XIII Encontro de Iniciação Científica
IX Mostra de Pós-graduação
06 a 11 de outubro de 2008
BIODIVERSIDADE
TECNOLOGIA
DESENVOLVIMENTO
MCH0123
QUANDO METÁFORA E CIÊNCIA SE ENCONTRAM: O CASO DA GENÉTICA
GRAZIELA ZAMPONI
UNITAU
1. Introdução
Na visão positivista, a descrição e a explicação da realidade são tarefas da ciência e só a linguagem
‘literal’ é adequada para a caracterização objetiva dessa realidade. A linguagem científica deve ser
rigorosa, objetiva, apresentando os conceitos com conteúdo unívoco, de modo a possuir um estatuto
racional e intemporal.
Relativamente às suas condições de produção, para os partidários dessa visão, a ciência deve circular
dentro de limites muito restritos: confinado nas instituições – universidades e centros de pesquisa – e
expresso principalmente na modalidade escrita, o conhecimento científico “emana” de um especialista e
dirige-se a outro especialista. Apenas o grupo de iniciados pertencentes à comunidade científica é capaz
de produzi-lo e compreendê-lo. E nesse circuito situa-se o discurso científico especializado em que o
locutor, um cientista e, portanto, especialista em determinada área, expõe a pesquisa por ele mesmo
elaborada a um público extremamente selecionado: o grupo de especialistas da área, que conhece o
domínio do conhecimento e a metodologia utilizada.
O discurso científico especializado tomou forma gradualmente por meio de condições de produção e
interpretação particulares, e tornou-se, com o passar do tempo, altamente convencional. Teorias e
modelos, explicações, descrições e demonstrações são formulados e construídos num registro
especializado: no nível microtextual, observa-se, entre outras marcas, o uso de terminologia específica e a
preferência por construções sintáticas particulares; no nível macrotextual, podem-se citar como marcas as
restrições
estilísticas,
economia
e
precisão
máximas,
pretensa
neutralidade,
objetividade
e
despersonalização (criadas pelo uso da 3ª pessoa, das modalidades lógicas, entre outras estratégias). Do
mesmo modo que os autores desaparecem nos textos científicos graças a um formalismo que permite
apagar as marcas pragmáticas do discurso, também a apresentação dos resultados da investigação deverá
conter uma argumentação livre de formulações pessoais, sobressaindo um mundo quantificado e
causalmente ordenado. E, sobretudo, um mundo manifestado por meio de palavras usadas em seu sentido
literal.
Quanto ao discurso de popularização da ciência, mais do que as estruturas textuais, são as
propriedades do contexto comunicativo que o caracterizam, como propõem Calsamiglia e van Dijk (2003).
Nos textos, é possível identificar procedimentos lingüísticos e discursivos recorrentes por conta
justamente do contexto que é peculiar. De maneira geral, existe uma situação canônica de assimetria entre
os interlocutores participantes, ou seja, há de um lado aquele que sabe, e, de outro, aquele que não sabe.
Para contornar, minimizar ou reparar dificuldades comunicativas potenciais ou reais – decorrentes dessa
assimetria na competência temática – os falantes lançam mão de estratégias, entre as quais o uso de
metáforas.
Da perspectiva da instância de produção, os textos de popularização da ciência originam-se de textos
(geralmente artigos científicos) produzidos por pesquisadores, que buscam apresentar e validar suas
"descobertas", dirigindo-se aos membros da comunidade científica. Desse modo, produzir um texto de
popularização da ciência significa recontextualizar uma fonte de modo que ela seja compreensível e
relevante para diferentes tipos de ouvintes/leitores, num contexto que, embora previsível, difere do
contexto da fonte original.
Essa breve incursão pela caracterização dos dois tipos de discurso científico fez emergir um viés,
central neste trabalho: se a presença da metáfora é previsível e desejável no discurso de popularização, ela
não deveria ser no discurso especializado, o que constitui uma falácia. A metáfora sempre esteve presente
nas formulações teóricas produzidas pela humanidade.
2. A metáfora1 no discurso científico especializado e de divulgação: tipos e funções
Não se pode ignorar a presença significativa de expressões não literais, como as metáforas, no discurso
científico especializado. No terreno das designações, por exemplo, tomando a origem do termo, como
sustentar que “Via Láctea” manifesta um sentido literal? Outro exemplo notável na história da ciência é o
1
Adotamos aqui o conceito de metáfora conceptual, de acordo com Lakoff (1993): compreensão de um domínio da experiência
em termos de um outro domínio muito diferente. A metáfora pode ser entendida como um mapeamento de um domínio-fonte a
um domínio-alvo, em que há correspondência ontológica sistemática entre as entidades de ambos os domínios.
fato de se ter adotado o modelo planetário – sistema solar - para a estrutura do átomo cujo núcleo passou
a ser entendido como um sol.
Na visão positivista, que exclui a presença de metáforas na comunicação científica, concessões como
essa, porém, se restringem à aceitação de que metáforas seriam aceitas, num primeiro momento, a partir
de uma analogia que não se poderia recusar; mas, num segundo momento, o da reconstrução racional, elas
desapareceriam para conferir uma dimensão proposicional ao discurso, o qual cria a ilusão de que a
ciência descreve a realidade independentemente das formulações lingüísticas.
Essa posição não se sustenta, se considerarmos a ciência, numa visão diacrônica. Uma incursão pela
história da ciência mostra-nos que desde sempre a linguagem científica inclui expressões metafóricas.
Umas são facilmente reconhecidas como tal;
outras, apenas remontando à sua origem se revelam
metafóricas, pois ao longo do tempo, com o uso, acabaram por se literalizar no seu domínio de aplicação.
A própria terminologia científica tem, muitas vezes, uma origem metafórica. (cf. CONTENÇAS, 1999)
Isso pode ser constatado, por exemplo, se considerarmos as metáforas globalizantes que dominam uma
ou outra época.
Podemos ainda associar a grandes épocas uma determinada metáfora que se assumiu
como representante do saber científico e que dominou não só o pensamento científico, mas também o
político e econômico e mesmo o filosófico desse período. Por exemplo, no século XVII e primeira metade
do século XVIII dominou a metáfora da máquina, seguida no século XIX pela metáfora do organismo.
Newton concebeu o sistema solar como um mecanismo preciso de um relógio. Também os seres vivos
passaram a ser entendidos como simples máquinas. A passagem à metáfora do organismo produziu uma
inversão relativamente ao período anterior, prevalecendo a superioridade do ser natural sobre o ser
artificial.
As máquinas passaram a ser descritas como organismos e as imagens orgânicas foram
substituindo as imagens mecânicas. Na área da Lingüística, por exemplo, Schleicher é sempre lembrado
por sua visão de língua como organismo natural que, seguindo leis determinadas, nasce, cresce,
desenvolve-se, envelhece e morre, e por sua taxonomia das línguas em troncos e grupos familiares.
Já no século XX, notadamente na segunda metade, assistimos ao aparecimento e estabilização do
computador como um domínios das muitas metáforas globalizantes. Boyd (1993:486-7) exemplifica esse
fenômeno com metáforas do domínio da psicologia cognitiva, que tira sua terminologia da ciência da
computação, teoria da informação e disciplinas afins. Assim, na psicologia cognitiva o pensamento é um
tipo de "processamento de informação", as informações são "estocadas na memória", os processos
cognitivos são "pré-programados", só para citar alguns exemplos.
Para o autor, a prevalência das
metáforas computacionais mostra um importante traço teórico da psicologia contemporânea: a
preocupação em explorar analogias ou similaridades entre homens e mecanismos computacionais tem sido
o mais importante fator de influência na psicologia cognitiva pós-behaviorista.
Mesmo entre os
psicólogos cognitivistas não afeitos à tese da cognição humana como uma máquina, as metáforas
computacionais têm um indispensável papel na formulação e articulação de posições teóricas.
Desse modo, as metáforas constituem sistemas de visão que configuram a realidade, a natureza, o
homem e a própria sociedade.
Estas metáforas fundadoras têm por função, no domínio do saber
operatório que constituem as ciências positivas, determinar o conjunto de conceitos e de métodos, graças
aos quais será possível conduzir uma investigação e estabelecem um quadro prévio que determina o tipo
de explicações teóricas e científicas de cada época. Por isso, a ciência deixa de ser vista como discurso
sobre o mundo, o que não significa que as teorias não digam nada do mundo, do real; elas dizem do
mundo, mas não dizem o mundo, segundo Contenças (1999)
Boyd (1993) defende a necessidade de diferenciar duas categorias distintas de metáforas
científicas: metáfora gerativa ou metáfora teórico-construtiva e metáfora pedagógica ou exegética. A
primeira constitui “uma parte insubstituível da maquinaria lingüística de uma teoria científica”
Geralmente é considerada amais genuína metáfora científica, porque forma uma única parte do raciocínio
e conceituação científica, assumindo o estatuto de uma catacrese. A segunda objetiva explicar ou ilustrar
um fenômeno científico para o qual existe uma expressão alternativa original, perfeitamente adequada.
Em suma, a reflexão sobre a metáfora na ciência tem permitido reconhecer que esta tem funções
diversas: de natureza expositiva, didática, heurística e hermenêutica, dependendo do tipo de discurso
científico. Mas há metáforas que, por seu papel no arcabouço teórico como um todo, possuem um caráter
fundador da própria teoria científica. É o que se verifica no campo da genética com a metáfora lingüística
“código genético”, que veremos a seguir..
3. De códigos e livros: um caso de análise
Largamente usada tanto na literatura especializada quanto na de popularização da ciência, a expressão
‘código genético’originalmente nasceu como metáfora, conforme afirma Knudsen (2003), que realizou o
estudo dessa expressão, localizando seus primórdios na obra do físico Erwin Schrödinger, What is Life?”,
publicada em 19442. O objetivo da metáfora foi hipotetizar sobre o mecanismo da síntese da proteína, que
era um mistério na época. Schrödinger assim escreveu”:
São esses cromossomos (...) que contêm numa espécie de código o modelo [pattern] completo do desenvolvimento
futuro do indivíduo e de seu funcionamento no estado de maturidade. Cada conjunto completo de cromossomos
contém o código inteiro; assim, há como uma regra duas cópias do código na célula ovo fertilizada que forma o
estágio mais inicial do futuro indivíduo. (ênfase adicionada)
2
Usamos aqui a edição brasileira de 1997, publicada pela Editora da Unesp.
A metáfora do código do cromossomo não substitui nem explica um outro conceito científico. Seu
objetivo é não só descrever os cromossomos, mas também identificar a função deles pela referência ao
conceito de código. A metáfora sugere-nos o que esses cromossomos fazem de fato e como eles o fazem.
(cf. Knudsen, 2003:1251).
Knudsen (2003) afirma que, no mesmo texto, anteriormente Schrödinger havia identificado o alvo
da metáfora mais especificamente como "cromatina" – uma mistura de DNA e proteínas. Enquanto a
representação não figurativa explica a identidade química dos cromossomos, a representação figurativa
sugere o que os cromossomos fazem: eles codificam o desenvolvimento futuro dos indivíduos.
Essa metáfora seguiu de lá para cá e, aceita na comunidade científica, tornou-se quase uma
expressão literal a ponto de não se reconhecer mais sua origem. A metáfora, nesse caso, é fechada, no
dizer de Knudsen (2003): estabelecida dentro do discurso, aceita pela comunidade científica, ela torna-se
praticamente invisível.
No desenvolvimento das pesquisas no campo do código genético, encontramos a descoberta da
estrutura da molécula do DNA, formulada pelo biólogo americano James Watson e pelo físico inglês
Francis Crick, que afirmam em artigo da revista Scientific American:
Suspeitamos que a seqüência de bases atua como uma espécie de código genético. Este arranjo
pode conter uma enorme quantidade de informação. Se imaginarmos que os pares de bases
correspondem a pontos e traços do código de Morse, há DNA suficiente numa só célula do corpo
humano para codificar 1000 livros volumosos.
As expressões metafóricas contidas nesse texto, código e informação associadas à analogia com o
código de Morse se enraízam no domínio da comunicação; migrar desse universo para elementos como
‘livros’ constitui uma passagem bastante previsível.
Com efeito, parece ser muito freqüente o uso de mapeamentos dentro desse domínio-fonte nos
textos em que se busca explicar o funcionamento do código genético. Tomemos o texto abaixo.
O dicionário da vida – o famoso código genético – pode até parecer complexo, mas é muito pobre. Na prática, a
receita para a construção de qualquer organismo exige apenas 20 palavras. Mas, como toda linguagem, ele também pode
crescer, com uma mãozinha do ser humano: um grupo de cientistas dos EUA acaba de criar cinco neologismos genéticos para
uma coleção de fungos num laboratório da Califórnia. (...)
Quase todas as funções celulares de um ser vivo são executadas por proteínas – grandes peças montadas a partir de unidades
menores, os chamados aminoácidos. Na natureza, em geral, existem 20 deles. Há casos em que um deles surge numa forma
modificada, mas são raríssimos.
A fábrica de proteínas da célula aprende a organizar os aminoácidos executando uma receita que ela recebe de uma molécula
de RNA, que por sua vez é uma cópia das instruções originais gravadas no DNA, uma espécie de “livro-base” com as receitas
de todas as proteínas, sempre disponíveis para consulta, no núcleo celular.
Vocabulário limitado
Cada seqüência de três “letras” no RNA e no DNA especifica um aminoácido. Como o alfabeto das receitas tem quatro letras
(A, T, C e G), são possíveis no total 64 palavras, os chamados códons. Como há 20 aminoácidos e 64 códons, a maioria dos
“vocábulos” acaba sendo de meros sinônimos (veja tabela acima, à esquerda). E há três deles que servem só para
interromper a montagem e sinalizar à fábrica celular que sua nova proteína já está pronta para o uso.
(Salvador
Nogueira. Estudo amplia código genético de fungo. FSP, 15/08/2003, A-18 - ênfase adicionada)
Aqui, explorando principalmente expressões lingüísticas inter-relacionadas a partir do campo
metafórico da linguagem e seu funcionamento, o autor formula conceitos de código genético, proteínas,
DNA, entre outros, além de apresentar processos, recorrendo ao universo das fábricas e receitas culinárias.
Assim, as metáforas são usadas para conceptualizar o conhecimento sobre um tópico da genética.
Nesse texto particularmente, encontramos duas metáforas centrais:
O CÓDIGO GENÉTICO É UM TEXTO/LIVRO
O CÓDIGO GENÉTICO É UMA FÁBRICA
Se o código genético é descrito como "o dicionário da vida", então posteriormente pode ser
explicado em termos de 'palavras', 'neologismos', 'letras', 'vocabulário' e outros. Se ele é descrito como
fábrica, também pode ser explicado em termos de 'peças', 'montagem' etc.
A ativação de um conhecimento proveniente de um domínio-fonte (livro) para descrever as
propriedades desconhecidas do código genético é a base de uma metáfora eficiente no cumprimento do
seu papel de explicar. Esse domínio-fonte não precisa sempre ser mais 'concreto', mas familiar aos
leitores (mais acessível às experiências cotidianas, como é o caso da metáfora da linguagem). O tipo de
conhecimento pressuposto entre os leitores é o conhecimento de mundo sócio-cultural geral, isto é, sobre
corpos, células, textos e letras, algum conhecimento semi-técnico leigo sobre biologia elementar, química
e genética, por exemplo sobre aminoácidos, proteínas etc.
Referências
BOYD, Richard. (1993) Metaphor and theory change: What is “metaphor” a metaphor for? In Ortony, Andrew (ed.) Metaphor
and Thought. 2 ed. Cambrige: Cambridge University Press.
CALSAMIGLIA, Helena; VAN DIJK, Teun A. (2004) Popularization discourse and knowledge about the genome. Discourse
& Society, 15(4): 369-389.
CONTENÇAS, Paula. A eficácia da metáfora na produção da ciência: o caso da genética. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
KNUDSEN, Susanne. 2003. Scientific metaphors going public. Journal of Pragmatics, 35, 1247-1263.
LAKOFF, George. 1993. The contemporary theory of metaphor. In Andrew Ortoni (ed.) Metaphor and thought. 2nd ed.
Cambridge: Cambridge University Press. 202-251.
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