Issn 0102-0382 • ano 119 • Nº 357 • jan/fev/mar • 2011 rio de , janeiro cidade hosa l i v a r ma s o n a 6 há 44 Revista do Clube Naval • 357 1 Nesta edição: TI - Tecnologia da informação • Pág 38 • Um ensaio sobre a participação dos Oficiais da Marinha no desenvolvimento técnico da informática em todo o Brasil • Antônio Tângari Filho 4 editorial 6 EM PAUTA • Notas sobre acontecimentos no CN. 8 charitas bastidores do 44º mundial de optmist • Renato Botelho e Susan Collingwood. 12 atualidade as “mídias sociais e a democarcia”: da grécia antiga ao moderno mundo árabe • Fernando Malburg da Silveira. as“mídias sociais e a democracia”: da grécia antiga ao moderno mundo árabe • Pág 12 • A trajetória evolutiva da democracia no mundo e como o conceito de “mídias sociais” conseguiu, através da informática, influenciar grandes grupos, principalmente de jovens, que vivem em sociedades de regime fechado • Fernando Malburg da Silveira 16 guerra das malvinas o afundamento do hms sheffield • Contra-Almirante (REF) Carlos Frederico Vasconcellos da Silva. 21 defesa livro branco de defesa nacional • Marcílio Boavista da Cunha. 26 defesa a estratégia de defesa e o pré-sal • Capitão-de-Mar-e-Guerra-EN/REF Antonio Didier Vianna. 30 atividades navais combate à pirataria marítima e ao terrorismo: um novo campo de atuação para as operações especiais navais? • Capitão-de-Mar-e-Guerra Carlos Eduardo Horta Arentz. 38 ensaio ti - tecnologia da informação. uma síntese da participação dos oficiais da marinha na formação da sua base técnica no brasil • Antônio Tângari Filho. o afundamento do hms sheffield • Pág 16 • A primeira vez na história que uma aeronave lançou um míssil Exocet AM-39 foi justamente contra esse Destróier inglês, durante a Guerra das Malvinas • Contra-Almirante (REF) Carlos Frederico Vasconcellos da Silva 52 navios da mb ndcc almirante saboia 2 anos de incorporação à marinha do brasil • Capitão-de-Corveta Wagner Goulart de Souza. 54 saúde tabagismo. desafio difícil de ser vencido • Maj-Brig Méd Ricardo L. de G. Germano. 56 viagens chile. os belíssimos contrastes do deserto do atacama • Capitão-Tenente Rosa Nair Medeiros 62 crônica Sonhar com o almirantado. por que não? • Capitão-de-Mar-e-Guerra (CD) Leonor Amélia de Mello Barros da Cunha Reetz. chile. os belíssimos contrastes do deserto do atacama • Pág 56 • Mais uma de nossas viagens, dessa vez pela exótica beleza de um deserto com gêiseres, vulcões e lagos de sal • Capitão-Tenente Rosa Nair Medeiros 64 marinhagens saga amazônica. o Retorno de josé • Contra-Almirante Domingos Castello Branco. 67 OS militarES não peçam aos militares que se neguem a lutar • Eurico de Andrade Neves Borba 74 última página 2 Revista do Clube Naval • 357 Adeus à Luciana Revista do Clube Naval • 357 3 ••• Prezado Sócio Clube Naval Av. Rio Branco, 180 • 5º andar Centro • Rio de Janeiro • RJ Brasil • 20040-003 Tel.: (21) 2112-2425 Neste número, como de costume, publicamos eventos sobre a vida social e outros artigos enviados nos moldes tradicionais da RCN ou seja, em ciência, tecnologia, ciências políticas, relações internacionais etc. Nessa linha, sem desmerecer os demais assuntos, destacamos a publicação da matéria “Tecnologia da informação” a cerca da participação dos Oficiais de Marinha no desenvolvimento da informática no Brasil, motivo de interesse de inúmeros de nossos leitores que nessa atividade conviveram e, também, espelhou o envaidecimento de nossa Classe em ter contribuído para o desenvolvimento do tema em nosso País. Presidente V Alte Ricardo Antonio da Veiga Cabral Diretor do Departamento Cultural V Alte José Eduardo Pimentel de Oliveira ••• Também publicamos, a propósito do trimestre que se encerra, o artigo “Os Militares”, que ressalta o justo reconhecimento que a classe militar representou e continua a representar na vida da Nação brasileira. Editoria VAlte José Eduardo Pimentel de Oliveira CMG Adão Chagas de Rezende Jornalista Responsável Mais uma vez, portanto, esperamos esta continuidade para o melhor proveito dos nosso leitores. Antônio de Oliveira Pereira (DRT-MT. Reg. 15.712) Direção de Arte e Diagramação A Editoria AG Rio - Comunicação Corporativa [email protected] (21) 2569-9651 Produção José Carlos Medeiros Atendimento Comercial Tel.: (21) 2262-1873 [email protected] ••• As informações e opiniões emitidas em entrevistas, matérias assinadas e cartas publicadas são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Não exprimem, necessariamente, informações, opiniões ou pontos de vista oficiais da Marinha do Brasil, nem do Clube Naval, a menos que explicitamente declarado. A transcrição ou reprodução de matérias aqui publicadas, em todo ou em parte, necessita da autorização prévia da Revista do Clube Naval. ••• Os artigos enviados estão sujeitos a cortes e modificações em sua forma, obedecendo a critérios de nosso estilo editorial. Também estão sujeitos às correções gramaticais, feitas pelo revisor da revista. As fotos enviadas através de e-mail devem medir o mínimo de 15cm, em jpg ou tif, com 300dpi. ••• 4 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 5 Almoço de entrega de placas • Foram entregues aos representantes das lojas situadas na Sede Social, placas comemorativas do Centenário da Sede Social. Na foto, a partir da esquerda, o Comandante José Joaquim Pires,1º Secretário do Clube Naval, a SenhoraValéria Silva dos Santos, Vendedora da Loja Girassol, o Vice-Almirante Ricardo Antônio da Veiga Cabral, Presidente do Clube Naval, a Senhora Tereza Corsão, proprietária do Restaurante ‘O Navegador’, a Senhora Josette Maria Macedo, administradora do Restaurante ‘BistrôVillarino’, o Senhor Walter Cabral, proprietário do Salão Walter’s Coiffeur e o Comandante Mario Marcio Simões Huguet, Diretor Social do Clube Naval. eventos e comemorações na sede social VISITA À DIRETORIA DE CONTAS DA MARINHA (DCOM) • No dia 14 de fevereiro, o Presidente do Clube Naval,Vice-Almirante Ricardo Antônio da Veiga Cabral, visitou a Diretoria de Contas da Marinha (DCOM) a convite do seu Diretor, o Contra-Almirante (IM) Francisco José de Araújo, que ocupa também o cargo de Diretor Financeiro do Clube Naval. Na foto, o Almirante Francisco e o Almirante Veiga Cabral, logo após a Cerimônia de recepção ao Presidente do Clube. Doação de Livros ao Clube Naval • No dia 28 de Fevereiro de 2011, o Alte Veiga Cabral recebeu a doação do livro “Poluição Marinha: Uma Questão de Competência. Aspectos da Lei nº. 9.966, de 28/04/2000”, ofertado pelo Comte Valdir Andrade Santos, na foto, acompanhado pelo Comte Fernando Moraes Baptista, Presidente do Conselho Diretor, e Comte Helio Augusto de Souza, Assessor Jurídico. A obra ficará disponível para consulta e empréstimos, na biblioteca do Clube. Almoço em homenagem ao Alte Corrêa Guimarães • No dia 25 de Março de 2011, o Presidente do Clube Naval,Vice-Almirante Ricardo Antônio da Veiga Cabral, ofereceu um almoço ao Almirante-de-Esquadra (FN) Marco Antônio Corrêa Guimarães, Comandante Geral do Corpo de Fuzileiros Navais, em homenagem à sua promoção e em agradecimento pelos relevantes serviços prestados ao Clube Naval, como 1º Vice-Presidente. Na foto, a partir da esquerda, os Almirantes Corrêa Guimarães, Veiga Cabral e o ViceAlmirante (FN) Carlos Alfredo Vicente Leitão, Comandante do Pessoal de Fuzileiros Navais e atual 1º Vice-Presidente do Clube Naval. Quadro ADSUMUS • O quadro foi doado ao acervo do Clube Naval pelo autor, Comandante (FN) Hiron. Retrata, em arte digitalizada e infografada, o “Memorial dos Fuzileiros Navais Mortos em Combate”, desde 1808, quando aqui chegaram, trazidos por seus irmãos Marinheiros. O Memorial está erguido no pátio do Batalhão Naval, na Ilha das Cobras. O Quadro ADSUMUS foi premiado pelo júri do XV Salão de Belas Artes Plásticas do Bicentenário do CFN, em 2008, com Menção Honrosa e no 31º Salão Marinha do Brasil, em 2009, com o prêmio Grande Medalha de Bronze. Na foto, a partir da esquerda, o Almirante Veiga Cabral, Presidente do Clube, o Comandante Hiron e o Almirante Leitão, 1º Vice-Presidente do Clube Naval. 6 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 7 eventos e comemorações na sede social charitas BASTIDORES DO 44º MUNDIAL DE OPTMIST Renato Botelho Susan Collingwood Foto: Fred Hoffman S O 44º Campeonato Mundial de Optimist foi sediado no Clube Naval Charitas (CNC), entre 5 e 14 de agosto de 2009 e se constituiu num dos maiores eventos náuticos da história de Niterói. Foi considerado bem organizado pelos participantes, entidades envolvidas e espectadores. Este objetivo alcançado foi fruto de intenso trabalho de bastidores, que não é aparente para os que avaliam apenas os resultados obtidos. o Mundial ocorreria em agosto de 2009, dois meses antes de o Comitê Olímpico Internacional eleger a nossa capital do Estado como cidadesede para 2016. Era, deste modo, grande a responsabilidade do Clube Naval e do seu Departamento Náutico- o nosso Charitas. Alguns desafios se mostraram de maior complexidade, tais como: alojamento para 300 pessoas de 47 países diferentes, mobilização de 220 embarcações iguais para os competidores, embarcações de apoio, alimentação com três refeições diárias para todos os participantes, segurança, saúde, atendimento médico, proteção ao meio ambiente, adequação do tráfego marítimo para evitar contratempos para os velejadores, programação de atividades sociais que proporcionassem entretenimento e bom relacionamento entre os participantes etc. Foi também definido que o campeonato deveria ocorrer sem causar transtorno às atividades normais do Clube e aos associados. Foi elaborado um planejamento detalhado com todas as atividades, durações e datas de conclusão requeridas, usando-se o software Project. Esse planejamento foi elemento fundamental de controle e ajuste das ações a serem tomadas. ediar o Mundial de 2009 foi consequência do sucesso anterior do Sul-Americano de Optimist que ocorrera no CNC em abril de 2007. A International Optimist Dinghy Association (IODA), entidade internacional que controla os campeonatos dessa classe, ficou bem impressionada e aceitou a candidatura do Charitas, apresentada na Itália no segundo semestre de 2007, concorrendo com dois outros países. A eleição, propriamente dita, se deu na Turquia no ano seguinte, na Assembleia Geral da IODA, composta pelos países participantes do Mundial de 2008 que se realizava naquele país, em votação presenciada pelos representantes do CNC. A partir da aprovação do CNC como sede do Mundial de 2009, foram tomadas as primeiras iniciativas de preparação do Clube para atender aos requisitos da IODA. Essa preparação seria objeto de vistorias periódicas por aquela entidade. Havia uma possibilidade, não muito perceptível, de que o campeonato poderia vir a ser também um teste da capacidade de organização brasileira de um grande certame náutico, que de algum modo poderia ter influência na escolha da cidade do Rio de Janeiro como sede da Olimpíada de 2016, visto que 8 Revista do Clube Naval • 357 O aspecto financeiro se mostrou, como sempre, um desafio para que fossem atendidos os limites orçamentários definidos. As fontes de recursos seriam o módico pagamento de US$ 500 por participante, o pagamento do aluguel dos Optimists pelos participantes para treinamento antes do início do campeonato, pagamento ao CNC de comissão da empresa locadora das embarcações, patrocínios por empresas que tradicionalmente apoiam esses eventos (Petrobras, Universidade Salgado de Oliveira, Prezunic) e uma verba conseguida junto ao governo estadual. Posteriormente, o governo estadual, por intermédio da Secretaria de Esportes, não conseguiu atender seu compromisso e o Clube Naval teve de assumir esse encargo poucas semanas antes do início do evento. O atendimento aos requisitos de alojamento era crítico. Embora o hotel do Clube pudesse alojar alguns participantes, as acomodações eram insuficientes para a sua totalidade. A experiência do Sul-Americano mostrava a viabilidade do uso de contêineres como alojamento para vagas adicionais. O custo do aluguel seria, porém, excessivamente alto e fora dos orçamentos predefinidos. Surgiu então uma oportunidade: a Marinha do Brasil havia recebido da extinta Cia. de Navegação Lloyd Brasileiro, uma década antes, o Navio Mercante Atlântico Sul, já desativado. Ele foi leiloado por não ter mais utilidade para a Armada e comprado pela Norsul. Esta empresa resolveu acolher a nossa solicitação e ceder para o Charitas 70 contêineres obsoletos, mantidos nos porões de carga do navio, mas os custos para removê-los e transportá-los seriam grandes. Foram então estabelecidos contatos com a Brasteiner, que opera no mercado de aluguel de contêineres transformados, e ficou acertado Revista do Clube Naval • 357 que essa empresa removeria os contêineres do navio, sem custos para a Norsul ou para o Charitas, faria as adaptações necessárias, proveria o transporte e instalaria as novas “suítes” no campus do Clube. Nessa ocasião, o custo de cada contêiner, pela sua obsolescência, se equiparava ao custo dos serviços acima (adaptação, transporte e instalação) – e isso permitiu que esses serviços fossem ressarcidos com a entrega da maioria dos contêineres para a Brasteiner. Foi uma operação complexa e bem-sucedida, que atendeu aos interesses de todos os envolvidos. No Clube, os 70 contêineres foram dispostos como se fossem uma vila olímpica de dois andares, com passarelas inferior e superior. Tinham forração interna e dispunham de camas, armários, pia, chuveiro, sanitário, ar-condicionado, sistema de combate a incêndio, o que exigiu a construção de instalações especiais relacionadas com água, esgoto e energia elétrica, esta fornecida através de um grupo motor-gerador, alugado para a ocasião. Tudo isso, inspecionado e aprovado pelo Corpo de Bombeiros. A principal cobertura jornalística do campeonato foi proporcionada pelo canal de TV ESPN Brasil, com um programa semanal que divulgava as notícias em reportagens especiais. Também a empresa Ponte S.A. disponibilizou gratuitamente por duas semanas os painéis da ponte Rio-Niterói, dando destaque a esse grande acontecimento náutico da nossa cidade. A contratação de árbitros nacionais e internacionais de renome, assim como de reconhecidos craques da vela nacional, para atuar nas diversas comissões, foi importante para o padrão de qualidade da parte operacional do campeonato – considerado elevado pelos atletas, técnicos e dirigentes participantes, nas suas várias declarações. 9 o Rio de Janeiro. O Grupamento Aeromarítimo (GAM) da Polícia Militar mobilizou um inflável com guardas armados que patrulharam as águas da enseada de Jurujuba diuturnamente. O Corpo de Fuzileiros Navais disponibilizou um pelotão para segurança não ostensiva, cujos soldados permaneceram descaracterizados no interior do Clube durante todo o evento. Seguranças femininas contratadas realizaram o controle do acesso aos alojamentos femininos. Foi instalado um sistema de informações e monitoramento de imagens, com câmeras e sensores, visando ampliar as informações necessárias tanto à segurança quanto ao acompanhamento das regatas, já que o sistema possui câmeras com alcance de até 1,5 km. Tivemos desse modo garantia de condições adequadas de segurança que permitiram – também nesse aspecto – que o evento transcorresse sem nenhuma anormalidade. Um desafio diário foi o lançamento à água, praticamente simultâneo, de mais de 200 embarcações em tempo compatível com os anseios dos participantes. Foram contratados marinheiros adicionais e destacado um funcionário da náutica do CNC como responsável pelas operações. Conseguimos a performance de lançamento de todas as embarcações no prazo de 15 minutos! Para atender aos requisitos de alimentação, foram instaladas mesas no salão principal do Clube e servidas 1.800 refeições por dia. Antes disso, foram efetuadas reformas na cozinha, adquiridos materiais e equipamentos apropriados, contratados nutricionistas e garçons. Esse serviço, inicialmente complexo, foi prestado sem reclamações dos usuários e sem a ocorrência de distúrbios alimentares. Apenas um participante teve alimentação especial, por ser sensível à ingestão de glúten. Durante a noite, após o jantar, foram programadas festas e atividades sociais que permitiram a alegria e o congraçamento dos participantes do evento. Como resultado de toda essa preparação, o CNC recebeu uma carta de elogios da IODA. Como a IODA tem representante na International Sailing Federation (ISAF) que por sua vez tem assento no Comitê Olímpico Internacional (COI), parece justo dizer que o sucesso do evento contribuiu com uma imagem positiva do Brasil junto ao COI, órgão que viria a eleger o Rio de Janeiro como cidadesede da Olimpíada de 2016. Um fato recente pode corroborar essa assertiva: o Clube Naval Charitas foi honrado em fevereiro de 2011 com um diploma do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), assinado pelo seu presidente, Carlos Arthur Nuzman, pelo qual aquele Comitê agradece ao nosso Clube “o apoio para o crescimento do esporte e desenvolvimento do Movimento Olímpico Brasileiro”. Ao terminar este registro histórico, faz-se necessário ressaltar que o atendimento aos requisitos de um evento de tamanha envergadura deveu-se ao trabalho árduo e abnegado de uma equipe dedicada e competente que buscou honrar as tradições do Clube Naval e do seu Departamento Náutico, escrevendo uma página inesquecível para os que dele participaram. Foto: Fred Hoffman A mobilização das 220 embarcações da classe Optimist de um mesmo fabricante foi também complexa. Os prazos teriam de ser cumpridos e o custo teria de ser compatível com as expectativas dos participantes. Logo no início, tentou-se uma solução no mercado nacional, que traria o benefício de ser geradora de emprego de mão de obra especializada e carente no nosso país. Infelizmente, essa alternativa mostrou-se inviável e partiu-se para a contratação de uma empresa argentina, experiente neste tipo de eventos e que havia fornecido os Optimists para o Sul-Americano no CNC. Os pagamentos a essa empresa foram feitos diretamente pelos participantes, com repasse ao Charitas, pela locadora, de uma comissão pelo uso dos barcos durante o evento. As embarcações de apoio, tipo inflável com motor de popa, seriam inicialmente alugadas. Posteriormente, foi vislumbrada a possibilidade de mobilização desse tipo de embarcação junto ao Corpo de Fuzileiros Navais, Exército e Força de Submarinos. Desse modo, o atendimento se mostrou adequado e sem custos adicionais. O controle do tráfego marítimo era outro aspecto importante a se considerar para que não ocorressem transtornos durante as competições. Isso envolvia principalmente o fluxo de catamarãs da empresa Barcas S/A, que fazem a linha Praça XV-Charitas. Esse encargo foi repassado à Capitania dos Portos do Rio de Janeiro, responsável pela segurança marítima na Baía de Guanabara, que tomou as providências necessárias, posicionando, inclusive, lanchas suas pela proa dos catamarãs, servindo de guias quando estes cruzavam as raias demarcadas para a competição. O fato de o idioma oficial do campeonato ser o inglês demandou cuidado especial na seleção do pessoal para trabalhar no evento, bem como na preparação do material de divulgação e orientação aos estrangeiros, aqui incluídas as placas de sinalização espalhadas pelo Clube. Foi elaborado um plano de SMS (segurança individual, meio ambiente e saúde), com o sentido de garantir que a competição ocorresse sem riscos para os participantes e sem agressões ao meio ambiente, além de proporcionar condições adequadas a uma boa disposição física e mental dos competidores. Dentro dos conceitos atuais de convivência do ser humano com o meio ambiente, o lema escolhido para o campeonato foi a Geração da Energia Limpa (Clean Energy Generation). 10 Foto: Fred Hoffman Para apoiar as delegações com relação a passaporte e emigração, a Delegacia da Polícia Federal em Niterói instalou um posto de atendimento no CNC. O Posto Médico do Clube funcionou a contento e foi chefiada voluntariamente por um associado nosso, Médico da Reserva da Marinha, que ficou responsável pela preparação do Posto e pelos atendimentos que fossem necessários. Foi mobilizada também uma ambulância, fornecida pela Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, que permaneceu nas dependências do Clube 24 horas por dia durante todo o evento, sem custos para o CNC e, felizmente, sem ter sido usada. Fez-se uma parceria com o Hospital das Clínicas de Niterói, que assumiu as responsabilidades de Hospital de Base para casos de emergência. Como curiosidade, ocorreu infestação de piolhos, de origem desconhecida, nos contêineres de duas equipes. O problema foi prontamente resolvido com a compra de xampu específico, distribuição a todas as equipes e orientação quanto ao seu uso. A compra foi de tal monta que, praticamente, se esgotaram os estoques desse produto nas farmácias de Niterói! Uma participante, por sinal a campeã feminina Revista do Clube Naval • 357 da competição, caiu do beliche e quebrou um dente. Foi imediatamente levada a um dentista e no mesmo dia o dano foi reparado. Como vemos, nenhuma ocorrência médica grave teve lugar durante o campeonato. Uma preocupação adicional quanto à saúde decorreu da alarmante questão da gripe suína, cuja epidemia naqueles dias ameaçava grassar pelo país: a orientação das autoridades sanitárias foi fundamental para que se tomassem medidas preventivas e não houvesse no Clube qualquer registro de caso da doença relacionado ao evento. A cerimônia de abertura representou um momento especial, quando foram hasteadas as bandeiras dos países participantes sob os acordes do Hino Nacional Brasileiro, sucedendo ao desfile aberto pela Banda do CIAGA, em que atletas e dirigentes das 47 delegações levaram pelos caminhos do Charitas os seus pavilhões nacionais ao som do “Cisne Branco”. Os aspectos de segurança do patrimônio e das pessoas foram objeto de atenção especial. Não poderíamos nos permitir o risco de ocorrências que viessem a prejudicar o campeonato e a imagem do país como futura sede da Olimpíada. Foram mantidos contatos com a Guarda Municipal da Prefeitura de Niterói que mobilizou uma viatura 24 horas por dia, durante todo o evento, nas proximidades do CNC. A Polícia Militar mobilizou efetivo que patrulhava a área entre a estação do catamarã e o Charitas, tendo em vista o elevado número de acompanhantes de atletas que atravessavam a baía para conhecer Revista do Clube Naval • 357 11 atualidade As“mídias sociais” e a democracia: Nas fotos: de Platão a Kaddafi da Grécia antiga ao moderno mundo árabe democracia como sendo o governo do povo, pelo povo e para o povo (frequentemente desrespeitada, como se constata no mundo atual). A filosofia grega, mormente sob Platão, tornou-se um meio de alcançar um projeto político capaz de servir à sociedade, neutralizando os interesses de grupos e as opiniões apaixonadas que, desprovidas de fundamento sólido, se opunham ao real conhecimento. Procurava-se uma aristocracia do poder, sob a convicção de que, emanando dos grandes pensadores, as ideias dariam fruto às melhores soluções de governo para o cidadão comum. Para isso, Platão e seus seguidores, no pequeno contexto geográfico e social das polis (Atenas, Esparta, Tebas, Micenas e muitas outras), usavam fartamente a discussão política, o debate sobre o contraditório (opinião versus verdade, desejo versus razão, interesse particular versus interesse coletivo, senso comum versus senso filosófico etc.), fazendo máximo uso das poderosas armas do diálogo e da dialética. Disseminar esses pensamentos, ideias, debates e suas conclusões por toda a Grécia era, decerto, tarefa difícil, limitada que estava aos deslocamentos dos mestres e seus discípulos, com os parcos meios de locomoção da época, para as cidades mais próximas. Nessas polis mais populosas incentivava-se a concentração popular nas praças públicas, cenários de memoráveis debates que, muitas das vezes, consagravam deliberações coletivas que se tornavam regra para toda a comunidade citadina e as das imediações, propagando-se pelo Estado grego. A isso se deu o nome de democracia direta, isto é, aquela praticada diretamente pelo povo presente às reuniões públicas. Esses aglomerados populares, ou assembleias, eram a mídia social da época: diminuta, limitadamente informada e restrita à discussão do pensamento de alguns poucos cidadãos mais ilustrados, cuja divulgação mostrava-se precária e lenta mas, ainda assim, eficaz para nortear o comportamento da sociedade. Aristóteles foi um dos primeiros a perceber que, com o crescimento das polis e o aumento de sua população, tornavam-se pouco viáveis as reuniões e deliberações em praças públicas, pois eram parcos e raros os meios de reunir as pessoas e disseminar ideias para uma real prática democrática abrangente. Aristóteles aventou que a politeia, que seria expressa por representantes eleitos pelo povo Fernando Malburg da Silveira E A democracia ateniense e seus meios de divulgação às massas m artigo publicado nesta revista sob o título Os fundamentos da democracia ateniense e uma comparação com algumas posturas políticas contemporâneas (RCN, nº 345, jan./fev./mar. 2008), o autor procurou expor a forma pela qual o povo grego, seis séculos antes de Cristo, buscava organizar e consolidar os princípios que norteariam o comportamento ético e político das pessoas, e muito especialmente o dos cidadãos das polis (as cidades gregas, onde se destacava Atenas, hospedeira do pensamento dos principais filósofos gregos). Desde então era percebida pelos mais intelectualizados a necessidade de moldar e parametrizar o convívio social das pessoas na coletividade, todavia sem deixar de considerar seus direitos e sua maneira de ver e pensar o mundo, desde que respeitando o bem comum, entendido como a vontade da maioria (na verdade, da “maioria pensante”). Dessa busca pelo bem comum resultou o sistema que então ficou conhecido como democracia (palavra que vem do grego demos – povo – e kratos – autoridade). Tal sistema reconhecia a vontade popular predominante, mas colocava acima dela a figura emblemática do governante, incumbido de que fazer com que essa vontade fosse realizada sob o domínio da ordem e sempre visando ao bem comum. Esse sistema levou alguns séculos para se consolidar. A partir da mitologia nascida das tradições culturais e do pensamento mítico dos magos e sacerdotes, passando pela escola filosófica fundamental de Tales de Mileto (século VI a.C.) e seus muitos discípulos, depois por Pitágoras (530 a.C.), chegando a Sócrates (470-399 a.C.), cujo pensamento clássico fertilizou a análise conceitual e a epistemologia de seu discípulo Platão (428-347 a.C.), a Grécia desenvolveu e legou para a posteridade, até os dias de hoje, teorias filosóficas, fundamentos éticos e comportamentos políticos que, passados 25 séculos, permanecem vivos, gerando a moderna consagração do termo 12 Revista do Clube Naval • 357 para em seu nome decidir, era a solução mais adequada ao conceito de República e de Estado politicamente organizado. Surgiu então a democracia representativa, aceita por aqueles povos como forma mais justa e adequada de governo, admitindo-se que os representantes eleitos eram pessoas de notório saber e voltadas para o bem comum (conceito que, infelizmente, foi bastante vilipendiado com o passar dos tempos...). Ainda assim, a discussão das ideias permanecia limitada a uma pequena parcela da sociedade; e as deliberações eram de fato feitas por uns poucos cidadãos reunidos nas assembleias (parlamentos) da elite pensante, teoricamente representativas da vontade comum. A divulgação para toda a comunidade, porém, continuava lenta e pouco eficiente. As mudanças O passar dos tempos imprimiu muitas mudanças ao modo político de pensar das sociedades. Nem sempre a opção foi pela democracia nas formas acima descritas. Regimes absolutistas, estabelecidos no modelo monárquico ou sob o totalitarismo das revoluções ideológicas, fizeram-se presentes (e ainda sobrevivem) em muitos países da era moderna. Estão nesse caso, por exemplo, as monarquias europeias absolutistas da fase pré-parlamentarista; as atuais monarquias de muitos países do mundo árabe; os governos marxistas nascidos dos ideais da Revolução Russa (poucos ainda existem); os governos populistas autoritários que se estabelecem pelo voto em alguns países de sociedades menos intelectualizadas (a América Latina é prenhe de exemplos); e outros. No seio dessas formas autoritárias de governo tiveram surgimento, em épocas recentes – mormente em países latino-americanos onde a esquerda fortemente ideologizada asssumiu o poder –, algumas interpretações distorcidas da democracia, como é o caso da utilização de plebiscitos a título de expressar e adotar a vontade popular – reedição deturpada da democracia direta ateniense, que tende a neutralizar a representatividade do Congresso substituindo-a por deliberações de massas populares politicamente pouco preparadas e fortemente influenciadas pelo discurso e pela propaganda do poder dominante. A mudança mais atual e dramática, porém, é a que se está Revista do Clube Naval • 357 presenciando em regimes monárquicos, e em alguns presidencialistas, do mundo árabe, como decorrência dos acontecimentos na Tunísia, no Egito, no Iêmen, no Bahrein, no Irã e em outros países, onde parcelas da população – especialmente seus grupos mais jovens – parecem ter despertado de anos de torpor e, sob algum estímulo que vem sendo considerado como uma aspiração democrática, estão indo para as ruas e praças públicas clamar por mudanças e por maior liberdade político-social. Iniciados na Tunísia, esses movimentos – já considerados revolucionários – tiveram um rápido alastramento, como se um pavio fosse queimando e fazendo explodir sucessivas manifestações populares em múltiplos lugares do mundo árabe, do Norte da África até o Oriente Médio, motivando severas repressões governamentais. O papel das mídias sociais parece ser, nesses casos e em vários outros em potencial, o agente comburente dessas combustões, que poderão vir a resultar na instalação de outros regimes. Poderá surgir algo parecido, mas não necessariamente igual, às democracias do mundo ocidental – nem sempre adaptáveis às culturas nacionais daquelas sociedades; ou poderão resultar sérias instabilidades naquelas regiões petrolíferas, com consequências importantes para o mundo ocidental. Além disso, no mundo presente essas mídias influenciam o cenário com altíssima velocidade, fazendo uso da rede digital mundial de computadores em tempo real. As mídias sociais O conceito de mídias sociais (social medias) precede a era da internet e das atuais ferramentas tecnológicas de integração de massas, ainda que o termo não fosse então utilizado. Trata-se da produção de textos/vídeo/áudio de forma descentralizada e sem o controle editorial de grandes grupos, diferentemente da mídia impressa, radiofônica e televisiva convencionais. Significa disseminar as ideias de muitos para muitos. Em essência, trata-se de uma larga interação entre pessoas, da qual resulta a construção de temáticas compartilhadas, usando a tecnologia da eletrônica digital como meio de conexão e divulgação, circulando o planeta em poucos segundos. São sistemas on-line projetados para permitir a interação social a partir do compartilhamento da informação nos mais diversos níveis e formas. Essa tecnologia possibilita a publicação de conteúdos por qualquer pessoa, baixando a praticamente zero o custo de produção e distribuição, ao passo que antes essa atividade se restringia a grandes grupos com poder econômico grande o bastante para possuir jornais, emissoras de rádio e de TV. Aí reside, possivelmente, a grande revolução do mundo de hoje, que muitos analistas entendem como característica principal da Era da Informação. As atividades integram tecnologia, interação social e o uso de palavras, fotos, vídeos e áudios. Nelas a informação é apresentada em variados formatos, como blogs, sites, compartilhamento de fotos, correio eletrônico (e-mails), videologs (tipo YouTube), mensagens instantâneas de telefonia ou computadores, compartilhamento de músicas, VoIP, e várias outras manifestações, que não param de surgir a cada ano que passa. Em nossos dias, poucos são os que nunca usaram (ou pelo menos ouviram falar) de blogs (publicações editoriais independentes), google groups (referências, redes sociais), wikipedia (enciclopédia eletrônica), Facebook (rede social), YouTube (rede social e de compartilhamento de vídeo), Second Life (realidade virtual), Flickr (rede social e de compartilhamento de fotos), Twitter (rede social e microblogging), Wikis (compartilhamento de conhecimento), Skype e inúmeros outros serviços e aplicações que usam a rede mundial de computadores e interligam praticamente em tempo 13 Fotomontagem: Sendino real pessoas nos mais diversos e remotos locais do planeta. Isso provoca notável mudança na estrutura de poder social: qualquer pessoa, e não mais apenas os detentores do capital, pode construir e disseminar conteúdos capazes de influenciar a opinião pública e mobilizar outras pessoas e grupos, a custo quase nulo e em alta velocidade, gerando uma das mais influentes formas midiáticas da atualidade e praticando uma liberdade de comunicação interativa dificilmente controlável pelos governantes, o que se torna um tormento para os regimes autoritários cerceadores da liberdade de expressão. As mídias sociais, porém, não têm o condão de fazer revoluções políticas, nem de implantar democracias via internet. Elas constituem apenas um meio, um instrumento capaz de propagar velozmente, a baixo custo, ideias que podem ser revolucionárias, catalisando opiniões e contribuindo para a rápida formação e mobilização de grupos capazes de promover os movimentos de força. Na Era da Informação já não se pode esconder dos dissidentes o que ocorre no mundo. Em poucos segundos, ações coletivas podem ser incentivadas e disseminadas, alcançando milhares de adesões e desencadeando movimentos que, eventualmente, podem derrubar governos, cuja primeira reação é a de bloquear os acessos a provedores de internet, a websites e a operadoras de telefonia celular (como tem ocorrido na China, no Irã e mais recentemente no Egito, diante de manifestações populares mobilizadas pelas mídias sociais). Essas ações podem também – quando não logram mudar os governantes ou o regime – dar campo para a prevalência de movimentos sociais que se colocam acima da lei e da ordem vigentes, fazendo com que a ineficácia da lei e da ordem deem lugar ao que os sociólogos chamam de Estado anômico, onde prevalecem a confusão política e a fraqueza das normas de conduta. Os governos que se sentem ameaçados por esses meios modernos de divulgação às massas também têm defesas. Entre elas, a possibilidade de identificar os usuários das redes instigadores de movimentos, os quais se expõem ao disseminar suas mensagens. Muitas prisões, no Irã e no Egito, foram noticiadas como tendo sido fruto da identificação dos dissidentes, a partir de seus endereços eletrônicos e dos acordos entre governos e provedores de serviços. Esses governos podem, ainda, tirar seu próprio partido do uso das redes, disseminando contrainformações e tentando desorganizar e confundir o “inimigo”. E podem, como já mencionando, bloquear os acessos às redes, com tanto mais facilidade quanto mais participante for o Estado (em termos de capital ou de influência política) das empresas que as operam. É esse o moderno mundo da tecnologia eletrônica digital e das comunicações satelitais, que diferenciam a velocidade da propagação das ideias entre o tempo em que vivemos e a maneira grega de disseminar o pensamento político-social, 600 anos antes de Cristo. Tecnologia da eletrônica digital. Possivelmente, a grande revolução do mundo de hoje cerca de um terço de jovens descontentes formando sua população.(1) Como exemplos, o Marrocos, cuja dinastia real governa o país desde o século XVII; a Argélia, cujo presidente está no poder desde 1999; a Tunísia, que acaba de derrubar em janeiro o ditador que governava há 23 anos e inspirou o movimento que logo se seguiu no Egito; a Líbia, governada desde 1969 por Muamar Kadafi, que no momento em que era escrito este artigo promovia sangrenta repressão ao movimento revolucionário desencadeado no leste do país, gerando forte reação no mundo ocidental; o Egito, que em fevereiro derrubou o ditador Hosni Mubarak e é governado provisoriamente por um Conselho Supremo das Forças Armadas (sendo de realçar que é país que desempenha papel crucial para o equilíbrio de poderes no mundo árabe e no processo de pacificação árabe-israelense). Já no outro lado do Canal de Suez, tem-se a Jordânia, aliada dos EUA e que reconhece o Estado de Israel, mas é governada pela dinastia hashemita desde 1920; a Síria, que vive há décadas em estado de emergência, cujo atual governante herdou a ditadura de 30 anos do falecido pai e tem relações tensas com os EUA em face de ser aliada do Irã e do grupo anti-israelita libanês Hezbollah, a quem dá suporte; o Iêmen, cujo presidente está no cargo desde 1990 e onde há sérios conflitos com a oposição; a Arábia Saudita, cuja dinastia monárquica governa desde o início do século XX, é forte aliada dos EUA – motivo de insatisfação para grande parte do mundo árabe – e detém 20% do petróleo do planeta; o Bahrein, rico emirado que hospeda a sede da 5ª Esquadra dos EUA e cujo monarca sucedeu o pai, falecido em 1999 e que governava desde 1961; e o Irã, teocracia islâmica radical antiamericanista que derrubou a dinastia Pahlevi, segundo maior produtor de petróleo da região e que prega a extinção do Estado de Israel, suportando sanções da ONU por seus projetos alegadamente belicistas na área nuclear. Não é possível atribuir aos movimentos antigovernamentais que proliferam nesses países o caráter de revoluções ideológicas. Tampouco é razoável generalizar para eles um cunho islâmico radical, embora, claramente, os radicais islâmicos fiquem motivados a aproveitar a oportunidade para chegar mais perto do poder, nos países em que ainda predominam islâmicos mais moderados. As avaliações dos analistas geopolíticos e sociais é de que se trata de uma explosão de desejos de uma juventude que nasceu sob essas ditaduras, vive em penúria e não vê perspectivas de progresso social e liberdade sociopolítica. O desemprego parece ser o maior ingrediente do descontentamento, havendo estatísticas que indicam que cerca de um terço da população árabe é de jovens entre 15 e 29 anos, desempregados e precariamente educados.(2) Mas sejam quais forem suas reais causas, ou conjunto de causas, está-se diante de um fato: são movimentos que se alastram rapidamente, alimentados pelos recursos oferecidos pelas mídias eletrônicas sociais, trazendo Efeitos recentes no mundo islâmico A área geográfica mais afetada, no momento, pela atuação desses movimentos sociais revolucionários midiáticos abrange grande parte do mundo muçulmano, do Norte da África até a Península Árabe e as vizinhanças do Golfo Pérsico. Essa extensa área revela problemas sociais graves, que levam uma expressiva parte de suas populações (principalmente jovens carentes de emprego e desejosos de mais liberdade) a um nível de tensão facilmente transformável em estremecimentos sociais, mormente com as facilidades de divulgação da internet. Do Oeste para o Leste, problemas dessa natureza afetam regimes ditatoriais e autoritários, monárquicos ou republicanos, quase todos convivendo há décadas com algum nível de pobreza extrema e com É como se um pavio fosse queimando e fazendo explodir sucessivas manifestações populares em múltiplos lugares do mundo árabe 14 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 os manifestantes em grandes massas para as ruas das capitais e principais cidades, surpreendendo regimes que aparentemente gozavam de estabilidade e até mesmo de suporte do mundo ocidental, em certos casos. A perplexidade tomou esses governantes de forma inesperada, repentina, e isso terá desdobramentos. Entre eles, a necessidade dos regimes democráticos ocidentais que apoiam (ou apoiavam) regimes totalitários ou autoritários no mundo árabe reverem suas posições, diante dos clamores populares. Há dois aspectos importantes que convém ressaltar nesses desdobramentos. O primeiro é que apenas a vontade juvenil e o entusiasmo de estudantes nas ruas não vencem revoluções. Para vencê-las, esses movimentos despertados pela mídia eletrônica precisam da adesão, ou da simpatia, de quem detém o poder das armas. No caso do Egito, por exemplo, os militares aderiram e a revolução teve sucesso. No caso líbio, os militares inicialmente se mostraram divididos, trazendo o risco de uma guerra civil de longa duração. Outro aspecto é o que se refere ao tipo de democracia que esses movimentos eventualmente logrem desenvolver. Trata-se de culturas diferentes das ocidentais a que estamos afeitos, há longo tempo acostumadas com liberdades limitadas, limitações essas que, não raro, têm o fundamento religioso muçulmano em seu âmago. Dificilmente veremos o nascimento de democracias desenhadas nos moldes ocidentais. Quando muito, serão modelos adaptados às circunstâncias locais, podendo prevalecer regras de cunho shiita ou sunita, com maior ou menor influência da lei islâmica (a sharia). Em certos casos, como o da Líbia, o tribalismo poderá ter influência mais proeminente do que a teologia, não sendo de se desprezar a possibilidade de não haver convergência de posições e da revolta surgir o caos. Em muitos casos, nada garante, se adotado o sufrágio universal, que os eleitos formarão governos com posturas e índoles pró-ocidentais (democracia e posturas pró-Ocidente não são coisas umbilicalmente ligadas). Em quase todos os casos, os revolucionários carecem de organização política (partidos, por exemplo, com programas de governo) para assumirem o poder, e esse despreparo pode ser desastroso para os Estados em que logrem derrubar o status quo. O epílogo de cada um desses movimentos “nutridos pela web” é imprevisível, no momento. Não é possível afirmar, por exemplo, que vá ocorrer algo similar a 1989, quando os manifestantes de países do Leste europeu, com expressiva ajuda de dissidentes das forças armadas e da polícia, decidiram livrar-se do comunismo, mudaram a ordem política em toda uma grande região e alteraram o equilíbrio de poder no planeta, ao dar fim ao Império Soviético. O mais provável, por motivos culturais, é que falhem em mudar profundamente o mundo árabe, mas as sementes para mudanças ficarão plantadas, podendo futuramente germinar democracias (ainda que não muito liberais, em razão de suas raízes islâmicas).(3) Uma coisa é certa: os monarcas e ditadores do mundo árabe, até agora confiantes de estabilidade em suas longas permanências à frente do governo, foram sacudidos pelo poder da mídia digital e não voltarão a dormir em paz. As potências ocidentais, por sua vez, terão que decidir se apoiam as mudanças ou se continuam – movidas por seus interesses no petróleo – a prestigiar governos pouco ou nada democráticos. Notas (1) Fonte: O Globo, “Uma região volátil”, 20 fev. 2011, p. 38. (2) Fonte: O Globo, 20 fev. 2011, p. 40. (3) Friedman, George. Revolution and the Muslim World. Disponível em: <http://www.stratfor.com/weekly/20110221-revolution-and-muslim-world>. 15 guerra das malvinas O AFUNDAMENTO DO HMS SHEFFIELD discutível, apesar de se enquadrar no parâmetro de custo estabelecido. Qualquer adição de armamento implicaria problemas relativos à indisponibilidade de espaço, que não havia e de aumento de peso, que afetaria as condições de estabilidade do navio. Dessas restrições, resultaram ainda, as impossibilidades de se instalar o sistema de armas antissubmarino Ikara e de dotar o navio de um hangar duplo, para abrigar e operar dois helicópteros orgânicos, do modelo Lynx, o que seria necessário, tendo em vista que era considerado que a disponibilidade de voo desses helicópteros não ultrapassava os 50%. Enfim, a redução de peso e espaço foram tais, que até o centro de operações de combate (COC) ganhou instalações acanhadas, em espaço inadequado, em prejuízo de sua funcionalidade. Na Argentina, no final do ano de 1981, período que precedeu ao início das hostilidades com a Inglaterra, na Guerra das Malvinas, a Aviação Naval contava com um efetivo aproximado de três mil homens e cerca de 130 aeronaves distribuídas em dez unidades aéreas, para operar de terra, de suas três bases principais, e no mar embarcadas no Navio-Aeródromo 25 de Maio. Essas unidades estavam bem adestradas para desenvolver operações de esclarecimento, de ataque, antissubmarino, de logística e de busca e salvamento, tiveram participação ativa e cumpriram eficazmente suas missões, superando as muitas dificuldades encontradas. No entanto, para desenvolver o esforço principal de ataque à Força Tarefa (FT) da Marinha inglesa, a Aviação Naval argentina contava apenas com 15 Contra-Almirante (REF) Carlos Frederico Vasconcellos da Silva A importância da operação de ataque ao Destróier Sheffield, realizada em 4 de maio de 1982 pela Aviação Naval Argentina na Guerra das Malvinas, se deve, principalmente, ao fato de que, pela primeira vez na história, uma aeronave lançou com sucesso em operação real de guerra, um míssil ar-superfície contra um navio inimigo. A aeronave era um Super Etendard (SUE) da Aviação Naval Argentina, o míssil, um Exocet AM-39, ambos de fabricação francesa e o navio-alvo, o Destróier tipo 42 Sheffield, incorporado à Marinha inglesa em 1975. Para melhor entender o resultado da ação, devem ser considerados alguns aspectos importantes e fatos que ocorreram na Argentina e na Inglaterra, precedendo as operações que se desenrolaram na Guerra das Malvinas, que por certo influenciaram alguns resultados. N uma classe de navios com capacidade similar, mas de porte mais reduzido, deslocando de 3.500 a 4.100 toneladas e a um custo final bem menor, o que possibilitaria a construção de um maior número de unidades. Foi assim que se originou o projeto dos destroieres tipo 42. Um Super Etendard (SUE) O míssil Exocet AM 39 ANTECEDENTES a Inglaterra, na década de 1960, estava sendo planejada a construção de uma nova classe de navios-aeródromos (NAe), para substituir os mais antigos, remanescentes da II Guerra Mundial. A classe ganharia o nome de Queen Elizabeth (CVA-01), deveria ser incorporada à esquadra inglesa na década de 1970 e o projeto inicial previa a construção de dois desses NAe. Esse projeto deu origem a outro, o de construção dos navios que comporiam a escolta desses NAe, com a missão principal de lhes prover defesa antiaérea e antissubmarino. Seriam quatro unidades dos Guided Missile Destroyer (DDG) tipo 82, com deslocamento de 6.700 a 7.700 toneladas a toda carga. Em 1966, levando em consideração os altos custos envolvidos, o governo trabalhista cancelou não só, o projeto dos CVA-01, como também o dos DDG tipo 82, quando o primeiro navio dessa classe já estava pronto, o HMS Bristol. Daí, ainda levando em conta essas razões econômicas, mas considerando as necessidades da Marinha inglesa, o Ministério da Defesa determinou que em substituição aos DDG tipo 82, fosse construída 16 Revista do Clube Naval • 357 Obviamente, o requisito de compacidade impôs restrições relativas à configuração dos navios dos primeiro e segundo lotes construídos, como o Sheffield, do que resultou, entre outras, a impossibilidade de se instalar um sistema mais eficiente de defesa antiaérea de ponto (CIWS-close in weapon system), para se contrapor a ataques de aeronaves e de mísseis em voo rasante. Não foi possível instalar nem mesmo o sistema Sea Cat, cujo desempenho já era considerado Revista do Clube Naval • 357 aeronaves Sky Hawks A-4Q, que, tanto quanto os 60 A-4P da Força Aérea, foram adquiridos da Marinha americana, na condição de aeronaves usadas. Além dessas aeronaves, a Aviação Naval argentina havia recebido cinco aeronaves, parte de um contrato de aquisição de 14 Super Etendard (SUE), caças-bombardeiros fabricados pela Dassault e cinco mísseis ar-superfície Exocet AM-39, também adquiridos e recebidos antes da efetivação do embargo imposto ao fornecimento de armas pela França à Argentina. Os SUE não possuíam características excepcionais de voo e, além disso, tinham um raio de ação muito limitado, sua velocidade máxima a 11 mil pés de altitude chegava a 1.3 Mach, mas a baixa altitude não passava de 0.97 Mach, menor que a do som. Todavia, tiveram um bom desempenho no conflito, especialmente, em razão da sua capacidade de portar e 17 lançar o míssil ar-superfície Exocet AM39, o que, aliado às deficiências de projeto inerentes aos destroieres tipo 42 dos 1º e 2º lotes construídos para a Marinha inglesa, no que concerne à dificuldade de se contraporem de modo eficiente ao ataque de aeronaves e mísseis em voo rasante, certamente, contribuiu para o sucesso da operação de ataque ao Sheffield. realização de ataque aos alvos com mísseis Exocet AM-39. Às 8h45min, depois de recebida do Netuno a posição mais atualizada dos alvos, que então seriam três sendo um grande e dois médios, foram expedidas as ordens para que os SUE decolassem às Um Exocet 9h45min e para que o Netuno os informaslançado de um navio se, diretamente, a posição de 10h00min. Essa informação era necessária, para que os pilotos pudessem introduzi-la nos computadores de navegação de suas aeronaves antes do inicio do ataque. Por razões óbvias, os SUE estavam se deslocando para a área de ataque, com seus radares Agave desligados. A decolagem aconteceu como determinado e a 150 milhas da base de Rio Grande, voando a 15 mil pés de altitude os SUE se encontraram com uma aeronave KC-130 da Força Aérea argentina, se O NAe reabasteceram em voo e atestaram seus Invencible tanques de combustível, antes do início da fase final do ataque. Encerrado o reabastecimento, os SUE prosseguiram para a área de ataque mantendo seus radares desligados e iniciando a descida para voo a baixa altitude, próximo ao nível do mar, a fim de evitar que fossem detectados pela FT inimiga. Encontraram condições meteorológicas adversas, com teto das nuvens a 500 pés e visibilidade horizontal reduzida por efeito das pancadas de chuva e bancos de névoa. Enquanto isso, o radar do Netuno apresentou um defeito que o impedia de manter o acompanhamento dos alvos. Ainda assim, recebeu ordem de permanecer na área, fazendo uma derradeira tentativa de reparar o equipamento, até que às 10h30min conseguiu seu intento e transmitiu aos SUE as informações requeridas. Cumprida a ordem, a aeronave de patrulha encerrou sua missão com pleno sucesso, abandonou a área e regressou para a base de Rio Grande, onde pousou, às 13h04min. Recebida a última informação do Netuno, os pilotos dos SUE, sabendo que os navios da FT inglesa se encontravam a 115 milhas de distância, decidiram atacar o alvo maior. Nesse entretempo, o comandante do Sheffield estava em seu posto no passadiço e o COC totalmente guarnecido, quando, visando diminuir a possibilidade do inimigo detectar a posição exata da FT, foi determinado pelo capitânia que o Sheffield transmitisse uma mensagem para o Comando da Esquadra Inglesa, em Northwood. Em razão dessa faina, o seu radar principal foi desligado, a fim de evitar qualquer interferência na transmissão da mensagem, do que resultou uma falha na cobertura radar. Para cobrir essa falha, o HMS Hermes, estava repassando por data-link para o Sheffield, as imagens obtidas pelo seu radar. Apesar dessas precauções, ocorreu algum problema. Os detalhes são um pouco confusos, mas, aparentemente, o radar do Hermes obteve um contato momentâneo, chegando a detectar três aeronaves e a classificá-las como hostis, mas como esse contato se desvaneceu rapidamente, não houve tempo para uma identificação positiva das aeronaves. Na falta dessa identificação positiva, o contato foi interpretado como sendo de aeronaves argentinas de interceptação, Mirage III, voando afastadas da FT, em rumo que não inspirava maiores cuidados. De certa forma, A OPERAÇÃO DE ATAQUE Dois dias antes da invasão das Malvinas pelas forças argentinas, a Segunda Esquadrilha de Caça e Ataque da Aviação Naval da Marinha recebeu ordens de interromper seu programa normal de adestramento, para se dedicar exclusivaO Cruzador mente, durante os 30 dias seguintes, ao Belgrano adestramento objetivando o emprego eficiente do sistema de ataque com mísseis ar-superfície Exocet AM-39. Estabelecido o embargo, o governo da França determinou a suspensão da entrega das demais aeronaves adquiridas, dos sobressalentes do armamento, e a suspensão dos trabalhos de assessoria técnica que seus técnicos prestavam em território argentino. O interessante é que ainda assim, esses técnicos não receberam ordem de regresso para a França, permanecendo na Argentina. De qualquer forma, os engenheiros e os técnicos da Marinha argentina, com auxílio ou não dos franceses, conseguiram resolver os problemas de instalação e harmonização do armamento e, a fim de atender às necessidades de sobressalentes para quatro aeronaves, procederam à desmontagem do quinto SUE. Em 4 de maio de 1982, dois dias após o torpedeamento e afundamento do Cruzador Belgrano, uma aeronave de patrulha da Força Aérea Argentina, tipo Netuno, obteve um contato radar às 7h09min, a 90 milhas de distância e a 100 milhas de Porto Argentino, durante um voo de esclarecimento que vinha sendo realizado diariamente na área marítima ao redor das ilhas, visando assegurar o tráfego aéreo e marítimo entre as ilhas e o continente. Pelo processamento dos sinais recebidos e analisados em seu equipamento ESM (eletronic support measures), foi determinado que se tratava de um navio inimigo, provavelmente um destróier tipo 42 da Marinha Inglesa. Na realidade, tratava-se do Destróier Sheffield posicionado 20 milhas avante do navio capitânia da força-tarefa inglesa, o NAe Hermes, com a missão principal de lhe prover cobertura antiaérea e a seu par, o NAe Invencible. No Sheffield, para atenuar o desconforto da tripulação, decorrente das condições de fechamento do material adotadas quando em cruzeiro de guerra, foi estabelecido o serviço em turnos de seis horas, de maneira a proporcionar ao pessoal de folga, a possibilidade de melhores refeições e de descanso mais adequado (defence stationssecond state of readiness). O Netuno, após transmitir para a base argentina de Rio Grande a informação do contato obtido, recebeu a determinação de manter acompanhamento do alvo e de ampliar sua informação inicial. Paralelamente, foi determinada a prontificação de dois SUE para a 18 Revista do Clube Naval • 357 O Destróier Sheffield em três momentos, antes e depois de atingido pelo míssel exocet contribuiu para que essa falha não fosse percebida no devido tempo, o fato de os helicópteros Lynx, que estavam equipados com ESM, capazes de identificar não só radares de aeronaves inimigas, como também a frequência de emissão e o tipo do radar, se encontrarem voando muito afastados da FT, em altitude que não lhes possibilitava a detecção de qualquer emissão radar das aeronaves argentinas. Conhecedores da capacidade ESM da FT inglesa, os pilotos navais argentinos, deliberadamente, continuavam a aproximação com seus SUE, mantendo voo a baixa altitude e radares de busca desligados, até atingir posição na distância de 25 a 30 milhas dos alvos. Enquanto isso, outros problemas afetavam e agravavam o quadro de problemas da FT inglesa: o Sheffield e demais navios da escolta que também possuíam seus próprios equipamentos ESM, não puderam fazer no devido tempo, antes do início da guerra, os ajustes necessários nesses equipamentos, a fim de que o míssil Exocet fosse identificado como armamento hostil. Adicionalmente, vários dos radares de busca de superfície dos navios da FT, emitiam na mesma frequência do radar do míssil e, dessa combinação de problemas, resultou que não houve uma identificação rápida do ataque com os Exocet, até que os mísseis estivessem muito próximos ao alvo. Assim, introduzidos os dados dos alvos nos sistemas das unidades de ataque (UAI) das suas aeronaves, os pilotos argentinos navegando pelos seus computadores, conduziram os SUE até a posição prevista para efetuar o lançamento dos mísseis. Após uma primeira tentativa falha, lograram identificar o inimigo em seus radares e lançaram seus mísseis a cerca de 25 milhas do alvo. Às 11h04min, imediatamente após o lançamento, os SUE iniciaram curva de afastamento Revista do Clube Naval • 357 da zona de perigo, assumiram o rumo de regresso para a base de Rio Grande e pousaram sem novidades às 12h04min. Enquanto os Exocet se deslocavam voando baixo, com a velocidade de 1.000 km/h na direção do condenado Sheffield, o comandante do navio e outro oficial observavam com atenção o horizonte, com a finalidade de tentar confirmar a informação daquele contato momentâneo que haviam recebido do COC pouco antes. Estavam fazendo varredura visual pelo setor de boreste do navio, no sentido popa até a proa, quando perceberam muito afastado uma pequena nuvem de fumo e não conseguiram identificar do que se tratava, porque nem eles, nem ninguém, jamais havia tido a oportunidade de ver um míssil Exocet voando rasante, de frente, e se aproximando do navio com velocidade quase supersônica. Quando finalmente o identificaram, o míssil já se encontrava a uma milha de distância e não houve tempo para acionar qualquer medida defensiva, a não ser transmitir pelo sistema de intercomunicações, um alerta para que todos se protegessem. Quatro segundos depois o míssil atingiu o navio, por boreste, a meia-nau e abaixo do convés principal, poucos pés acima da linha d’água. O Exocet perfurou o costado do Sheffield, com trajetória em ângulo de cerca de 30° em relação ao plano diametral do navio, atravessou o compartimento de máquinas avante, penetrou no compartimento de máquinas a ré, onde atingiu as turbinas de propulsão e, finalmente, se chocou contra a antepara de ré, sem explodir. O pessoal de serviço no passadiço e no COC, ouviu um estrondo, como o de uma colossal explosão, mas as fotos tiradas antes do navio afundar revelaram que a cabeça de combate de 364 libras do míssil não detonou e que o ruído ouvido foi produzido 19 defesa LIVRO BRANCO DE DEFESA NACIONAL MARCÍLIO BOAVISTA DA CUNHA O ministro da Defesa recebeu, por Lei Complementar, a responsabilidade de implantar o Livro Branco de Defesa Nacional.(1) O Poder Executivo deverá, a seguir, encaminhá-lo à apreciação do Congresso Nacional, juntamente com a política(2) e a estratégia(3) de defesa. Os princípios e diretrizes para a elaboração deste livro foram recentemente estabelecidos pela presidente da República, que também Pode-se imaginar qual seria a representação do quadro que registra as perdas reais da Marinha inglesa, na Guerra das Malvinas, caso a Aviação Naval argentina tivesse recebido em tempo útil os 14 Super Etendard e uma quantidade maior de mísseis Exocet pela onda de choque decorrente do impacto das 1.455 libras do seu corpo e do seu motor. Mesmo sem a detonação da cabeça de combate os resultados foram catastróficos. O atrito da passagem do míssil com as chapas de aço do navio ao atravessá-las, provocou temperaturas elevadas e labaredas que atingiram o tanque principal de combustível do navio, ocorrendo de imediato um incêndio de grandes proporções e densas nuvens de fumaça branca. A seguir, o fogo propagou-se pela cablagem de PVC, pintura e outros materiais inflamáveis e sua fumaça tóxica se espalhou por todos os compartimentos e passagens do navio. Sem energia, não sendo possível nem mesmo ventilar os compartimentos internos para tentar expulsar a fumaça, as equipes de combate a incêndio ficaram isoladas, os equipamentos auxiliares como geradores e bombas de incêndio não funcionaram, e o incêndio atingiu proporções incontroláveis, com ameaça de explosão do paiol de munição avante. Nesse paiol, estavam armazenados 22 mísseis Sea Dart e respectivas cabeças de combate, 120 projéteis para o canhão de 4,5 polegadas, algumas cabeças de combate de torpedos, bombas de profundidade e foguetes chaff. Frente a essa situação, após cerca de cinco horas extenuantes de lutas para debelar o incêndio, sem sucesso, o comandante do navio se viu na contingência de dar a ordem de abandonar o navio. Ainda foi tentada uma operação de salvamento do Sheffield, rebocando-o para as ilhas de Ascensão ou para a Geórgia do Sul, mas a deterioração do estado do tempo não possibilitou a concretização da ideia. O navio embarcou muita água, e cada vez mais, devido às más condições do mar, sem possibilidade de bombeá-la para fora, levando à decisão de afundá-lo naquela área, em águas profundas, a 10 de maio de 1982, seis dias depois de atingido pelo Exocet. instituiu grupo de trabalho interministerial com o objetivo de elaborar estudos sobre temas a ele pertinentes.(4) Porém, o que é um Livro Branco? Qual a sua importância numa democracia? O que é o Livro Branco de Defesa Nacional? Como se integra com a política e a estratégia de defesa? Qual serão as responsabilidades do Executivo e do Legislativo? Quais as consequências de sua elaboração pelo governo e apreciação pelo Congresso Nacional? quando a Marinha inglesa perdeu duas unidades dessa classe, o Sheffield e o Conventry, que faziam parte da sua força-tarefa, afundados nos ataques aéreos realizados pela Aviação Naval argentina, utilizando mísseis ar-superfície ou bombas, determinaram posteriormente a adoção de medidas corretivas que foram observadas mais especificamente na construção dos destroieres tipo 42 do lote nº 3. Eles tiveram seu comprimento acrescido de 50 pés e seu deslocamento para 4.765 toneladas a toda carga, melhorando seu comportamento no mar. Essa medida contribuiu para aumentar a disponibilidade de espaço e possibilitou a acomodação de um sistema CIWS (close in weapon system) mais efetivo de armamento antiaéreo para defesa de ponto, como o Vulcan Phalanx, para aumentar as dimensões da plataforma de voo junto ao hangar e ainda para instalação de um radar mais moderno. O ataque ao Sheffield, fez com que a força-tarefa inglesa tivesse que alterar substancialmente seu dispositivo, afastando seus naviosaeródromos para leste, tendo que designar uma maior quantidade de navios para lhes prover proteção antiaérea mais efetiva e ainda, que na falta de aeronaves adequadas, tivesse que adaptar helicópteros para realização da função de alarme aéreo antecipado; Para reflexão, pode-se imaginar qual seria a representação do quadro que registra as perdas reais da Marinha inglesa, na Guerra das Malvinas, caso a Aviação Naval argentina tivesse recebido em tempo útil os 14 Super Etendard e uma quantidade maior de mísseis Exocet, adquiridos pouco antes do início das hostilidades. Para finalizar, essa operação, certamente reforça a necessidade que tem qualquer Marinha, de contar com uma aviação de patrulha eficiente. OBSERVAÇÕES FINAIS Referências A capacidade de defesa antimíssil do Destróier Sheffield foi praticamente nula, não tendo ocorrido nenhum tipo de alarme antecipado que lhe permitisse tentar uma manobra evasiva, nem tão pouco, que seu armamento pudesse se contrapor à ação do míssil Exocet AM-39. O desempenho dos destroieres tipo 42 na Guerra das Malvinas, 1. Boletim Del Centro Naval, v. 109, n. 764, Ataque Al Sheffield, 1991. 2. Marshall Cavendish. The Falklands War – day by day record from invasion to victory. 1983. 3. The Sunday Times. “The Falklands War – The Full Story. 1982. 20 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 21 L LIVRO BRANCO ivros brancos (em inglês, “white papers”) fazem parte de um conjunto de livros coloridos que têm sido utilizados pelos governos dos regimes democráticos para expor e realizar consultas a setores da sociedade sobre suas ideias, planos e intenções. Muito utilizados, especialmente pelos governos europeus, eles são reconhecidos como documentos oficiais de governo que abordam um determinado problema e informam como ele será enfrentado. Tratam, geralmente, de problemas políticos ou econômicos. Há livros brancos que abordam problemas de defesa, mas, também, de assuntos internacionais, de negócios, de tecnologia, de saúde, de educação e outros. Historicamente, têm valor mais acentuado: o Livro Branco de Churchill, de 1922, e o Livro Branco, de 1939, ingleses, que abordam o problema de ocupação da Palestina pelos judeus; o Livro Branco sobre Empregos, de 1945, da Austrália, reconhecendo a obrigação do Estado de garantir empregos à população; o Livro Branco de Defesa do Reino Unido, de 1957, redefinindo suas necessidades da defesa; e o Livro Branco de Defesa do Canadá, de 1964, que unificou e modernizou as Forças Armadas daquele país. Os livros verdes (“green papers”), que têm sido publicados mais frequentemente, são também chamados “documentos de consulta” e utilizados para propor uma estratégia ou mostrar as intenções do governo, visando à obtenção de pareceres e o retorno da opinião pública. Por exemplo, na União Europeia, os mais recentes Livros Verdes, publicados em 2010 e 2011, consultam a sociedade sobre temas como a modernização da política de compras, a redução da burocracia para os cidadãos, o aumento da eficiência do sistema de arrecadação, as compras de governo por meio eletrônico e o desenvolvimento sustentável. Livros de outras colorações, como preto e azul, são eventualmente criados para atender a diferentes propósitos. LIVRO BRANCO DE DEFESA Os Livros Brancos de Defesa oferecem, em geral, uma avaliação estratégica do ambiente de defesa e segurança de um Estado, apontam a capacidade desejada para suas Forças Armadas e definem as circunstâncias em que elas podem ser chamadas a intervir. No presente, vários países europeus, asiáticos e africanos já elaboraram e publicaram seus Livros Brancos de Defesa. Nas Américas, o incentivo para a elaboração desses livros partiu do Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos. Ouvindo a Comissão de Segurança Hemisférica, o Conselho editou uma Resolução5 adotando diretrizes para a elaboração dos livros e instando os Estados membros a implementá-las. A resolução identifica a elaboração desses livros como um “mecanismo útil de fortalecimento da confiança e da segurança no Hemisfério” e considera sua preparação como um exercício fundamental de democracia, ao requerer extensa cooperação entre civis e militares. O livro elaborado por cada Estado membro oferecerá aos demais a visão de seus governos a respeito da própria defesa. Para sua sociedade, descreverá o contexto amplo de política e estratégia, refletindo o papel das forças de defesa no conjunto das prioridades nacionais. Mesmo reconhecendo não ser viável estabelecer um formato padrão para os Livros Brancos de Defesa, devido aos diferentes contextos históricos, geográficos, culturais, políticos e fiscais que influenciam cada país, a resolução sugere que eles contenham alguns 22 Revista do Clube Naval • 357 itens comuns. Os Estados membros concordaram em incluir, em seus livros, artigos sobre política e doutrina de defesa, capacidades e padrões de desempenho das FFAA, questões orçamentárias e de recursos e estrutura militar de defesa. Vários países americanos já produziram e publicaram seus Livros Brancos de Defesa, entre os quais a Argentina, o Canadá, o Chile, o Peru, a Nicarágua e a Guatemala. O LIVRO BRANCO DE DEFESA NACIONAL A Câmara aprovou, em março de 2010, o Projeto de Lei Complementar (PLP) no 543/09, do Executivo, que se tornou a Lei Complementar n° 136. Ela promove alterações na Lei Complementar n° Revista do Clube Naval • 357 97, de 1999, cria o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas e determina a elaboração do Livro Branco de Defesa Nacional. No §1° de seu art. 9°, a LC no 136 define o Livro Branco de Defesa Nacional como um “documento de caráter público, por meio do qual se permitirá o acesso ao amplo contexto da Estratégia de Defesa Nacional, em perspectiva de médio e longo prazos, que viabilize o acompanhamento do orçamento e do planejamento plurianual relativos ao setor”, e estabelece que compete ao ministro de Estado da Defesa a sua implantação. O §2° determina que o Livro Branco de Defesa Nacional contenha dados estratégicos, orçamentários, institucionais e materiais detalhados sobre as Forças Armadas, abordando os seguintes tópicos: I – cenário estratégico para o século XXI; II – política nacional de defesa; III – estratégia nacional de defesa; IV – modernização das Forças Armadas; V – racionalização e adaptação das estruturas de defesa; VI – suporte econômico da defesa nacional; VII – as Forças Armadas: Marinha, Exército e Aeronáutica; e VIII –- operações de paz e ajuda humanitária. E o §3° recomenda que o Poder Executivo encaminhe à apreciação do Congresso Nacional, na primeira metade de cada sessão legislativa ordinária, de quatro em quatro anos, a partir de 2012, os seguintes documentos, devidamente atualizados: • a Política de Defesa Nacional, que fixa princípios, conceitos e objetivos; • a Estratégia Nacional de Defesa, que trata de questões institucionais, da organização das Forças Armadas e dos meios para fazer com que a nação participe da defesa; e • o Livro Branco de Defesa Nacional, que promove a divisão de responsabilidades entre o Executivo e o Legislativo e transforma a estratégia de defesa nacional em assunto de Estado. O encaminhamento simultâneo desses três importantes documentos implica que eles serão integrados e coerentes entre si. Em cumprimento à recomendação do Legislativo, a presidente da República determinou, em fevereiro de 2011, a elaboração do Livro Branco de Defesa Nacional. O trabalho ficará sob a responsabilidade do Ministério da Defesa, deverá conter os dados especificados na LC no 136 e observar, como diretrizes: o incentivo a pesquisas e estudos; a realização de parcerias com instituições públicas e privadas; e a integração da ação governamental.6 Para tanto, foi instituído o “Grupo de Trabalho Interministerial do Livro Branco de Defesa Nacional”, integrado por representantes de 11 órgãos do governo federal e presidido pelo representante do 23 Ministério da Defesa. Como esperado, participarão do Grupo de Trabalho representantes dos ministérios da Ciência e Tecnologia, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, da Fazenda, da Justiça, do Planejamento, Orçamento e Gestão, das Relações Exteriores, da secretarias de Assuntos Estratégicos e do Gabinete de Segurança Institucional. Para surpresa de alguns, foram também incluídos representantes do Ministério da Integração Regional e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que, certamente, muito contribuirão para a legitimidade do produto final. Interessante registrar a autorização para que a presidência do Grupo de Trabalho convide representantes de outros órgãos e entidades da administração pública e da sociedade para participar de suas atividades. Entre esses, espera-se que sejam convidadas entidades representativas dos setores acadêmicos, científicos, de comunicações, logísticos e industriais do país. Certamente os centros de estudos estratégicos e as associações de classe terão muito a contribuir, como a Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde), a Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil (Aiab), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), as federações estaduais das indústrias, como a Fiesp, a Firjan, a Firgs, e outras. da responsabilidade sobre a defesa do país entre Executivo e Legislativo. Garante que a estratégia de defesa nacional se torne, como é devido, assunto de Estado, e não apenas de um ou outro governo. Todo o processo de preparação do livro, por promover extensa cooperação entre representantes civis e militares de diversos setores da sociedade, contribuirá para uma ampla conscientização a respeito da missão e do valor das Forças Armadas, e conferirá maior legitimidade à política de defesa nacional. Uma consequência em nível internacional, apontada pelo Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos, é que a elaboração e a troca de informações sobre políticas e doutrinas de defesa nacional contribuirão para o fortalecimento da confiança e da segurança no hemisfério. A visão do Congresso está espelhada no seguinte texto: “a apreciação periódica pelo Parlamento dará a este a responsabilidade que o Legislativo deve ter em questões dessa magnitude, fortalecendo o papel do Congresso Nacional. É preciso que o Poder Legislativo participe do debate dos temas que se relacionam intimamente à própria manutenção do Estado brasileiro”.7 Consideremos, também, que o Livro Branco de Defesa Nacional será um permanente instrumento de prestação de contas. Para tanto, a política e os objetivos constantes do livro deverão ser enunciados com clareza e precisão, e os recursos colocados à disposição das forças de defesa terão que alcançar níveis coerentes. Isso tornará o Ministério da Defesa e as Forças Armadas responsáveis pelos objetivos declarados, mas, também, os capacitará a defender seus pedidos plurianuais de recursos orçamentários, como necessários ao cumprimento da política de defesa enunciada. CONSEQUÊNCIAS O art. 21, item III, da Constituição Federal estabelece que “compete à União assegurar a defesa nacional”. A defesa nacional é, portanto, uma responsabilidade de todos. A elaboração do Livro Branco de Defesa e seu encaminhamento à apreciação do Congresso Nacional, como determina a LC n° 136, traz, como primeira e mais importante consequência, o compartilhamento A análise das consequências apontadas no item anterior mostra que a elaboração do Livro Branco de Defesa Nacional será benéfica aos militares e a todos os cidadãos brasileiros. Esse livro tornar-se-á o esperado guia para orientar aqueles que se preocupam honestamente com a defesa do Brasil. Sem dúvida, devemos oferecer nossa contribuição e empenhar nossos esforços para que esse trabalho seja realizado com a melhor qualidade possível. Finalmente, lembremos que o Livro Branco de Defesa Nacional, pronto e aprovado, tornar-se-á um valioso instrumento de planejamento e acompanhamento, ao cobrar a consecução dos objetivos declarados e ao exigir a colocação dos recursos necessários à disposição das forças de defesa. Notas Lei Complementar n° 136, de 25 de agosto de 2010, que altera a Lei Complementar n° 97, de 9 de junho de 1999. (2) Decreto n° 5.484, de 30 de junho de 2005. (3) Decreto n° 6.703, de 18 de dezembro de 2008. (4) Decreto n° 7.483, de 11 de fevereiro de 2011. (5) Resolução CP/RES. 829 (1342/02), de 6 de novembro de 2002. (6) Decreto n° 7.483, de 11 de fevereiro de 2011. (7) Justificação do PLP-no 547/2009, de autoria do deputado Raul Jungmann, em 10 de dezembro de 2009. (1) CONCLUSÃO A elaboração do Livro Branco de Defesa Nacional pelo Executivo, e sua posterior apreciação pelo Legislativo, se tornará um autêntico exercício de democracia no Brasil. Esse livro, de fundamental importância, oferecerá à sociedade uma visão ampla do governo e do Congresso a respeito da defesa do país. A consulta aos diversos setores representativos da sociedade será imperativa, para conferir maior legitimidade à política de defesa nacional. 24 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 25 DEFESA A ESTRATÉGIA DE DEFESA EO Capitão-de-Mar-e-Guerra-EN/Ref Antonio Didier Vianna Engenheiro Nuclear/PhD PRÉ-SAL A Com o surgimento dos campos produtores dos reservatórios do pré-sal, o problema da proteção dessas novas áreas se tornou extremamente complexo. O pré-sal brasileiro ficou na dependência da soberania do país, assunto que envolve todas as forças vivas da Nação na construção de estratégias, meios e envolvimento de toda a sociedade para garantir o produto e a posse dessas jazidas. O Brasil tem uma posição muito forte sobre essas jazidas, uma vez que foram descobertas, delimitadas, medidas e viabilizadas pela Petrobras, mas talvez não seja suficiente para garantir a plenitude do uso como único proprietário, exigindo outros enfoques, argumentos e posições e imposições. Estratégia de Defesa Nacional em vigor, aprovada por Decreto n o 6.703, de 18/12/08, do governo, estampa na sua Introdução: “Se o Brasil quiser ocupar o lugar que lhe cabe no mundo, precisará estar preparado para defender-se, não somente das agressões, mas também das ameaças. Vive-se em um mundo em que a intimidação tripudia sobre a boa-fé. Nada substitui o envolvimento do povo brasileiro no debate e na construção de sua própria defesa.” Essa política foi estabelecida quando ainda inexistia definido o tamanho da riqueza do pré-sal. Agora não se pode perder tempo e As fatias dos royaltyes do Pré-sal 22,5% 25% Estados produtores e confrontantes Ministério da Ciência e Tecnologia 15% Comando da Marinha 7,5% Municípios afetados 26 7,5% Fundo especial distribuído Revista do Clube Naval • 357 22,5% Municípios produtores e confrontantes Revista do Clube Naval • 357 estar cada vez mais preparados para repelir as ameaças de exploração externa dessa nossa riqueza que breve surgirão, pois teremos a ganância financeira generalizada acrescida das necessidades estratégicas da energia do petróleo que move o mundo atual e que está ficando cada vez mais escassa nos países dominantes. Como a construção dessa defesa é um processo contínuo e permanente, é preciso manter nossa sociedade informada de modo a obter a participação do povo nos processos desse desenvolvimento e se necessário no engajamento direto nas ações. O Congresso Nacional colocou sob responsabilidade da Marinha a fiscalização e a proteção das áreas de produção offshore e destinou parcela fixa dos royalties da produção de petróleo dessas áreas como recursos adequados para isso. A fiscalização foi organizada pela Marinha em cooperação com o Ibama e tem sido realizada com eficiência em caráter permanente. A Petrobras que opera a quase totalidade das plataformas offshore tem priorizado investimentos para que suas equipes de operação das plataformas possam garantir plena execução das leis ambientais. Entretanto, a PROTEÇÂO, converteu-se num problema crucial. Atentar para o seguinte: as reservas descobertas do pré-sal dividem-se em três áreas marítimas bem distintas. 1. Mar territorial brasileiro – sem problemas. Aceitação internacional do domínio brasileiro sobre essas áreas. 2. Zona econômica exclusiva (ZEE). Essa zona vai até o limite de 200 milhas náuticas (cerca de 370 km) além do mar territorial. As normas de exploração dessa região estão fixadas na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982. No entanto cerca de 40 nações não assinaram ou ratificaram a convenção, aí incluídos os EUA e a Venezuela. Nessa zona é que está a maior parte das reservas do pré-sal. O Itamaraty deveria pressionar a presidente Dilma para conseguir que o presidente Chávez da Venezuela ratifique essa convenção. Eliminaria um próximo da área e ativo em petróleo. 3. Mar internacional – há uma faixa da reserva do pré-sal localizada na área de mar internacional. Essa faixa está sendo reivindicada pelo Brasil de acordo com o dispositivo do tratado que garante aos países direito sobre sua “plataforma continental”. Foi requerido à ONU o direito sobre 960 mil km² de plataforma continental em 2004, mas ainda não houve definição. Portanto essa parcela das reservas do pré-sal situadas no mar internacional, ainda é “patrimônio da humanidade”. Deverá ser atuação prioritária de nossas Relações Exteriores a obtenção da aprovação dessa nossa pretensão. Pela Lei no 9.478/97 – conhecida como Lei do Petróleo, o Congresso Nacional determinou, no seu artigo 49, que a parcela do valor do royalty que exceder a 5% da produção terá a seguinte distribuição (ver Lei no 10.261/01): I – quando a lavra ocorrer em terra; II – quando a lavra ocorrer na plataforma continental (offshore) a) 22,5% aos estados produtores confrontantes; b) 22,5% aos municípios produtores confrontantes; c) 15% ao Comando da Marinha para atender aos encargos de fiscalização e proteção das áreas de produção; d) 7,5% aos municípios que sejam afetados pelas operações de embarque e desembarque de petróleo e gás natural; e) 7,5% para constituição de um fundo especial a ser distribuído entre todos os estados, territórios e municípios; f) 25% ao Ministério da Ciência e Tecnologia para financiar programas de amparo à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico relacionados ao produto. O país assistiu no Congresso e na mídia a uma demonstração pública de cobiça generalizada pelo dinheiro dos royalties não 27 “ somente pelo que seria gerado pelo pré-sal, mas também pelo que está sendo produzido pelas plataformas existentes com destinações especificas já estabelecidas pelo Congresso Nacional através da Lei do Petróleo. Essa cobiça que faz parte da mente do ser humano, não é só de políticos brasileiros, mas também de nações que desde que existem procuram saquear os mais fracos e também dos piratas que sempre povoaram os mares do mundo. Como a riqueza do pré-sal é muito grande e será explorada pelos próximos 80 anos, é preciso concentrar recursos para progressivamente adequar nossas defesas e construir um aparato de dissuasão para impedir que essas cobiças, inclusive dos brasileiros inescrupulosos, venham desviar e perturbar a utilização dos benefícios que advirão dessa exploração pela sociedade brasileira. É óbvio que, antes de se falar em royalties do pré-sal, isto é, do lucro líquido da exploração, é preciso garantir abrangência e independência para administrar e gerar recursos para desenvolver os campos, o que permitirá essa exploração. Os royalties são consequência de empreendimento bem-sucedido. A prioridade tem que ser focada no planejamento e nos recursos para viabilizar esse empreendimento e, paralelamente, com a mesma determinação, como protegê-lo da cobiça externa. Essa é uma riqueza excepcional e o país precisa aglutinar competências para fazer um planejamento cuidadoso e sem pressa para ir desenvolvendo os campos paralelamente com os recursos financeiros, de pessoal qualificado, de equipamentos e sistemas de segurança operacional para garantir a produção contínua desse petróleo sem desastres como o do Golfo do México que podem consumir os royalties. Temos observado a pressa com a intenção de utilização das providências sobre o pré-sal em ativo político, visando vantagens de imagem para as eleições de outubro de 2010. Por favor, se O Brasil dispõe de completo domínio do ciclo de combustível nuclear. Produz seu próprio urânio e as centrífugas para enriquecimento. abstenham desse desserviço ao país. Deixem o grupo competente trabalhar, sem pressões políticas e de pressa, para construir condições para nossa sociedade beneficiar-se continuamente e com segurança dessas riquezas. O que vimos no Congresso na cobiça pelos royalties foi uma demonstração do desvario de desqualificados querendo se apropriar indebitamente dos ganhos dos outros sem terem executado qualquer trabalho ou contribuição para criação daquelas riquezas. 28 Revista do Clube Naval • 357 “ Nossa Constituição proíbe o uso de armas nucleares. É bom que fique bem claro que o Brasil não fabrica bombas atômicas por decisão própria do seu povo e do seu Congresso, mas não ameacem a nossa soberania, pois é possível o Congresso Nacional reverter essa posição. nuclear. Produz seu próprio urânio e as centrífugas para enriquecimento. Como o tratado de não proliferação (TNP) permite o enriquecimento até 20% por qualquer país, esse foi o escolhido para utilização nos submarinos nucleares da Marinha, que não são considerados armas nucleares. Nossa Constituição proíbe o uso de armas nucleares. É bom que fique bem claro que o Brasil não fabrica bombas atômicas por decisão própria do seu povo e do seu Congresso, mas não ameacem a nossa soberania, pois é possível o Congresso Nacional reverter essa posição. O Ministério da Defesa negou a imposição americana para que proibíssemos a divulgação do livro Física dos explosivos nucleares do Dr. Dalton Barroso do Instituto Militar de Engenharia (IME). Lá estão didaticamente descritos todos os detalhes físicos e técnicos para a construção dos diferentes artefatos nucleares. É também um reforço para dissuasão saberem que o Brasil dispõe de competência e instalações para tornar a matéria-prima disponível e desenvolver a bomba atômica. Foi positiva a posição do ministro da Defesa. É preciso ser direto e intransigente quando afeta nossa soberania. É bom que o mundo fique consciente do que já foi exposto. Precisamos ser respeitados, pois isso ajuda a dissuasão. Os militares não desenvolveram cultura de marketing, assunto inexistente nos currículos de suas escolas. No mundo moderno, o marketing tem força de persuasão que muitas vezes faz reverter até conceitos arraigados nas sociedades. Substitui a espionagem e as atividades de quintas-colunas, forças da época das guerras do século passado. Com a internet cada vez mais generalizada, o marketing se converteu no vetor estratégico de qualquer empreendimento. É preciso incorporá-lo em todos os procedimentos relativos à nossa Defesa. Assim estará sendo cumprido o que determina o decreto da Estratégia Nacional de Defesa, e é uma das condições para o sucesso, pois coloca o povo e o Congresso participando do Programa de Defesa. Projeto de um submarino nuclear Revista do Clube Naval • 357 “ “ Unidade de produção de pastilhas da fábrica de combustível nuclear da INB Quem não tem competência para gerar riquezas, também não tem para gastá-las. È preciso isolar essa turma de insensatos, do planejamento e execução do pré-sal. Embora não tenha sido divulgada para a sociedade, por não termos essa cultura nos governos, o Ministério da Defesa tem atuado para fortalecer nossa soberania. O país tem hoje uma “Estratégia de Defesa” muito bem costurada e tornada pública por decreto do presidente da República. Paralelamente está implantando o ali estabelecido dentro dos limites de recursos do governo. Por exemplo, o melhor meio de dissuasão contra piratas ou ações semelhantes é a disponibilidade de submarinos nucleares. Esses são os únicos que podem negar os mares a qualquer inimigo. Foi assinado um acordo com o governo francês para completar o desenvolvimento do submarino nuclear brasileiro e toda a infraestrutura de suporte de nossa flotilha de submarinos. O programa tem financiamento do governo francês e está em plena execução. Os royalties destinados em lei do Congresso para a Marinha são suficientes para pagar todo esse programa, desde que liberados para esse fim. Não precisa depender do Tesouro, nem do orçamento anual da República votado pelos congressistas. Basta cumprir o que já foi transformado em lei pelo Congresso. Evita-se assim o que aconteceu com Angra 3 que teve paralisada sua obra por 20 anos e o próprio Programa Nuclear da Marinha cujo projeto do seu submarino nuclear ficou no limbo por 10 anos. O Congresso está discutindo agora a cobiça pelos royalties, entretanto é importantíssimo manter o royalty destinado a proteger as áreas do pré-sal que o Congresso atribuiu à Marinha como condição para que a Marinha possa desenvolver os meios de dissuasão que fortalecerão nossa soberania e protegerão nossas jazidas. O Ministério da Defesa está também no processo de aquisição de um grupo de aviões de caça e de transporte de pessoal e material para suportar nossa Estratégia de Defesa. Essas ações fortalecem a nossa soberania e essa cobertura aérea é também necessária à proteção das áreas do pré-sal. Desenvolver as ações previstas na Estratégia Nacional de Defesa são vitais para ir construindo o reforço contínuo da soberania nacional, base para qualquer tipo de enfrentamento. O Brasil dispõe de completo domínio do ciclo de combustível 29 Combate à pirataria marítima e ao terrorismo: A atividades navais O navio italiano Achille Lauro, sequestrado em 1985, por fundamentalistas palestinos ligados a Al Fatah Capitão-de-mar-e-guerra CARLOS EDUARDO HORTA ARENTZ Mar Mapa de atos de pirataria Vermelho em 2009, mostrando o golfo de Aden, sul do Sudão estreito de Ormuz parte do oceano Índico (fonte: IMB) Ataques reais Oman Somália Quênia Tentativas de ataque Embarcações suspeitas Rep. Unida da Tanzânia Há algumas décadas, o terrorismo enxergou as atividades marítimas como uma de suas possíveis áreas de atuação. O ano de 1985 marcou a história, quando o navio italiano Achille Lauro, um navio de passageiros, foi sequestrado por fundamentalistas palestinos ligados a Al Fatah (o braço armado da Organização para Libertação da Palestina – OLP). A partir dessa ocorrência, Forças Armadas de vários países iniciaram a preparação de unidades de operações especiais para se contrapor a essa nova ameaça, conduzindo treinamentos em navios, terminais portuários e plataformas de exploração de petróleo e gás. 30 um novo campo de atuação para as operações especiais navais? Revista do Clube Naval • 357 pirataria marítima, comum nos séculos XVI e XVII, é outra atividade que vem impondo restrições à liberdade nos mares e causa grandes prejuízos ao comércio internacional. As somas demandadas nos resgates já ultrapassam cifras de milhões de dólares para cada ocorrência (no início de novembro de 2010, foi anunciado o pagamento de US$ 9,5 milhões, o maior resgate pago a piratas, para reaver, um mês depois, o petroleiro sul-coreano sequestrado por piratas somalis em abril). As seguradoras aumentaram os valores cobrados, acarretando o incremento no custo dos fretes, sobretudo nas rotas mais vulneráveis. A Otan já mobiliza um esquema de comboio militar, visando proteger os navios mercantes que transportam ajuda alimentar à população da Somália. Nesse contexto, a costa da Somália tem chamado a atenção da comunidade internacional, pois vem sendo palco da ocorrência rotineira de ataques piratas aos navios que navegam em suas cercanias, por onde passam as rotas que demandam o canal de Suez, golfo de Aden e boa parte do transporte oriundo do estreito de Ormuz. Cerca de 52% dos ataques piratas registrados pelo International Maritime Bureau (IMB) ocorreram na região do chamado “Chifre da África”. Dos ataques efetivamente consumados, 42% se deram contra navios em movimento, havendo registros de ataques conduzidos a 970 milhas náuticas a leste de Mogadishu, o que denota a estrutura de meios marítimos de que podem dispor esses atacantes e sua capacidade de atuação. Este artigo busca expor como os EUA se estruturaram para reagir às ameaças representadas pelo terrorismo e pela pirataria marítima, por meio das suas forças de operações especiais, particularmente os mergulhadores de combate da Marinha norte-americana, conhecidos pela sigla SEAL.(1) A análise realizada apresenta um panorama sumário acerca da estrutura operacional dos SEALs e as alterações introduzidas após os ataques de 11 de setembro de 2001, destacando uma parcela do seu emprego atual: o combate à pirataria marítima e ao terrorismo. No final do texto, é apresentada uma breve comparação entre os SEALs e os mergulhadores de combate (MEC) da Marinha do Brasil. Estrutura dos SEAL Teams Os SEAL Teams são as unidades operacionais dos mergulhadores de combate norte-americanos. Elas são subordinadas ao Naval Special Warfare Command (NSWC), que é o componente marítimo vinculado ao United States Special Operations Command (SOCOM), por sua vez, ligado diretamente ao Ministério da Defesa (Departament of Defense – DoD). Os SEAL Teams Revista do Clube Naval • 357 31 O Naval Special Warfare Command concentra cerca de 2 mil militares SEAL e quase o dobro, quando contabilizados o pessoal de apoio e staff, distribuídos em cinco grandes Comandos (Naval Special Warfare Groups – NSWG). Existem oito SEAL Teams subordinados aos NSWG, possuindo, cada um, cerca de 130 militares SEAL, além da unidade SEAL que opera os veículos minissubmarinos (SEAL Delivery Vehicle Teams – SDVT) e das unidades que operam as embarcações especiais utilizadas pelos SEALs (Special Boat Teams). foi denominada de Esquadrão de Mergulhadores de Combate (Naval Special Warfare Squadron). Além dos SEALs, ela conta também com as embarcações de operações especiais, minissubmarinos e desativadores de artefatos explosivos. Esses esquadrões são normalmente adjudicados a Forças-Tarefas Conjuntas de OpEsp. Antes de 11 de setembro de 2001, os SEALs atuavam estritamente em ambiente marítimo e ribeirinho. Após os ataques, os SEALs passaram a conduzir também outras tarefas de operações especiais, inclusive em ambientes puramente terrestres, como reconhecimentos estratégicos e ações cirúrgicas envolvendo confronto direto com tropas inimigas. Há ainda o SEAL Team 6, oficialmente extinto em 1987, tendo sido reconfigurado, passando a denominar-se DEVGRU ou NSWDG (United States Naval Special Warfare Development Group), sendo encarregado das ações contraterroristas em ambiente marítimo. É uma das unidades mais sigilosas das Forças Armadas norte-americanas, ao lado da Força Delta, do Exército. A mudança: 11 de setembro de 2001 Uma das consequências dos ataques terroristas de 11 de setembro foi a alteração da configuração do emprego operativo dos SEALs, em combate, sobretudo com relação ao apoio tático e logístico e ao comando e controle. O novo conceito passou a adotar o préposicionamento (deployment) de um SEAL Team inteiro, reforçado por destacamentos de outras unidades. Essa estrutura de combate Minissubmarino SDV (SEAL Delivery Vehicle Mk-8). Como não havia informação precisa se as plataformas de petróleo Kaaot e Mabot possuíam algum sistema radar capaz de detectar embarcações na superfície, a coleta de dados de inteligência foi conduzida por meio dos SDV Controle de área marítima, combate à pirataria marítima e defesa das plataformas de petróleo Como sucessão aos ataques de 11 de setembro, diversas ações de abordagens, forçadas ou não, a navios suspeitos de terem ligações ou mesmo que estivessem conduzindo membros da Al-Qaeda foram realizadas pela parcela dos SEALs que se encontrava pré-posicionada nas proximidades do golfo Pérsico. Outra importante tarefa desempenhada por esses militares foi o reconhecimento estratégico da área Revista do Clube Naval • 357 Sequestro do navio mercante MV Maersk Alabama Lifeboat do MV Maersk Alabama terrestre onde viria a ser posteriormente estabelecida a base de operações denominada Camp Rhino, a primeira base avançada estabelecida no Afeganistão, como parte da Operação Enduring Freedom. Durante as operações de interdição marítima (MIO)(2) realizadas antes e durante a invasão do Iraque, os SEALs foram utilizados novamente para abordarem navios e investigarem a existência de membros da Al-Qaeda. Além disso, os SEALs conduziram ações de reconhecimento nas águas do canal que liga o porto de Um Qasr ao Golfo Pérsico, interceptando e capturando todos os navios e embarcações capazes de lançar minas de fundeio. A preocupação com esta ameaça era grande, uma vez que, dias antes da operação, o navio-patrulha USS Firebolt (PC 10), apreendeu 86 minas que estavam sendo conduzidas por uma chata na região. Os SEALs já haviam conduzido reconhecimentos estratégicos submersos nas águas do golfo Pérsico mesmo antes da invasão do Iraque, empregando os veículos submersíveis SDV,(3) lançados por uma embarcação de operações especiais Mk-V. As tarefas atribuídas 32 Saltando com paraquedas (SLOP) Revista do Clube Naval • 357 a essas equipes foram: realizar reconhecimentos hidrográficos submersos das plataformas de petróleo Al Basrah (ou Mina AlBakr Oil Terminal – Mabot) e Khawr al-Amaya (ou Khor alAmaya Oil Terminal – Kaaot). Os SEALs mergulharam por baixo das plataformas e levaram várias horas tirando fotografias e coletando outros dados de inteligência sobre a estrutura, pontos de possível acesso, assim como sobre a atividade e estado de alerta dos iraquianos. Posteriormente, uma força conjunta e combinada de US Navy SEALs foi formada para realizar a captura dessas plataformas. Ela contava com os poloneses do GROM (Grupa Reagowania Operacyjno-Manewrowego – Grupo Operacional de Reação Rápida) e os fuzileiros britânicos, além dos helicópteros e embarcações empregados para a inserção. Mais recentemente, em abril de 2009, uma reação militar interrompeu uma investida pirata contra outro navio desarmado, agora no golfo de Aden, na costa da Somália. Tratou-se do sequestro do navio mercante norte-americano MV Maersk Alabama. No dia 8 de abril, quatro piratas somalis, armados de fuzis AK-47, atacaram o navio, em águas internacionais, a cerca de 350 milhas de distância da costa da Somália, mantendo o comandante como refém. O resgate exigido foi US$ 1 milhão. A Marinha norte-americana determinou ao contratorpedeiro USS Bainbridge que se deslocasse para a área, assim como designou uma equipe SEAL para se encontrar com o navio. O encontro (rendezvouz) ocorreu após a equipe haver saltado com paraquedas (SLOP),(4) em pleno mar, no ponto previamente acertado com o navio. Com a recusa da cooperação por parte dos piratas e considerando o risco a que estava submetido o comandante do navio, os atiradores de precisão SEALs aniquilaram os agentes adversos, possibilitando o resgate bem-sucedido do refém. 33 Os Mergulhadores de Combate do Brasil lançados por submarinos, navios, aviões etc. Entre a gama de equipamentos que utilizam estão vários tipos de equipamentos de mergulho, caiaques, lanchas de alta velocidade, embarcações pneumáticas, paraquedas e armamentos diversos. O GRUMEC realiza, também, a desativação de artefatos explosivos subaquáticos e possui No Brasil, a unidade que se equipara aos SEALs Teams é o Grupamento de Mergulhadores de Combate (GRUMEC). A implementação do mergulho de combate (MEC) na nossa Marinha foi iniciada há cerca de quatro décadas, tendo sido possível devido aos conhecimentos adquiridos pelos oficiais e praças que lograram êxito nos cursos de MEC realizados junto às Marinhas dos Estados Unidos da América e da França. Nossos Mergulhadores de Combate são especialmente selecionados e adestrados para atuarem em ambientes de risco elevado, empregando técnicas e métodos não convencionais, podendo ser O Grupamento de Mergulhadores de Combate (GRUMEC) em treinamento Conclusão Militares do GERR/MEC em adestramento de retomada e resgate 34 Revista do Clube Naval • 357 exímios atiradores de precisão (snipers). Nos anos iniciais, a atividade MEC no Brasil seguiu a doutrina desenvolvida na II Guerra Mundial, conflito em que os mergulhadores de combate de outras Marinhas foram empregados realizando a colocação de explosivos nas obras vivas de navios inimigos. Nesse cruento combate eles também conduziram levantamentos hidrográficos das praias escolhidas para operações anfíbias, demolindo os eventuais obstáculos existentes, de modo a prover melhores condições de abicagem para as embarcações e navios de desembarque. Mas, ao longo dos anos, o GRUMEC incorporou novas doutrinas e desenvolveu procedimentos próprios. Assim, devido às suas habilitações específicas, os Mergulhadores de Combate da Marinha do Brasil (MB) têm papel relevante nas operações clássicas da guerra naval, assim como no combate ao terrorismo e à pirataria em navios e instalações petrolíferas, entre outros delitos transfronteiriços atuantes no mar. Complementarmente, os Destacamentos de Abordagem do GRUMEC vêm fazendo parte das forças navais, em apoio aos Grupos de Visita e Inspeção (GVI) dos nossos navios, contribuindo sobremaneira nas ações de fiscalização das águas jurisdicionais brasileiras e nas operações de controle de área marítima, atuando previamente aos GVI, em caso de alvos não cooperativos ou potencialmente hostis. A MB conta também com o Grupo Especial de Retomada e Resgate do GRUMEC (GERR/MEC), voltado, desde a década de 1980, para ações contra elementos adversos em ambiente marítimo, contribuindo para a proteção dos inúmeros terminais e plataformas petrolíferas e navios na nossa Amazônia Azul. O GRUMEC é, portanto, uma importante parcela do Poder Naval do Brasil, podendo ser empregado nos mais variados ambientes operacionais, em perfeita sintonia com as mudanças do século XXI, em face de sua estrutura eficiente, de grande flexibilidade e agilidade de emprego em múltiplas tarefas. Revista do Clube Naval • 357 Os conflitos atuais e os delitos marítimos que transpassam as fronteiras nacionais têm carreado as Marinhas de vários países desenvolvidos para algumas transformações estruturais, como a dos Estados Unidos da América, visando responder adequadamente a tais ameaças. A nação norte-americana, que representa, desde o esfacelamento da União Soviética, o principal poder militar estatal existente no mundo, capaz de atuar em várias partes do planeta, conta com um conjunto de militares de sua Marinha, altamente selecionados Lancha de e adestrados, contribuindo de Operações Especiais forma relevante nessa empreiMk-V, usada pelos tada: seus mergulhadores de SEALs combate – os SEALs. Tendo em vista o rigoroso processo de formação, o custobenefício compensador (5) e um razoável período de efetivação da qualificação operativa, (6) cabe ressaltar a importância que vem sendo dada a esses combatentes de elite, uma vez que forças de operações especiais não são produzidas em massa, após um conflito haver surgido. 35 Nos combates mais recentes, os SEALs estão sendo empregados de forma conjunta com outras tropas de operações especiais, inclusive estrangeiras, conduzindo reconhecimentos estratégicos terrestres ou submersos, realizando ações de busca e captura de membros da Al-Qaeda e suas células coirmãs, assalto tático a instalações, combate ao terrorismo, entre outras tarefas. Fora dos conflitos, eles vêm atuando, também, na repressão à pirataria marítima e aos outros crimes internacionais. O mundo globalizado, hoje, é multifacetado e o mar representa um de seus aspectos mais importantes, pois cerca de 90% do comércio mundial tem com força propulsora o transporte marítimo. O Brasil é igualmente dependente desse sistema, uma vez que 95% do nosso comércio internacional e cerca de 90% da produção de petróleo e gás natural são potenciais ligados ao mar. Com a perspectiva do pré-sal, estima-se que o Brasil será, em duas décadas, o 6º maior produtor de petróleo do mundo, o que já vem gerando grandes atenções, que por sua vez, tendem a aumentar as potencialidades de ataques externos, estatais ou não, caso esteja vulnerável e não possa reagir ou se precaver. Nesse contexto, a Estratégia Nacional de Defesa (END), aprovada em 2008, traça os caminhos para o remodelamento das nossas forças de defesa. Na MB, concernente à END, faz-se destaque para a perspectiva da implementação do Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz) que, em conjunto com os meios navais necessários, entre eles o GRUMEC, contará com uma infraestrutura de resposta adequada à vigilância, acompanhamento e reação às eventuais ameaças. Particularmente ao Brasil, em cujas águas jurisdicionais e leito marinho repousam imensos recursos vivos e não vivos, representando parcela significativa da economia nacional e um potencial marcante no cenário internacional, cabe prover-se de meios navais e estruturas compatíveis com os interesses da nossa pátria. A Marinha vem buscando compor o arcabouço correspondente às necessidades afetas à defesa da nossa Amazônia Azul, estando o GRUMEC plenamente inserido neste contexto. Warfare Studies. Newport Paper Thirty-five. jan. 2010. Disponível em: <http://www.dtic.mil/cgi-bin/GetTRDoc ?AD=ADA518439&Location=U2&doc=GetTRDoc.pdf>. Acesso em: 13 out. 2010. GIOPPO, Carolina Isabel Lazzari. A pirataria nas águas costeiras da Somália: fatores responsáveis pala rápida proliferação dessa atividade na região e a aplicação SEALs do Direito Internacional. Revista Marítima Brasileira, embarcando em submarino, pelo Rio de Janeiro, jul./set. 2010. método fast rope, GUEDES, Henrique Peyroteo Portella. Volta-face na antes de seguirem pirataria marítima. Revista Marítima Brasileira, Rio de para a área de Janeiro, jul./set. 2010. operações LUTTRELL, Marcus. The Lone Survivor: The Eyewitness Account of Operation Redwing and the Lost Heroes of SEAL Referências Bibliográficas: Team 10. New York: Hachette Book Group, 2007. ARENTZ, Carlos Eduardo Horta. O Direito Internacional ante MICHELETTI, Eric. Special Forces in Iraq. Paris: Ed. Historie as ameaças à paz mundial e o papel das Forças Armadas. Rio de & Collections, 2006. Janeiro, 2008, 51f. Monografia (Graduação do Curso de Direito da MS ACHILLE LAURO. In: WIKIPEDIA Encyclopedia. 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(2) Maritime Interdiction Operations – uma modalidade mais reativa das Operações de Controle de Área Marítima. (3) SEAL Delivery Vehicle. (4) Salto Livre Operacional – SLOP, no qual os SEALs saltam com seu armamento, equipamento e, por vezes, também com embarcações. (5) Investimentos relativamente pequenos, comparados às forças convencionais, grande poder de destruição em alvos pontuais e possibilidade de mínima exposição política em certos casos. (6) Cerca de dois a três anos. 37 ensaio TI TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO Uma síntese da participação dos Oficiais da Marinha na formação da sua base técnica no Brasil Antônio Tângari Filho N Introdução este século XXI a sigla TI aparece com frequência em textos de natureza não técnica, em revistas, jornais e programas de rádio e de TV. Leitores, ouvintes e telespectadores, não habituados aos jargões do ramo, antigamente chamados de “ibemês”, só ficam sabendo que se trata de tecnologia da informação, acompanhando a matéria até o final. De forma resumida, TI é o título que se dá ao conjunto: processamento de dados (ped); informática; teleprocessamento; banco de dados; processamento distribuído; acesso à internet; celulares. Muitas dessas técnicas, já existentes desde antes da metade do século XX combinadas ou isoladamente, são hoje fundamentais para praticamente todas as empresas, escolas, atividades de Estado, e 38 até mesmo para o conforto dos nossos lares. Podemos dizer que se trata de um neologismo, para se referir às atividades de tratamento da informação. A criação de novas expressões é muito comum, em se tratando de tecnologias em permanente mutação. No presente ensaio serão mencionadas as várias denominações, ligadas ao contexto e época em que foram utilizadas, todas elas nos remetendo ao termo atual, tecnologia da informação (TI). As famílias brasileiras têm cada vez mais acesso a microcomputadores desktops, laptops, e a modernos tablets, com muitos usuários domiciliares ligados à grande rede “internet”. Paralelamente, os governantes se esforçam em massificar o uso da tecnologia, com programas do tipo “Internet para Todos”, “Banda Larga sem Fio Gratuita para a População” – lamentavelmente em esforço nem sempre bem coordenado e efetivo – para universalizar o conhecimento e uso dessas modernas tecnologias. A Fundação Getulio Vargas, na sua 21ª Pesquisa Anual, diz que em 2010 o Brasil já tem 72 milhões de computadores pessoais em uso (desktop, PC, notebook, netbook). Segundo essa mesma pesquisa, a previsão é de que até 2014 venham a ser 140 milhões, ou seja, duas máquinas para cada três habitantes. Quanto ao uso da internet, por banda larga ou por linha discada, levantamentos feitos pelas entidades ligadas à TI apontam para 10,8 milhões de IP (endereços de máquinas diretamente conectadas em todo o território nacional com a internet), e cerca de 54 milhões de brasileiros com acesso à Rede, considerados domicílios, escolas, Revista do Clube Naval • 357 empresas públicas e privadas, órgãos governamentais, bem como usuários via telefonia móvel e lan houses. No entanto, poucos brasileiros sabem da intensa participação da Marinha do Brasil, por meio dos seus Oficiais, no desenvolvimento dessa tecnologia. O propósito deste artigo é contar um pouco dessa história, procurando não cansar o prezado leitor, muito embora venha a ser mandatório citar nomes e datas. Desde já, o autor, que deixou o Serviço Ativo da Marinha em 1976, ressalta que as experiências e participantes mencionados nessa pequena história, por certo não são os únicos. Admite e se desculpa perante os possíveis leitores pelas suas limitações e falhas de memória, em parte decorrentes ainda da intenção de se restringir às dimensões reduzidas em que um artigo dessa natureza teve que ser contido. A ideia de escrever sobre assunto tão empolgante, surgiu há alguns anos, durante almoço com um pequeno grupo de amigos do Corpo de Intendentes da Marinha, no qual alguns fatos aqui narrados foram rememorados. Revista do Clube Naval • 357 39 Primórdios Funções Técnicas (QFT), inúmeros Oficiais Superiores da Marinha optaram por fazer mestrado e doutorado em informática em universidades (PUC, Unicamp, USP), ao serem aprovados para cursar a Escola de Guerra Naval. Isto gerou maior interação da Marinha com a sociedade civil no que se refere àquela tecnologia, avançada e em permanente expansão. Pretende-se registrar participações expressivas da Marinha e de seus Oficiais em empresas, instituições e iniciativas na informática, que permitiram a sua constante evolução, até se chegar ao estágio atual, em que a tecnologia da informação (TI) se mostra tão presente. Será mencionada também a expressiva contribuição do uso intenso de apoio de informática às atividades técnico-administrativas da Marinha, que permitiu a implantação de sistemas inéditos no Brasil. O sucesso de alguns destes sistemas, chamou a atenção de outros setores das administrações federal, estadual e municipal, e de empresas privadas, sendo aproveitadas as experiências dos Oficiais da Marinha envolvidos na sua concepção e desenvolvimento. Em se tratando de um artigo, fica a esperança de que desperte a curiosidade de outros colegas da Marinha, que por certo tiveram participação marcante nesta história e poderão corrigir lacunas ou falhas eventualmente cometidas pelo autor, que se considera um perfeito “dinossauro”, se comparado aos jovens que hoje atuam neste campo. A sua principal vantagem é a de ter tido o privilégio de acompanhar pessoalmente uma pequena parte dessa “saga”, digna de ser mais aprofundada e divulgada para as novas gerações. Na década de 40 do século passado, a Comissão de Marinha Mercante (CMM) criada em 7/3/1941, órgão vinculado ao Ministério da Marinha até o final dos anos 60 – quando foi transferida para o Ministério dos Transportes, e posteriormente reorganizada sob o nome de Superintendência Nacional de Marinha Mercante (Sunamam) – já utilizava recursos de processamento de dados. Logo após a sua criação, a CMM contratou à IBM máquinas, então chamadas de convencionais, nas quais eram tabulados e listados os dados estatísticos relativos à movimentação de carga por via marítima/fluvial. Essa experiência em processamento de dados, desenvolvida na Marinha à época, era também aplicada pioneiramente no controle do pagamento do seu pessoal militar e civil, assim como em algumas grandes empresas no Brasil. O termo “hollerit”, como são chamados os bilhetes de pagamento até hoje, nos remete ao estatístico norte americano Hermann Hollerit (1860/1929) fundador da empresa Tabulation Machines Corporation que deu origem à empresa IBM, fabricante das máquinas usadas para processá-los e imprimi-los, e antigamente utilizadas no Sistema de Pagamento da Marinha. A IBM desenvolveu o primeiro computador, o Eniac em 1941, Sendo até os dias atuais, líder na venda de equipamentos de grande porte, os chamados mainframes. Na CMM, embora sob nova jurisdição, não foi desprezada a utilização de processamento de dados. Pelo contrário, foi cada vez mais expandida, em razão do aumento do volume de informações relativas ao transporte aquaviário a serem trabalhadas, e da criação do adicional de frete marítimo, para cujo cálculo era essencial a manutenção de uma base de dados estatísticos a partir do controle dos manifestos de carga. Este fato levou a que cada vez mais fossem necessários equipamentos de grande porte, e técnicos para desenvolver, manter e gerenciar tais atividades. Assim, mesmo não mais subordinada ao Ministério da Marinha a CMM, bem como a sua sucessora Sunamam, sempre contaram com Oficiais cedidos pela Marinha – ou que passaram a prestar serviços àquelas organizações após sua transferência para a Reserva – para desempenhar as suas funções específicas, muito ligadas à atividade marítima. Concomitantemente, outras atividades de processamento de dados na Marinha também evoluíam quase que geometricamente, de sorte que, em 1965/66, a Diretoria de Intendência da Marinha contratou junto à IBM um dos primeiros computadores de grande porte em uso no país, modelo IBM/360. Antes já tinha acumulado grande experiência no uso do computador IBM-1401 cuja memória era de no máximo 32KB, mas diferentemente das máquinas classificadoras e de tabulação convencionais, permitia linguagens de programação (Fortran, Cobol, RPG), em substituição à montagem de instruções através de painéis. A excepcional capacidade de processamento, alocada à Diretoria de Intendência, apoiou também as complexas e vitais tarefas da Diretoria de Hidrografia e Navegação (DHN), assim como outros setores da Marinha, enquanto não possuíam equipamentos próprios, como por exemplo, a Diretoria de Pessoal, o Centro de Controle de Estoque de Material, o Departamento de Pessoal do Comando Geral do Corpo de Fuzileiros Navais, o Centro de Adestramento Alte. Marques Leão (Camaleão), entre outros. Oficiais de Marinha – dos Corpos da Armada, de Fuzileiros Navais e do Corpo de Intendentes – foram indicados para fazer cursos específicos de programação nas dependências do Centro Educacional da IBM, estrategicamente instalado na Rua Teófilo Acima, em 1956, o disco rígido de 5Mb do primeiro computador com HD, da IBM (Foto cedida por Jorge e Janete Braga). Abaixo, um IBM 360, em plena atividade Hermann Hollerit (1860/1929), fundador da IBM Otoni, bem próximo do prédio do então Ministério da Marinha, hoje sede do Primeiro Distrito Naval. Mostrando a preocupação da Marinha com o assunto, bem antes de 1965, quando foi adquirido o primeiro grande computador, o Currículo do Estágio dos GGMM (IM) já incluía um curso básico de processamento de dados. Curiosamente, naquela mesma via pública, no final da década de 1970, foi inicialmente instalado o Instituto de Processamento de Dados e Informática da Marinha (IPDIM), no local onde hoje está a sede da Diretoria de Portos e Costas da Marinha (DPC). O contato cada vez mais frequente dos Oficiais da Marinha com o mundo do processamento de dados levou à busca de talentos na Marinha do Brasil, em decorrência da expansão do mercado que se verificou a partir da década de 60 e pela carência de técnicos especializados. A própria IBM se tornou uma voraz atuante nesse tipo de “recrutamento”. Na opinião deste autor, a perda de inteligências para o mercado, em que pese ser no curto prazo prejudicial para a Marinha, sob o aspecto macroeconômico foi um grande benefício para o país. Este pessoal, altamente qualificado, tem sido responsável pelo desenvolvimento da informática e sua aplicação em inúmeras atividades, colaborando para o progresso da nação. Posteriormente, com a criação do então chamado Quadro de 40 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 41 Rússia É de suma importância que nós brasileiros, hoje usufruindo desta maravilha que é a TI, saibamos da luta que foi chegar até ela, para não esmorecermos na busca do permanente aperfeiçoamento, única maneira de não se perder o nível técnico atingido e conseguir acompanhar a sua explosiva evolução. Mesmo a aparentemente singela facilidade de nossos filhos e netos poderem se sentar diante de um micro com jogos eletrônicos, não chegou até eles de “mão beijada”. Bielo-Rússia Angola A Marinha do Brasil e a informática Considerações preliminares Já foi mencionado anteriormente que inúmeros Oficiais da Marinha se dedicaram ao estudo, pesquisa, desenvolvimento e implantação de técnicas relacionadas com o uso de processamento de dados, desde a década de 40 do século XX, época em que no Brasil não havia o ensino do assunto nos bancos escolares. De forma natural, em razão das suas atividades na Marinha, os Oficiais Intendentes direcionaram-se para o software, e os Oficiais da Armada e Engenheiros, em especial os de eletrônica para o hardware ou para o “software básico”, necessários à operação de equipamentos eletrônicos instalados a bordo dos navios da Marinha. Sabiamente, as Autoridades Navais criaram o Instituto de Processamento de Dados e Informática da Marinha (IPDIM) e o Centro de Análise de Sistemas Navais (CASNAV), ambos no início da década de 1970, reconhecendo a necessidade de tratar separadamente as especializações. Deve ser destacado que, detalhar a contribuição destes Oficiais no aperfeiçoamento da informática na Marinha, não é o propósito deste artigo, reconhecida que é como tendo atingido – como se diria no ibemês antigo – um nível bastante sofisticado no “estado da arte”, mas a sua contribuição para o Brasil em geral. A propósito, muito se discutiu e ainda se discute, se a informática é ciência ou arte. Os pioneiros da Assespro, Sucesu, Capre, Cobra, e outras entidades ligadas ao meio, optaram por não adotar o termo “computer science”, como o processamento de dados passou a ser chamado nos Estados Unidos. Foi preferida a expressão francesa “informatique”, julgada mais abrangente. Provavelmente, dessa decisão derivou a ampla divulgação da tecnologia pelo termo “informática”. A esta terminologia, se seguiram outras denominações, até passar a ser consagradamente chamada de TI – tecnologia da informação. Voltando ao tema deste artigo – a participação da Marinha e de seus Oficiais no desenvolvimento da TI – em pesquisa sem grande grau de aprofundamento, pode ser verificado que entre 1960 e 1980 mais de 50 Oficiais, ao pedirem seu desligamento do Serviço Ativo, ou se transferirem para a Reserva, ocuparam ou ainda ocupam funções de destaque nessa área de conhecimento. Essa participação abrange diversas atividades, tais como: • indústrias de equipamentos (hardware); • concepção de sistemas e programas básicos (software); • desenvolvimento de sistemas e programas aplicativos (software); • vendas de hardware e software e treinamento dos usuários; • integração dos sistemas com as telecomunicações; • ensino em universidades e cursos específicos de informática; • consultoria e implantação de sistemas informatizados. Determinante também para essa contribuição, foi o fato de que diversos sistemas de uso corrente na Marinha tiveram emprego quase que imediato em atividades empresariais e governamentais, Peru México República Dominicana O Siafi, inicialmente implantado na Marinha, acabou sendo atodado por muitos países gestão na Rússia, Bielo-Rússia, Angola, Peru, México, República Dominicana, e outros países. A seguir serão lembradas experiências específicas de Oficiais da Marinha no âmbito da informática ressaltando a influência de suas atuações, e grupando-as em tópicos que sejam correlatos. Como ressalvado anteriormente, não há a pretensão de esgotar o assunto, muito menos de registrar de forma completa e com exatidão cronológica a participação de todos os que saíram da Marinha e ingressaram neste mundo novo, levando seu conhecimento técnico e vontade de colaborar para o engrandecimento do Brasil, além das atender às suas realizações pessoais e profissionais. Trata-se tão somente de mostrar um panorama geral, com o propósito de propiciar ao leitor o conhecimento do que foi feito pelo pessoal da Marinha, para e pela informática do nosso país. Antes, voltando à Escola Naval, nos idos de 1957/1958, não pode deixar de ser mencionado que o Comte (IM) Carlos Augusto Guimarães Cordovil, professor de Cálculo Integral e posteriormente de Mecanografia na Escola Naval era um grande incentivador do estudo de ciências exatas. Foi ele responsável pelo convencimento e tomada de decisão por Oficiais da Marinha de algumas gerações, de que deveriam continuar estudando, alguns optando por Matemática, Economia, Estatística, Contabilidade, Física, ou Engenharia Eletrônica, já que não havia ainda cursos regulares de processamento de dados no Brasil. Ele próprio dizia que tinha um pequeno local sossegado, para poder se manter atualizado nas matérias que lecionava. Ao deixar o Serviço Ativo da Marinha, em 1961, foi um dos primeiros contratados pela IBM do Brasil. Nos estabelecimentos bancários e financeiros na medida em que os seus Oficiais se retiravam do Serviço Ativo e de pronto eram recrutados pela sociedade civil. Exemplos incontestes, para ficar somente em casos mais marcantes, podem ser mencionados: • uso do dígito verificador, adotado pelo Sistema de Pagamento da Marinha, e hoje disseminado em todos os sistemas que processam grandes cadastros; • técnicas de abastecimento controle e catalogação de material, indispensáveis para qualquer entidade, de grande ou médio porte; • Sistema de Pagamento da Marinha, iniciado na década de 1940, e considerado dos mais aperfeiçoados, sendo replicado em inúmeras empresas e organizações do Brasil; • Sistema de Consignações (desconto em folha de pagamento), que atualmente serve de base para o tão festejado crédito consignado; • Sistema de Controle e Acompanhamento do Plano Diretor (planejamento e execução orçamentária), implantado na Marinha nas décadas de 1960/1970, e transplantado com sucesso para empresas, e entidades públicas no país e no exterior. Deve ser ressaltado ainda que a meta de transparência nas despesas públicas, hoje tão festejada nos meios de comunicação pela facilidade de acesso via internet – vide as informações divulgadas pela ONG Contas Abertas – não teria sido possível sem a participação da Marinha. O primeiro ministério a descentralizar a Execução Financeira do Orçamento, com base em um sofisticado Sistema de Processamento de Dados foi o da Marinha, em 1967. Essa descentralização reduziu a um mínimo as Despesas sob o Regime de Adiantamento de Recursos, complicado e de difícil aplicação e controle. Com a Circular nº 12 da Diretoria de Intendência da Marinha, editada em 1967, foi dada a partida para ser projetado o hoje conhecido Siafi, Sistema Integrado de Administração Financeira, em vigor nos governos federais, estaduais e municipais do Brasil. A Circular 42 Revista do Clube Naval • 357 nº 12 foi de tal repercussão positiva na Marinha que, além de passar a ser cognominada por alguns como Circular do Zé (carinhosa e reconhecida alusão ao seu mentor inicial, Comte Edison José Ribeiro), constou da publicação do Ministério do Planejamento Anais da Reforma Administrativa no Brasil como sendo um dos marcos daquela Reforma. Além da responsabilidade do Comte Edison na sua concepção, deve ser destacado o indispensável apoio de Diretor de Intendência da Marinha à época, VA (IM) Arnoldo Hasselmann Fairbairn. Além de colocar à disposição a estrutura da Diretoria, designou dois Oficiais para, em regime de mutirão (o autor deste ensaio e o Ten (IM) Roberto Ricardo Calazans Tavares), auxiliarem o Comte Edison na redação final, bem como na elaboração dos formulários, anexos e demais documentos que vieram a compor essa Circular. Tudo pronto, mas faltava a impressão dos documentos para possibilitar a sua distribuição por todas as organizações da MB. Entra aí, o espírito de equipe dos Intendentes da Marinha. O então Comte (IM) Geraldo Souza Vieira servindo da DHN (futuro Oficial General e Diretor da Diretoria de Intendência da Marinha), obteve autorização para que o trabalho fosse feito na gráfica daquela Diretoria, com qualidade excepcional, o que em muito contribuiu para a sua rápida assimilação pela Marinha. O Siafi inicialmente implantado na Marinha e idealizado pelo Comte (IM) Edison José Ribeiro, baseado na primeira experiência acima detalhada, e com a participação de uma equipe altamente capacitada da Marinha, foi adotado pelos diversos níveis do governo e até mesmo exportado. Assim é que, o Comte (IM) Carlos de Andrade Duarte, que ao se transferir para a Reserva trabalhou na Secretaria do Tesouro Nacional no desenvolvimento e implantação do Siafi no governo federal, nos anos de 1986 e 1987, e o Comte Edison, foram contratados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para implantar nossas técnicas de gerência e controle de orçamento e Revista do Clube Naval • 357 Em 1968, o Banco Nacional do Norte criou a sua Diretoria de Processamento de Dados, chamando para ser titular o Comte (IM) Zemar Carneiro de Rezende, antigo chefe da Divisão de Consignações da Diretoria de Intendência da Marinha, à época se transferindo para a Reserva. O Comte Zemar, posteriormente convidou um antigo seu comandado, o Comte (IM) Manfredo Carlos Zenkert, que se retirou do Serviço Ativo da Marinha para também trabalhar no Banorte. Em 1967, deixa o Serviço Ativo da Marinha o Comte (CA) Adolpho Ferreira de Oliveira, para fundar a corretora que levou o seu nome, posteriormente transformada em banco. Essa corretora foi uma das primeiras do Rio de Janeiro a utilizar um terminal para consulta à Bolsa de Valores, Para tal se valeu da experiência adquirida na Marinha, e buscou a assessoria de Oficiais familiarizados com o desenvolvimento de software. Também, de grande importância tem sido a contribuição para as entidades bancárias no desenvolvimento de software, através da consultoria para automação bancária, prestada já no final do século XX e início do século XXI, pelos técnicos da empresa Lab-System, fundada pelo Comte (IM) Osmar Boavista da Cunha Júnior, tendo como um dos seus colaboradores o autor deste trabalho. Nos setores de hardware, “software básico” e equipamentos periféricos Em 1961, o Comte (EN) Antônio Carlos Didier Barbosa Vianna pede transferência para a Reserva. Atuando na área de hardware fundou as empresas Microlab e Impelco, localizadas no Rio de Janeiro, produzindo diversos equipamentos entre os quais, unidades de fita magnética, discos rígidos e winchesters, então essenciais para os Centros de Processamento de Dados. Foi presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Computadores e Periféricos (Abicomp). Merece uma referência especial a participação da Marinha no 43 desenvolvimento, no Laboratório de Sistemas Digitais da USP, do primeiro computador nacional de 8 bits com 4 Kbites de memória. O inicialmente chamado “Patinho Feio” concluído em 1972. Patinho Feio, em alusão à canção “Cisne Branco”, bastante conhecida nos navios e estabelecimentos navais. Esse projeto, apoiado enfaticamente pela Marinha, que estava interessada em desenvolver equipamentos e “software básico” para as Fragatas em início de construção na Inglaterra, muito contribuiu para a base tecnológica da qual se derivou a indústria de eletrônica e microeletrônica no Brasil. Alguns Oficiais da Marinha se dedicaram denodadamente ao projeto, que visava procurar substituir equipamentos importados por similares construídos no Brasil. A empresa Cobra – Computadores Brasileiros, fundada em 1974, com forte apoio da Marinha e do BNDE foi herdeira desse desenvolvimento, lançando em 1980 o computador Cobra 530, que derivou do Projeto G-10 (o G tirado da inicial do nome de guerra do Comte (CA) José Luiz Guaranys Rego, especializado em eletrônica). Na Marinha e em alguns meios acadêmicos, esse projeto pioneiro ficou conhecido como Projeto Guaranys. A Cobra, além de outros diretores, teve dois Oficiais da Marinha na sua Presidência, o Alte (EN) José Claudio Frederico Beltrão e o Comte Antônio Carlos de Loyola Reis. O Comte Guaranys, juntamente com o Comte (EN) Cleofas Ismael de Medeiros Uchoa, então já tendo saído do Serviço Ativo da Marinha e atuando na Digibrás, assim como o Comte (CA) Pedro Paulo Betim Paes Leme, também especializado em eletrônica, atuaram de forma marcante nessa fase embrionária da indústria eletrônica do país. Na ocasião, a Marinha tinha uma grande preocupação em absorver a tecnologia da empresa Ferranti, que fornecia os equipamentos eletrônicos das Fragatas, como dito anteriormente, em construção na Inglaterra e com previsão para posteriormente serem construídas no Brasil, como realmente o foram, no Arsenal da Marinha do Rio de Janeiro. São testemunhos da influência desses Oficiais da Marinha naqueles chamados “tempos difíceis” da indústria nacional, os seguintes pronunciamentos de profissionais isentos, por serem estranhos à Marinha. • Homenagem ao Comte Paes Leme na Sessão Solene de Abertura do Primeiro Congresso Nacional de Processamento de Dados, em 9 de setembro de 1968. “Antes de mais nada, é nosso dever prestar uma homenagem ao Comte Pedro Paulo Betim Paes Leme, que morreu trabalhando. Para tal estirpe de homem é que peço ao Plenário um minuto de silêncio, de pé, como nossa sincera e última homenagem.” Palavras do coordenador-geral do Congresso Eng. Juan Missirlian. Este Primeiro Congresso de Informática, bastante prestigiado pela MB, constitui um dos marcos da grande interação da Marinha com a sociedade civil. • Trechos do livro Rastro de cobra, de 1984, no qual sua autora, Silvia Helena Vianna Rodrigues, conta a saga da criação e consolidação da Cobra – Computadores Brasileiros: “Um dos maiores batalhadores pela criação da indústria brasileira de computadores, Guaranys não viveu para ver concretizada a primeira empresa: a Cobra que ajudou a criar... O comandante Guaranys era dos mais atentos, na Diretoria de Eletrônica da Marinha, para a questão das modificações introduzidas pelos equipamentos de computação em todo o funcionamento naval.” “Uchoa deixara a Marinha em 1968, assumindo a Diretoria Técnica da Digibrás, presidida por Ézio Távora... Passada pelo presidente da Digibrás a Uchoa... este assumiu a tarefa com garra, e em julho estava feita a Cobra.” O governo federal, primeiramente em 1975, através da Capre – Comissão de Coordenação das Atividades de Processamento Eletrônico, subordinada à Seplan, e a partir de 1979, da Secretaria Especial de Informática (SEI), subordinada ao Conselho de Segurança Nacional, passou a interferir diretamente na formulação de uma Política Nacional de Informática, gerando a chamada Reserva de Mercado. À época objetivava não só o progresso da indústria local, mas também reduzir os resultados negativos da Balança de Pagamentos do país. Não cabe neste artigo descrever as incontáveis discussões em torno do tema. A Reserva de Mercado teve muitos defensores e detratores. No entanto, deve-se reconhecer que os estímulos à pesquisa e desenvolvimento dela advindos, em muito colaboraram para a formação da ampla base industrial existente hoje em dia, da mesma maneira que a posterior abertura propiciou a inserção do Brasil no mercado global de computadores e demais equipamentos eletrônicos correlatos. Em 1987, assume a SEI um Oficial da Marinha, o Comte (CA) José Ezil Veiga da Rocha, na fase em que a Reserva de Mercado já estava sendo flexibilizada. Em 1988/89, na sua gestão, foi atualizado o Plano Nacional de Informática (Planin), que incluiu uma Proposta de Plano Setorial de Informática nos Transportes, através da Comissão Especial nº 31. No Plano Setorial, que contou com a coordenação do autor deste artigo na qualidade de representante da Sunamam, foi proposto um projeto denominado Projeto Navio. Este projeto foi aprovado por aclamação 44 Revista do Clube Naval • 357 na Reunião Plenária da Comissão, realizada em Brasília. O Projeto Navio, do qual participaram representantes dos setores ligados aos transportes (estaleiros, armadores, companhias de navegação, DNER, Geipot, Portobràs), detalhava e propunha medidas de estímulo à informatização dos navios, desde a construção até a operação, bem como na sua relação com os portos quando da atracação e despacho. Talvez, um tanto ou quanto utopicamente, mencionava o futuro de se ter navios operando com apenas nove tripulantes, além do seu comandante! O período de 1985 até 1989 foi muito profícuo no uso da informática na Sunamam, graças ao apoio de seus principais diretores, Comte Murillo Rubens Habbemma de Maia, Superintendente-Geral, Comte Wander Amoroso Wang, Diretor-Geral de Planejamento e Comte Alfredo Pinto de Magalhães Júnior, Diretor-Geral de Administração, que não mediram esforços para dotar a organização de recursos para os investimentos em hardware planejados nos seus Planos Diretores de Informática (PDI). Seu principal “cliente” da informática, o Diretor de Estatística, Comte Nauro Monteiro de Campos, cuja principal atribuição era fornecer subsídios para permitir o cálculo do adicional do frete marítimo – de implicações financeiras importantes para o Fundo de Marinha Mercante e, ipso facto para a expansão da Marinha Mercante Nacional – também muito colaborou, de forma proativa e eficaz, com a informática. A equipe de informática da Sunamam, reformulada na gestão dos Comtes Habbemma e Wander, desenvolveu e implantou diversos sistemas de TI, que permitiam o acesso dos diretores a informações importantes para a formulação da Política de Navegação, via terminais on-line. Foi também iniciada, em projeto conjunto com técnicos da Secretaria de Transportes Aquaviários, a descentralização da entrada de dados dos manifestos de carga, utilizando microcomputadores nos principais portos de embarque e desembarque de mercadorias. Não pode deixar de ser citado que uma das grandes concorrentes da IBM nos EUA e no Brasil, no fornecimento de computadores, especialmente para as grandes empresas de engenharia foi a Control Data. Essa empresa chegou a contar com grande participação no mercado, tendo como um dos seus principais clientes a Petrobras. Na década de 1990, por estratégia de marketing, ela deixou de atuar, de forma direta, no Brasil. O CT (IM) Renaldo Pereira Nunes foi vice-presidente da Control Data do Brasil. No anuário Computerworld do Brasil (CWB) de informática, editado em 1988/1989, foram listadas 2 mil empresas no setor, registrando um acréscimo de 700 novas em relação ao de 1987/1988, certamente, fruto da Política Nacional de Informática implantada no período. Marinha foram convidados para assumir cargos de direção no Serpro, o Comte (IM) Antônio Bernardino de Carvalho e o Comte (IM) Thomaz Edison Goulart do Amarante. Esses Oficiais, com grande experiência de processamento de dados, gerência de projetos e de implantação de técnicas de planejamento com o Plano Diretor, juntamente com vários outros que saíram da Marinha para trabalhar nessa nova atividade – entre eles são mencionados o Comte (FN) José Danilo Silvestre Fernandes, e os 1T (IM) RNR Augusto Dolher do Carmo e Gilson Leal Barbosa – foram os impulsionadores do crescimento e pujança atual do Serpro. Ainda com relação ao Serpro, responsável pela administração dos sistemas de TI do Ministério da Fazenda, deve ser especialmente citado o Centro de Informações Econômico-Fiscais (CIEF). Trata-se de um sistema que opera uma imensa base de dados, hoje apoiada nos computadores de maior capacidade instalados no Brasil, onde são concentradas e cruzadas as informações de caráter fiscal de empresas e pessoas físicas, dando suporte ao governo federal na arrecadação e na formulação de políticas econômicas. Na fase inicial de formação do CIEF, a participação dos Oficiais e técnicos oriundos da Marinha que optaram em trabalhar em informática foi muito intensa. O Comte Edison, anteriormente mencionado, mesmo enquanto no Serviço Ativo e por determinação dos Ministros da Marinha à época, colaborou durante muitos anos com o Serpro, na qualidade de assessor especial. Nesse período foi implantado um documento único para controlar a arrecadação, o conhecido DARF, que contou com a sua assessoria na concepção do layout. Esse documento, depois adotado nos estados e nos municípios, propiciou o controle individualizado de cada recolhimento de impostos e taxas pelos cidadãos e empresas. O DARF, associado aos cadastros de contribuintes, é essencial também para o cruzamento de informações sobre arrecadação. Notícias veiculadas na internet dão conta de que: “A Receita Federal passou a contar com o T-Rex, um supercomputador que leva o nome do devastador Tiranossauro rex, e o software Harpia, ave de rapina mais poderosa do país, que teria até No desenvolvimento de software e aplicações para PED Em 1964, o Ministério da Fazenda resolve centralizar as atividades de processamento de dados, criando o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro). Dois Oficiais da Revista do Clube Naval • 357 470 Roda Linux, um dos quinze maiores computadores do mundo, atualmente 45 a capacidade de aprender com o ‘comportamento’ dos contribuintes para detectar irregularidades. O programa vai integrar as secretarias estaduais da Fazenda, instituições financeiras, administradoras de cartões de crédito e os cartórios.” Com certeza tal poder de verificação, essencial para o Estado, mas intimidador para os cidadãos, não deixa de ser uma ferramenta importante no combate à sonegação. Esperamos que contribua para ser possível um real alívio na carga fiscal, em futuro não muito remoto. Sem a base montada pelo Serpro e seus colaboradores iniciais, muitos da Marinha, não se teria chegado a tal grau de sofisticação. Ainda no âmbito do governo federal, a produção de estatísticas se ressentia, no final da década de 1960, de um órgão que tivesse flexibilidade e permitisse tornar os censos mais ágeis, com seus resultados processados com maior segurança e rapidez. Para tal, em 1973 foi criada a Fundação IBGE na estrutura do Ministério do Planejamento, de grande importância e respeitabilidade. Essa Fundação também contou com Oficiais de Marinha na montagem da estrutura informatizada, entre eles o CT (IM) Hidelberto Gonçalves Tavares, estudioso de Matemática, estatística e processamento de dados, e conhecido pelos seus amigos na Marinha, da Turma Elmo, como “Sinésio”, em alusão ao Professor Sinésio de Farias, autor do livro Curso de Álgebra, muito familiar aos que faziam concursos para as escolas militares na década de 1950. O IBGE adquiriu os mais modernos equipamentos então existentes e hoje é motivo de orgulho dos brasileiros, tendo seus trabalhos muita credibilidade, pela abrangência e metodologia de pesquisa desenvolvida. Sempre com o suporte de atualizados sistemas de hardware e software. No que diz respeito às iniciativas no setor privado da economia, a partir da década de 1960 os Oficiais saídos da Marinha, muitos deles recrutados pela IBM, passaram a atuar como representantes técnicos (RT), tendo contato com grandes empresas nacionais e multinacionais. No final dos anos 60 era grande a carência de pessoal especializado em Processamento Eletrônico de Dados (PED), com conhecimento da programação dos novos computadores e de técnicas de análise e projetos de sistemas. Por esse motivo, alguns migraram para empresas clientes da IBM, ou criaram suas empresas de consultoria ou de “bureau de serviços”. O mercado necessitava e havia pouca disponibilidade de técnicos, principalmente pela falta de formação regular. Essa deficiência só passou a ser sanada, com a criação dos cursos de programação, análise de sistemas e os de tecnólogos de processamento de dados, no Rio de Janeiro, por iniciativa da PUC, da UFRJ e da Petrobras, assim como em São Paulo, através da USP e Unicamp. Na Marinha o IPDIM, órgão responsável pela condução das atividades de processamento de dados, preocupado com a demanda decorrente da expansão da informática não suprida adequadamente por especialistas, tomou a iniciativa de propor um Curso de Formação de Técnicos em Análise de Sistemas (CESTASPDO) que teve como primeiro encarregado, o Comte (IM) Túlio Cícero Cavalcante de Albuquerque. A partir de 1980 é que começaram a se multiplicar, principalmente nas capitais dos estados, os cursos específicos de informá- tica, que formaram gerações de técnicos nos mais diversos níveis. Atualmente, são bastante comuns os cursos de informática para a terceira idade. Mais um sinal da importância da informática, ou TI, para a sociedade brasileira! Logicamente, sendo então um mercado com restrição na oferta de mão de obra especializada, houve estímulos para que Oficiais do Corpo de Intendentes da Marinha, familiarizados há muito com o assunto, nele encontrassem um nicho importante para atuação, como técnicos, consultores e empreendedores, à medida que saíam do Serviço Ativo. As décadas de 1970 e de 1980 foram ricas nesse tipo de experiência! Inúmeras empresas de consultoria em análise de sistemas foram criadas nesse período, algumas delas por Oficiais oriundos da Marinha e ainda prestando serviços reconhecidos como excelentes pelos seus clientes. Para ficar em apenas alguns exemplos, uma vez que seria difícil fazer pesquisas nas Juntas Comerciais ou nos Cartórios de Registro de Pessoas Jurídicas, além de inadequado a um artigo que pretende ser o mais sucinto possível, o autor passa a relatar alguns casos vitoriosos. Em 1970, o CT (IM) Alberto Machado Corrêa Netto, recém-saído do Serviço Ativo, e o Comte (IM) Antônio Bernardino de Carvalho ex-diretor do Serpro, se juntaram a outros Oficiais e fundaram uma sociedade civil, voltada basicamente para análise e projeto de sistemas. Como a sociedade civil então formada não detinha imóveis, máquinas e equipamentos, o seu capital era representado pela experiência e, porque não dizer, pela inteligência dos seus associados e consultores. Essa sociedade civil foi denominada PPS – Planejamento, Projetos, Sistemas, e contou inicialmente, além dos diretores acima mencionados, com os Comtes José Maria Teixeira da Cunha Sobrinho (um dos seus idealizadores), Nilo Mendes Figueiredo, Edison José Ribeiro, Sérvio Gama de Almeida, e com o autor deste artigo, que teve o privilégio de conviver com esta plêiade de mentes criativas. Este grupo, além de ter técnicos de alto nível, foi reforçado por inúmeros outros consultores, entre os quais se ressaltam: os Comtes (IM) José Eduardo Amaral de Sá, José Carlos Sette Ferreira Pires, Luiz Vicente Franco, Jiro Kawase, o Ten (IM) Gilson Leal Barbosa e Ten (CA) Jorge Araújo (atualmente professor da Escola Naval). No decorrer das décadas de 1970 e de 1980, foram desenvolvidos e implantados diversos sistemas, além de treinamento do pessoal das empresas contratantes. No anuário CWB de Informática, anos 1988/1989, a PPS está catalogada como “Software House”, com menção aos diversos sistemas nela desenvolvidos, em especial nas áreas de patrimônio, livros fiscais, atendimento médico, controle acadêmico, mala direta, contabilidade, entre outros. Ainda na década de 1970, alguns Oficiais também oriundos da Marinha, entre os quais os CT (IM) Haroldo Medeiros Duarte, e Roberto Ricardo Calazans Tavares fundaram a empresa Interdata que, além de prestar serviços de análise, projeto, implantação e treinamento de pessoal para as atividades de PED, montou um “bureau de serviços”, que continua atendendo à própria empresa e a diversos clientes. 46 Revista do Clube Naval • 357 Essa empresa se consolidou no mercado e presta serviços especializados de TI para administradoras de cartões de crédito, imóveis, entre outras atividades que requerem grandes bancos de dados. A Interdata também consta do anuário CWB de Informática 1988/1989 como “software house”. Mas não só como empresários os Oficiais que saíram da Marinha para se dedicarem à TI foram de grande influência no seu desenvolvimento. Muitos se firmaram na IBM, com carreiras brilhantes. Entre eles: Comte (IM) Vinício La Maison Buschmann, CT (CA) Hélio Paes, CT (CA) João Luiz Volmmer Motta Paes Ten (IM) Roberto Vidal Lameiro, Ten (IM) Gustavo Ribas da Gama Lima, o Ten (IM) Eduardo Mello Barbieri. Deve ser mencionado também o Comte (IM) Paulo Arivaldo de Aragão Filho, especialista em controle e gestão usando técnicas de informática e de Plano Diretor, que se dedicou a aplicar seus conhecimentos nos municípios do Brasil, ao se retirar do Serviço Ativo. A Datamec, empresa que presta serviços à CEF, também contou com Oficiais da Marinha, entre eles o Comte (FN) Roberto Berlinck Ramos. Sendo empresa praticamente estatal, sua diretoria era política, mas mesmo assim, o autor deste artigo no ano de 1984 teve a honra de compor uma lista de possíveis presidentes. Foi escolhido um dirigente do PTB no estado do Rio. Outros, ao se retirarem do Serviço Ativo, especializaram-se em auditoria e segurança em TI, entre os quais podem ser lembrados: Comte (CA) Gabriel de Almeida, com intensa participação em congressos nacionais e internacionais de TI, bem como em cursos especiais, relacionados com a segurança nas atividades de informática; Comte (IM) Roberto de Castro Filho, que foi diretor da empresa Price Watherhouse e Coopers de auditoria e o Comte (IM) José Augusto Vieira, consultor de várias empresas sobre auditoria em sistemas de TI, atualmente na Dataprev. Com o advento dos micros, as planilhas de aplicativos foram adaptadas e largamente difundidas. Passou-se então da fase de desenvolvimento de programas aplicativos, para a nova situação em que para quase todo tipo de necessidade havia um software disponível no mercado, inúmeros desenvolvidos por empresas nacionais. Comercializado pela Microsoft, um dos softwares mais utilizados tem sido o Excel. Dois Oficiais oriundos da Marinha são considerados experts no uso do Excel, com brilhante sucesso na sua utilização nas empresas e entidades por onde passaram: os Comtes (IM) Jiro Kawase e Nelson Brasileiro de Medeiros, ambos prestando inestimável colaboração ao Clube Naval, e também ao querido Flamengo, no caso do Comte Brasileiro. Como exemplo de elevado conhecimento técnico, merece ser narrado um fato ocorrido na antiga Sunamam. Em 1987, o Comte (IM) João Luiz Carneiro Cerqueira era o seu Diretor Financeiro e solicitou ao autor deste artigo, à época Diretor de Informática, que pesquisasse e adquirisse um desses softwares – a planilha Lotus – para uso na sua diretoria. Cerca de um mês após a compra, liga o dono da empresa de software para o Diretor de Informática. O propósito do telefonema era pedir desculpas e solicitar paciência, pois o Comte Carneiro havia levantado questões tão importantes e de tal complexidade, que ele pediu à matriz nos EUA que enviasse um dos Revista do Clube Naval • 357 técnicos desenvolvedores do programa para tentar esclarecer. Os Oficiais da Marinha trabalharam também na Aviação Civil! Na então chamada ARSA (Aeroportos do Rio de Janeiro S/A), foi criado e implantado um sistema de automação para o Aeroporto do Galeão, pelo CT (CA) Roberto Antônio Las Casas Bruce, quando dirigiu o seu Departamento de Informática. O Comte (IM) Osmar Boavista da Cunha Júnior, e o Comte (CA) Luiz Fernando Melo de Almeida, em datas posteriores também dirigiram o Departamento de Informática da ARSA. Nas telecomunicações e teleprocessamento de dados Em 1962, segundo dados da Telebrás, havia no país 1.326.000 linhas telefônicas instaladas. Hoje em dia, contando os aparelhos celulares temos praticamente uma linha para cada habitante! Além das linhas telefônicas, o uso da banda larga e da internet tem crescido vertiginosamente no Brasil, sendo a opinião dos especialistas que muito ainda há para se expandir. No entanto, poucos brasileiros sabem o longo caminho percorrido até se chegar a este ponto. “Com base na reconstituição das ações que precederam a implantação da internet no Brasil, o artigo tem por objetivo demonstrar que, como em toda inovação tecnológica, sua expansão/apropriação é o resultado de um processo mais longo do que transparece para o grande público (...) No país, dependendo de quem fala, as estimativas variam de 450 mil a 1 milhão. Esta incerteza, porém, não parece ser um problema; acredita-se que a constituição da clientela da rede também chamada ‘comunidade virtual’ está apenas começando e que, portanto, esses números só tendem a crescer num ritmo cada vez mais rápido.” As citações acima são do excelente artigo, de 1997, “Redes técnicas/redes sociais: a pré-história da Internet no Brasil”, autoria de Tamara Benakouche, disponível para consulta e leitura na internet. Na realidade, muitos fatos precederam o estágio atual que foi alcançado. Mesmo a ampla e ousada privatização das telecomunicações, que independentemente do ponto de vista de cada um trouxe mais investimentos para o setor a partir de 1998, não teria sido possível sem a base anteriormente formada, para o que os Oficiais da Marinha contribuíram de forma inequívoca, com se procurará mostrar a seguir. Entre as providências que precederam o “boom” das telecomunicações, merecem ser destacadas: • aprovação do Código Brasileiro de Telecomunicações em 1962; • criação em julho de 1972 da Telebrás; • fundação em setembro de 1965 da Embratel, que adquiriu a Companhia Telefônica Brasileira, e instalou em março de 1966 em Tanguá, RJ, a primeira estação terrestre de comunicação via satélite; • implantação pela Telebrás e Embratel, em 1984 da Renpac, rede de telecomunicações que opera o Sistema de Comunicação de Dados por Comutação de Pacotes. Na época com a incrível capacidade de transmitir 512 bytes, à velocidade de 56.000 bits por segundo (BPS)! A Renpac pode ser considerada como a precursora da internet, e ainda hoje é comercializada pela Embratel, para empresas que necessitam de transmissão de grandes arquivos; • criação em 1980 da rede Transdata. 47 Esse conjunto de medidas formou a base para o desenvolvimento da telefonia, e sua conjugação com a informática foi responsável pelo surgimento no Brasil da então chamada telemática. Pode-se dizer que tudo isso foi possível em grande parte graças ao Comte (CA) Euclides Quandt de Oliveira, que a partir de 1970 colocou seu dinamismo e visão de futuro nas telecomunicações do país a serviço do Contel, da Telebrás e da Embratel, especialmente no período em que foi Ministro das Comunicações (1974 a 1979). O Comte Quandt, apesar da sua capacidade, sempre foi consciente de que não poderia fazer tudo sozinho. Inteligentemente, buscou se cercar de uma equipe de técnicos excepcionais tanto em telecomunicações, quanto em administração, e que fossem igualmente devotados ao bem público como ele. Apenas para exemplificar, serão mencionados dois membros daquela equipe, por serem também Oficiais da Marinha e assim caberem no espírito que norteia este artigo. Um deles é o Comte (EN) Luiz de Oliveira Machado que, a partir de 1972, foi um dos pioneiros na Telebrás. Passou posteriormente para a iniciativa privada, onde teve muito sucesso. Foi escolhido o Executivo do Ano em Telecomunicações em 1997. Outro que cabe ser citado é o CC (IM) Henrique da Costa Ferreira Filho, especializado em abastecimento, catalogação e controle de material, que teve também intensa atuação na Telebrás a partir de 1977, quando deixou o Serviço Ativo. Marinha, trabalhou em diversos projetos ligados à informática, tais como: Sistema de Abastecimento da Marinha (Singra); Sistemas de Caixa de Economias e Municiamento da DFM (Quaestor); Sistema de Pagamento no Exterior da Papem; Controle de Material também da DFM; Sistema de Controle de Seguros do SASM e Sistema de Controle de Auditorias da DCoM. Em 1981 foi lançado, pela Editora Campus, no Congresso Nacional da Sucesu daquele ano, o primeiro livro de programação, que abordou de forma acadêmica, mas bastante acessível para os jovens que iniciavam a sua aventura no mundo dos microcomputadores. Este livro, cujo título era Basic básico foi considerado um bestseller. Vendeu mais de 30 mil exemplares, em cinco edições, e é de autoria do engenheiro e professor Jorge da Cunha Pereira Filho, ex-aluno do Colégio e Escola Navais (1954 a 1957), Chefe de Classe da Turma de Oficiais Fuzileiros Navais formada em 1957, e que saiu Na luta para difundir a informática Neste tópico, podemos verificar como a Marinha e seus Oficiais colaboraram para difundir e universalizar o uso e conhecimento dessa tecnologia. Como já dito anteriormente, nos primeiros tempos da informática pouco havia no Brasil, em termos de ensino formal. Também essas atividades não eram regulamentadas, muito menos apoiadas por entidades de classe. Na Marinha, em 1966 pela primeira vez foi incluída na grade de matérias ensinadas na Escola Naval, a cadeira de Processamento de Dados, substituindo a de Mecanização. Seu primeiro instrutor foi o Comte (IM) Michel Elias Jorge, que atuou por 30 anos no ensino de informática, e em 1972 publicou o livro de sua autoria Processamento de dados, adotado em cursos regulares e universidades do Rio de Janeiro. Paralelamente, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro foi criado em 1966 o Rio Data Centro, voltado primordialmente para a computação científica e também apoiando os cursos de programação, análise de sistemas, tecnólogo de processamento de dados. Entre os Oficiais da Marinha que exerceram funções de professores e coordenadores na PUC não podem deixar de ser mencionados: o Comte (IM) Boavista, o Comte (CA) Mário Antônio Monteiro, assim como o Ten (IM) Augusto Dolher do Carmo do IAG – Instituto de Administração e Gerência. Com mestrado e doutorado em informática, os Comtes Boavista e Mário Monteiro, se dedicaram à consultoria e ao ensino, na PUC e outras universidades, como a Estácio de Sá, assim como em cursos regulares que vieram a ser criados. Mesmo nos tempos atuais, os Oficiais da Marinha contribuem para o ensino de informática, como é o caso do Comte (IM) José Roberto de Souza Blaschek, que deixou o Serviço Ativo em 1997, leciona na PUC e coordena projetos de TI pela UFRJ, através da Fundação Coppetec. Segundo depoimento do Comte Blaschek, ainda na cedo da Marinha para se dedicar à engenharia e à informática. Ainda na área de desenvolvimento do ensino, na década de 1980, o Comte (IM) José Maria Sobrinho, um dos fundadores da empresa PPS, associou-se ao principal curso de informática em funcionamento na cidade de São Paulo, instalando no Rio de Janeiro a filial da Servimec de SP. A Servimec-Rio, durante alguns anos foi responsável por incontáveis turmas de programadores e analistas de sistemas aptos a trabalharem com os micros e minis que eram lançados no mercado pela indústria nacional ou importados. Desfeita a parceria com o curso de São Paulo, o foco do empresário José Maria Sobrinho não foi desviado. Fundou a JMS – Informática, com 48 Revista do Clube Naval • 357 sede no Rio de Janeiro e filial em São Paulo, montando uma rede de ensino de informática, com material didático próprio e instrutores especialmente treinados, que substituiu com muito sucesso a filial Rio da Servimec. O Comte José Maria Sobrinho, já considerado um líder empresarial, continuou contribuindo para a formação de pessoal, procurando acompanhar a evolução da informática, ao atualizar os cursos oferecidos ao mercado. A seguir será feita uma passagem pelas diversas fases em que foi projetada a ideia de se criar entidades de classe congregando as empresas de informática, que foi iniciada no Rio de Janeiro. Já foi citada neste ensaio a Sociedade dos Usuários de Computadores e Equipamentos Subsidiários (Sucesu). A sua Seção do Estado da Guanabara organizou em 1968 o primeiro de subsequentes e cada vez mais concorridos Congressos Nacionais de Processamento de Dados, que contaram para a sua efetivação com a colaboração de Oficiais da Marinha. O congresso passou a ser realizado alternando a cada ano sua Sede entre as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Juntamente com o congresso eram montadas feiras de produtos de hardware e de software, muito concorridas e procuradas por empresários e pelo público interessado na nova tecnologia. A Marinha procurou sempre prestigiar os congressos, liberando seus Oficiais e técnicos para as palestras sobre o tema informática e até designando equipes para representá-la nos eventos. A Sucesu, com representações nas principais capitais do país, ainda contribui para o acompanhamento da evolução da tecnologia da informação – TI. Mas faltava uma entidade que representasse as empresas do setor! Em 1976 cinco empresas reuniram-se, duas delas dirigidas por antigos Oficiais da Marinha, e após inúmeras discussões, por consenso resolveram fundar a Assespro/RJ – Associação das Empresas de Processamento de Dados. A ideia inicial, bem como a liderança dos trabalhos foi do empresário de Informática Márcio Canavarro, que cedeu a sede da sua empresa para as inúmeras reuniões que precederam a deliberação final. A PPS, consultoria formada por antigos Oficiais da Marinha foi representada por um dos seus diretores, o Comte (IM) Carvalho, tendo também a participação do Ten (IM) Hilton Freitas Pinho, empresário do setor, e que veio a falecer prematuramente em plena campanha para deputado federal, indicado que fora pela comunidade de informática do estado do Rio de Janeiro. Para se ter uma ideia da visão do Ten Hilton, em 1980, ele já conjecturava sobre a grande rede da internet, assim como com relação ao futuro da interatividade digital, hoje tão difundida e aplicada nos celulares e nas TVs digitais e a cabo. Participaram ainda da fundação do Assespro os empresários Benito Paret e Nelson Ichikawa. Com o dinamismo emprestado pelas empresas que lutaram pela sua constituição, através dos seus diretores, a nova entidade teve sucesso imediato. Em poucos anos a associação adquiriu foro e âmbito nacional, e dando continuidade à sua influência no mercado, o Comte (IM) José Maria Sobrinho presidiu a Assespro/ RJ em 1980 e a Assespro nacional de 1981 até 1983. Em 1988, foi fundado o Sindicato das Empresas de Informática do RJ (Seprorj), atualmente presidido pelo empresário Benito Paret – um dos fundadores da Assespro, e que tem na sua diretoria atual um Oficial da Marinha, Ten (CA) Jorge Araújo. A Assespro continua prestando seus serviços, adaptando seu nome para Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação. As empresas produtoras de software são também representadas pela Associação Brasileira de Empresas de Software (Abes), fundada em 1986, na cidade de São Paulo. A Abes teve como um dos seus objetivos colaborar com a abertura do mercado brasileiro de informática, meta atingida plenamente em 1992, com o advento do Revista do Clube Naval • 357 governo Collor. Segundo essa associação, em 2009 o Brasil tinha um mercado interno para produtos de software estimado em US$ 15 bilhões, exportando US$ 363 milhões (coluna Conexão Global, O Globo edição do dia 6/7/2010). Fechando este tópico, não pode deixar de ter uma referência especial a participação do já citado empresário do setor de informática, Comte José Maria Sobrinho, quando da sua passagem pela Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ). Tendo sido eleito para o Conselho Permanente de Informática de 1983 a 1987, sendo posteriormente Vice-Presidente da ACRJ, abriu as portas da Associação para os empresários discutirem a Reserva do Mercado de Informática, então ainda defendida pela SEI no âmbito do governo federal. O Conselho foi palco de incontáveis Ciclos de Palestras, em que eram ouvidos os titulares das empresas produtoras de hardware e software nacionais, algumas delas considerando a Reserva intocável, assim como os empresários que viam na Reserva um limitador para o seu desenvolvimento, e prejudicial ao crescimento do país. Este autor teve também o privilégio de participar do Conselho de Informática como Secretário, e ser testemunho do quanto foi importante e esclarecedor o embate naquele fórum tão especial. Conclusões Nos bancos escolares da Universidade de Ciências Econômicas do Estado do Rio de Janeiro, os mestres ensinaram a este autor e a tantos quantos tiveram a oportunidade de estudar Macro e Microeconomia, que a capilaridade e o potencial das micro, pequenas e médias empresas, com sua capacidade de gerar emprego, inovar e atuar com mais flexibilidade nos diversos nichos do mercado, são os grandes responsáveis pelo desenvolvimento de uma nação. As grandes e mega empresas pesam no contexto, mas na realidade não representam a maior fatia do Produto Interno Bruto. No setor de TI, são milhares e milhares de empreendimentos, estimulados pelo “boom” das telecomunicações, e das inovações tecnológicas que surgem de maneira vertiginosa, especialmente a partir do início deste século XXI em que vivemos. Tudo isto somado à globalização e potencializado pela velocidade com que as novidades são divulgadas em um mundo cada vez mais digitalizado. No Brasil não poderia ser diferente. O empreendorismo na área de TI é fabulosamente rico e variado. Com a globalização, um produto lançado no mercado é imediatamente absorvido, gerando em seu entorno uma infinidade de novas aplicações, e naturalmente mais empresas e empregos para o país. Seria uma tarefa hercúlea tentar quantificar o volume de faturamento, e o número de empresas ligadas à TI no mercado brasileiro. O cumprimento dessa tarefa é perseguido pelas diversas associações ligadas à TI, mas altamente dificultado pela mistura e complexidade das atividades que compõem o amplo espectro dessa tecnologia, que vai desde o microempresário que leva seus serviços pessoais às empresas de maior porte até as empresas multinacionais e os grandes grupos nacionais, atuantes no “mundo digitalizado”. Todos são personagens de uma história, que, como se procurou demonstrar neste artigo, no Brasil começou na primeira metade do século XX. Mais do que tudo, contou com intensa participação da Marinha do Brasil e dos seus abnegados Oficiais, que foram dominados pela “cachaça” que é o trabalho em TI, expressão tirada do rótulo de uma pequena moringa de barro que foi distribuída no Congresso de Informática de 1984 da Sucesu, contendo excelente aguardente com o título: “INFORMÁTICA, A NOSSA GRANDE CACHAÇA”. Como foi dito anteriormente, a refrega Reserva de Mercado x Abertura, foi intensa nas duas últimas décadas do século XX. Mas, com isenção pode-se afirmar que os dois lados foram importantes 49 para se atingir o estágio atual. Se não tivesse havido o patriotismo dos pioneiros, muitos deles da Marinha do Brasil, que lançaram as bases para a indústria do hardware e do software apoiados pela proteção da Reserva, o Brasil não teria gerado massa crítica para enfrentar a concorrência das empresas multinacionais, e lograr um mínimo de independência das tecnologias alienígenas. Do outro lado, sem a tenacidade dos empresários que, sentindo a necessidade de acesso às novas tecnologias que surgiam no mercado mundial, pugnaram pela abertura do mercado, talvez ainda estivéssemos em estágio muito inferior, ultrapassados pelo “tsunami” das inovações, lançadas em progressão exponencial, ou parados no tempo, dependendo do contrabando ou como se costumava dizer, dos “executivos de fronteira”. Para se ter uma ideia, valendo como amostragem, pois se baseia em dados divulgados sobre as maiores empresas do Brasil, que logicamente, exclui milhares de micro, pequenas e médias empresas, a revista Visão, na sua publicação Quem é Quem, dos anos de 1977 e 1980, ainda não dedicava um capítulo específico para as empresas de TI, ao divulgar os dados das 200 maiores empresas do Brasil. Estavam elas inseridas no título “Máquinas, Aparelhos e Instrumentos para Escritórios”, com algumas poucas empresas multinacionais listadas. Como empresa nacional somente a Cobra – Computadores, Sistemas Brasileiros S.A. apareceu na listagem de 1980. A edição especial da revista Exame, de 1983 dedica um capítulo exclusivo para a Informática, com dados comparativos 83/82. Entre as 500 maiores empresa do país, estão incluídas 20 do Setor de Informática, dentre elas: IBM, Burroughs, HP, Olivetti, Xerox, NCR, estrangeiras, e Cobra, Elebra, Scopus, Labo, Microlab, Edisa, nacionais. Consulta ao balanço anual da Gazeta Mercantil, publicado em novembro de 1994, constata que são listadas 27 empresas, separadas em fabricantes de computadores e de periféricos; 15 empresas de software; 6 consultorias e 20 “birôs” privados, além de empresas de comunicações de dados, automação industrial, centrais telefônicas e telecomunicações diversas. Não elabora um “ranking” geral, mas faz um retrato bastante consistente do setor de TI. As principais empresas nacionais citadas são: Cobra, Itautec. Medidata, Sisco, Elebra, Racimec, Proceda, Software de Base, Progresso, e Cetil Informática. Verifica-se um notável progresso de 1977 para 1994, pela simples constatação do número de empresas e a nítida separação da informática em vários subtítulos, já livre do título genérico de 1977! Chegamos finalmente ao ano de 2010! Ainda com a ressalva deste autor, de não abranger as micros, pequenas e médias empresas, a edição especial da revista Exame, publicada em julho de 2010, se refere à TI como “Mundo Digital”. Dedica um capítulo para analisar as 50 maiores empresas do setor, todas elas listadas nas 1.000 maiores do Brasil. Como o titulo sugere, engloba as empresas de software e de hadware de todo o espectro abrangido pela TI. Entre as empresas ali incluídas estão: Cobra, Scopus, Intel, IBM, Positivo, Terra, Nortel, Serpro, Itautec, Google, Sony, Prodesp, Totvs, HP, Motorola. Para se ter uma ideia do potencial estas 50 empresas, no ano de 2009, juntas tiveram um faturamento total equivalente a 39.284,80 milhões de dólares americanos! Ressalte-se que das 50 apenas 8 (oito) sofreram redução em suas vendas em relação a 2008, mesmo diante da séria crise financeira internacional. Comparando o número de 2009, acima mencionado, com 1976 no qual as empresas incluídas no título Informática e Material de Escritório, tiveram um faturamento total equivalente a 840,8 milhões de dólares americanos, houve um fortíssimo incremento. Deve ser ressaltado que algumas empresas multinacionais como a IBM não divulgavam os seus resultados financeiros para as pesquisas, o que não acontece atualmente. Ainda para fins de comparação com os números de 2010, em fevereiro de 1986 a Secretaria Especial de Informática do Ministério da Ciência e Tecnologia, cujo Secretário Executivo era o Comte José Ezil Veiga da Rocha, fez um excelente diagnóstico da informática no Brasil, com o título Perfil da informática na Administração Pública federal. Nas suas páginas 32 a 34 são divulgadas estatísticas de importação do setor de informática, detalhado por aplicação, nos anos de 1983/84/85. Os dados estatísticos abrangem os governos municipais, estaduais e federais, bem como no setor privado. Os totais das importações podem ser assim resumidos, (valores expressos em US$ 1,00): LOBO 50 Revista do Clube Naval • 357 Federal 100.473.656 Estadual 28.510.457 Municipal 49.240 Setor Privado 311.075.619 Totalizando 440.108.972 no ano de 1983. Federal 105.006.009 Estadual 15.968.492 Municipal 628.688 Setor Privado 483.640.300 Totalizando 605.243.483 no ano de 1984. Federal 142.378.627 Estadual 51.871.541. Municipal 1.818.312 Setor Privado 443.822.150 Totalizando US$ 639.690.630,00 no ano de 1985. Nos resumos estatísticos apresentados anteriormente, pode ser observado que de 1983 a 1985, não houve variações consideráveis, muito embora o total geral tenha crescido cerca de 45%. Pode-se ressaltar, sem medo de incorrer em erro, que a evolução ocorrida no setor de tecnologia da informação se deve a três fatores principais: • a base instalada na indústria local (hardware, software e teleprocessamento), fruto do esforço dos pioneiros, muitos deles da Marinha do Brasil; • a posterior abertura do mercado de informática; • a dinâmica de crescimento do setor de tecnologia da informação, que abriu milhares de oportunidades para as empresas nacionais, complementadas pela importação, de forma a atender à demanda estimulada pelo crescimento do país. Podemos considerar que o saldo é amplamente positivo, os números não mentem! Ao se falar de TI, não pode deixar de ser mencionado o tema do momento: “cloud computing”, isto é computação nas nuvens. Preocupadas com os investimentos para manter imensos bancos de dados em equipamentos servidores exclusivos, principalmente quando os volumes de dados têm características sazonais, foi desenvolvida a ideia de usar uma rede de servidores tipo internet, trabalhando em paralelo e sem exclusividade, onde as capacidades de armazenamento são compartilhadas. No entanto, é sabido que uma vez colocadas em rede, as informações são passíveis de violação no que se refere a sua segurança. Já dizia Bill Gates, o fundador da Microsoft, em seu livro A estrada do futuro, que para se ter completa certeza de que uma informação transmitida estaria completamente segura, seria necessário usar um algoritmo baseado em números primos de tal ordem, que o processamento praticamente se tornaria inviável, por ser muito lento e oneroso! Nossos filhos e netos, acostumados que estão ao uso dos computadores pessoais, muitas vezes se esquecem de que os chamados “mainframes”, ainda são necessários. Confirmando essa afirmação, notícia do jornal O Globo, de 27/7/2010, coluna Conexão Global, dá conta de que a IBM comemora o lançamento do “zEnterprise System”. Segundo o titular da coluna citada, Nelson Vasconcelos: “...com os smartphones, dando conta de qualquer recado, pode parecer anacrônico falar em mainframes – mas quem move a humanidade são eles...” Ao concluir este despretensioso artigo, algumas considerações importantes. A influência dos Oficiais da Marinha que se dedicaram à informática não ficou restrita aos aspectos até aqui abordados. Como mencionado na seção II, por ser o Serviço de Intendência da Marinha um dos primeiros setores a se valer da informática, foi natural que entre 1960 e 1980 houvesse uma participação mais ativa dos Oficiais Intendentes no processo, bem como na sua disseminação na sociedade civil. Os Oficiais Generais que dirigiram a então Diretoria de Intendência da Marinha, ao darem seu apoio ao desenvolvimento da informática tiveram uma visão de futuro. Simbolizando o reconhecimento dessa atuação, este autor menciona alguns desses antigos Diretores, sob cujo Comando teve a honra de servir na Marinha: VA (IM) Arnoldo Hasselmann Fairbairn; CA (IM) Jorge de Queiroz Combacau e VA (IM) Estanislau Façanha Sobrinho, que foi o seu último Comandante, antes de se retirar do Serviço Ativo da Marinha, no ano de 1976. Revista do Clube Naval • 357 Quantos são os técnicos, programadores, analistas, gerentes de suporte e de treinamento, e gerentes de TI, que fazem parte da segunda e até mesmo da terceira geração dos aqui chamados de pioneiros? A semente da informática foi lançada em campo fértil, nos filhos, sobrinhos, netos e até nos filhos de amigos que não se envolveram diretamente com o assunto. È uma corrente que não se quebrará nunca, por não ter elos fracos. Foi forjada no respeito às leis, no amor à pátria, à Marinha e no compromisso com o trabalho honesto e honrado. O lema da PPS, empresa de consultoria da qual este autor foi um dos colaboradores “Criatividade e Técnica, a Perfeição como Objetivo” se aplica adequadamente ao trabalho desenvolvido por todos. Agora perguntariam os leitores, afinal, o que é feito dos personagens desta história contada resumidamente, mas plena de belos exemplos? Eis algumas respostas: Muitos já nos deixaram e estão no plano superior, com a certeza do dever cumprido; outros gozam de merecido descanso junto a seus familiares, dedicando-se a seus filhos, netos ou a algum hobby, contentes pela colaboração que deram ao país. Não ficaram milionários, pois que não é esse o objetivo dos que se dedicam com amor ao que fazem, sem pensar em negociatas, ou em vantagens não merecidas. Outros mais ainda continuam envolvidos com a “cachaça” que é a informática; e há os que agora se dedicam a uma segunda paixão, como a música, a literatura, as artes plásticas, o Flamengo e a Escola de Samba Portela, com a mesma proficiência. Para finalizar, o autor pede licença aos possíveis leitores para dedicar este artigo ao seu querido amigo Comte Edison José Ribeiro, muito justamente considerado por brasileiros ligados à Administração Pública federal como um verdadeiro gênio, inovador que foi nas práticas de contabilidade, controle e gerenciamento das finanças públicas usando a tecnologia da informação aliada à sistematização dos processos administrativos. Em outubro de 1970, a revista Cidades e Municípios publicou num encarte o trabalho de autoria do Comte Edison intitulado “Orçamento Programa”, no qual já explanava objetivamente novas técnicas de gestão aplicáveis nos diversos níveis de governo. Isto é, há 40 anos, ele já antevia o que hoje se torna comum e mandatório em qualquer governo realmente sério! Este ensaio foi escrito em outubro de 2010. BIBLIOGRAFIA O autor se valeu de consultas a seus arquivos, contato pessoal ou por escrito com alguns personagens desta pequena história, e de leituras e pesquisas diversas, entre as quais: • A indústria de informática: tendências e oportunidades. Suma Econômica, 1989. • Perfil da informática na Administração Pública federal. Ministério da Ciência e Tecnologia, 1986. • Turma Elmo 1955/2005. Ney Dantas. • Rastro de cobra. Silvia Helena, internet. • A estrada do futuro. Bill Gates. • Núcleo de Memória da PUC-Rio. Internet. • Patinho Feio/Redetec. Prof. Antônio Hélio Guerra Vieira, internet. 51 • Anuário CWB de Informática /88/89. Computerworld do Brasil. • Plano Diretor de Informática. Sunamam, 1986. - Páginas na Web da Assespro, Abes, Embratel, Telebrás e Seprorj. • Página na Web do Museu da Informática e Tecnologia da Informação (Miti). • Wikipédia. Transcrições e citações consideradas necessárias ao seu melhor entendimento foram incluídas no texto, sendo as fontes devidamente indicadas. Sobre o autor Oficial Superior Reformado da Marinha do Brasil componente da Turma Elmo (1955/1957), bacharel em Ciências Econômicas, formado pela UERJ em 1968, Ex-diretor de empresas privadas e estatais, natural de Belo Horizonte - MG, onde nasceu em 1938 NDCC ALMIRANTE SABOIA navios da mb 2 ANOS DE INCORPORAÇÃO À MARINHA DO BRASIL Capitão-de-Corveta Wagner Goulart de Souza 52 Revista do Clube Naval • 357 N o próximo dia 21 de maio, o NDCC Almirante Saboia estará completando seu segundo ano na Marinha do Brasil. Construído pelo estaleiro R. & W. Hawthorn Leslie and Company Limited e lançado ao mar em julho de 1966, o NDCC Almirante Saboia foi adquirido na Inglaterra e incorporado em 21 de maio de 2009 à Marinha do Brasil pela Portaria nº 105/MB, de 23 de março de 2009, do Comandante da Marinha. Entre 1994 e 1998 o navio passou por um “programa de extensão da sua vida útil” (SLEP – Ship Life Extended Programme). Entre os diversos serviços realizados durante a modernização destacaram-se a introdução de uma seção de 12 metros; a substituição de grande parte das chapas das obras vivas; uma completa alteração de sua superestrutura para uma de concepção mais moderna; a substituição dos dois motores da propulsão e do “Bow Thruster”, para propulsores mais potentes e modernos; e a substituição de cerca de 90% das auxiliares. Após sua obtenção pela Marinha do Brasil (MB), o navio realizou extenso programa de obras no estaleiro A & P Falmouth, no período de 24 de novembro de 2008 a 21 de maio de 2009, a fim de adaptá-lo aos requisitos da MB e revitalizá-lo para operação como Navio de Desembarque de Carros de Combate (NDCC) na Esquadra Brasileira. O navio foi incorporado à Armada em 21 de maio de 2009, ainda na cidade de Falmouth, no Reino Unido, tendo realizado a travessia Revista do Clube Naval • 357 para o Brasil no período de 23 de junho a 31 de julho de 2009. A cerimônia de passagem de subordinação para o setor operativo ocorreu em 6 de agosto de 2009. A missão do navio é “Realizar o transporte de carga e tropa, transbordos de pessoal, movimento navio-terra (MNT), por superfície ou helitransportado, abicagens e operações aéreas, podendo ainda realizar, com restrições, lançamentos e recolhimentos de carros lagarta anfíbios (CLAnf), a fim de contribuir para a realização de operações anfíbias, ribeirinhas e de apoio logístico móvel”. O navio possui rampas na proa e a ré para embarque e desembarque de viaturas e pessoal, duas rampas intermediárias, ligando o convés principal (Vehicle Deck) ao convés 3 (Tank Deck), um guindaste de 25t, dois de 8t e dois convoos. O convés 3 (Tank Deck) possui 124,50m de comprimento e 8m de largura útil para acondicionamento das viaturas e carga geral. Desde a sua chegada ao Brasil, que ocorreu em 31 de julho de 2009, o navio realizou importantes comissões, entre elas destacamse as comissões de ajuda humanitária às vítimas do terremoto no Haiti (HAITI VIII e HAITI X), ASPIRANTEX 2010 e 2011, operação ATLÂNTICO II/2010, comissões de reabastecimento/revitalização do Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade (POIT V/2009 e POIT VI/2010) e comissões de familiarização/estágio dos diversos alunos dos Centros/ Escolas de Formação de Oficiais e Praças da MB, tais como: CIAW, CIABA, CIAA, EAMPE, EAMES e EAMCE. Ao nosso HIPPO da Esquadra, parabéns!!! 53 saúde Desafio difícil de ser vencido Maj-Brig Méd Ricardo L. de G. Germano O raio X e a foto do pulmão de um fumante Tabagismo é a doença crônica causada pela dependência química e psicológica à nicotina. Sendo assim, o não preenchimento da necessidade leva à sintomatologia orgânica e psicológica (síndrome de abstinência). Trata-se de aderência a uma droga que é aceita pela sociedade. A adição química à nicotina leva aproximadamente 90 dias para ocorrer, e a memória química pode persistir por muitos anos. O tabaco é nativo das Américas e acredita-se que tenha começado a crescer nessa região por volta de 6000 a.C. As origens do uso disseminado do tabaco para fumar datam de 1492, quando Colombo chegou ao Novo Mundo e foi presenteado pelos nativos americanos com folhas de tabaco. Os espanhóis introduziram a planta na Europa. Durante todo o século XVIII, o rapé ficou popular em toda a Europa. No século XIX, o uso do rapé (tabaco de mascar de fino corte, que é colocado dentro da bochecha, ou pó de tabaco que é inalado pelas narinas) deu lugar ao tabagismo de charuto. Com a introdução da fabricação automatizada de cigarros em 1881, o preço dos mesmos caiu e a popularidade desse tipo de tabagismo aumentou drasticamente. Entre 1910 e 1919, a produção de cigarros aumentou em 633%, de menos de 10 bilhões para mais de 70 bilhões por ano. Composição do cigarro osteoporose, gastrite, úlcera péptica, disfunção erátil e outras. O cenário atual do tabagismo é de uma pandemia, tendo-se 1,25 bilhão de fumantes no mundo, sendo 33 milhões no Brasil, causando cinco milhões de mortes por ano em todo o planeta, das quais 200 mil no nosso país. Projetando-se as mortes para o período 2025-2030 teremos nos países desenvolvidos três milhões por ano e nos países emergentes sete milhões por ano. Deve ser mencionado que os fumantes passivos correm os mesmos riscos, embora em menor intensidade. Como dito na definição, a nicotina causa dependência física e psicológica, transformando o tabagismo em uma condição de difícil tratamento. Os sintomas de abstinência são: físicos: enxaqueca, palpitações, fome e náuseas – e psicológicos: ansiedade, irritabilidade, perda de identidade, depressão e estresse. Muito além da nicotina e do alcatrão, principais substâncias divulgadas, cada cigarro possui mais de 4 mil substâncias, sendo em bom número tóxicas ou carcinogênicas, tais como: acetona, amônia, naftalina, terebentina, formol e fósforo P4/PE. Dados epidemiológicos e patológicos O tabagismo é a principal causa prevenível de doenças graves e mortes. Entre as patologias relacionadas, temos: Câncer (pulmão, bexiga, próstata, mama, cavidade oral, língua, faringe, laringe, esôfago, estômago, cólon e outros), doença cardiovascular isquêmica (hipertensão arterial, aterosclerose, infarto do miocárdio, derrame etc.), DPOC (doença pulmonar obstrutiva crônica), 54 Revista do Clube Naval • 357 Abordagem terapêutica Em primeiro lugar deve ser ressaltado que o fato de o fumante querer parar com a prática do tabagismo é fundamental para que se gaste energia com a abordagem terapêutica. Se o fumante não estiver motivado para contribuir, será perda total de tempo e recursos. Por outro lado, o ideal é que uma equipe multidisciplinar e profissional participe dessa abordagem. Essa equipe deve ser composta de: médico (preferencialmente, clínico geral), psicólogo, assistente social e enfermeiras sendo coordenada pelo primeiro. Surgindo a necessidade, pareceres de outros especialistas serão solicitados. Dito isto, a abordagem terapêutica deverá ser: não medicamentosa e medicamentosa. Abordagem não medicamentosa: seu objetivo é auxiliar o Revista do Clube Naval • 357 fumante a lidar com o estresse, estimular habilidades para resistir às tentações de fumar e prevenir as recaídas. “Os nove passos para parar de fumar” ajudam muito e são os seguintes: Acredite: você pode e deve parar de fumar. Planeje: informe-se sobre o assunto e organize-se para partir com todas as forças para esse projeto. Contabilize: os recursos gastos com o cigarro poderão ser investidos em coisas melhores para você e sua família. Mas o maior rendimento é o da saúde. Peça ajuda: a equipe multidisciplinar estará à sua disposição nessa hora. Escolha: discuta com a equipe que o acompanha e, devidamente assessorado, encontre a melhor abordagem para seu caso. Priorize: esse deve ser seu principal objetivo no momento. Agende: é fundamental marcar o dia e a hora para parar de fumar. Resista: lembre-se de que para toda grande vitória é necessário esforço. Você não é um perdedor. Tente outra vez: a guerra não acabou, portanto respire fundo e parta determinante para vencer a batalha final. Nessa abordagem, o uso de uma dieta saudável (pouco hidrato de carbono, gordura vegetal, aves, peixes, verduras, legumes e frutas), além de atividade física regular, ajuda em demasia. Reuniões com a equipe multidisciplinar e com pacientes bem-sucedidos são importantes também. Abordagem medicamentosa: os fármacos disponíveis para o auxílio ao abandono do tabagismo são: • reposição de nicotina: sob a forma de adesivo cutâneo de liberação lenta ou goma de mascar; • antidepressivos: entre estes funciona melhor a bupropiona; • tartarato de vareniclina: por sua dupla ação agonista e antagonista dos receptores nicotínicos α4 β 2 a vareniclina funciona como um tipo de “falso cigarro”. Pela ação agonista estimula a liberação de dopamina que, mesmo em menor quantidade, proporciona alívio ao fumante. Como antagonista, ocupa o receptor nicotínico, evitando a ação da nicotina circulante. Assim, o fumante tende a abandonar o cigarro mais facilmente. Com o advento da vareniclina, os resultados se têm mostrado animadores, pois antes dela o índice de recaída mostrava-se elevado. Mensagem final Espero que os tabagistas e seus familiares (inclusive os fumantes passivos) tenham compreendido a intensidade do mal chamado tabagismo e motivem-se para vencer esse desafio. Nesse caso querer é fundamental para se poder. 55 Chile viagens Os belíssimos contrastes do deserto do Atacama D O Valle de la Luna Texto e fotos: Capitão-Tenente Rosa Nair Medeiros epois de alguns dias em Santiago, cidade cosmopolita e ao mesmo tempo aconchegante, viajei para Calama. Destino: o deserto do Atacama, localizado a 1.300 quilômetros da capital chilena, entre o Oceano Pacífico e a Cordilheira dos Andes, numa superfície de mais de 106 mil quilômetros quadrados, que vai de Copiapó (no norte do Chile) à fronteira com o Peru. Depois de duas horas de voo, foi preciso mais de uma hora na estrada até a simpática cidadezinha de San Pedro (província de Antofagasta), a base da maioria dos turistas no deserto. Ao chegar, realizei o primeiro passeio, ao famoso Valle de la Luna, na Cordilheira de Sal – antigo lago cujo fundo se levantou há milhões de anos, em razão dos mesmos movimentos na crosta terrestre que deram origem à Cordilheira dos Andes. O vento e outros fenômenos atmosféricos moldaram ao longo do tempo a Cordilheira de Sal, surgindo assim impressionantes formas e esculturas naturais. Devido à diversidade mineral do local (sal, Gêiseres, vulcões, lagos de sal, cenários que remetem a outra atmosfera, à Lua, a Marte.Tudo isso é o Atacama e muito mais... Estar ali, em paisagens esculpidas há milhões de anos, é ter um encontro único com a Pachamama, a Mãe Terra para os atacamenhos. 56 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 Os gêiseres, a 4.300 metros de altura e a temperaturas de até16 gráus negativos gesso, argila e outros minerais), apresenta diferentes estratificações e colorações. De mirantes tem-se a vista para o Salar de Atacama, a cadeia de vulcões pertencentes à Cordilheira dos Andes, particularmente o Licancabur, e o vale que forma o oásis de San Pedro. A primeira parada que fizemos (um grupo composto de turistas de vários países) foi na Quebrada de Cari. Depois de descer dezenas de metros por uma duna, chegamos a um desfiladeiro, onde paramos para observar as rochas e ouvir as explicações do guia sobre os minerais que as formam, como o sulfato de cálcio. O passeio prosseguiu em direção ao Valle de la Muerte, encravado nas mesmas formações esculpidas, com tonalidades avermelhadas e manchas brancas. Segundo uma versão, os atacamenhos não entenderam bem quando o padre e arqueólogo Gustavo Le Paige, que explorou a região na década de 1950, chamou o lugar de Vale de Marte, devido ao solo avermelhado e extremamente ressecado semelhante ao daquele planeta. Retornamos à estrada que corta a Cordilheira, na direção de Calama, e logo entramos no Valle de la Luna, uma grande depressão, com 57 Impressionantes esculturas naturais O Valle de la Muerte Flamingos, habitantes da lagoa Chaxa solo salino, rodeada por morros com formações exóticas lembrando o solo lunar. O entardecer é um momento especial, quando as cores ficam ainda mais fortes e belas. Na grande cratera central há uma impressionante duna de areia; o seu topo é um dos mais concorridos mirantes. De lá, pode-se ver o pôr do sol no céu magenta, em meio a vários picos andinos. Aos poucos surge uma paleta de cores – tons laranja, depois vermelho, rosa, lilás, azul. Findo o espetáculo, voltamos ao centro de San Pedro, onde os restaurantes na rua principal, a Caracoles, viram pontos de encontro. O mais conhecido é o café Adobe, onde os atacamenhos e turistas costumam combinar festas. Caracoles, a rua principal metros de altitude. Considerada um oásis no meio do deserto, é o principal ponto de encontro de viajantes do mundo inteiro. Lagoas Miscanti e Miñiques No dia seguinte, fui ao Salar de Atacama, combinado com as lagoas Miscanti e Miñiques, que ficam dentro da Reserva Nacional dos Flamingos. No Salar impressionam as pedras de sal; já nas lagoas, destaca-se o azul intenso em contraste com as montanhas em tons de bege e cinza. Começamos pelo Salar, localizado a 55 quilômetros de San Pedro e a 2.300 metros acima do nível do mar, cercado por montanhas, onde não há saídas para drenagem de água. Na sua superfície pode-se observar crostas de sal geradas pelo acúmulo de cristais produzidos pela evaporação de águas subterrâneas. O ponto de entrada, que permite uma exploração parcial do local, é o de acesso à lagoa Chaxa, onde habitam flamingos de três espécies (andino, chileno e James). Após essa incursão pelo salar é hora de experimentar altitudes maiores. A 4 mil metros na Cordilheira dos Andes, forma-se uma meseta, pequeno planalto, conhecida como altiplano, com pequenos lagos e pântanos. É lá que estão as lagoas Miscanti e Miñiques, a 110 quilômetros de San Pedro e a 28 quilômetros do povoado de Socaire. Na paisagem destacam-se os vulcões Miscanti e Miñiques que, junto a montanhas de pontas negras, dão forma a essas lagoas irmãs, separadas por uma pequena faixa de terra. Elas recebem Algumas peças do Museu Arqueológico Pe. Le Paige O deserto Deserto de Atacama, o mais seco do mundo Considerado o deserto mais seco do mundo, o Atacama guarda grandes riquezas, como o cobre (a maior delas), lítio e outros minerais, o que já foi motivo de disputas, como a Guerra do Pacífico, em que o Chile perdeu boa parte da Patagônia para a Argentina (devido a um acordo que assegurava a neutralidade desse país no conflito), mas garantiu, em 1883, as províncias de Antofagasta (pertencente à Bolívia) e Taparacá, que pertencia ao Peru. No entanto, a maior riqueza da região é a aquela contemplada por milhares de visitantes a cada ano, os contrastes da natureza nesse deserto nas alturas. Nele estão mais de 150 vulcões, dos quais dois estão ativos e três em semiatividade. Mas é o Lincancabur, um vulcão inativo, com mais de 5 mil metros de altura, que marca a paisagem e fixa-se na memória dos viajantes. Considerado sagrado pelos atacamenhos (significa “Pai da Gente”), está localizado a cerca de 45 quilômetros de San Pedro, e é um cone quase perfeito; na sua cratera há um lago de cor esverdeada. O Lascar, a 70 quilômetros de San Pedro e a 5.600 metros acima do nível do mar, é outro que marca presença. Considerado um vulcão semiativo, de vez em quando surpreende lançando cinzas. As temperaturas no deserto são outro desafio, variam entre zero grau à noite e 40 graus durante o dia. Devido a essas condições existem poucas cidades e vilas, a mais conhecida é San Pedro do Atacama, que tem pouco mais de 5 mil habitantes e está a 2.400 58 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 59 As llhamas, em um oásis próximo ao povoado de Machuca recargas de água subterrânea, das chuvas de verão e do degelo dos cumes. No inverno é possível observar sua superfície quase totalmente congelada. Há milhões de anos a paisagem deste setor era diferente; as águas provenientes da alta cordilheira escorriam livremente frente aos vulcões Miscanti e Miñiques, chegando até o Salar, o qual gerava um pequeno rio. Uma erupção do vulcão Miñiques, ocorrida há menos de um milhão de anos, cortou o avanço das águas, conformando as lagoas. No retorno há uma parada para almoço em Socaire, um pequeno vilarejo, e outra em Toconao, povoado com menos de mil habitantes, com casinhas feitas de pedra vulcânica (liparita) e lojinhas de artesanato, onde encontram-se desde esculturas em pedra vulcânica, únicas na região, tecidos de lã e trabalhos em madeira de cactus, algarrobo e tamarugo. Próximo a Toconao está a Quebrada de Jere, um cânion fértil que rasga o deserto com paredes de mais de 20 metros de altura. Nesse oásis, ao longo de um pequeno rio, são plantadas diversas frutas. A lagoa Cejar, também chamada de Mar Morto sul-americano Outros lugares interessantes são as Termas de Puritama, piscinas naturais de águas quentes em meio ao deserto, e o Salar de Tara, a 100 quilômetros de San Pedro e a 4.300 metros de altitude, onde encontram-se esculturas de pedras feitas pelo vento e pela erosão, como os Monjes de La Pacana, o Castelo de Tara, e um lago de água azulpiscina que vai se estendendo até tornar-se branco de sal. O Valle del Arcoiris, onde montanhas de rocha de várias cores formam uma paisagem fantástica, é também um destino muito procurado. Um geiser lançando água quente, que pode alcançar até 10 metros de altura Jatos d’água fervente que brotam da terra Enfrentar o frio intenso e o sono da madrugada; é assim que começa o passeio aos gêiseres del Tatio. Os ônibus passam nos hotéis às quatro horas, mas vale a pena para ver uma das atrações mais impressionantes do Atacama. Localizados a 99 quilômetros de San Pedro, os gêiseres estão a 4.300 metros de altitude, e as temperaturas vão de oito a 16 graus negativos. Madrugar é preciso porque a água é lançada de fissuras no solo somente ao amanhecer, a partir das seis horas, O vulcão a uma altura de até 10 metros e a uma Miscanti temperatura de 85 graus. Esse campo geotérmico é formado por 40 gêiseres, 60 termas e 70 fumarolas numa extensão de 3 quilômetros quadrados. À medida que o sol vai nascendo por trás da cadeia de montanhas, a visão da paisagem torna-se ainda mais espetacular. O guia explica que os gêiseres são formados quando a água subterrânea que se encontra nas fissuras e cavidades entra em contato com rochas quentes, ocorrendo então o aquecimento da água. Quando a temperatura atinge um ponto crítico, entra rapidamente em ebulição. Próximo ao local há uma parada numa piscina térmica natural, onde muitos aproveitam para banhar-se. Toda a área em volta dos gêiseres é muito bela. No caminho de volta passa-se por longos trechos de terra dourada e avermelhada, onde não raro encontram-se vicunhas. Para completar o passeio, os turistas podem experimentar o churrasquinho de lhama no povoado de Machuca, onde pode-se fotografar as casinhas e a igreja em cima do morro. Mas o maior charme desse lugar é o fato de viverem ali apenas seis habitantes, o que garante um ar de cidade perdida no deserto. As poucas famílias que viviam em Machuca foram deixando o local para garantirem uma vida melhor. Os que decidiram ficar sobrevivem da pecuária e do turismo. morto sul-americano, por ter água com alta taxa de salinidade, impedindo que os banhistas afundem. Por precaução recomendase que se leve chinelos para caminhar sobre o solo a fim de evitar acidentes nas placas afiadas de sal. Depois de desfrutar dessa experiência única, o passeio prossegue até Los Ojos e a seguir à lagoa Tebenquiche. Los Ojos são duas impressionantes crateras justapostas encontradas em pleno Salar do Atacama, com água de cor azulada que até hoje têm sua origem desconhecida. Alguns dizem que são o resultado da queda de meteoritos na região. Muitos turistas não resistem e banham-se nessas profundas piscinas. Já a lagoa Tebenquiche abriga flamingos e outros pássaros. As suas águas são verdadeiros espelhos refletindo tudo a sua volta; mais um lindo lugar para apreciar o pôr do sol. Sítios arqueológicos Para os que desejam conhecer mais sobre a parte histórica do Atacama e seus povos, há um tour especíUm dos fico. Nos arredores de San Pedro, considerada a capital Los Ojos arqueológica do Chile, encontram-se vários sítios atacamenhos, como a Aldea de Tulor, vestígio habitacional mais antigo do Salar, e Pukará de Quitor, construção pré-incaica de caráter defensivo. Tulor é um conjunto de construções circulares interconectadas, habitado entre 800 aC e 200 dC pelos antigos povos atacamenhos. Do mirante construído sobre as ruínas, é possível ver parte dos trabalhos de escavação que foram realizados. As ruínas de Pukará de Quitor não estão muito bem preservadas, mesmo assim pode-se imaginar a distribuição espacial das edificações. Localizada na Cordilheira de Sal, proporciona uma bela vista do vale que está em seu entorno. De San Pedro dá para ir caminhando ou de bicicleta. O passeio termina com visita ao Museu Arqueológico Pe. Le Paige, onde há exibição de diversas peças da evolução dos povoados atacamenhos, também objetos da cultura inca e espanhola. Mas não é só entre montanhas, vulcões, gêiseres, lagoas de sal que o Atacama nos arrebata. Com um dos céus mais limpos do planeta, o deserto é um paraíso para os astrônomos. Por isso, a 30 quilômetros de San Pedro, a 5.100 metros de altura, está sendo implantado o grande conjunto de radiotelescópio, o Atacama Large Millimeter Array (Alma), reunindo cientistas de vários países. As imagens terão 10 vezes mais detalhes que as capturadas pelo Hubble e a previsão é de que esteja pronto em 2012. Por enquanto, há observatórios particulares como o do Hotel Explora e o do astrônomo francês Alain Maury. Mas o melhor mesmo é contemplar naturalmente o céu salpicado de estrelas, que ali parecem estar mais perto. Flutuar na lagoa Cejar Localizada a cerca de 30 quilômetros de San Pedro, essa lagoa de cor verde-esmeralda e margens cristalizadas é chamada de mar 60 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 61 Lagunas altiplanicas crônica Sonhar com o Almirantado. capitão-de-mar-e-guerra (cd) Leonor Amélia de Mello Barros da Cunha Reetz Por que não? “Se seus sonhos estiverem nas nuvens, não se preocupe, pois eles estão no lugar certo; agora, construa os alicerces.” a alegria e o entusiasmo próprios de quem realizava um sonho e começava a fazer parte da história naval do Brasil. Estava pronta a base. Havia me tornado militar! E o orgulho que senti ao pronunciar diante dos meus pais, familiares e diversas autoridades presentes, o Juramento à Bandeira, assumindo o compromisso de defender a pátria com o sacrifício da própria vida, fez-me ter a certeza de que um dia, nós mulheres, seríamos mais que Capitão-de-Fragata, que era o último posto previsto para o Quadro Feminino de Oficiais. Seríamos sim, Almirantes! Por que não? As oficiais do Quadro Feminino, formadas nas mais diversas especialidades das áreas de saúde, de tecnologia e humanas, sem distinções, só seriam efetivadas ou não após nove anos de serviço, sendo que antes, porém, deveriam ser reavaliadas a cada triênio. Entretanto, a Alta Administração Naval atenta à competência, profissionalismo e total adaptação das oficiais à vida militar, promulgou, em 1987, nova lei, efetivando aquelas que já haviam passado pela primeira avaliação da Comissão de Promoção de Oficiais e elevando o último posto a Capitão-de-Mar-e-Guerra, numa significativa conquista. Subíamos, assim, mais um posto na escala hierárquica e com ele o meu alicerce e a convicção plena de que um dia, nós mulheres, ainda seríamos Almirantes! E este sonho não me abandonava. Estava, portanto, em igualdade de condições perante meus colegas do Quadro de Cirurgiões-Dentistas. O que era então exclusividade masculina foi gradativamente, por nós mulheres, sendo desbravado e à medida que o tempo passava, vivenciávamos cada vez mais experiências numa clara evidência de igualdade de deveres e direitos, a qual culminou com a reestruturação de Corpos e Quadros e a consequente extinção do Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha em 1997. Com a transferência das oficiais para os diversos Corpos e Quadros já existentes, e onde já havia a previsão de se alcançar o posto de ViceAlmirante, a oportunidade para as mulheres atingirem o Almirantado deixou de ser apenas um sonho. Tornou-se real! Que grande vitória L endo há poucos dias a Revista Marítima Brasileira de junho de 2010, deparei-me com este dito chinês atribuído a Chuang Tzu, num artigo de autoria do Contra-Almirante (Ref) Reginaldo Gomes Garcia dos Reis. Dei-me conta então que, há exatos 30 anos coloquei meus sonhos nas nuvens e iniciei a construção de sólidos alicerces. Lembro-me quando, em fevereiro de 1980, graduada em Odontologia há apenas dois meses, atravessei pela primeira vez o portão do 1º Distrito Naval, embarcando rumo ao Centro de Instrução Almirante Wandenkolk, para assistir à formatura militar de alguns colegas de turma da faculdade, que ingressavam como Oficiais da Reserva da Marinha. Como num verdadeiro caso de amor à primeira vista, a visão do belo cenário da Ilha das Enxadas, a imponência da cerimônia com seus garbosos oficiais em seus impecáveis uniformes brancos e o salário bastante atraente que iriam receber, encantaram-me profundamente, levando-me a pensar e desejar intensamente a mesma oportunidade. Completamente apaixonada, sonhei tornar-me militar! Alguns meses mais tarde, soube que o então Ministro da Marinha, Alte Maximiano Eduardo da Silva Fonseca, assinara uma Portaria criando o Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha, em 7 de julho de 1980, numa atitude ousada e pioneira, permitindo o ingresso daquelas que, voluntariamente, desejavam servir à pátria e à Marinha do Brasil. Vi, assim, surgir a tão desejada e sonhada oportunidade. Sem esmorecer diante do fracasso no primeiro concurso, persegui meu objetivo, obtendo êxito no ano seguinte e ingressando, em 1982, na 2ª Turma de Oficiais do Corpo Auxiliar Feminino, com 62 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 feminina! As mulheres já poderiam, sim, ser Almirantes! Contudo, a alegria da conquista alcançada pelas oficiais que teriam essa chance foi, pouco a pouco, sendo substituída pela frustração de saber que nem todas teriam a mesma oportunidade. Somente as médicas e engenheiras transferidas para seus respectivos quadros e as intendentes do Quadro Complementar, quando fossem transferidas para o Corpo de Intendentes, usufruiriam dessa prerrogativa. Seriam então essas especialidades mais importantes que as demais para serem merecedoras de tal privilégio? Mesmo apaixonada pela carreira, como não se entristecer ao ver que Quadros que compõem o mesmo Corpo não possuem as mesmas oportunidades? Afinal, todos aqueles que ingressam com formação acadêmica universitária, realizam o mesmo curso de adaptação à vida militar, o mesmo juramento à bandeira e os mesmos cursos de carreira até o posto de Capitão-de-Mar-e-Guerra. Sei que diferenças ocorrem também entre os oriundos da Escola Naval, onde o Corpo de Intendentes, que carrega em sua história 241 anos de existência, ainda não possui entre os seus integrantes, um Almirante-de-Esquadra, a exemplo do Corpo da Armada e do Corpo de Fuzileiros Navais, que há 30 anos promoveu o seu primeiro Almirante-de-Esquadra numa justa e merecida vitória. Entretanto, o fato de ter servido à Escola Superior de Guerra por pouco mais de quatro anos, além de ter realizado um dos cursos ministrados por aquela instituição, onde o pensamento da igualdade de oportunidades era amplamente propalado, tornou esse sentimento cada vez mais arraigado em meu ser. É nesse sentido que sonho em ver um dia, o Quadro de CirurgiõesDentistas ao qual pertenço e que este ano completa 75 anos de existência com excelentes serviços prestados à Família Naval, ascender ao Almirantado. Cabe ressaltar que esse anseio já constituiu motivo de pronunciamento por parte do Presidente do Conselho Regional de Odontologia em 2008. Com isso, seria feita a adequação do Quadro, a exemplo do que já ocorre com os cirurgiões-dentistas militares nos Estados Unidos, onde, além de altamente conceituados, ocupam posição de destaque no Corpo de Saúde e há muito já atingiram o Almirantado. Ao atingir o último posto existente, até o momento, para o Quadro de Cirurgiões-Dentistas, no mesmo ano em que é comemorado o 30º Aniversário de Ingresso da Mulher Militar na Marinha, este sonho voltou com força ainda maior ao meu coração. E embora com algumas lágrimas derramadas inerentes a todos que vivem uma grande paixão, ainda carrego a mesma alegria e entusiasmo da Guarda-Marinha de 1982, muitos sonhos realizados e outros ainda pelo caminho... E irmanando-me com oficiais, homens e mulheres, das diversas especialidades, dos diferentes Quadros e que provavelmente carregam em seus corações o desejo de alcançar os mais altos postos da Administração Naval, mas, que até o momento, não vislumbram essa possibilidade, concito-os a que jamais percam a alegria, o entusiasmo e a paixão que um dia os levaram a ingressar na Marinha do Brasil e jurar defender a pátria com o sacrifício da própria vida! Continuem a construir seus alicerces. Sonhar é preciso! Tornar os sonhos em realidade é possível! Por que não? 63 MArinhagens SAGA AMAZÔNICA O RETORNO DE JOSÉ Contra-Almirante Domingos Castello Branco A corveta se deslocou de lado, no remanso junto ao barranco alto, conforme as espias eram entradas pelo cabrestante na proa e pelo poderoso guincho da popa, com retornos em troncos de árvores da margem. O comandante achou desnecessário largar o ferro de bombordo, como recurso para puxar melhor a proa para fora, na próxima desatracação, programada para ocorrer na manhã do dia seguinte. Para sair dali, pareceu-lhe bastante contar somente com o emprego das máquinas. O fato de o navio ter duas hélices, bem afastadas uma da outra, sempre facilitava muito esse tipo de manobra. Em poucos minutos, empurrado pelo forte rodamoinho na água, o navio chegou em posição e a prancha foi passada para terra. Ela ficou apoiada a partir do passadiço, único lugar possível para acomodá-la, devido à altura da margem. Uma pequena multidão de caboclos e índios assistia atenta e silenciosa à atracação. O major, comandante da companhia de fronteira, entrou a bordo acompanhado por seus oficiais. Foi recebido pelo comandante com as honras de estilo do cerimonial naval, incluindo uma guarda de fuzileiros navais, do pequeno destacamento que sempre embarcava nessas longas viagens. Os trinados do apito do contramestre e o movimento de armas da guarda causaram sensação no público e agitaram de vez as muitas crianças, até então quietas como os adultos. Seguiu-se uma breve confraternização de oficiais da tropa e do navio, na praça-d’armas. Cerca de meia hora depois, o comandante e o major saíram de bordo, juntos com seus oficiais, para uma visita protocolar ao quartel da companhia, situado também próximo da margem do rio, a algumas centenas de metros abaixo de onde estava a corveta. Na saída, o comandante, acompanhado pelo major e pelo imediato, fez questão de percorrer o barranco por todo o comprimento do navio, para observar as condições de atracação, feita por boreste e aproada à correnteza. A profundidade do canal, logo ao lado do remanso onde se abrigara o navio, era de absurdos 22 metros, e sua correnteza fora estimada em 4 nós, apesar de estarem a mais de 4 mil quilômetros da foz do imenso rio. Ali ocorria ainda uma permanente passagem de troncos e galhos, alguns avantajados. Dois vigias da faxina do mestre guarneceram a proa, munidos de longos croques reforçados, para manter afastada da corveta a galharia que eventualmente nela enganchasse. Do barranco, o comandante observava tudo aquilo com muita satisfação e orgulho do seu navio. Entretanto, ao se aproximar da 64 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 popa, viu uma meia dúzia de meninos maiores que mergulhavam no remanso. Isso era feito a partir da borda baixa do navio a ré, e também de pontos altos dos conveses superiores, inclusive do passadiço, mais a vante, pelo lado de fora da atracação. Ele não gostou daquela brincadeira e cogitava mandar cessá-la, quando o imediato interrompeu seus pensamentos, avisando que o major os esperava junto às viaturas para levá-los ao quartel. Na pressa, o comandante arquivou o assunto e partiu com o companheiro do Exército. A chegada de um navio da Marinha naquelas lonjuras era sempre motivo de muita festa. A recepção ao comandante da corveta e seus oficiais foi carinhosa, muito além das formalidades. Como homem do mar, ele ficou emocionado ao passar em revista a companhia de fronteira, ao som da canção “Cisne Branco”, entoada pelas crianças da escola do grupamento, em uniformes azul e branco, e agitando pequenas bandeiras brasileiras feitas por elas. A tropa era integrada por jovens caboclos e índios das diversas aldeias da região, e se apresentou de forma impecável. Seguiu-se uma palestra, na maior sala do colégio, na qual o major discorreu sobre os diversos aspectos da existência do grupamento, naquele ponto distante do território nacional. O encontro terminou em um modesto coquetel, com a presença das famílias dos oficiais, que sempre participavam de todas as atividades civis do grupamento. Já anoitecia, quando o comandante regressou para bordo a fim de vestir roupas civis, por ter aceito o convite do major para jantar em sua casa. Nas proximidades do barranco de atracação, percebeu um movimento anormal, com gente correndo em direção ao local. Ao descer da camioneta, notou que o oficial de servico estava ausente do portaló. O contramestre não o esperou entrar a bordo e veio correndo pela prancha para lhe dar a má notícia. Desaparecera debaixo do navio um dos garotos maiores que estavam mergulhando do passadiço e, carregados pela correnteza, subiam para bordo na popa. Foi um soco no estômago. Uma perplexidade dolorida tomou conta do comandante. Pensou imediatamente nos pais do menino. Ele mesmo tinha um filho pré-adolescente, a paixão de sua vida. Entretanto, em instantes, reassumiu o papel de comandante, para o qual tivera anos de preparação. Sabedor de que o oficial de servico estava na popa, dirigiu-se apressadamente para lá. Antes, porém, enviou um sargento à companhia para avisar ao imediato do ocorrido e dizer-lhe que regressasse para bordo com todos os oficiais. Além disso, o imediato deveria informar pessoalmente ao major o que estava se passando. Encontrou o oficial de serviço supervisionando a colocação de luminárias na popa para clarear a superfície da água, na qual vários homens mergulhavam em sequência, na tentativa desesperada de encontrar o garoto. Entre eles, destacava-se um que exercia uma certa coordenação do grupo. Era um caboclo alto e desempenado o qual, ao ver o comandante, dirigiu-se a ele, acompanhado pelas demais pessoas ali presentes. O comandante teve um pressentimento logo confirmado. Era o pai do menino. Ele começou a falar de forma descontrolada. Estava todo molhado, com os olhos injetados de sangue, e ajustava nervosamente o calção velho, que insistia em descer da cintura, enquanto gesticulava trêmulo. O pobre homem via no comandante a última esperança de salvar seu filho. Ele não conseguia se fazer entender e ficava cada vez mais nervoso. De repente, tentou segurar as mãos do seu salvador e se ajoelhou em frente a ele, em um choro convulsivo. O comandante e o oficial de serviço tentaram ajudá-lo a levantar-se, mas o homem insistia em ficar de joelhos. Em seguida, deitou-se no convés e foi se encolhendo, aos prantos, até ficar em posição fetal, gemendo 65 os militares o imediato tomava as providências rotineiras para a desatracação, o comandante se isolou na escuridão, do lado de fora do passadiço. Nesses poucos minutos, sua ansiedade atingiu um ponto quase insuportável. Ele se sentia responsável por tudo aquilo e inteiramente só. Entretanto, nada poderia ser demonstrado por ele daí em diante, até terminar toda a manobra, com o navio devidamente fundeado na posição predeterminada, afastado do barranco. O imediato, muito tenso, veio lhe informar que o navio estava pronto para ser movimentado, com exceção da rotineira experiência com as hélices, que não havia sido feita, por razões óbvias. O comandante entrou no passadiço e iniciou a manobra. Sua primeira ordem foi mandar largar os cabos de vante e de ré, que ainda mantinham o navio junto ao barranco. A corveta, mesmo livre, não se mexeu. O rodamoinho no remanso, que não podia ser visto na escuridão, continuava a empurrá-la contra a margem. Decorridos alguns minutos, o comandante, com um nó na garganta, começou a usar as hélices devagar – a de dentro para vante e a de fora para ré – sem mexer no leme, na tentativa de girar a proa da corveta para o meio do rio. Dessa forma, ela sofreria influência da forte correnteza do canal e, naturalmente se afastaria do barranco. De novo, o navio não se mexeu. Angustiado, o comandante ordenou meia-força para as máquinas, o que aumentou bastante a rotação das hélices, fazendo o navio vibrar um pouco, porém sem sair do lugar. O leme, onde poderia estar preso o corpo de Jose, foi então carregado para bombordo, de modo a auxiliar na tentativa de girar o navio para fora. Nada aconteceu. Suando frio, o comandante ordenou toda força para ambas as hélices. A corveta finalmente reagiu e, com forte vibração, começou a girar devagar para bombordo e avançar em direção ao canal. Ao chegar lá, devido à velocidade da correnteza, foi necessário manobrar várias vezes com o leme e com as hélices, de modo a atingir a posição predeterminada e nela fundear com segurança. A manobra toda durou cerca de vinte minutos. Ao terminá-la, com o navio firmemente fundeado na posição escolhida, o comandante desceu desarvorado para a câmara e jogou-se chorando no beliche, sem tirar a roupa. Dormiu um sono sobressaltado por um pesadelo terrível, no qual o menino José e seu filho se afogavam no rio e eram despedaçados por hélices enormes, em alta rotação. Acordou no meio da noite alagado de suor e se sentindo mal. Avisou ao médico e foi logo atendido por ele, acompanhado pelo imediato. Foi-lhe aplicado um forte calmante que o fez dormir até tarde no dia seguinte. O imediato suspendeu cedo com o navio, dando prosseguimento à viagem. O comandante quase não saiu da câmara nos dois dias seguintes. Quando ia ao passadiço, permanecia taciturno e calado, sentado em sua cadeira privativa e olhando fixamente para o rio. Fazia as refeições sozinho, em seus aposentos. O navio todo se preocupava muito com ele, por ser uma pessoa justa e boa. O moral da tripulação estava muito baixo. No terceiro dia, chegou uma mensagem do major para ele, informando que o corpo do José fora encontrado nas águas paradas da boca de um igarapé, vários quilômetros rio abaixo. Estava inteiro, salvo os efeitos naturais de morte por afogamento. O comandante da companhia dizia também que o José fora enterrado no pequeno cemitério local. Estiveram presentes sua família e boa parte da população da pequena cidade. Foram-lhe prestadas honras militares por um grupo de combate de jovens soldados da companhia de fronteira. O filho José havia retornado. A corveta prosseguiu viagem em paz. baixinho. A perplexidade e o constrangimento dominavam a cena. Súbito, ouviu-se a voz de uma mulher que chegava. Era a mãe, também desesperada com a situação. Ela já havia chorado muito, tudo que pudera. Contudo, ao ver seu homem naquelas condições, reagiu da forma que só as mulheres sabem fazer, em especial as mães. Abraçou-se com ele e o fez se levantar, dizendo palavras carinhosas ao seu ouvido, passando-lhe a mão no rosto e nos cabelos. O pai, já mais recomposto e cercado pelos companheiros, dirigiu-se ao comandante, de forma muito respeitosa, e lhe fez um pedido irrecusável, nas circunstâncias trágicas da ocasião. Ele queria que o navio fosse tirado dali logo, para poderem mergulhar mais livremente e ter alguma chance de encontrar o corpo do seu filho menino, o José. O comandante foi apanhado de surpresa pela solicitação e não concordou de pronto. Disse ao homem angustiado que iria pensar no assunto e lhe daria uma posição dentro de algum tempo. Dirigiu-se para a câmara, onde se trancou, deixando antes instruções para o imediato vir falar com ele assim que chegasse a bordo. Sua cabeça estava a mil, pois a primeira ideia a lhe ocorrer era de o corpo do menino poder estar preso ao leme, entre as duas hélices. Quase certamente, seria necessário usar as máquinas para abrir a proa do barranco e sair dali com o navio. Maldita hora em que não lançara n’água o ferro de bombordo, cuja falta agora iria complicar toda a manobra. Em outras palavras, o corpo do José corria o risco de ser despedaçado pelas hélices, girando necessariamente aceleradas durante a manobra. Muito ansiosos, ele e o imediato discutiram o assunto durante algum tempo. Examinaram todos os aspectos da manobra de desatracação do navio de onde estava, a ser seguida por seu deslocamento e fundeio em frente à posição atual, a cerca de 100 metros da margem. Nas circunstâncias existentes, seria quase imprevisível o efeito das correntes sobre a corveta durante os poucos minutos que ela levaria para chegar à posição de fundeio, após largar da margem, girar para fora e cruzar o canal em frente, com sua forte correnteza. Além disso, seria fundamental que toda a manobra fosse feita com o mínimo emprego das hélices, de preferência uma de cada vez, de modo a evitar ou minimizar o pior, isto é, seu provável efeito no corpo do menino. Sob esse aspecto, isso poderia ter sido muito facilitado se o ferro de bombordo tivesse sido largado n’água na chegada, possibilitando o navio ser puxado por ele, para se afastar do barranco na saída. Para complicar ainda mais as coisas, a noite lá fora estava um breu, perdendo-se bastante as referências de distância da margem, inclusive pelo radar, muito impreciso de tão perto. A parte mais difícil, naquele momento, seria falar com os pais do José para alertá-los das possíveis consequências da manobra. De qualquer maneira, a desatracação teria de ser feita logo, como eles pediram, ou quando o navio prosseguisse viagem, na manhã do dia seguinte. Essa conversa ocorreu na câmara, com a presença do casal, do comandante, do major – que viera dar apoio ao navio – do imediato e do médico de bordo. Foi um momento de alta dramaticidade, por todas as circunstâncias, e que terminou com os pais do menino destroçados e todos os presentes chorando. Dela decorreu também a ordem do comandante para que nada fosse comentado a bordo a respeito, até o navio continuar a viagem no dia seguinte. Tomada a decisão, o comandante e o imediato foram para o passadiço, a fim de executar a manobra. Os pais de José, o major e o médico desembarcaram em seguida e ficaram no barranco, em frente ao navio. Eles foram cercados pelos fuzileiros navais, que também estavam em terra, para controlar qualquer agitação por parte do povo, que assistia silencioso aos acontecimentos. Enquanto 66 Revista do Clube Naval • 357 não peçam aos militares que se neguem a lutar Várias vezes pensei em escrever estes comentários. A cada vez que percebo as virulentas críticas aos militares, o não entendimento da missão específica ue lhes cabe, o enxovalhamento a que estão sendo submetidos – principalmente no Brasil, mas também em todo o mundo – sinto uma revolta contra o silêncio que se impõe e percebo que nenhuma voz se levanta, nem aquelas vozes categorizadas da nação que deveriam, em momentos como esses, se pronunciar para esclarecer as assertivas contundentes que são propagadas aos quatro ventos e que são de grande interesse para o exercício consciente da cidadania e mesmo para o futuro da humanidade. Revista do Clube Naval • 357 Eurico de Andrade Neves Borba Ex-professor, diretor do Departamento de Economia e vice-reitor da PUC-Rio, ex-presidente do IBGE, ex-diretor-geral da Escola de Administração Fazendária, escritor. A última vez em que pensei no assunto em tela foi quando visitei, há pouco tempo, o Monumento dos Mortos da II Guerra Mundial, no aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Tive o privilégio e a honra de, em 1960, junto com meu pai, meu irmão e dois dos meus tios, levarmos, pelas mãos, cada um segurando uma alça de urna, os restos mortais dos seis pracinhas, padioleiros, que foram soldados do meu pai, que comandou o Batalhão de Saúde da Força Expedicionária Brasileira, na Itália, entre 1944 e 1945. Caminhamos do Arsenal de Marinha, onde recebemos as cinzas dos soldados mortos na campanha europeia, que foram transportadas desde a Itália pelo Cruzador Tamandaré, até o Parque do Flamengo, cruzando toda a Avenida Rio Branco. O povo, respeitoso, aplaudia sem muito entusiasmo, parecendo não entender muito bem o que estava se passando. Manifestações bem diferentes daquelas quando os pracinhas regressaram da guerra em 1945 – uma apoteose, com multidões nas ruas saudando os militares que regressavam cobertos 67 de glórias, ou quando regressou ao Rio de Janeiro a Força Naval do Nordeste, onde a Marinha desempenhou relevantes serviços na proteção de comboios, das nossas costas e do mar territorial. Tomo esta iniciativa de escrever devido à minha formação. De certa forma posso dizer que estive, emocionalmente, presente em todas as guerras de que o Brasil participou e acompanhei a evolução das nossas Forças Armadas, ao longo de décadas, com interesse muito particular. Foram tataravós, bisavós, avós, pai, irmão, tios, que delas fizeram parte desde as Campanhas do Prata, por volta de 1850, até a II Guerra Mundial, finda em 1945. Ouvia, com muita atenção e interesse, os relatos do ocorrido, primeiro pelas conversas com meu pai, meu avô paterno e meu irmão mais velho oficial da Marinha. Depois li dezenas de livros e assisti a inúmeros documentários ou filmes baseados em fatos reais. Uma lembrança muito forte minha foi a descrição, feita por minha mãe, de quando o Marechal Setembrino Carvalho comunicou, fardado, acompanhado de sua esposa, ao meu avô, o General Eurico de Andrade Neves e à minha avó Elvira, que residiam à época num sobrado na Tijuca, no Rio de Janeiro, a morte do meu tio, irmão da minha mãe, o Capitão Carlos de Andrade Neves, nos campos de batalha da França, em 1918. O Brasil, na I Grande Guerra, 1914-1918, enviou, além da Divisão Naval de Operações de Guerra que manteve patrulhando o Atlântico entre Recife e Dakar, uma missão de oficiais e um grupo da saúde, para ajudar o exaurido Exército francês no seu quarto ano de guerra. Meu pai, quinto anista de medicina, foi trabalhar nos hospitais franceses e completou, na França, seu curso de medicina no Hotel Dieu, hospital que até hoje existe ao lado da Catedral de Notre Dame, em Paris. Meu avô paterno, então tenente-coronel, foi subcomandante de um regimento de cavalaria francesa. O tio Carlos comandava uma bateria de artilharia de campanha. Faleceu pouco antes do fim da guerra, na batalha que veio a ser depois conhecida como a do Segundo Marne. Mamãe e minhas tias, mocinhas, acordaram com o alvoroço da casa e do alto das escadas viram o Marechal Setembrino comunicar a morte do irmão. Vovô Eurico, fardado, permaneceu impassível. Vovó Elvira, praticamente desmaiada nos seus braços, começou a chorar baixinho e nunca mais se recuperou do trauma. Lembro, já adolescente, ter ido com papai e mamãe visitar os mortos da família, sepultados no Rio de Janeiro, no cemitério do Caju. Lá estava o túmulo do tio Carlos com a réplica da cruz de madeira que ornamentara seu túmulo na França – il est mort dans le champ d’honneur... Embaixo da inscrição a reprodução da condecoração francesa que recebera postumamente, a Legion d’Honeur. Os restos mortais do tio Carlos, anos depois, promovido post-mortem ao posto de major, foi transladado para Curitiba, sua terra natal, e a cruz está no museu da cidade. Nunca esqueci essas narrativas e experiências. Elas consolidaram na minha memória, como marco referencial de alto valor patriótico, momentos estranhos ao quotidiano da família, mas narrados com orgulho e carinho – como ações dignas de serem lembradas e homenageadas. Ao visitar o grande monólito de mármore negro, recordando os mortos da guerra do Vietnã, em frente do Lincoln Memorial e o cemitério de Arlington, em Washington, uma homenagem do povo americano aos seus mortos nas várias guerras em que estiveram presentes, passei a ter uma perspectiva mais abrangente da missão e do destino dos militares no nosso tempo. Fui à Normandia, em 1995, nas comemorações dos 50 anos do fim da II Guerra Mundial, procurar o recanto de repouso dos milhares de militares, de várias nações, que tombaram naquele lugar no esforço aliado para pôr fim à dominação nazifascista. Não esqueço, nas várias capitais e grandes Reverencio aqueles militares que, muitas vezes, mesmo sem entender as intrincadas e tortuosas vias da política e da diplomacia dos seus países, honraram seus juramentos de servir, honraram a suas fardas e ofereceram o que possuíam de melhor e de mais precioso: suas vidas cidades do continente europeu, as placas, em algumas ruas, com os nomes dos membros da resistência que, naqueles lugares, foram mortos pelos invasores – um preito de permanente recordação e reconhecimento ao heroísmo que tem como argumento explicativo do ato praticado, um único e decisivo motivo – amor à pátria e à causa da liberdade. São milhares de cemitérios e monumentos dedicados aos militares que morreram em milhares de combates, que podem ser encontrados em todo o mundo. Por quê? Qual a justificativa dessas mortes? Foram mortes diferentes das demais tragédias e violências, foram mortes aceitas em razão de ordens, compromissos e juramentos feitos, talvez até mal compreendidos, talvez até impostos em situações sem alternativa, foram mortes dignificadas por uma causa – a liberdade de um pedaço de terra do planeta chamado pátria. Não são apenas palavras vãs – dever, honra, compromisso, pátria, lealdade, liberdade – são palavras que expressam uma adesão a uma crença, mesmo que não sustentada por refinadas elaborações intelectuais, e, em decorrência, comportamentos que geram fatos e consequências. 68 Revista do Clube Naval • 357 Jamais esquecerei as narrativas familiares, os livros, os filmes, as visitas a esses lugares tornados sagrados pelos corpos daqueles que entregaram suas vidas, como mártires, por uma causa. Com emoção recordo aqueles momentos de suprema dedicação à pátria, de coragem, de lealdade e honra, de testemunho a valores morais que estão se perdendo, referências que fazem parte dos fundamentos mesmo das sociedades e sobre as quais as novas gerações pouco ou nada conhecem. É preciso recordar que tais alicerces foram construídos com vidas que foram ofertadas em prol de um ideal que aqueles homens e mulheres, bravos e determinados, acreditavam e ajudaram a defender. Vidas livres e conscientemente oferecidas por causa de uma crença tornam quaisquer mortes dignas de respeito, não necessariamente de adesão ou de aplauso às causas que motivaram o fato, mas de respeito. Se nada for acrescentado como explicação, basta a presença dos mártires de um ideal para que o ocorrido permaneça como algo pelo menos diferente a ser lembrado, com críticas ou aplausos, mas respeitado. Nenhuma vida ofertada é uma oferta vã, mesmo que motivada por pensamentos simples, talvez até ingênuos. A entrega Revista do Clube Naval • 357 consciente de uma vida transmuda, em solenes compromissos históricos, de condenação ou aplauso, o objetivo pelo qual alguém lutou e morreu. A radical opção que foi tomada pelo militar que morre em combate, probabilidade sempre presente em suas vidas, é um fato a ser considerado quando a eles nos referimos. Ofertar seu bem mais precioso a uma causa coletiva faz do militar uma figura distinta das demais pessoas, mesmo aqueles soldados convocados, como um dever temporário imposto pela cidadania que usufruem, de acordo com as leis e a Constituição dos seus países. Reverencio aqueles militares que, muitas vezes, mesmo sem entender as intrincadas e tortuosas vias da política e da diplomacia dos seus países, honraram seus juramentos de servir, honraram a suas fardas e ofereceram o que possuíam de melhor e de mais precioso: suas vidas. Acreditaram que todos os mecanismos sociais e políticos, que fizeram mover o destino e as decisões de uma sociedade até aquele momento de confronto, eram medidas justas, assumidas também por homens e mulheres honestamente imbuídos do mesmo compromisso coletivo. Não perceberam que 69 alguns mentem, que alguns, solertes personagens, muitas vezes forçaram as situações de conflito que conduziram a história para um momento de guerra. Há momentos históricos, criados por circunstâncias muito especiais, onde a maioria da nação passa a acreditar em uma causa, na proposta de que todos estão comprometidos honesta e verdadeiramente com um objetivo comum certo, adequado, honesto e, portanto, justificando o sacrifício extremo se assim for necessário. Não que eles, militares, sejam melhores do que os outros concidadãos, mas, no entanto, carregam pela vida a consciência de que pelos outros são capazes de se entregar integralmente, até morrer se preciso for, por decisão livre que assumiram ao optarem pela carreira militar. Como decorrência, necessariamente cultivam a coragem de agir, coragem que descobrem no fundo de suas almas, fruto não só do treinamento que recebem para o desempenho de suas missões específicas, mas também pela motivação das gloriosas tradições e exemplos do passado que lhes foram ensinados e nos quais acreditam integralmente. Foi assim, quase sempre, nesses cenários de lutas que a humanidade progrediu em direção à democracia, à liberdade e à paz. As conquistas das civilizações não foram realizadas e consolidadas com discursos ou poesias – foram fruto de lutas cruentas onde os vencedores impuseram seus estilos de vida e suas formas de pensar num processo persistente e ininterrupto do progredir da história das nações. Orgulho-me de uma época que parece que já passou em definitivo, não restando nem a memória dos fatos gloriosos que abrigou. Abomino os medíocres que, indistintamente e a cada oportunidade, criticam mentirosa e irresponsavelmente os militares. Eles não deviam existir, dizem. São críticas vulgares, perversas e mentirosas na sua ação demolidora de uma história e de testemunhos que um dia honraram e motivaram o orgulho de nações inteiras. Hoje, em sociedades amorais, a lembrança honrada do passado ainda incomoda. Por isso é preciso desmerecê-las, se não suprimi-las. E, o pior, não se quer conhecer a verdade – se satisfazem na sua ignorância. Não querem pensar sobre as reais circunstâncias e condicionamentos políticos, legais, sociológicos e psicológicos que conduziram a existência dos militares, como grupo social diferenciado como tantos outros grupos que formam uma sociedade democrática. Não querem conhecer as circunstâncias políticas que levaram às guerras e o porquê da persistência das mesmas até os dias atuais. Quem são realmente os responsáveis pelas tragédias que são as guerras que se abateram sobre a humanidade, em todo o seu percurso histórico e lá se vão centenas de séculos? O que condiciona os militares a ser o que são, cultivando um estilo de vida e uma forma de pensar muito próprios? Recordam sempre as torturas praticadas – fato que, inegavelmente, mancha a história militar de forma terrível. Esquecem, no entanto, que foram alguns desajustados, que existem em todos os grupamentos humanos, que praticaram o ocorrido, condenados pelos próprios colegas, nunca uma política determinada pelo estilo de vida que os caracterizam ou da instituição a que pertencem. Foi, sempre, no Brasil e em todos os países, iniciativa de pessoas com personalidades distorcidas, como aquelas outras também encontradas em quaisquer corporações, e pela qual os militares já pagaram, sozinhos, um preço excessivo. Erraram, mas não todos, apenas alguns poucos. Podemos recordar atrocidades e arbitrariedades praticadas, no decorrer das últimas décadas, pelo Exército francês na guerra de libertação da África do Norte, pelo inglês na manutenção da ordem em suas colônias, dos Estados Unidos na guerra permanente no Oriente Médio, pelo russo no Afeganistão, pelo japonês na China e Coreia, pelo alemão em toda a Europa, pelo português em Angola e Moçambique, pelo brasileiro na revolução de 1964. São fatos deploráveis, merecedores de condenação, condenemos o desvio ocorrido não a corporação inteira pela ação de alguns de seus membros. Os militares em todos os países democráticos, a maioria do Ocidente, são subordinados ao poder civil. Se bem pesquisarmos a história podemos, hoje, verificar como os civis sempre condicionaram o comportamento dos militares, procurando nas forças armadas o necessário poder para desfazer os malfeitos por eles mesmos praticados ou dar continuidade às suas políticas de interesse nacional, também por eles definidas. Não poderia ser de outra forma, pois os civis, na quase totalidade, são os que compõem o Poder Executivo, o Legislativo e o Judiciário eleitos pelo povo. Guerras, revoluções, não foram organizadas, planejadas, gestadas, pelos militares – certamente eles informam, assessoram o poder civil, mas não decidem - cumprem ordens. O poder civil, os interesses econômicos, empresariais e políticos, os meandros da política internacional, formam o pano de fundo, o ambiente histórico que, em ocasiões especiais, conduzem ao conflito armado. É fácil distorcer os fatos junto à mídia e à população, oferecendo os acontecimentos que incriminem, no desenrolar do processo litigioso, aqueles que estão à frente dos fatos e são facilmente identificáveis, especialmente se fardados e armados. Por uma questão de formação, de disciplina, de organização de uma sociedade democrática, os militares permanecem calados e não explicam ao povo as razões de sua presença no processo beligerante, ao qual foram convocados a participar. Depois, quase sempre, o poder civil cala sobre as razões e consequências trágicas de suas decisões. Passados os eventos do conflito, muitas vezes ajudam a jogar pedras naqueles que executaram suas determinações: os militares. Na Alemanha nazista os militares erraram ao permitir a ascensão de Hitler e dos seus asseclas. Mas o poder civil, os partidos políticos, as igrejas cristãs, a mídia, também não souberam ou não quiseram reagir: calaram-se. Foram coniventes com a barbárie que se estruturava, com a liquidação da liberdade. Depois culparam os militares 70 Revista do Clube Naval • 357 por terem permitido a ascensão do tirano. O mesmo ocorreu na Itália fascista, na Espanha franquista, em Portugal salazarista. O mesmo ocorreu em outros países latino-americanos. O mesmo aconteceu no Brasil quando políticos, banqueiros, empresários, latifundiários, representantes das igrejas cristãs, expoentes da imprensa, envolveram os militares com a argumentação de que só eles poderiam salvar o Brasil das mãos do comunismo internacional, pedindo um basta à República sindicalista que um presidente fraco e inepto favorecia. Esquecem-se, os que espezinham e criticam os militares, especificamente no Brasil – poucos conhecem a história contemporânea – que o comunismo internacional, muito bem organizado em suas múltiplas ações internacionais, naqueles anos que sucederam o fim da II Guerra Mundial, até o fim dos anos de 1980, quando ruiu o muro de Berlim e a seguir o Império Soviético, estava pronto para assumir o controle de vários países, mormente na América Latina e África. Hoje essa trama internacional está amplamente divulgada e existe farta documentação que comprova as ações do comunismo internacional durante as décadas da Guerra Fria. É de se recordar o que efetivamente ocorreu quando o comunismo internacional, com a União Soviética à frente, se assenhoreou, no final da década dos anos de 1940 da Hungria, da Romênia, da Bulgária, da Albânia, da Tchecoslováquia, da Polônia, da metade da Alemanha, quase tomando conta, inclusive, da Itália, da Grécia e da França. Era a esperada libertação dos povos do domínio capitalista. Não diziam que também seria o fim da liberdade muito mal plantada em inúmeras nações, mas promissora em outras como era o caso do Brasil. Caso os comunistas tivessem vencido por estas bandas, o sistema de organização da sociedade que pretendiam implantar não permitiria o aparecimento nem de Lula, nem de Chávez, nem de Evo Morales dos dias atuais. Fidel Castro não se apercebeu que a sua revolução era própria e adequada à sua ilha Cuba e acabou perturbando o continente sul-americano e até a África, com suas propostas socialistas ineficientes e ultrapassadas, com sua megalomania ridícula e truculenta e lá está até os dias de hoje a encantar parte da juventude ignorante do que realmente ocorreu. Os militares salvaram a democracia no Chile e no Brasil. Isso não é dito nem lembrado – um lamentável erro histórico, uma covardia acadêmica. A liberdade que hoje usufruímos se deve à revolução de março de 1964. Certamente foram terríveis e condenáveis as prisões arbitrárias, as cassações de direitos políticos, as torturas, o fechamento do Congresso Nacional, a censura da imprensa – uma mancha na nossa história. Aconteceu, no entanto, num momento histórico muito próprio e, lamentavelmente, foi a resposta encontrada para o mal feito por civis, políticos, acadêmicos e empresários, que não souberam fazer vencer suas ideias pelo caminho da democracia. Revista do Clube Naval • 357 Ao não atenderem às necessidades dos mais pobres, em décadas de vigência de um Estado democrático em permanente evolução, criando “dois brasis” – os do que possuíam alguma coisa e a grande massa dos marginalizados – possibilitaram que demagogos incompetentes, seduzidos pelo socialismo irreal e inaplicável, como logo depois a história acabaria por comprovar, tentassem uma revolução. A contrarrevolução que se instalou, autoritária, foi a resposta encontrada para suprimir a ameaça da ditadura comunista que se anunciava. Terrível momento da história brasileira, que se espera que não mais se repita. As críticas superficiais e quase sempre ofensivas são simplistas: os militares são boçais, estúpidos, com pouca formação acadêmica não compreendem a história, a dinâmica social e desprezam os civis. São perversos, cultivam a violência, são autoritários e não admitem críticas. São arrogantes, acobertados pelas armas e pelo poder que ainda possuem. Não é nada disso. As ciências sociais, os estudos antropológicos, políticos e sociológicos, apontam, com clara evidência, a importância que a natural divisão do trabalho teve na organização e no funcionamento da vida coletiva das várias sociedades, que se formaram ao longo dos tempos. Certamente foi um dos fatores determinantes mais importantes para o progresso da humanidade. Com o passar do tempo a especialização permitiu o progresso das ciências, das tecnologias, das artes, da reflexão filosófica, teológica e da política. Cada um, com a divisão do trabalho, teve a oportunidade de desenvolver suas naturais preferências e habilidades, permitindo assim o crescimento do estoque de saberes e o aperfeiçoamento das sociedades, contribuindo para que uma forma de viver coletiva, uma cultura diferenciada se tornasse possível e sobrevivesse ao confronto com outros grupos humanos, firmando sua individualidade própria e prosperando como nação. Na divisão natural do trabalho, quais são as atividades típicas dos militares? Sempre foi a da defesa da comunidade, da vida e das propriedades – públicas e privadas – dos seus cidadãos, da soberania do seu território, da integridade de suas rotas comerciais, enfim do conjunto de interesses e conquistas que tornaram cada sociedade distinta das demais e convivente, num mundo cada vez mais interdependente e competitivo, com outras sociedades também soberanas e com interesses e objetivos próprios a defender. É óbvio que para cumprir sua missão, como parte integrante de uma sociedade, com missão específica determinada pela divisão do trabalho, os militares são preparados para a luta, para o combate, para a guerra. Falhando os políticos, os diplomatas, na defesa dos interesses vitais de uma nação, a manutenção de sua identidade, resta a decisão pela força das armas, decisão esta sempre subordinada, mesmo durante sua execução, ao poder político civil, democraticamente constituído. Clausewitz, já no século XIX, definia a guerra “como a política exercida por outros meios” (War is not merely a political act, but also a political instrument, a continuation of political relations, a carrying out of the same by other means – in Da Guerra). Esta 71 assertiva não é contestada pois é clara a sua evidência, mesmo nos dias atuais. Isto ainda é verdade – fracassando as atividades geracionais de uma sociedade democrática, exercida pelos civis, só resta, se esta mesma sociedade pretende continuar a sobreviver livre e soberana, o apelo àqueles que destinaram suas vidas para a defesa da pátria, como última opção para a sua sobrevivência como grupo humano com características próprias. Portanto, não peçam aos militares que se neguem a lutar. Não esperem que afrouxem e percam um combate, uma guerra que, uma vez iniciada, pelos políticos e diplomatas, por civis, tem uma dinâmica própria – vencer o inimigo da pátria, atingindo os objetivos determinados pela liderança política. A partir da deflagração de um conflito bélico cessa a lógica da paz, do altruísmo solidário, da bondade nas relações humanas – vigora a lógica da eficiência dos combates, a lógica da vitória a ser conquistada nos campos de luta, conduzida e interpretada pelos militares, pois este é o seu trabalho, a sua especialidade, a sua missão. Podem os militares até ser incompreendidos, criticados por suas ações, mas não peçam nem esperem que sejam traidores da razão de suas vidas – a defesa da pátria – construída pela natural divisão do trabalho numa sociedade que é dirigida por civis, num sistema político representativo e participativo, sob o império da lei que, democraticamente, conduziu o país à guerra. Em momentos de discussão pública sobre o papel dos militares na vida de uma nação, sempre são lembradas as palavras do discurso de despedida do presidente dos Estados Unidos, General Eisenhower, em que denunciou o perigo, para a democracia e a paz, das pressões políticas exercidas pelo “complexo militar industrial”. Parece que os eternos críticos das Forças Armadas se esquecem do componente industrial e só se referem ao componente militar, da argumentação apresentada no discurso do ilustre presidente americano. Sabe-se, e a mídia é exuberante em apresentar os fatos ocorridos no último século, como os civis, donos das indústrias que podem produzir artefatos bélicos, capitalistas possuidores de incalculáveis riquezas, manipulam a política, os políticos, muitas vezes os corrompendo, da mesma forma como se intrometem nas relações internacionais, quando seus negócios indicam ser o melhor caminho para prosperarem, gerando situações de conflito entre nações, para assim obrigar, “pelo interesse nacional”, a interferência militar. Certamente que as Forças Armadas conhecem o potencial bélico de possíveis contendores e, logicamente, solicitam nos orçamentos nacionais as condições mínimas de equipamentos e armas para, quando e se forem chamados a atuar, possam atender com eficácia os apelos da pátria, interpretados pelos civis, parlamentares, empresários, diplomatas, que representam a nação. Não queiram que uma força militar, mal equipada e mal treinada, possa atender às expectativas de defesa do povo apenas com coragem e disciplina. É preciso que as forças armadas estejam equipadas na proporção das possíveis missões que o poder civil possa, um dia, vir a ordenar que cumpram. É normal, numa sociedade democrática, que os vários segmentos que a compõe – educação, saúde, transportes, comunicação, forças armadas, energia, agricultura, indústria – procurem nos orçamentos a serem votados uma melhor participação, amparados por argumentos e estudos comprobatórios de suas necessidades. Os recursos, os orçamentos, são produtos de decisões de civis que atuam no Legislativo e Executivo – são eles que estabelecem as prioridades, julgam as solicitações e direcionam os recursos nacionais segundo os interesses da nação da qual são os legítimos representantes. Não são os militares que determinam a parcela da riqueza nacional que a eles deve ser alocada – como os demais setores apontam suas necessidades e apresentam suas justificativas. Se o sistema político não é auten- ticamente representativo dos interesses nacionais pode sim ocorrer distorções, mas, mais uma vez insisto, a responsabilidade pelo mal feito cabe aos civis que gerenciam e decidem os destinos do país. Iludem-se os que pensam que as guerras, os conflitos armados não mais ocorrerão. Basta prestar atenção para o que vem acontecendo de forma crescente, em nossos dias, em todos os continentes: terrorismo desvairado, crime organizado atingindo vastas extensões territoriais, o narcotráfico, as disputas étnicas e religiosas, os questionamentos sobre a localização das reais fronteiras que dividem as nações, o acesso e o uso dos mananciais de água potável, a posse de fontes de energia não renováveis, a exploração dos minerais do fundo dos mares, os direitos de pesca, a poluição atmosférica que supera as fronteiras terrestres afetando vários países, o contrabando de mercadorias perturbando o comércio internacional. São questões que devem ser consideradas para que se perceba, com maior clareza, a necessidade dos países de manterem Forças Armadas eficientes, com rápida capacidade de mobilização e de deslocamento de expressivos efetivos, de tal forma que o país que as utilizar possa garantir sucesso na iniciativa e seu objetivo estratégico ser alcançado. O Brasil, recentemente, precisou apelar para as Forças Armadas com a finalidade de restabelecer a ordem em determinada área do estado do Rio de Janeiro, então nas mãos do crime organizado, fato que pode ocorrer em outras unidades da Federação. O governo brasileiro enviou e mantém tropas no Haiti e deverá contribuir na Força de Paz que irá se estabelecer no Líbano, como apoio e afirmação de sua política exterior. Em passado não muito remoto, enviou militares, sob o comando das Nações Unidas, para a faixa de Gaza e para o Timor, bem como observadores da ONU na conflagrada ex Iugoslávia, com a missão de assegurarem a paz ameaçada naquelas paragens. Precisamos estar preparados para essas missões que podem ser solicitadas a qualquer momento neste mundo instável em que vivemos. No entanto, para que isso aconteça, torna-se necessário uma política permanente de reequipamento, treinamento e manutenção de um efetivo mínimo do Exército, Marinha e Aeronáutica, de tal forma que nossa presença no mundo contemporâneo seja considerada como um país de real expressão econômica, política, diplomática e militar. Não há alternativa a ser considerada – a não ser a irresponsabilidade para com as necessidades da nação. Os militares, os cidadãos que por primeiro sofrem com os horrores da batalha, com os sofrimentos infligidos pela guerra, são os cidadãos que mais aspiram a paz. Vale, no seu estilo e determinação de vida, a sábia orientação da máxima latina: Si vis pacem, para bellum (Se queres paz, prepara-te para a guerra). Cabe aos civis, ao processo educacional de qualidade, às igrejas cristãs, eliminarem ou diminuírem o mal, o pecado do mundo, conquistando as condições de realização da paz. Os militares devem ganhar as guerras, proteger a nação, suas leis e Constituição – esta é a sua missão, sua atribuição constitucional. Certamente podemos visualizar na já longa caminhada da humanidade, exemplos notáveis de virtudes pessoais e coletivas, bem como instantes da mais deslavada predominância do mal cometido por pessoas ou por grupos de pessoas. Não precisamos nos deter muito mais debatendo esse pressuposto óbvio e irretocável: o mal, nas suas várias formas de manifestação, existe como decorrência mesmo da liberdade e da racionalidade da pessoa humana que faz opções na sua vida. Os militares, tratando-se daquilo que é considerado um mal para a sua nação, por sua liderança política civil, tratarão de eliminá-lo ou contê-lo, segundo os meios de combate e de treinamento que possuem. Apreendi que certas palavras, com todas as suas possibilidades e força de comunicação, são o norte, a orientação principal 72 Revista do Clube Naval • 357 da vida de um militar: Pátria, Honra e Lealdade. Uma ideologia que se cristaliza em tradição, disciplina, hierarquia e coragem. Agem, como outros grupamentos humanos que possuem suas ideologias próprias – partidos políticos, sindicatos, organizações várias que compõe uma sociedade. O mesmo povo que hoje cospe no rosto dos militares, a mesma Revista do Clube Naval • 357 juventude que debocha do estilo de vida que os militares cultivam e dos valores pelos quais estão dispostos a dar a vida, é o que nos momentos de perigo vai exigir, clamar por Forças Armadas capazes de defendê-lo exigindo, nesse momento, que as mesmas estejam prontas, bem equipadas e treinadas. Isto aconteceu em 2010 no Brasil e tende a se repetir outras vezes, com percepção clara dos inimigos internos e externos a serem neutralizados. Frente a tal situação os militares ficam estupefatos, desorientados e tristes. Desolados com o abandono dos políticos, historiadores, filósofos, igrejas, professores, que gozam a liberdade, a paz e o progresso que foram erguidos, em passado não muito distante, também com lutas, com guerras, com a perda de inúmeras vidas, geralmente de jovens, que acreditavam que lutavam e morriam por uma causa justa, cumprindo ordens dos legítimos dirigentes de sua nação, esperando, no desespero trágico dos combates, apenas cumprir a missão que lhes fora confiada e o reconhecimento do seu povo para com os sacrifícios que se dispuseram a fazer. Essa disposição continua a mesma. Acredito que todos os cidadãos e cidadãs esperam pelo dia em que não mais existirão conflitos. Que as naturais divergências de opinião e conflitos de interesse possam ser resolvidos nos parlamentos nacionais e internacionais. São inúmeras as vozes de mulheres e de homens ilustres que, no decorrer da história da humanidade, propugnaram pelo aperfeiçoamento da democracia, da liberdade, da justiça e da paz. Muito já foi feito e consolidado na organização da vida das nações e da nascente ordem internacional. Muito resta a ser feito. Vale recordar as palavras do profeta Isaías: “Com efeito, de Sião sairá a Lei, e de Jerusalém, a palavra de Iahweh. Ele julgará as nações, Ele corrigirá a muitos povos. Estes quebrarão as suas espadas, transformandoas em relhas, e as suas lanças, a fim de fazerem podadeiras. Uma nação não levantará a espada contra a outra, e nem se aprenderá mais a fazer guerra” (Is 2, 1-4). Os militares, disciplinadamente atentos, certamente saberão dizer, como uma oração, na trilha das tradições que cultivam, como último alento de certeza na missão que lhes foi confiada pela sociedade, como tão singelamente cantou Castro Alves, (in “Dous de Julho”), com sua poesia vibrante de emoção e pertinência: “Heróis! Como o cedro augusto Campeia rijo e vetusto Dos séculos ao perpassar, Vós sois os cedros da História, A cuja sombra de glória Vai-se o Brasil abrigar.” 73 última página A É deus à Luciana com profundo pesar que participamos o falecimento da nossa colaboradora na Revista do Clube Naval, a Sra. Luciana Buarque Goulart, em 15 de janeiro deste ano. Nossa querida Luciana trabalhou na revista desde julho de 1998, e tinha como tarefa organizar os trabalhos propostos para publicação, manter contato com os autores, orientar o diretor de arte quanto a detalhes pertinentes ao texto e coordenar a produção final da revista. Pelo contato afável que manteve com os autores das matérias, foi sempre muito elogiada e querida. A direção da revista sempre teve nela uma incansável colaboradora e amiga, que facilitava a relação com os nossos autores de textos. Tudo o que ela representou nesses anos, a sua amizade, simpatia e fino trato com todos do Departamento Cultural, deixou em nossos corações um grande vazio. À sua família, portanto, em nome do Clube Naval e de todos nós que desfrutamos do seu convívio, transmitimos os mais sinceros sentimentos de condolência. CLUBE NAVAL,127 ANOS O Presidente do Clube Naval, Vice-Almirante Ricardo Antônio da Vega Cabral tem a honra de convidar para as cerimônias comemorativas do 127º aniversário do Clube Naval, que serão realizadas no dia 10 de junho de 2011: Homenagem ao Almirante Saldanha da Gama, na praça que tem o seu nome, no Jardim de Alah, às 9 horas. Missa em ação de graças em memória dos sócios falecidos, na igreja Santa Cruz dos Militares, na rua 1º de Março, 36, às 11 horas. Traje: passeio completo. Militares da MB: 5.3. 74 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 75 76 Revista do Clube Naval • 357