Rede, arte e sociedade: utopia ou distopias?
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Priscila Arantes
Rersumo: Muito mais do que um simples fenômeno tecnológico, a cultura contemporânea tem se
caracterizado por dinâmicas sócio-comunicacionais em rede, fruto muitas vezes de influências que
colocam sinergias em contacto, incentivando a troca e a apropriação criativa da informação. Na
perspectiva da rede a idéia de conexão se expande rompendo com visões estanques de categorizações e
de fronteiras definidas no campo das artes. Por outro lado, a arte começa a operar em outros circuitos
para além dos tradicionais propondo um esgarçamento das fronteiras entre arte e vida com ênfase em
práticas colaborativas e coletivas, especialmente aquelas engajadas no diálogo com contextos sociais.
Neste sentido o presente artigo Rede, arte e sociedade: utopia ou distopias? tem como proposta
investigar, tomando como ponto de partida a idéia da rede, como a idéia do relacional, daquilo que se
dá em rede, tem se manifestado no sistema da arte contemporânea.
Palavras chaves: arte contemporânea, rede, trabalhos colaborativos
Abstract: Much more than just a technological phenomenon contemporary culture has been
characterized by socio-communication network, the result of influences that put in contact synergies,
encouraging the exchange of information and creative appropriation. In the view of the network, the
idea of connection has been expanded breaking visions of fixed categorization and boundaries in arts.
On the other hand, art begins to operate in different circuits proposing a fraying of boundaries between
art and life with an emphasis on collaborative and collective practices, especially those engaged in
dialogue with social contexts. In this sense, this article Network, art and society: utopia or dystopia? aim
to investigate, how the idea of relational, has been manifested itself in the system of contemporary art.
Keywords: contemporary art, network, colaborative practice
Introdução: o mundo em rede
Rede, malha, conexão, são algumas das metáforas utilizadas para designar as dinâmicas da cultura
contemporânea. Caracterizada por operações de articulação e combinação, de edição e de montagem e
longe de procurar exprimir a essência imutável das coisas, a atualidade tem apontado para a idéia de
colagem indicando padrões de rede que suas articulações tecem em constante movimento.
Para René Berger (Domingues 2003) a certeza em categorias precisas e estanques se enfraqueceu,
justamente pela percepção de que tudo é de certa forma transversal, conectado e em rede. “Nenhum
ser por mais simples ou complexo que seja, subsiste ou pode subsistir isoladamente. Os laços são a
condição mesma de sua existência, de toda a existência. Laços endógenos que ligam os componentes de
um organismo, laços exógenos que ligam os seres entre si e com seu ambiente”.
Com efeito, a rede não é uma idéia apenas do nosso século. Já na Grécia antiga Galeno (131-200 d.c),
proeminente filósofo e médico, associava a idéia de rede ao corpo humano, vínculo este que atravessou
toda a história de representações da rede, “designando ora o corpo em sua totalidade como
agenciamento do fluxo ou do tecido ora uma parte deste, principalmente o cérebro” (Musso In Moraes
2006 : 198) . No campo das artes, a idéia da rede também não é recente. Basta lembrarmos do
pensamento romântico no século passado ao designar a inspiração do artista gênio em função de sua
íntima comunhão com o Cosmos.
Apesar da idéia de rede não ser somente um conceito atrelado ao nosso século, as formações em rede
se tornaram mais visíveis na atualidade graças aos meios técnicos que, ao operarem eles próprios por
conexões e interconexões, nos permitiram fazer articulações de toda ordem, tornando-as perceptíveis.
As redes informáticas e as redes virtuais de comunicação constituem talvez a faceta mais visível do
sistema de redes, pois dão a ver as estruturas de interconexão entre seus elementos em interação. Com
o ciberespaço triunfa a idéia de uma rede universal que conecta todos os indivíduos em escala
planetária. A própria sociedade seria de hoje em diante uma “sociedade de rede” no dizer de Manuel
Castells.
Rede de computadores, rede de conceitos, rede orgânica; sociedade em rede. A idéia de multiplicidade,
convergência e interconexão, extrapola os meios da comunicação contaminando outras áreas e
fazendo-nos perceber que a trama social é constituída de interstícios de complexas redes institucionais,
culturais, afetivas, midiáticas e artísticas. A idéia da rede é, a um só tempo, uma espécie de paradigma e
de personagem principal das mudanças da nossa época.
Utopias e distopias tecnológicas
De fato a cultura contemporânea potencializa a idéia do compartilhamento, distribuição e cooperação
sendo fruto de uma crescente troca social sob formatos diversos - de fóruns e chats a weblogs, de
fotoblogs a trocas de mensagem SMS, do Orkut aos sistemas mais gerais.
Ligar ao outro, ou re-ligar parece ser o mote da cultura contemporânea criando novas formas de
sociabilidade que têm nas tecnologias digitais um vetor de agregação social. A própria web é dentro
desta perspectiva uma tecnologia social cuja maioria dos protocolos e linguagens permitem
participações de grupos e indivíduos os mais diversos.
Muito mais do que um simples fenômeno tecnológico a cultura contemporânea caracteriza-se por
dinâmicas sócio-comunicacionais em muitos aspectos inovadora, fruto de influências mútuas de
trabalho cooperativo que coloca sinergias em contacto, incentivando a troca e a apropriação criativa da
informação.
Para alguns a ‘hiper rede’ internet seria a concretização, no plano tecnológico, da utopia social dos
ideais modernos: “A rede por essência anti-hierárquica se torna sinônimo de auto-organização e de
igualdade (...). O internauta deveria travar um combate pela liberdade contra todos os órgãos de
regulação, contra os operadores dominantes (Microsoft ou o FBI, por exemplo) pela igualdade contra
todas as hierarquias, a começar pelas dos Estados e pela fraternidade mundial das “comunidades
virtuais”. Liberdade, igualdade e fraternidade: a utopia social se realizaria finalmente, graças à utopia
técnica reticular”. (Musso in Moraes 2006: 206)
Nesse contexto as redes digitais fixas e móveis apresentariam alternativas cada vez mais sólidas de
organização política e construção de cenários coletivos. Por outro lado, ao mesmo tempo em que
sinalizariam possibilidades de democratização da cultura embutidas em práticas de compartilhamento e
na cultura de softwares de código aberto, as redes colocariam em cena um mundo cada vez mais
‘controlado’ em que práticas de vigilância e quebra de privacidade estão cada vez mais presentes no dia
a dia.
De modo diverso ao dos apologetas da cibercultura que vêem a informatização da sociedade e o
desenvolvimento das redes telemáticas como um fenômeno que abre possibilidades para a instauração
progressiva de uma espécie de tecnodemocracia, Alex Galloway (2004) coloca em xeque a crença de que
não haveria nenhuma forma de controle na sociedade informática, sinalizando para uma vertente mais
distópica da cultura contemporânea.
Partindo de pressupostos já delineados por Deleuze e Foucault, Galloway argumenta que as novas
formas de poder se debruçariam nas regras, ou mais precisamente, nos protocolos, que governam as
trocas de informações entre os computadores conectados em rede. Para Galloway, a rede, e os seus
processos descentralizados de transmissão de informação, o computador digital e os protocolos - os
princípios que regem e controlam os fluxos de informações de forma descentralizada em um sistema
distribuído e em rede - são as bases por onde se sustentam o novo império de poder da sociedade
capitalista contemporânea.
Utopia ou distopia o fato é de que um dos aspectos mais potentes da cultura das redes é a forma como
a tecnologia amplia e modifica as relações sociais, isto é, como as tecnologias em rede, sejam elas fixas
ou móveis proporcionam desdobramentos sociais interessantes.
O paradigma da rede na produção artística
Na perspectiva da rede a idéia de conexão se expande rompendo com visões estanques de
categorizações e de fronteiras definidas no campo das artes. A partir dos anos 1970, a experiência da
arte migra de um campo de proposições artísticas específicas para uma prática desdobrada, ampliada,
que opera na convergência de linguagens e em diálogo com outras esferas do conhecimento. Ao mesmo
tempo em que teóricos como Rosalind Krauss, Raymond Bellour e Gene Youngblood sinalizam a
expansão dos campos de ação artística a partir da intersecção das linguagens, a historiadora de arte
Anne Cauquelin aponta para a confluência de papéis entre os diferentes agentes do sistema da arte
contemporânea, típica dos tempos fluidos que caracterizam nossa época.
Por outro lado, a arte começa a operar em outros circuitos para além dos tradicionais propondo um
esgarçamento das fronteiras entre arte e vida com ênfase em práticas colaborativas e coletivas,
especialmente para aquelas engajadas no diálogo com contextos sociais.
Pensadores como Nicolas Bourriaud (2009) sinalizam que uma das grandes características da arte atual
seria o fato dela se desenvolver em função de noções conviviais e relacionais. Para ele a comunicação
hoje, encerraria os contatos humanos dentro de espaços de controle que decompõe, ao invés de
afirmar, o vínculo social. Em uma sociedade em que as pessoas não se comunicam e onde o vínculo
social tornar-se produto padronizado, a atividade da arte, contrariamente, efetuaria ligações, conexões,
abrindo as passagens obstruídas de níveis de realidade.
A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das
interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e
privado) atestaria, de acordo com Bourriaud, uma inversão radical dos objetivos estéticos, culturais e
políticos postulados pela arte moderna; uma forma de arte que é dada pela intersubjetividade tendo
como tema central o estar junto; em rede.
Dentro desta mesma perspectiva Claire Bishop no seu livro Participation (2006) destaca a dimensão
social das artes participativas, não no sentido da atuação do indivíduo nas artes interativas mas da
ativação de um corpo social possível através de práticas colaborativas.
No campo das artes esta proposta afetiva corresponde à ruptura de uma visão da arte como ilusão para
uma proposta mais vivencial e de produção de intersubjetividades. Percebe-se, neste sentido, práticas
que no intuito de trazer a arte para a vida, se deslocam do espaço protegido e confinado do museu, para
o espaço da realidade mesma, seja através de intervenções urbanas, performances e happenings ou,
mais recentemente, através de investigações artísticas no âmbito da rede internet e muitas vezes em
espaços em trânsito, on o off line.
Dentro desta perspectiva vale lembrar de O Branco invade a cidade (1973), do artista argelino Fred
Forest. A ação consistiu em sair pelo centro de São Paulo - do Largo do Arouche até a Praça da Sé simulando uma passeata com umas 10 pessoas carregando cartazes em branco. Centenas de curiosos
aderiram “à passeata” bloqueando o trânsito por várias horas. Quando Fred Forest desenvolve esta ação
ele cria simultaneamente uma microunidade; a dos integrantes da passeata unidos por uma ação
performática que subverteu a condição do silêncio imposta na época da ditadura militar no Brasil.
Caso exemplar de projetos neste sentido são aqueles desenvolvidos por Maurício Dias e Walter
Riedweg. Muitos dos protagonistas de seus trabalhos são grupos sociais que se situam à margem do
universo supostamente garantido pelo capitalismo mundial. Os projetos de Maurício Dias e Walter
Riedweg produzem, muitas vezes, uma falha, um corte, uma interrupção na ordem dos sentidos e do
curso “natural” das coisas. Provocam uma iluminação – profana como diria Benjamin, ao colocar em
evidência o esgarçamento e as tensões que compõem o cenário social. Entre os trabalhos da dupla
pode-se destacar Dentro e fora do tubo (1988). Realizado a partir de depoimentos gravados com
refugiados vindos de terras em conflito e vivendo na Suíça à espera de legalização de seu asilo político, a
idéia do projeto foi a de gravar depoimentos orais da memória do trajeto que o imigrante realizou
quando da saída de sua cidade natal até chegar à Suíça. Estas lembranças, vozes, memórias dos
refugiados foram colocados em walk-talks e espalhados, dentro de tubos, no espaço urbano,
disponíveis para a escuta da população. Trata-se, neste caso, de colocar em evidência, em público,
estados afetivos e experiências sensóreas decorrentes de situações específicas dos processos de
marginalização.
Um processo como esse nos remete às experiências desenvolvidas pelo artista polonês Kristof Vodisko,
conhecido, desde os anos 80, por trabalhar com projeções de vídeo em grande escala no espaço público.
Em Tijuana Project (2001), desenvolvido no Centro Cultural de Tijuana, no México, o artista se utiliza de
dispositivos midiáticos para dar voz a mulheres operárias da cidade de Tijuana. Neste trabalho o artista
desenvolveu um capacete integrado a uma câmera e a um microfone que permitia gravar e transmitir
em tempo real a imagem e a voz da depoente na fachada do Centro Cultural de Tijuana. Os
testemunhos das mulheres, ouvidos pelo público em praça pública, discorriam sobre abuso sexual,
alcoolismo e violência doméstica. Criavam uma zona de comunicação, em rede, sobre afetos íntimos
vividos por situações de fragilidade social.
Em todos estes projetos percebe-se, de certa forma, aquilo que Deleuze e Guattari diziam quando
definiam a obra de arte como um bloco de afetos e perceptos: o fato da arte manter ou criar momentos
de subjetividade ligados a experiências singulares. Mais do que apenas criar situações em rede, são
projetos que proporcionam desdobramentos sociais interessantes, promovendo vínculos diversos
daqueles promovidos pela sociedade de controle.
Dentro de outra perspectiva, já no âmbito da rede internet, podemos citar The File Room, de Antonio
Muntadas, um dos primeiros projetos artísticos desenvolvidos para a internet. O projeto, que discutia o
tema da censura cultural, consistia de uma instalação e um banco de dados, onde os usuários poderiam
depositar os seus projetos censurados. Além de colocar em cena a idéia de compartilhamento da
informação dentro da perspectiva de um wok in progress colaborativo, o projeto atuava na contramão
da censura, abrindo na rede um espaço expositivo para os projetos censurados.
Já Suspensión Amodal do artista catalão Rafael Lozano Hemmer é uma instalação em grande escala
desenhada para a inauguração do centro de arte YCAM no Japão que permitia ao participante enviar
mensagens via telefone celular e Internet ao espaço da cidade. As mensagens se codificavam em
seqüências de luz e eram disparadas por canhões, permanecendo no céu até que a mensagem fosse lida
pelo destinatário. Ao serem lidas, as mensagens se retiravam do céu e eram projetadas na fachada do
edifício do YCAM. Neste trabalho fica evidente a idéia da cidade como dispositivo de comunicação e
como dispositivo para trocas de afeto dentro da perspectiva já desenhada pelos situacionistas. Mas não
somente. O trabalho coloca também em debate a questão da mobilidade e das conexões em rede, um
dos temas mais caros da atualidade. Para além de assinalar as contaminações entre o espaço físico e o
da comunicação, o projeto aponta para a idéia da rapidez dos ‘relacionamentos virtuais’. As conexões
via Internet, email, SMS, telefone celular, exigem rapidez e é extremamente fácil sair destas conexões;
basta deixar de responder um email ou apertar a tecla apagar. São relacionamentos que acendem e
apagam, ‘como’ a velocidade da luz.
Mais radical é o trabalho do grupo Loca que “conseguiu mapear e se comunicar com moradores da
cidade de San José, sem o conhecimento dos moradores ou permissão. Através da utilização de seus
telefones celulares (desde que o dispositivo Bluetooth estivesse aberto para localização) mais de 2500
pessoas foram detectadas por mais de 500 mil vezes pela rede Loca - construída em agosto de 2006 com
clusters formados por nós interconectados, auto-suficientes e equipados com Bluetooth, no centro da
cidade californiana. A malha resultante permitiu descrever em detalhes o movimento das pessoas”
(Catálogo Arte.Mov)
Muitos destes trabalhos não perseguem mais a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas
contrárias às vigentes, mas procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da
realidade existente. O que estes projetos compartilham é o mais importante, a saber, o fato de operar
num mesmo horizonte prático e teórico: a esfera das relações humanas. Suas obras lidam com os
modos de intercâmbio social e pensam os processos de comunicação enquanto instrumentos concretos
para interligar pessoas e grupos criando sociabilidades alternativas e chamando atenção para as
questões que permeiam a nossa cultura.
Bibliografia
Bishop, Claire (og).Participation.MIT Press, 2006.
Bourriaud, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
Catálogo do 2 Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis. Telemig Celular Arte.Mov, 2007
Domingues, Diana. Arte e Vida no Século XXI. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
Galloway, Alex. Protocol. How Control Exists After Decentralization. MIT Press, 2004.
Musso, Pierre. Ciberespaço, figura reticular da utopia tecnológica. In Dênis de Moraes (org.). Sociedade
Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.
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Pesquisadora, crítica de arte e curadora. É formada em filosofia pela Universidade de São Paulo (1989),
possui mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1997-2003) e pós-doutorado, com projeto na área de estética e arte em meios tecnológicos pela
Unicamp (2008). É professora de teoria, estética, curadoria e história da arte de cursos de graduação e
pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desde 2007 é diretora técnica e
curadora do Paço das Artes/MIS sendo responsável pela programação geral da instituição. Entre seus
livros destacam-se: Arte @ Mídia: perspectivas da Estética Digital, Conexões Tecnológicas, Estéticas
tecnológicas: novas formas de sentir e Experiências/Campos/Intersecções/Articulações.
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