. Queria exibir-se, mas tirou de dentro de si um final avesso à história ouvida. Durante o recreio voltou à sala para pegar algo e viu-se só ante ao professor. Agora, sem a turma, sentia-se intimidada, ainda mais quando o professor a interpelou sobre o final do seu texto cujo conteúdo mencionava um tesouro inesperado. Ela pensou que conseguiria enganar o professor, pois inventava aquilo, e o mestre a olhava com um sorriso, dizendo-lhe que ela era uma menina engraçada. Finalmente ela conseguiu livrar-se da situação e saiu correndo pelo pátio até cansar, a cabeça não entendendo bem o que se passara. Por fim, compreendeu. Apesar de tudo o que fizera ao professor, ele percebeu a individualidade dela e reconheceu nela sua qualidade. Quando ela se deu conta disso, sentiu-se pela primeira vez, amada. A criada Descrição poética de Eremita, a criada que fazia os serviços domésticos como alguém talhado exatamente para aquilo. Parecia viver num mundo profundo e misterioso, mas sem a verdadeira consciência da profundidade da floresta em que mergulhava. É verdade que comia o pão de modo furtivo e que levava pequenas coisas da despensa, mas isso não chegava a perturbar. A Mensagem São quinze páginas em que Clarice privilegia a epifania (revelação). O conto relata o relacionamento de um rapaz (dezesseis anos) e uma garota (dezessete). Estudam na mesma escola. Eles têm em comum a “angústia” e querem ser diferentes dos outros. No começo há o encanto de se sentirem únicos, nem se percebem masculino e feminino. Depois, viram rotina seus encontros e fazem esforço para estarem juntos. Após a última aula do último dia letivo, caminham juntos. Terão que se separar, mas têm medo do mundo, sua relação era uma espécie de proteção. Mas, prensados na estreita calçada, entre um ônibus e uma casa velha “angustiada”, libertam-se um do outro. Estão prontos para andar sozinhos. Despedem-se com um aperto de mãos. Ela se afasta fêmea, ele a vê distanciar-se seguro. Mas quando ela corre para pegar o ônibus, de repente, ele sente algo novo: sente falta da mulher. Em torno, tudo é seco e ele está só e sem defesa, e diz: “mamãe.” Epifania: primeiro a descoberta do outro, que lhe parece um igual; depois a percepção de si mesmo, e novamente a solidão. Menino a Bico de Pena O narrador busca a visão da criança (do bebê) reconhecendo o mundo e o mostra desse ângulo inusitado. As experiências do bebê, a baba, o sono, a mãe, o aconchego, a solidão, a percepção das coisas, a segurança da mãe, a fralda seca... É um conto sobre o qual é melhor não dizer, mas ler. Uma História de Tanto Amor Relata a relação de afeto que uma menina dedicava a duas galinhas: Petrina e Petronilha. Cuidava delas com muito carinho. Um dia em que estava em casa de parentes, comeram Petronilha. Quando voltou e soube, odiou quem participou da comilança, especialmente o pai. A mãe, porém, lhe disse que quando se comem os bichos, eles se incorporam a nós e ficam mais parecidos com a gente. A menina teve outra galinha, já que Petrina também morreu. O novo amor, Eponina, já foi um amor mais realista. A menina já sabia o fim das galinhas. Assim, quando mataram Eponina, comeu-a mais que os outros, por amor à galinha. Era uma menina feita para o amor. Então cresceu e aí havia os homens. As águas do mundo Relata o banho matinal de uma mulher no mar. Este a mais ininteligível das existências não humanas; aquela, o mais ininteligível de todos os seres vivos. O conto mostra a integração de um no outro: ela dentro do mar, ele dentro dela aos goles. A Quinta História De como se vai do simples para o complexo. Ou de como matar baratas pode significar mais que apenas matá-las. São cinco versões para o mesmo fato: matar baratas. Na primeira, apenas as mata com uma mistura de açúcar, farinha e gesso. A segunda versão torna-se assassinato, pois entra o desejo, o rancor, o método para matá-las. A terceira história se detém mais no efeito: as baratas mortas, enrijecidas como estátuas em Pompéia. A quarta narrativa imagina a possibilidade de refazer esse ritual todas as noites, então opta por uma dedetização em vez de tornarse prisioneira do vício. A quinta versão é só sugerida pelo título: “ Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia.” Encarnação Involuntária Pela observação, a narradora encarna na pessoa observada, aí compreende-lhe os motivos e a perdoa. Foi assim que no avião encarnou na missionária e lhe percebeu a auto-anulação. Vê-se o contraste e o embate das duas personalidades: o recato de uma, o desejo da outra. A narradora chega a ver-se, desde que nasceu, como encarnações de outros, mas às vezes sente-se tomada pelo próprio fantasma e isso é um festa para ela. Uma vez, também em viagem, encontrou uma prostituta perfumadíssima que hipnotizava um homem. Tentou imitá-la ante o homem ao alcance de sua visão. Mas o homem lia o New York Times e o perfume dela é discreto. Não deu certo. Duas Histórias a Meu Modo O narrador diz ter feito um “exercício de escrever” e tomou como base uma história de Marcel Aymé. Félicien, dono de vinhedos, não gostava de vinho. Aliás, seus vinhedos eram os melhores da região. Félicien não podia demonstrar o que sentia sobre o vinho, e, auxiliado pela mulher, fingia. Então Aymé pára essa história e em Paris conta sobre Etienne Duvilé, funcionário público, pobre, que gosta de mesa farta e vinho, e não os tem. Tinha uma sede tamanha que quase mata o sogro parasita. Duvilé enlouquece e no sanatório só bebe água. Enquanto isso, Félicien pegou gosto pelo vinho. O Primeiro Beijo Iniciava-se o namoro e com ele o ciúme. Ela quis saber se ele havia beijado uma mulher antes dela. Ele diz que sim. Ela quer saber quem. Ele tenta contar. Ele, garoto, ia numa excursão, com ônibus, serra acima. Gritos, farra, risos, falas... Garganta seca e nem sombra de água. O jeito era juntar saliva e engolir. Não tirava a sede. Sol do meio-dia, sem brisa. A sede enorme. Finalmente o ônibus parou num chafariz de pedra. Conseguiu correr e ser o primeiro. Olhos fechados, entreabriu os lábios e colou-os ao orifício donde vertia água. Que delícia! Era a vida voltando. Já podia abrir os olhos. Aí, viu junto da cara dois olhos de estátua de mulher. Era da boca da mulher que jorrava a água. Confuso na sua inocência, olhou a estátua nua. Ele a havia beijado. Ficou vermelho, perturbado no meio dos outros, sentindo o mundo se transformar, e algo novo acontecendo: teve sua primeira ereção e de repente se encheu de orgulho, pois se tornara homem. Clarice Lispector pertence a geração Modernista de 1945. De 1945 aos nossos dias tem-se a Literatura Contemporânea. A geração de 45 caracteriza-se essencialmente pela pesquisa em torno da linguagem. Durante o período de 1930 a 1945, tanto a literatura quanto as artes plásticas no Brasil foram essencialmente ideológicas, voltadas para a discussão dos problemas brasileiros. Em 1945 terminou a Segunda Guerra Mundial e, no Brasil, a ditadura de Vargas. O mundo passou a viver a Guerra Fria, e o Brasil, um período democrático e de acelerado desenvolvimento, que chegaria à euforia no governo de Jucelino Kubitschek (1956 – 1961) Menos exigidos social e politicamente, os artistas empreendiam uma pesquisa estética em busca de novas formas de expressão. Na literatura, ao lado de obras que mantinham certa preocupação social e davam continuidade até ao regionalismo, começaram a se destacar produções literárias em que a grande novidade era a pesquisa em torno da própria linguagem literária. A poesia de 45 trouxe ao cenário das discussões literárias a seguinte proposição: a poesia é a arte da palavra. Esse princípio implicava a alteração de pontos de vista da poesia de 30, que já tinha sido social, política, religiosa, filosófica... Na prosa retoma e aprofunda a sondagem psicológica que já vinha sendo desenvolvida, especialmente por autores como Mário de Andrade e Graciliano Ramos. É o que se verifica, por exemplo, nos contos e romances de CLARICE LISPECTOR E LYGIA FAGUNDES TELLES. Clarice Lispector Introduzia em nossa literatura novas técnicas de expressão, que obrigavam a uma visão de critérios avaliativos. Sua narrativa subverte com freqüência a estrutura dos tradicionais gêneros narrativos (o conto, a novela, o romance), quebra a seqüência “começo, meio e fim”, assim como a ordem cronológica, e funde a prosa à poesia ao fazer uso constante de imagens, metáforas, antítese, símbolos, sonoridade etc. Fluxo da consciência epifania Aspecto inovador da prosa de Clarice é o fluxo de consciência, uma experiência mais radical do que a introspecção psicológica, já praticada por vários escritores desde o Realismo no século XIX. Muitas vezes, além do fluxo de consciência, as personagens de Clarice vivem também um processo epifânico. ( o termo epifania tem sentido religioso, significando “revelação”.) esse processo pode ser irrompido a partir de fatos banais do cotidiano: um encontro, um beijo, um olhar, um susto. A personagem, mergulhada num fluxo de consciência, passa a ver o mundo e a si mesma de outro modo. É como se tivesse tido, de fato, uma revelação e, a partir dela, passasse a ter uma visão mais aprofundada da vida, das pessoas, das relações humanas etc. Esses momentos epifânicos são dilacerantes e dão origem a rupturas de valores, questionamentos filosóficos e existenciais, permitindo a aproximação de realidades opostas, tais como nascimento e morte, bem e mal, amor e ódio, matar ou morrer por amor, seduzir e ser seduzido etc.