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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
COORDENAÇÃO DE LETRAS
PEDRO ISAAC VANDERLEI DE SOUZA
OS GÊNEROS POÉTICOS NO ALMOCREVE DE PETAS, DE JOSÉ
DANIEL RODRIGUES DA COSTA
JOÃO PESSOA – PB
2015
1
PEDRO ISAAC VANDERLEI DE SOUZA
OS GÊNEROS POÉTICOS NO ALMOCREVE DE PETAS, DE JOSÉ DANIEL
RODRIGUES DA COSTA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como exigência parcial para obtenção do
título de Licenciado em Letras Português à
Banca Examinadora da Universidade Federal
da Paraíba.
Orientadora: Profª. Drª. Socorro de Fátima
Pacífico Barbosa
JOÃO PESSOA - PB
2015
2
S729g Souza, Pedro Isaac Vanderlei de.
Os gêneros poéticos no Almocreve de Petas, de José Daniel
Rodrigues da Costa / Pedro Isaac Vanderlei de Souza.- João
Pessoa, 2015.
33f. : il.
Orientadora: Profª. Drª. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa
TCC- Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura) UFPB/CCHLA
1. Costa, José Daniel Rodrigues da, 1757-1832 - crítica e
interpretação. 2. Literatura portuguesa - crítica e interpretação.
3. Almocreve de Petas. 4. Periódicos - Século XVIII.
UFPB/BC
UFPB/BC
869.0(043.2)
CDU: 869.0(043.2)
CDU:
3
PEDRO ISAAC VANDERLEI DE SOUZA
OS GÊNEROS POÉTICOS NO ALMOCREVE DE PETAS, DE JOSÉ DANIEL
RODRIGUES DA COSTA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como exigência para obtenção do título de
Licenciado em Letras Português sob
apreciação da seguinte Banca Examinadora:
Aprovado em: ___/___/___
__________________________________________
Profª. Drª. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa
Universidade Federal da Paraíba
Orientador
__________________________________________
Profª Mtª Gilsa Elaine Ribeiro de Andrade
Universidade Federal da Paraíba
Avaliador
__________________________________________
Profª Drª Vanessa Riambau Neves Pinheiro
Universidade Federal da Paraíba
Avaliador
4
AGRADECIMENTOS
A D’us, que nos deu vida, nos sustentou e nos fez chegar até a presente época.
Aos meus pais, pelos anos de amor, cuidado, sacrifício e zelo, dívida que jamais
poderei pagar.
À minha orientadora Socorro de Fátima Pacífico Barbosa, por toda a confiança em
mim depositada ao longo de três anos e por todo o conhecimento por meio dela adquirido.
Aos meus amigos e colegas de curso Valnikson, Pedro Felipe, Jullyana, Raquel,
Dijavan, Janaína, Fabrícia, Érika, Amanda e Mara por tudo o que aprendi pessoal e
academicamente com cada um deles ao longo dos anos de graduação.
Aos estimados professores Cirineu Cecote, Regina Baracuhy, José Ferrari Neto,
Amador Ribeiro Neto, Rinaldo de Fernandes, Vanessa Riambau e Carmen Sevilla por tudo
que me ensinaram e pelo apoio que me deram ao longo dos tempos.
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RESUMO
Nosso trabalho tem como proposta o estudo da poética presente no Almocreve de Petas,
periódico português do final do século XVIII de autoria de José Daniel Rodrigues da Costa,
analisando de que forma a sátira estava nela contida e quais eram seus objetivos. Os principais
autores que serviram de suporte teórico para a pesquisa foram Barbosa (2007), Eagleton
(2003), e Pécora (2001). Encontramos diversos gêneros poéticos, predominantemente sonetos
e décimas, ao longo das partes do periódico, atribuídos, em maior parte, a um determinado
Moço do Poeta. Concluímos que a sátira nos gêneros poéticos presentes servia como uma
forma de admoestação aos leitores, procurando cortar-lhes os vícios apontados como
prejudiciais à boa convivência social.
Palavras-chave: Almocreve de Petas; José Daniel Rodrigues da Costa; Periódicos do século
XVIII.
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ABSTRACT
This paper aims to realize the study of the poetical texts present in the Portuguese journal
Almocreve de Petas, from José Daniel Rodrigues da Costa, that circulated in Lisbon between
the final years of 18th century, analyzing how satire was set in this poetry and what were its
objectives. The main authors who provided us theory supports were Barbosa (2007), Eagleton
(2003), and Pécora (2001). Several poetic genres were found in our reading such as sonnets
and décimas, mostly being credited to an author called Moço do Poeta. We concluded that the
satire present in the journal was a method of reprehending the readers’ bad behaviors, aiming
to cease everything that was prejudicial to good social connivance.
Keywords: Almocreve de Petas; José Daniel Rodrigues da Costa; Journals from 18th century.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 8
1 A SÁTIRA E A POÉTICA NO SÉCULO XVIII ................................................................. 11
2 A SÁTIRA NOS GÊNEROS POÉTICOS DO ALMOCREVE DE PETAS Erro! Indicador
não definido.14
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 19
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 21
ANEXOS .................................................................................................................................. 23
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INTRODUÇÃO
O jornal português Almocreve de Petas ou moral disfarçada, para a correção das
miudezas da vida foi publicado entre 1798 e 1799 na cidade de Lisboa, sendo dividido em
partes, cada uma contendo oito páginas e, posteriormente, compilado em dois tomos
impressos na Oficina de J.M.F. de Campos em 1819, com licença do desembargador do Paço
(edição esta que utilizaremos para a elaboração deste trabalho, haja vista que se encontra
totalmente disponível no endereço eletrônico da Biblioteca Nacional de Portugal). Seu
principal objetivo era a sátira a determinados costumes e práticas da sociedade portuguesa, em
especial lisbonense, do final do século XVIII. Tal periódico teve como editor José Daniel
Rodrigues da Costa, assinando sob a alcunha de “Josino Leiriense”, pseudônimo que afirma
ser a forma a qual é conhecido entre os pastores do Tejo. O autor, de data e local de
nascimento incertos, tinha como principal viés de escrita a sátira, e nela baseou a elaboração
do jornal, causando certo estranhamento por parte dos leitores e demais editores na época
devido à sua publicação extrapolar o que era considerado adequado aos gêneros jocosos.
O caráter satírico do periódico pode ser percebido, de fato, desde a sua denominação:
denomina-se “almocreve” aquele que, geralmente usando-se de montaria, faz a entrega e
descarga de cargas e correspondências, figura esta presente no frontispício de cada parte do
jornal (Anexo II), e “petas” é um sinônimo de mentira com graça. Ambas as palavras caíram
em desuso, e sua definição encontra-se no Diccionário de Língua Portugueza (SILVA, 1789).
Também podemos considerar a Protestação do Author, que justifica a jocosidade em sua obra
de uma forma satírica, alegando que:
Assegura, e protesta o Escritor desta Obra, que não he sua intenção remoquear, ou
alludir a pessoa alguma em particular com as palavras, e narrações puramente
ficticias, e jocosas, que nella se serve, pois só procura facilitar por esse modo a
recreação do espirito, e ainda a lição de muitas cousas miudas da vida, pois os casos,
que contém, são de mera invenção, sem satyras, ou invectivas aos Leitores, &c.
(Almocreve de Petas, 1819, Tomo I, p. 18)
Nota-se que o editor, ao justificar-se, já realiza uma sátira, pois ao alegar que o
periódico não as publicará ironiza o fato de, tendo posto tal protestação ao término da
primeira parte, já as realizara previamente. Ademais, sendo a sátira um instrumento de crítica
social e política, na qual “os vícios, as imbecilidades e a estupidez são utilizadas para
ridicularizar” (APUD HOGART, 2009.) tornar-se-ia impossível realiza-la sem aludir a
“pessoa alguma em particular”.
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Os gêneros abordados pelo periódico abrangiam cartas redigidas por “leitores”,
considerando o fato de que um recurso muito comum àquela época era a publicação de falsas
cartas, cujo editor atribuía a um leitor com o propósito de satirizar o ponto de vista nela
presente (BARBOSA, 2007), notícias, anedotas e gêneros poéticos. Estes geralmente se
encontravam anexos às cartas dos “leitores” ou às notícias, além de versos atribuídos a um
denominado “Moço do Poeta”. Seus versos sempre são antecedidos de uma breve descrição
da situação em que foram redigidos, situação esta de caráter jocoso, contrastando com a
elaboração que, por vezes, aparenta seriedade. Há, ainda, as coletâneas de Máximas do Velho
de Romulares. Inicialmente em formas de citações, esses conselhos, que segundo o editor
foram deixados por um velho ao seu neto que deles fez pouco caso e que os deixou serem
publicados para os leitores de Almocreve, ao longo das publicações tomaram o formato de
versos, sem seguir, contudo, a um padrão métrico, de rimas e de elaboração, o que nos levou à
decisão de não toma-las como parte de nosso corpus atual.
Compreendemos que o estudo dos periódicos é um campo de enorme importância para
a compreensão do desenvolvimento da produção literária através dos tempos, tendo em vista o
fato de que o suporte jornal sempre se apresentou como uma forma mais popular de acesso à
cultura letrada que o suporte livro, tanto para os autores quanto para os leitores (CHARTIER,
1994). Ademais, consideramos o fato de que os estudos acerca de jornais do século XVIII são
ainda pouco aprofundados. A eleição de um periódico português do final de tal século
considera, ainda, a enorme influência que tinha a metrópole sobre o Brasil, especialmente a
partir do ano de 1808 com a vinda da família real portuguesa para a América, pouco menos de
uma década após o encerramento da publicação do Almocreve de Petas. Levamos em conta,
por fim, uma hipótese levantada por Regina Zilbermann, alegando que “ainda não foi
completada a história que narra a dívida da literatura brasileira para com o jornalismo (...)”
(APUD BARBOSA, 2006), considerado que o suporte jornal foi de extrema importância para
o desenvolvimento da literatura brasileira mas, apesar disso, apenas recentemente passou a ser
objeto constante de estudo no meio acadêmico brasileiro.
Começaremos nosso estudo, portanto, apresentando a forma como os gêneros poéticos
estão distribuídos no Almocreve de Petas. Para aprofundar tal apresentação, daremos uma
breve descrição do conceito de literatura vigente à época, tendo por base Barbosa (2007) e
Eagleton (2006). Também será discutido acerca da sátira, levando em consideração os estudos
conduzidos por Hodgart (2009) e Hansen (2003), concluindo o primeiro capítulo.
O segundo capítulo consistirá na análise de determinados gêneros poéticos presentes
no Almocreve de Petas, a exemplo de décimas e sonetos, e como neles ocorre a sátira. Para
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tanto, devemos considerar, além do corpus poético, o contexto em que ele estava inserido
pois, como foi previamente descrito, a maioria dos gêneros poéticos encontrava-se como parte
complementar de uma carta de um “leitor” ou alguma notícia, além dos versos trazidos pelo
denominado moço do Poeta, que sempre tinham consigo alguma contextualização acerca do
motivo e momento em que foram escritos.
Por fim, teceremos comentários acerca dos resultados obtidos e suas implicações para
o campo literário, assim como seus possíveis desdobramentos futuros.
O presente trabalho é resultado do projeto de pesquisa PIBIC/CNPQ Ler e escrever
nos folhetos jocosos lusos dos séculos XVIII e XIX, no plano de trabalho intitulado Os gêneros
poéticos no Almocreve de Petas, de José Daniel Rodrigues da Costa, coordenado pela Prof.ª
Dr.ª Socorro de Fátima Pacífico Barbosa, elaborado durante a vigência 2013/2014. A proposta
de analisar a sátira presente na poesia de tal periódico surgiu durante a sua leitura, na qual
pudemos evidenciar vários casos em que foi utilizada. A escolha de tal periódico deu-se pelo
fato de, além de apresentar um vasto repertório poético em sua composição, o Almocreve de
Petas está totalmente disponível na íntegra para download e encontra-se em excelente
qualidade gráfica, tornando fácil a sua leitura e, consequentemente, sua interpretação.
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1 A SÁTIRA E A POÉTICA NO SÉCULO XVIII
Antes de iniciarmos a discussão acerca da natureza poética do Almocreve de Petas, é
necessário que tenhamos em mente que os conceitos de literatura e poesia nos anos de 1700
eram distintos daqueles que possuímos na presente época. Barbosa afirma que “quando
aplicamos indistintamente o termo literatura é porque ignoramos que o significado de uma
obra subordina-se tanto a códigos e acordos específicos, como a uma comunidade de leitores”
(2007). Podemos concluir, portanto, que, ao analisarmos a produção literária de um
determinado momento histórico, devemos levar em consideração o ideário vigente para evitar
ver o passado à luz de olhos modernos, caindo em anacronismos. Estudar a produção literária
do século XVIII requer ter em mente o que era literatura para aquele período, conceito
divergente do atual, pois segundo Abreu (2003, p.29):
“Márcia Abreu (2003, p. 29), ao discutir a concepção do termo literatura no século
XVIII, observa que sua autonomização só se dará no outro século, haja vista serem
‘tão tênues as fronteiras entre as áreas’ que a definem, pois literatura era
conhecimento. Esse é o sentido registrado no Dicionário da Língua Portuguesa,
composto por Antônio de Moraes Silva, na edição de 1831: ‘Literatura: erudição,
ciência, notícia de boas letras, humanidades. Homem de grande literatura’”.
(BARBOSA, 2007, p. 28 – 29)
Tal definição dá-nos um conceito literário bem mais abrangente que o atual, em que a
natureza literária de determinado escrito está associada com a maneira na qual a linguagem é
utilizada em sua elaboração (EAGLETON, 2003).
Há de se considerar, ainda, a definição de poesia. Se atualmente utilizamos o termo
“poema” para englobar toda e qualquer produção poética em um mesmo grupo, devemos
considerar que tal conceito nada mais é que uma criação contemporânea impossível de ser
utilizada para referir-se ao século XVIII, momento histórico em que havia a distinção entre os
diversos gêneros poéticos segundo a sua elaboração e função. A respeito disto, Pécora afirma
que:
“(...) o que se tem chamado genericamente de “poema” não se reconhece, numa
perspectiva da tradição clássica, como “poema” – termo cômodo pela totalização
dos objetos de tradições letradas muito distintas e, muitas vezes, impossíveis de
justapor ou englobar –, mas digamos, como soneto, como madrigal, como romance
pastoril, como epístola satírica, formas poéticas precisas, com teoria, história e
efeitos particulares”. (PÉCORA, 2001)
Aos gêneros poéticos estava arraigada toda uma “carga teórica”, similar àquela
existente para os gêneros retóricos, a exemplo dos secretários utilizados para a elaboração de
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cartas e populares entre os séculos XVII e XIX. Assim, escrever um soneto ou uma ode era
levar em consideração o formato, a linguagem e os lugares-comuns que poderiam ser
abarcados nesses gêneros poéticos, distintos entre si e de demais gêneros como as décimas ou
as baladas, considerados de cunho mais popular. Pécora levanta a hipótese de que classificar a
tudo como “poema” é, portanto, diminuir a amplidão inerente a cada gênero poético e não
levar em conta as suas peculiaridades.
Daí, podemos traçar um paralelo com a afirmação de Hodgart (2009) acerca da sátira,
afirmando que esta “não é uma categoria bem definida, mais uma expressão que abrange uma
variedade de trabalhos literários que contém diversas características em comum” (tradução
livre). De fato, encontra-se sátira na retórica e na poética, e seus alvos englobam a política,
religião, sociedade, moral, etc. Tomando o Almocreve de Petas como exemplo, é notável que
a sátira não se encontra presa a um gênero em especial: da poesia às cartas, o jornal está
imerso no satírico, tecendo sua crítica aos acontecimentos da sociedade lisbonense e a
diversos comportamentos de seus habitantes, preenchendo a definição dada por Hansen
(2003), para o qual a sátira “encontra a realidade de seu tempo como sistema simbólico
convencional de preceitos técnicos, verossimilhanças e decoros partilhados por sujeitos de
enunciação, destinatários e públicos empíricos”.
Devemos considerar a sátira não como o deboche gratuito, mas sim como uma forma
de crítica social e manutenção da ordem, uma vez que, ao satirizar comportamentos, o autor
denota sua pretensão em educar os leitores a não agirem da maneira criticada. Barbosa (2007)
afirma que os periódicos do século XVIII e XIX serviam como uma forma de suprir a
ausência de escolas acessíveis sendo, portanto, também sua função a formação intelectual dos
indivíduos. Advém, daí, o fato de terem sido muitos periódicos editados em formato de livros
durante esse período histórico. Tal caráter educador já é demonstrado no prólogo do Tomo I
do Almocreve, no qual se lê:
Como a pirula amargosa
Se doura ao triste doente,
Para ser menos tediosa;
Assim á moral pungente,
Doura huma frase jocosa:
E a mocidade imprudente,
Vendo-a dourada, e vistosa,
A toma insensivelmente.
Guindados Heróes não sigo,
Nigromantico não sou,
Altos vôos não porsigo;
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A’s vezes quem mais voou,
Sobre a terra deo comsigo:
Nestas noticias, que dou ,
Fôfas expressões não digo,
Só vicios cortando vou.
Baldo estando de dinheiro,
Hum officio aprender quiz,
Metti-me a carapuceiro;
Tinha hum anno de Aprendiz,
E em talhar fui tão arteiro.
Que as carapuças, que fiz,
Vão servindo ao Mundo inteiro,
E ficão,... que he hum beliz.
(José Daniel Rodrigues da Costa, 1819, Tomo I, p. 9)
Nessa composição poética, uma oitava – gênero poético constituído de uma ou mais
estrofes de oito versos, geralmente heptassílabos –, vemos que o autor afirma ser a moral
disfarçada (daí advém o subtítulo do periódico) sob o caráter jocoso para melhor ser
assimilada pelo leitor. Compara-a, pra tal, a uma pílula que, para ter seu sabor amargo
disfarçado, é tingida em dourado.
O editor utiliza-se do mesmo artifício para incutir a moral aos seus leitores, em
especial aos mais jovens, geralmente mais dados a atividades consideradas levianas:
utilizando-se do caráter jocoso e divertido, coloca em seus escritos diversas críticas a padrões
comportamentais tidos como não-salutares, de modo que o seu leitor “a toma
insensivelmente”, ou seja, são-lhe incutidos os valores desejados de maneira não perceptível.
Segue o eu-lírico afirmando, na terceira estrofe, que decidiu seguir o ofício de carapuceiro,
metáfora referente ao adágio popular de “servir a carapuça”, ou seja, encontrar alguém seus
defeitos apontados no comentário – intencional ou não – de outro. Seu ofício,
metaforicamente, seria distribuir tais carapuças, fazer com que, através de seus escritos, os
leitores encontrassem seus erros e procurassem reiterá-los. Ao final, conclui que suas
carapuças ficam “que he um beliz”, ou seja, adequam-se perfeitamente, sendo sua tarefa,
portanto, bem sucedida.
Iniciando o periódico de tal forma, é natural que o seu editor esforce-se para manter tal
característica ao longo de sua publicação, fato este que pudemos aferir durante nossa
pesquisa.
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2 A SÁTIRA NOS GÊNEROS POÉTICOS DO ALMOCREVE DE PETAS
Prosseguiremos, então, à análise da forma como o Almocreve de Petas utiliza-se da
sátira em seus gêneros poéticos. Foi observado que é comum que a sátira poética nesse
periódico seja dirigida à própria criação poética, como ocorre nas produções atribuídas ao já
mencionado Moço do Poeta. Esse personagem, recorrente ao longo das diversas partes do
Almocreve de Petas, é representado como o servo de algum poeta importante, chamado
apenas de Amo, que redige décimas em seu tempo livre para vendê-las ao editor do
Almocreve. As situações em que lhe são dados os seus motes são geralmente jocosas, a
exemplo de encontra-los em papeis velhos jogados pelo seu amo ou ter seus trabalhos
encomendados como forma de pagamento por necessitar de dinheiro, como é detectado na
seguinte afirmação do editor:
“O Moço do Poeta, que tem puchado por si, aqui nos apresenta a encommenda com
todos os FF. e RR., de que se collige, que ou o dinheiro, ou a paixão amante,
qualquer das duas cousas são muito capazes de fazerem Poetas os genios mais
grosseiros, e menos cultivados; este que não discorre por paixão, ligado ao interesse,
que se lhe faz, põe em pratos as seguintes Décimas.” (José Daniel Rodrigues da
Costa, 1819, Tomo I, p. 135)
O editor afirma, em tom de ironia, que a produção poética dá-se ou pelo gênio
apaixonado ou pela necessidade de dinheiro, o que pode ser considerado uma sátira àqueles
que produzem apenas devido a paixões ou buscando o lucro, desconsiderando, assim, a
necessidade de ter todo um conhecimento do modo de produção poética. Ironicamente, tais
versos elaborados em razão de necessidade financeira versam justamente sobre o amor, como
pode ser visto em anexo.
Nota-se que ao Moço do Poeta, sempre posto em situações irônicas e que satirizam a
sua condição de servo e poeta de encomenda, também são creditados certas poesias com
caráter satírico. Podemos ver tal fato no soneto seguinte, escrito após seu comparecimento a
um casamento em que todos, incluindo a criada da casa, atendiam pelo título de Dom:
Senhora Dona Moda, chegue cá,
Com Dona Contradança venha aqui;
Porque a Dona Farofia agora ouvi
Dizer, que já sem Dom Damas não ha:
A criada que esfrega, ou traz o chá,
Com Dom em certa casa ha pouco vi;
E se isto vai avante por ahi,
O toque de Dom, Dom, em fogo dá.
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Há muitas que não tem dez réis de pão,
Querendo lhe dem Dom sem tom nem som,
E só do ar do Dom vivendo vão:
Nada, meninas, isto não vai bom!
Porque se acaso as modas nisto dão,
Não vereis cão nem gato sem ter Dom.
(José Daniel Rodrigues da Costa, 1819, Tomo II p. 233)
O que vemos, claramente, é uma sátira à pretensa fidalguia. O autor, através deste
soneto – gênero tradicionalmente considerado mais nobre – critica aqueles que, sem possuir
título de nobreza, procuram, mesmo assim, reivindicar para si o pronome de tratamento
utilizado por indivíduos de uma classe social superior à sua e, desta maneira, vivem da ilusão
do título falso de Dom, haja vista não possuírem dinheiro suficiente nem para a própria
subsistência. A crítica, vale salientar, não é destinada às pessoas menos abastadas da
população nem aos nobres, mas àquelas que, sendo parte do primeiro grupo, procuram trazer
para si determinadas regalias do segundo, não respeitando a ordem social e buscando viver de
aparências, clara característica do comportamento dos chamados tafues.
Silva (1789) define taful como “o que é jogador por oficio, ou hábito reputado entre os
bons por vil e torpe, bêbado. O que vive alegremente e é dado a todo o gênero de
divertimento”, um certo análogo ao moderno vagabundo, fanfarrão ou farrista. Os tafues eram
alvos de boa parte das críticas presentes no Almocreve, como na série de cartas em que um
“leitor” descrevia um sonho que teve, no qual se encontrava em uma chamada Ilha dos
Tafues, alegoria à sociedade lisbonense (SANTOS, 2014). Na introdução do segundo tomo o
editor critica tal categoria de leitor (em anexo). O editor alega que tal categoria produz mais
petas em um dia do que ele próprio em um ano, sendo as suas, contudo, destinadas à
admoestação, enquanto as petas que dizem os tafues servem apenas para a autopromoção e
trapaça. Outro exemplo de sátira aos tafues encontra-se num soneto, também atribuído ao
Moço do Poeta que, ouvindo a conversa entre dois destes indivíduos acerca de uma máquina
voadora, resolve criticá-los por seu pretenso comportamento empavonado:
Em corpo, e alma irei aos Ceos voando,
Na máquina do ar, feito cometa,
Que ainda que pareça estranha a peta:
Se em obra se puzer, fico campando:
Lá no cimo das nuvens passeando,
Verei o baixo Mundo por luneta;
E porque ha de haver lá muito Estafeta,
Noticias do que vir, logo cá mando:
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Entendendo os Tafúes, que a moda he boa,
Andaráõ como bandos de estorninhos,
De Feira em Feira, pelo ar á tôa:
Veremos crescer malvas nos caminhos;
Faráõ vispre nas súcias de Lisboa
Botes, seges, cavallos, e burrinhos.
(José Daniel Rodrigues da Costa, 1819, Tomo II, p. 17)
Há de se considerar, primeiramente, que a época em que o Almocreve de Petas
circulou correspondeu à época em que desenvolveram-se os primeiros balões de ar quente
(BARSA, 2001). A vontade dos tafues era, como menciona o redator na introdução a tal
soneto (em anexo), destacar-se daqueles que alugam seges para transporte. O eu-lírico diz-se
ser o estafeta, função semelhante à de almocreve, de tudo o que presenciar, atestando a sua
condição de denunciador dos comportamentos tafues.
A ironia do Moço do Poeta vai, ainda, na própria elaboração dos gêneros poéticos,
como podemos contestar em um soneto elaborado a pedido da Cozinheira, figura também
recorrente e tida como namorada do Moço, que desejava saber como iniciou tal poeta a sua
produção artística:
Certa cozinheira amante do Moço do Poeta pedio-lhe com o maior empenho que lhe contasse elle como
principiou a fazer Versos, e por onde alcançou aquella prenda; ao que ele satisfez contando-lhe esta historia no
seguinte:
SONETO.
Era huma vez hum dia: sim, bem digo,
Chovia por signal, vai se não quando,
Puz-me n’um livro velho folheando
Li huns versos, que sempre andão comigo:
Se fazer outro tanto inda comsigo,
Cheio de gosto, disse, então saltando;
Mas ah! que estou as quadras acabando,
Nos tercetos verei se o conto sigo:
Ora espera, Menina, eu te prometto
De trazer esta historia bem sabida,
Sem pôr para a contar olhos no tecto:
Tem paciencia, se ficas consumida,
Que já agora no resto do Soneto
Não me cabe huma história tão comprida.
(José Daniel Rodrigues da Costa, 1819, Tomo II, p. 290)
O caráter satírico do soneto dá-se à medida em que, prometendo o eu-lírico que
narrará a história de como começou a escrever poesia, o autor conclui seus versos alegando
que não teria condições de narrar uma história tão comprida, devido especialmente ao fato de
ter tratado de outros assuntos ao longo de sua construção poética. Satiriza-se, dessa forma, o
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despreparo de certos poetas na elaboração de seus gêneros, assim como ironiza-se a pessoa a
quem dedica-se o soneto.
Digna de nota, também, é a sátira à figura do amor, representado especialmente pelo
Cupido. Representada na arte clássica e renascentista como um ícone do amor puro, o
Almocreve nos traz, em várias décimas, um Cupido em situações embaraçosas, como
podemos constatar na seguinte décima:
N’uma praia com luar
Posta em mangas de camisa,
Junto de huma pedra lisa
Eu vi Vénus lavar :
De bater, e de esfregar
Já tinha o corpo moido ,
Porém naquelle batido
As agoas turvas ficavão ,
Que tão porquinhos estavão!
Os cueiros de Cupido.
(José Daniel Rodrigues da Costa, 1819, Tomo I p. 72)
Nesta décima vemos uma clara sátira à representação clássica de Cupido e Vênus:
enquanto os poetas e pintores tendem a caracterizá-los, respectivamente, como uma criança
com asas e uma jovem bela e de aparência delicada, temos aqui uma paródia em que Cupido é
representado como uma criança que suja seus cueiros, ou seja, de pouca higiene. Vênus,
frequentemente vista como uma figura “maternal” de Cupido, é descrita não como a bela
moça geralmente associada à sensualidade, mas sim a uma lavadeira que extrai, violentamente
a ponto de se cansar, as sujeiras da manta do pequeno deus. Ocorre, portanto, uma sátira à
representação mais corriqueira do amor, figurado aqui não como algo belo e sublime, mas
como uma cena repulsiva e nada atraente. A descrição previamente dada pelo editor amplia o
tom satírico, pois tal décima teria sido composta e recitada durante um casamento, o que vai
de encontro a todo o contexto sublime que tal data deve representar.
Destaca-se, também, o duelo travado entre os editores do Almocreve de Petas e do
Café Jocoso, periódico contemporâneo de temática parecida, sobre o qual muito pouco nos é
noticiado além deste empasse. O que nos é informado, segundo o próprio Almocreve, é que
ambos possuíam certa rivalidade que, em três situações, foi transferida aos versos, publicados
nas partes 78, 84 e 87 do periódico (em anexo). A última provocação feita em versos pelo
editor do Almocreve de Petas ao do Café Jocoso traz consigo a peculiaridade de ser composta
por oito oitavas de versos decassílabos, finalizadas com versos de Camões presentes n’Os
Lusíadas (CAMÕES, 2008). A mímese (imitação) era um recurso muito utilizado na
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produção poética da época pois, ao copiar um autor consagrado, demonstrava-se
conhecimento, erudição e técnica. O conceito de plágio, além disso, era inexistente,
contribuindo ainda mais para que a cópia fosse uma prática não apenas aceita como
estimulada (CHARTIER, 2002). Vemos, no entanto, que o autor utiliza-se de versos
camonianos não para exaltar tal poeta ou buscar uma elevação, mas com o intuito de
escarnecer do editor do Café Jocoso. Utilizando-se de versos de uma epopeia, a carga irônica
aumenta, haja vista ser a epopeia um gênero utilizado para o enaltecimento. Quanto ao
“duelo” entre jornais, tais discussões eram comuns nos periódicos dos séculos XVIII e XIX,
muitas vezes envolvendo cidadãos ilustres que enviavam cartas discutindo com outros,
podendo tais discussões repercutirem por diversas edições (BARBOSA, 2007).
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando os diversos gêneros poéticos, especialmente os sonetos, presentes no
Almocreve de Petas, chegamos à conclusão de que a sátira era um recurso utilizado não
somente na parte retórica de tal periódico – a exemplo das cartas – como também em suas
seções poéticas. Tal sátira vinha imbricada, por vezes, desde a elaboração dos gêneros
poéticos, tendo como objetivo principal tanto a crítica acerca daquilo considerado como
impróprio para a vida em sociedade como à arte poética por si.
Em todos os casos, faz-se necessária uma leitura não só do excerto poético como
também do contexto em que está situado, pois a leitura da introdução explicativa elucida
muitas vezes um caráter satírico que se encontra de certa forma camuflado. Se o gênero
poético for lido isoladamente, pode levar um leitor mais desatento a tirar conclusões
precipitadas e errôneas acerca da real intenção do autor.
No que tange aos gêneros poéticos encontrados no Almocreve de Petas, nota-se uma
preferência do editor para os sonetos e décimas, justificável pelo fato de que tais gêneros
apresentam-se como mais populares entre os poetas e leitores: os sonetos por serem, entre as
formas poéticas ditas eruditas, aquela de mais fácil composição e memorização; as décimas
por serem preferidas entre os cancioneiros populares devido ao seu esquema rítmico e métrica
(MOISÉS, 1992). O editor encontra, nelas, uma forma de mais facilmente ampliar o alcance
de sua obra, dando ao público aquilo que lhe é mais familiar e aprazível. Além dos sonetos e
décimas, as oitavas estão presentes, contudo em número consideravelmente maior. Outros
gêneros poéticos, a exemplo das odes e baladas, também são encontrados, restringidos,
todavia, a duas ou três publicações.
A figura do Moço do Poeta, a quem são atribuídas grandes partes das publicações, tem
a função de heterônimo do autor, permitindo-lhe compor segundo o contexto em que insere tal
personagem – um subalterno, a observar seu amo poeta e as pessoas em redor. Sua posição ao
escrever, portanto, não é a de José Daniel Rodrigues da Costa, mas assumindo o heterônimo
de Moço do Poeta, assume também consigo a posição de uma pessoa mais ligada à vida da
população, que a observa do seu interior e tece, portanto, seus comentários a partir de sua
convivência e vida pessoal.
A sátira, portanto, está carregada de mais que mero caráter jocoso: no Almocreve,
serve como forma de denúncia às petas, aos tafues, aos pretensos poetas, buscando levar os
leitores a enxergarem, nas figuras ridicularizadas, seus próprios defeitos e vícios, de modo a
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corrigi-los. Essa pesquisa ainda tem muito a ser aprofundada, e pretendemos dar-lhe
prosseguimento durante a pós-graduação.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Almocreve de Petas ou moral disfarçada, para a correção das miudezas da vida, por José
Daniel Rodrigues da Costa, entre os pastores do Tejo Josino Leirense. Oficina de J.M.F de
Campos. Tomos, I e II: Lisboa, 1819.
BARBOSA, S. F. P. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre:
Ed. Nova Prova, 2007.
CAMÕES, Luís Vaz. Os Lusíadas. Porto Alegre: LPM, 2008.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2ª ed. Tradução de
Maria Manuela Galhardo. Portugal: DIFEL, 2002. (Memória e Sociedade).
______________________________. Comunidades de leitores. In: A Ordem dos Livros:
Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre Os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora da
UNB, 1994.
EAGLETON, Terry. Introdução: O que é Literatura? In: Teoria da Literatura: uma
introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
ENCICLOPÉDIA Barsa. São Paulo: Barsa Consultoria Editorial Ltda., 2001. 20 v.
HANSEN, João Adolfo. Pedra e cal: freiráticos na sátira luso-brasileira do século XVII.
REVISTA USP, São Paulo, n.57, p. 68-85, março/maio 2003.
HODGART, Matthew J. C. Satire: origins and principles. New Jersey: Transaction
Publishers, 2010.
LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1967.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1992.
22
PÉCORA, Alcir. À guisa de Manifesto. In Máquina de gêneros. São Paulo: Edusp, 2001.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza. Lisboa, 1789, tomos I e II.
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ANEXOS
Anexo I
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Anexo II
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Anexo III
Retrato de José Daniel Rodrigues da Costa, editor do periódico Almocreve de Petas
Anexo IV
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Anexo V
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Anexo VI
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Anexo VII
Como a fonte de tais composições poéticas apresentava-se em menor tamanho optamos pela
transcrição para melhor leitura
a)
Sabendo o Editor que o Author do Café Jocoso lhe está respondendo com toda a azafama dos
encontros do Almocreve, lhe dirige as seguintes Decimas.
I.
Senhor Author do Café,
Já sei que tenho resposta,
Pois se escreve de mão posta;
E me dizem que he vossê:
Muito embora nisso dê,
Mas veja como emparelha;
Lembre-se bem, que tem telha;
Que o andar á chuva molha;
E que se he filho da folha,
Eu cá sou filho da velha.
II.
Se eu logo ao talho primeiro
O não mandar para a Quinta,
Negra seja a minha tinta,
Que eu tenho no meu tinteiro:
Olhe, amigo, o verdadeiro
He metter-se no seu canto;
Não lhe causar nada espanto;
E a ver se a tormenta passa,
Vá dando o Café da graça,
Que talvez não fallem tanto.
III.
De que muito o Povo ardeo,
Foi de tres vintens pagar,
Sem poder na obra achar
A causa, porque tal deo:
De huma tal obra, até eu
Arderia, se a compraste;
Mas olhe, não se embarace
Com cousas de pouca monta,
Se tem da despeza a conta,
Visita a razão, dei-lhe hum passe.
IV.
Se tal fez por ver purgado
Todo o Povo de repente,
Antes lhe desse agoa quente,
Com assucar mascavado:
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Mas café tão esturrado,
Que a todos deixa em jejum!
Disto he que nasce o rum-rum,
Não entra em gente Catholica,
Querer meter huma cólica
No buxo de cada hum!
V.
A tal obra o nome mude,
Se não em trabalhos cahe,
Que ouço dizer, ha quem vai
Denuncialo á saude:
Primeiro que a creva estude
Ao Café termos idones;
Que alguns que não são boloneos,
Dizem, com boca proterva,
Não ser Café de Minerva,
Sim de trezentos Demonios.
VI.
Bem conheço, que já agora
Mui pouco remedio tem;
Mas o que mais lhe convém
He ir tomar ares fóra:
Dar na cabeça huma hora
De desaffogo aos embates;
Dormir beber quantum satis;
Cuide em si, se o não fizer
Receio que inda vá ver
As cazinhas do Orates.
b)
O Editor da presente collecção, tendo noticia de huma resposta em defeza do Café Jocoso,
contra o Almocreve das Petas, lhe offerece este brazeiro para dar huma fervuraao referido
Café.
Menino chore-o na cama,
Respostas taes não componha,
Por mais enfeites, que ponha,
Não faz mais formosa a Dama:
Deixe-se, por caridade,
De prosseguir na contenda,
Calle o bico, e não pertenda,
Em petas achar verdade:
Folhetos de brincadeira,
Estillo pedem corrente,
Não são papeis, onde a gente,
Se ponha a lêr de cadeira:
De hum Alfaiate dizião,
Quando lhe davão matracas,
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Que se talhava casacas,
Carapças lhe sahião:
De igual modo em mortas côres,
Quiz imitallo vossê,
Pois defendendo o Café,
Vem insultar os Leitores:
Se a graça na penna sua,
Sempre está, coitada em férias,
Em composições mais sérias,
Melhor he que nos instrua:
Se cuida que graça tem,
Para algum lucro tirar,
Vai perdido, ha de ficar
Toda a vida sem vintem:
Já muita gente, não leiga,
Affirma que inda ha de vêr-se,
Café Jocoso a vender-se,
Para se embrulhar manteiga:
Hum que a méta melhor toca,
Vendo-lhe o gasto moroso,
Diz, que ha de o Café Jocoso
Vir a ser Café da Móca;
Outro que experiencia tem
De muitos casos antigos,
Diz que andará, como os figos,
A tres duzias hum vintem:
Huma obra sem enfeite,
Posta a tres vintens, escalla,
Onde não ha huma falla,
Que nos instrua, ou deleite!
Eu li-a a humas visinhas,
Que não poderão soffrê-la,
Pois quantos fallavão nella
Parecião Tarquitinhas...
Porém olhe Amigo, attenda,
Hum remedio lhe vou dar,
Para o Café se gastar,
Inda que he fraca fazenda:
Na Turquia ha muita gente,
E isto lá se faz novidade,
Mandando-se quantidade
Vem em dinheiro corrente:
Alli serão bem aceitos
Os Folhetos do Café,
Que aquella gente lê, lê,
Sem lhe descobrir defeitos:
Se vir, que o contracto enfia,
E que os Folhetos se passão,
Té pode pedir, que o fação
Escriptor para a Turquia:
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Em fim meu Author querido,
Que eu com quem fallo, não sei,
Infinito estimarei,
Que lhe fação bom partido:
E já que cahio na asneira,
De tão sério responder,
Querendo-se defender,
Com tamanha frioleira:
Observando o quanto estima,
O fallar por termo escuro,
Que se estende-lo procuro
Em tudo lhe acho hum Enigma,
Como os engenhos agudos,
Brilhão mais postos na acção;
Tem agora occasião,
De mostrar os seus estudos:
Pois que de cançar-se gosta,
Este Enigma, se lhe expõe,
Branco he, galinha o põe:
Dou-lhe hum mez para a resposta.
c)
Derige o Editor ao Author do Café as seguintes seteOitavas, acabadinhas da agulha, levando
cada huma no fim hum Verso de Camões sergido.
Quer o Author do Café puchar a espada,
Sem vêr que me incitou na obra sua,
Disponho-me a brigar, não á pancada,
Que não quero enxovalhos pela rua:
Prompta a penna terei sempre aparada,
E vêr pertendo, qual de nós acuda;
Que eu hei de defender-me em qualquer parte,
Se a tanto me ajudar engenho, e arte.
Cam. Cant. I. 8.ª 2.
C’o a primeira jornada do Almocreve,
Se inflamma o nosso Author, de inveja armado,
Não de baixa materia, que se escreve,
Mas sim do invento não lhe ter lembrado:
Falla desta obra mal, e então prescreve
Como hum novo Café será traçado,
Cousas pomposas nas idéas trava,
Mas não lhe succedeo como cuidava.
dit. Cant. I 8.ª 44.
A folheto, e folheto põe na praça,
Nada menos que doze, e não discorre
Que isto, além de sciencia, requer graça,
Que onde esta falta, toda a obra morre:
Havia no consumo ter desgraça,
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Pois que sem alicerce, fez a torre;
Palavras fôfas, cogitando, e pondo,
Que sem comcerto, fazem rudo estrondo.
dit. Cant. 2. 8.ª 96.
Composição que he desta natureza
Não deve pensamentos ter escuros,
Porque o Povo grosseiro não os preza,
Que anda sempre por baixo mais dois furos:
Pertende que lhes fallem com pureza,
Devem os argumentos ser seguros;
De sorte que lhes possão dar valia
O Velho inerte, a Mãi que o filho cria.
dit. Cant. I. 8.ª 90.
Mal que o Café lhe levantou fervura,
Juntou-lhe, em ar de leite, a obra minha,
Na Ilha dos Tafues depois procura
Mostrar a todos, que me tem espinha:
Sem que ninguem lhe louve esta loucura,
Huma vez que assentou, que lhe convinha,
Editor, e Almocreve, tudo a terra,
Derriba, fere, mata, e põe por terra.
Cam. Cant. I. 8.ª 88.
Que importa ao nosso Author os meus estudos!
Dizendo a todos, que são máos, e poucos!
Solte embora os seus Cantos mais agudos,
Não faça caso dos meus grasnos roucos:
Porém queira trocar-nos em miudos,
Frazes de escuma, pensamentos oucos;
Que hum Café mal torrado, e pouco quente,
Perde a virtude contra tanta gente.
dit. Cant. 4. 8.ª 35.
Ora tome este Author no meu conselho
Huma receita, a mais corroborante;
Beba hum copazio bom de vinho velho,
Se o flato de compôr lhe for á vante:
Use da medicina, que aconselho,
Não me inquiete, fazendo-se secante;
Se não, por esta amostra a peça veja,
Que se resiste, contra si peleja.
dit. Cant. 2. 8.ª 49.
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OS GÊNEROS POÉTICOS NO ALMOCREVE DE PETAS