ISSN: 2177 – 0786
Historien – Revista de História [8] Petrolina, dez 2012 – maio 2013
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ISSN: 2177 – 0786
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO
Reitor: Carlos Fernando de Araújo Calado
Vice-Reitor: Rivaldo Mendes de Albuquerque
CAMPUS PETROLINA
Diretor: Moisés Diniz de Almeida
Vice-Diretora: Marta Solange Albuquerque Guimarães
COLEGIADO DE HISTÓRIA
Coordenadora: Profª Drª Janaína Guimarães da Fonseca e Silva
REVISTA HISTORIEN
Conselho Editorial
Colegiado de História – UPE –
Campus Petrolina
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Profª Drª Margarida Maria Dias de
Oliveira (UFRN)
Prof. Dr. Henrique Alonso de
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Rodrigues
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(UFRN)
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Lima (UFPE)
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Equipe de Revisão e Editoração
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Prof. Christoval Araújo Santos Junior – Editoração
Prof. Esp. Cleber Roberto Silva de Carvalho – Editoração
Profª Juliana Rodrigues Alves – Revisão
Prof. Nivaldo Germano dos Santos – Revisão
Maria do Socorro Fonseca de Oliveira (Graduação – UPE) – Revisão
Dielson da Silva Vieira (Graduação – UPE) – Revisão
Lucas Matheus Viana da Silva (Graduação – UPE) – Revisão
Paulo Henrique Carneiro Barbosa (Graduação – UPE) – Revisão
OBJETIVO DA REVISTA
A Revista Historien é uma produção do Grupo de Estudos Históricos Sapientia et
Virtute, sendo que seus membros são discentes da Licenciatura Plena em História da
Universidade de Pernambuco - Campus Petrolina, juntamente com professores do
corpo docente do referido curso. A proposta da Historien é o incentivo a produção
textual dos alunos da licenciatura, visando a expansão do conhecimento em história por
meio da produção dos próprios acadêmicos.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
É permitido a reprodução do conteúdo deste periódico para fins acadêmicos, desde que
citada a fonte. A violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido
no artigo 184 do Código Penal.
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HISTORIEN
Revista Eletrônica Universitária
Petrolina – PE, Nº 8 – dez 2012/maio 2013
Sumário
EDITORIAL....................................................................................................................8
HISTÓRIA EM FOCO:
RELAÇÕES DE PODER E GÊNERO NA HISTÓRIA DO BRASIL
.........................................................................................................................................10
Ana Maria Colling (UFGD)
MEMÓRIAS ESCRITAS: UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA.......................25
Lorena Zomer (UFSC)
NAS “BATALHAS DE FLORES” NÃO FALTAVAM ESPINHOS: SILVA
JARDIM E A PRINCESA ISABEL NO CENÁRIO POLÍTICO DO FINAL DA
MONARQUIA BRASILEIRA (1886-1889)................................................................41
Rafael de Oliveira Cruz (UFBA)
O CINEMA COMO AGENTE DA HISTÓRIA: AS RELAÇÕES DE PODER
ATRAVÉS DAS PELÍCULAS...................................................................................64
Renata Santos Maia (UNIMONTES)
PANORAMA DO NEGRO NO CINEMA BRASILEIRO: DOS PRIMÓRDIOS À
ERA COLLOR.............................................................................................................76
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Fernando Rodrigues Oliveira (UNIMONTES)
A HISTÓRIA, O PODER E A APRENDIZAGEM DOS PRAZERES.................89
Daniel da Nóbrega Besarria (UPE/Graduando UNEB)
INTERAÇÕES ENTRE A POLÍTICA INDIGENISTA E A INDÍGENA: A
ATUAÇÃO DE JOÃO BATISTA DA COSTA NA APLICAÇÃO DO
DIRETÓRIO NO RIO DE JANEIRO (1765-1779)...................................................99
Luís Rafael Araújo Corrêa (UFF)
ARTIGOS:
O CÓLERA EM FORTALEZA: ANÁLISE DO BOSQUEJO HISTÓRICO DO
DR. JOAQUIM ANTONIO ALVES RIBEIRO.......................................................116
Mayara de Almeida Lemos (UECE)
A ESCRITA DA INFÂNCIA MALDITA EM JUAZEIRO - BAHIA (1984)........126
Sérgio Pessoa Ferro (Graduando UNEB)
HISTÓRIA, IMAGEM E FOTOGRAFIA................................................................143
Rubens Nunes Moraes (Graduando UPE)
O LIVRO DIDÁTICO E O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA......................159
Luciano Silva de Menezes (Graduando UPE)
ASPECTOS HISTÓRICOS DAS ALDEIAS DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
E DA BARRA DO SALGADO NO SUL DA BAHIA (1810-1875)........................168
André Mariano Neri (Graduando UESC)
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RESENHA:
BLANNING, T.C.W. Aristocratas versus Burgueses? A Revolução Francesa. São
Paulo: Editora Ática. 1991.............................................................................................187
Flávia Bruna Ribeiro da Silva Braga (Graduanda UFPE)
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Caros Leitores,
A recente historiografia tem dado um interesse especial às relações de poder
dentro da História. Inspirados pela constante necessidade de divulgar novos estudos
sobre a História Política e as Relações de Poder, o Conselho Editorial da Historien
promoveu para a sua oitava edição um debate sobre essas novas tendências e
abordagens.
Em Relações de poder e gênero na História do Brasil, Ana Maria Colling, que
também inicia o valoroso trabalho com Consultora ad-hoc da Revista Historien, busca
entender os discursos e as práticas que segregaram as mulheres dos espaços de poder e
da história, enfatizando a constante necessidade de inserir as mulheres nesses espaços.
Lorena Zomer traz em Memórias escritas: Uma história de resistência, a análise das
falas de Guido Rodriguez Alcalá, e nesse processo, estuda as trajetórias dos que foram
silenciados durante o período ditatorial paraguaio.
Rafael de Oliveira Cruz em Nas “Batalhas de Flores” não faltavam espinhos:
Silva Jardim e a Princesa Isabel no cenário político do final da monarquia brasileira
(1886-1889) faz uma análise das falas do propagandista republicano Silva Jardim contra
a Princesa D. Isabel e sua atuação no movimento abolicionista e a rejeição da idéia de
um Terceiro Reinado, trazendo um paralelo da movimentação e participação feminina
dentro dos espaços de poder do Brasil oitocentista. No texto O cinema como agente da
História: As relações de poder através das películas, Renata Santos Maia reflete sobre
o cinema como uma fonte histórica, e acima de tudo, de que maneira as visões do
presente marcam os registros do passado e as relações de poder estabelecidas nesses
discursos.
Fernando Rodrigues Oliveira com o trabalho Panorama do negro no cinema
brasileiro: Dos primórdios à Era Collor, faz um breve panorama sobre as
representações dos negros no cinema brasileiro apresentando os diversos estereótipos
criados sobre parte da população brasileira. Já Daniel da Nóbrega Besarria em A
História, o Poder e a Aprendizagem dos Prazeres busca levar a História a uma relação
mais profunda com o texto literário libertando o historiador de uma linguagem menos e
simplista e marcada pelos processos de exclusão e controle. Encerramos o História em
Foco com o texto Interações entre a política indígena e indigenista: A atuação de João
Batista da Costa na aplicação do Diretório no Rio de Janeiro (1765-1779), em que
Luís Rafael Araújo Corrêa discute a atuação de um capitão-mor em uma aldeia durante
o período pombalino, focando as diversas formas que as comunidades ameríndias
interagiam com a política portuguesa.
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Na seção de Artigos, apresentamos primeiramente o trabalho de Mayara de
Almeida Lemos intitulado O cólera em Fortaleza: Análise do Bosquejo Histórico do
Dr. Joaquim Antonio Alves Ribeiro, em que a autora analisa as práticas de cura da Santa
Casa de Misericórdia a partir do texto de um médico cearense no período em a cidade
de Fortaleza foi tomada pela cólera no século XIX. Prosseguimos com Sérgio Pessoa
Ferro em A escrita da infância maldita em Juazeiro – Bahia (1984) analisando os
discursos publicados na imprensa juazeirense sobre os menores que estavam à margem
da sociedade e suas tentativas de normalizar e punir essas crianças consideradas
desviadas.
Seguindo a idéia de incentivar a produção textual dos discentes do curso de
Licenciatura em História da UPE – Campus Petrolina, apresentamos o texto de Rubens
Nunes Moraes chamado História, imagem e fotografia em que faz uma breve análise
sobre a difusão da fotografia até a sua produção em larga escala. Já Luciano Silva de
Menezes com O livro didático e o ensino de História da África, tece algumas
considerações sobre a História e a Cultura afro-brasileira apresentados nos livros
didáticos de História utilizados por diversos estudantes.
A seção de Artigos é encerrada com o texto de André Mariano Neri intitulado
Aspectos históricos das aldeias de São Pedro de Alcântara e da Barra do Salgado no
sul da Bahia (1810-1875) no qual discute as relações entre os dois aldeamentos focando
nas novas abordagens historiográficas ao encarar o nativo como protagonista dos
processos de inserção nos aldeamentos. Por fim, Flávia Bruna Ribeiro da Silva Braga
nos apresenta uma resenha do livro Aristocratas versus burgueses?, de T.C.W.
Blanning, publicado em 1987.
É com imensa satisfação que nós reafirmamos o compromisso iniciado em
novembro de 2009, em ampliar e divulgar o conhecimento entre pesquisadores de
História e diversas áreas do conhecimento das Ciências Humanas e Sociais, o qual
culminou com reconhecimento deste periódico atestado com a qualificação B5 na
última avaliação da Qualis. Temos certeza que o empenho dos que fazem a Historien e
dos que vem de todas as formas colaborando com o nosso trabalho, frutificarão ainda
mais os resultados obtidos na jornada de divulgação do conhecimento histórico.
Boa Leitura!
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
RELAÇÕES DE PODER E GÊNERO NA HISTÓRIA DO BRASIL
Ana Maria Colling1
Resumo: A História é um relato atravessado por relações de poder, que também produz
silêncios, como nos ensina Michel Foucault. As relações de gênero, as relações de
poder entre os sexos, aparecem com destaque na historiografia. A invisibilidade do
feminino é um fato detectado em qualquer manual de história. Pouco conhecemos das
personagens reais que, juntamente com os homens, construíram a história brasileira,
mas como imagem ou representação, as mulheres estão sempre presentes. Reconhecer
os discursos e as práticas que nomearam ou silenciaram as mulheres é uma tarefa
primeira e urgente aos historiadores/as preocupados/as em libertar a história do discurso
excludente e falocêntrico. Incluir as mulheres no processo histórico e nos currículos de
história, não significa apenas incluir a metade da humanidade, mas democratizar a
história.
Resumen: La Historia es un relato atravesado por relaciones de poder que también
incluyen silencios, como nos dice Michel Foucault. Las relaciones de género, las
relaciones de poder entre los sexos aparecen con destaque en la historiografía. La
invisibilidad del femenino es un hecho advertido en manuales de historia. Poco
conocemos sobre personajes reales que, junto con hombres, construyeron la historia
brasileña, pero como imágenes o representaciones, las mujeres están siempre presentes.
Reconocer las prácticas y discursos que nombraran o silenciaron las mujeres es una
función muy importante para historiadores/as preocupados/as por libertar la historia del
discurso excluyente y falocéntrico. Incluir las mujeres en el proceso histórico y en los
currículos de historia no significa apenas incluir la mitad de la humanidad, pero más
bien democratizar la historia.
1
Professora Visitante Sênior pela Capes na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) onde atua
no Programa de Pós-graduação em História. Mestre em História do Brasil pela UFRGS. Doutora em
História do Brasil pela PUCRS com estágio em Coimbra/PT. Especialista em história das mulheres e das
relações de gênero. Atual pesquisa: “A história das mulheres e das relações de gênero na Guerra do
Paraguai”. E-mail: [email protected]
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
Introdução
Trabalhar com história das mulheres ou história do gênero é muito mais que
escrever a real história social de uma dada sociedade, porque esta categoria de análise é
transdisciplinar, atravessando todos os campos como a história econômica, a história
política e especialmente a história cultural.
A história das mulheres é uma história recente, porque desde que a História
existe como disciplina científica, ou seja, desde o século XIX, o seu lugar dependeu das
representações dos homens, que foram, por muito tempo, os únicos historiadores. Estes
escreveram a história dos homens, apresentada como universal, e a história das
mulheres desenvolveu-se à sua margem. Ao descreverem as mulheres, serem seus portavozes, os historiadores ocultaram-nas como sujeitos, tornaram-nas invisíveis.
Michele Perrot, historiadora francesa e coordenadora juntamente com Georges
Duby da já clássica obra em 5 volumes A História das Mulheres no Ocidente, enumera
os três movimentos que contribuíram para a chegada das mulheres na História. Não
somente elas, mas todos os demais sujeitos subsumidos pelo discurso moderno.
Michelle Perrot destaca como importantes, a crise dos grandes paradigmas como o
positivismo e o marxismo; a explosão da História com a Nova História (história em
migalhas); e a demanda social com o movimento feminista.2 O positivismo centrava sua
análise na história política, privilegiando as fontes diplomáticas e militares, uma história
de guerras e batalhas onde as mulheres não apareciam; o marxismo, referencial teórico
marcante na historiografia ainda hoje, não deu importância para as contradições entre
homens e mulheres ou para as questões femininas, porque as contradições de classe e os
seus embates eram a questão de fundo. Segundo eles as discussões sobre sexualidade,
relações de poder entre homens e mulheres seriam resolvidas após a revolução.
Diz Michele Perrot: “Quanto aos Annales (1929) de Marc Bloch e Lucien
Febvre, ao substituir o político pelo econômico e o social, não realizam grande ruptura
neste aspecto. Mulheres, relações entre os sexos, até mesmo a família... eram
quantidades negligenciáveis...” Como o silêncio foi rompido, pergunta ela? Com a
explosão da história na década de 70, “chegou-se a falar em „história em migalhas‟ que
favorecia o surgimento de novos objetos: a criança, a loucura, a sexualidade, a vida
2
Cf. PERROT, 2005.
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
privada... Por que não as mulheres?” 3 As universidades começaram a receber mulheres,
inicialmente como alunas e depois em seus quadros profissionais, e novas pesquisas
envolvendo estas novas questões e novos sujeitos, portanto, era um caminho natural.
Muito tempo se passou após a renovação da história com “novos problemas,
novos objetos e novas abordagens”, mas como se comporta a historiografia neste jogo
de avanços e retrocessos, de permanências e rupturas, entre homens e mulheres?
Acompanha o movimento democrático de que a história é feita por homens e mulheres,
de que elas nunca estiveram ausentes mas foram silenciadas pela historiografia, pelas
relações de poder que anunciam, registram mas também silenciam sujeitos e fatos,
como nos ensina Michel Foucault? Segundo ele,
Os historiadores, há anos, ficaram muito orgulhosos por descobrirem que
podiam fazer não apenas a história das batalhas, dos reis e das instituições, mas
também a da economia. Ei-los completamente deslumbrados porque os mais
astuciosos dentre eles lhes ensinaram que se podia fazer ainda a história dos
sentimentos, dos comportamentos, dos corpos. Eles logo compreenderão que a
história do Ocidente não é dissociável da maneira como a verdade é produzida e
inscreve seus efeitos.4
Michel Foucault tem auxiliado as historiadoras na compreensão da história das
mulheres, dizendo que esta história também tem sua história, e, portanto, pode ser
mudada a cada instante. Considera o homem e a mulher como criações e conseqüências
de uma determinada estrutura de poder. Os homens definem-se e constroem a mulher
como o Outro, a partir deles mesmos. Foucault nos oferece algumas ferramentas úteis
como a análise do poder, não como aquele que proíbe, que diz não, mas o poder que
incita discursos e nomeia coisas e sujeitos e constrói, inclusive, subjetividades.
As práticas foucaultianas da pesquisa histórica demonstram que a historicidade
governa a relação entre os sexos ao mostrar em que contexto nascem a figura da mãe
triunfante e subjugada, ou a da histérica. Michel Foucault nos auxilia a romper com o
eterno feminino dos médicos e dos biólogos cujos discursos, nos séculos XVIII e XIX,
reforçavam a sujeição das mulheres ao seu corpo e a seu sexo. Nos ajuda a compreender
como determinadas verdades são instituídas em campo do saber e como isto dificulta
uma outra forma de olhar o passado, e que estamos sempre cercados, somos perseguidos
por verdades. O fato histórico escolhido depende do olhar do próprio historiador e do
3
4
PERROT, 2005, p. 16.
Michel Foucault, 1994, p. 257. (tradução livre)
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
tipo de história que gostaria de fazer. Nos incita a questionar que práticas discursivas e
não discursivas fizeram esta ou outra questão emergir e a constituir como objeto para o
pensamento.
Com Foucault, a certeza de que os documentos consultados pelos historiadores
traduzem toda a verdade fica abalada, porque ele nos mostra que o documento não é o
reflexo de um acontecimento, mas é um outro acontecimento. Nos ensinou a prestar
atenção ao discurso, a maneira como um objeto histórico é produzido discursivamente e
a sua própria narrativa. E mais ainda, nos alertou para a produção dos silêncios na
narrativa histórica. Discurso entendido como aquilo que está instalado nos aparatos
jurídicos, no cotidiano, nos gestos e costumes, nas instituições e até mesmo na
arquitetura. Estes pressupostos nos ensinam que não podemos separar a coisa em si, a
realidade do discurso.
1. A mulher na construção do Brasil
Os historiadores fizeram a historiografia do silêncio. A história transformou-se
em relato que esqueceu as mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade da
reprodução, inenarrável, elas estivessem fora do tempo, fora do acontecimento. Mas
elas não estão sozinhas neste silêncio-profundo. Elas estão acompanhadas de todos
aqueles que foram marginalizados pela história como os negros, os índios, os velhos, os
homossexuais, as crianças, etc. Portanto, escrever a história das mulheres é libertar a
história. Libertar a história das amarras das metanarrativas modernas, falocêntricas.
Se historicamente o feminino é entendido como subalterno e analisado fora da
história, porque sua presença não é registrada, libertar a história é falar de homens e
mulheres numa relação igualitária. Falar de mulheres não é somente relatar os fatos em
que esteve presente, mas reconhecer o processo histórico de exclusão de sujeitos.
Desconstruir a história da história feminina para reconstruí-la em bases mais reais e
igualitárias.
Acompanhando o relato das histórias ocidentais, a história do Brasil foi feita
somente pelos homens. A invisibilidade da mulher na construção da sociedade brasileira
é um fato detectado em qualquer manual que tenta contar nossa história dos primeiros
tempos. Por uma questão biológica, se não fossem outras, ninguém pode negar a
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
existência do sexo feminino, responsável pela reprodução de homens e mulheres. Mas
por onde andava ele, afinal? A história do Brasil, como a dos povos ocidentais, é uma
história masculina onde não sobrou espaço para mulheres. Como imagem ou
representação elas estão sempre presentes. É só recorrermos à literatura dos viajantes,
que misturando o que aqui viram com o imaginário europeu, representaram a América
através de uma mulher nua que em suas mãos segurava a cabeça de um homem. Mulher
nua, como nua é a índia, chamada América.
A certidão de nascimento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha, nascimento da
nação registrada, um documento que encanta pela riqueza de detalhes, faz inúmeras
referências à beleza da índia tupiniquim. O calvinista francês, Jean de Léry, mostrou o
mesmo entusiasmo e encantamento 65 anos depois. Para ambos, a mulher européia (até
aí a única), carregada de enfeites e ornamentos, sentiria inveja da beleza natural da índia
brasileira. As naus que transportavam os argonautas, aqueles para quem navegar era
mais importante que viver, eram constantemente vasculhadas à procura de mulheres
“sospeitosas”, ameaças que poderiam perder corpos e almas. Quando encontradas eram
abandonadas na primeira terra encontrada, numa marca de desprezo e desdém ao
feminino.
Os religiosos que acompanhavam as aventuras da coroa portuguesa à procura de
novas “almas” a serem catequizadas, depois da perda de fiéis para a reforma protestante,
viam no combate às mulheres uma de suas principais missões, juntamente com o
tratamento dos doentes, combate ao jogo, às blasfêmias e à leitura de livros profanos.
Como vemos, a presença da mulher era constante, como representação ou como
preocupação.
Entendo representação como os diferentes grupos culturais e sociais são
apresentados nas diferentes formas de inscrição cultural, nos discursos e nas imagens
pelos quais a cultura representa o mundo social. O consentimento do representado, se
reconhecer no discurso que o representa, faz parte do processo de representação. Se os
discursos estão localizados entre relações de poder que definem o que eles dizem e
como dizem, quem fala pelo outro, quem o representa, controla as formas de falar do
outro. A representação produz sujeitos. Mas para ser eficiente precisa apagar as marcas
de sua construção. Deve parecer natural e sempre dado, portanto, imutável.
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
Durante o Brasil Colônia sabemos de muitas mulheres que tentaram invadir o
espaço público5: Ana Pimentel governou a capitania de São Vicente após seu marido,
Martim Afonso, retornar à Portugal, em 1533, transformando-se na primeira mulher a
ocupar cargo executivo no Brasil; D. Brites de Albuquerque, na ausência e após a
morte do marido, Duarte Coelho, primeiro donatário da Capitania de Pernambuco e
Alagoas, tornou-se ativa governadora assim como Isabel de Lima, que administrava a
capitania de Santo Amaro.
Muitas mulheres possuíam engenhos e recebiam sesmarias para administrar.
Além de romperem a regra estabelecida para o mundo feminino, que reduzi-as às
paredes privadas do lar, foram esquecidas pela história. Algumas figuras emblemáticas
permanecem, como sóror Joana Angélica, que deu a vida pela independência brasileira,
opondo-se à entrada dos portugueses no Convento da Lapa, na Bahia; Maria Úrsula
Lencastre, que transformou-se em mulher soldado, lutando sob o falso nome de Baltazar
de Couto e a enfermeira Ana Néri, que participou como voluntária da Guerra do
Paraguai. Também Anita Garibaldi, Princesa Isabel são personagens caricatas na nossa
história. Mas a vida do conjunto das mulheres era muito diferente.
O papel designado à mulher resumia-se em ser boa esposa e excelente mãe. Seu
fracasso nessa área marginalizava-a. A falta de filhos era problema exclusivo seu, a
infecundidade jamais decorria do homem, o sexo potente, segundo Aristóteles. O prazer
sexual era permitido somente às prostitutas, porque a paixão, segundo os ditames da
época, poderia colocar em risco o santo casamento. As prostitutas, mulheres de “vida
fácil”, podiam dançar, cantar e vestir roupas provocantes.
As mulheres sérias casavam-se cedo e tinham como missão trazer crianças ao
mundo. Nada de decotes ousados, dedos dos pés à mostra, muito eróticos, perfume ou
maquiagem. Era vaidade condenável tanto sorrir demais e mostrar dentes bonitos, como
sorrir de menos para não mostrar dentes ruins. Somente ser casada não era suficiente:
era necessário parecer casada, vestir-se, falar e portar-se como tal. Para isso, invocavase sempre a sua “natureza”: pacata, dócil, emotiva, doente, sujeita naturalmente à
dominação masculina.
5
A separação entre o espaço privado e o público, que transformou o último em espaço da política e do
poder por excelência, sempre foi alvo das críticas feministas. Carole Pateman, trabalhando sobre a
dicotomia entre os dois espaços, atesta que a separação público/privado se estabelece como uma divisão
dentro da própria sociedade civil, se expressando de diversas maneiras, denominando relações de poder
entre os gêneros.
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As celibatárias, consideradas incapazes de arranjar marido não eram bem-vistas
pela sociedade, pois não geravam filhos e, por isso, eram tidas como melancólicas, malamadas, inúteis socialmente. Casadas ou solteiras, as mulheres eram enclausuradas no
espaço doméstico, onde transformavam-se em “anjos”e “rainhas do lar”.6
A vinda da família real, em 1808, transformou a paisagem e a vida da mulher
brasileira. Costumes, modas e culturas foram transportados da metrópole para a colônia
mais próspera. Para continuar usufruindo dos privilégios que possuía na Europa, a
nobreza instalou aqui um ambiente europeu, dando um “banho de civilização” na
colônia americana. A elite brasileira imaginava viver na Europa, ainda que cercada de
escravos. A população branca era obesa, como consequência de sua inércia, porque o
mundo do trabalho resumia-se ao mundo dos escravos.
Quando D. João VI desembarcou no Rio de janeiro com suas malas e bagagens,
a população o recebeu com entusiasmo, porque junto com ele desembarcava um novo
estilo de vida: bailes, companhias francesas de comédia, teatro, concertos musicais e
recitais. Novidades do “mundo civilizado” que passaram a conviver com a realidade
colonial: insetos, pássaros e frutas desconhecidas. Mas, acima de tudo, o colorido da
população colonial – brancos, índios, negros, pardos – marcava a diferença. Da corte
partiam não somente os rumos da política, como também os hábitos de vestir, as modas
literárias, as novas linguagens, os costumes de higiene e as novas regras de etiqueta. As
mulheres brasileiras imitavam as damas da corte e passavam a ter uma vida social mais
intensa, indo a bailes e teatros, além de missas e procissões. Caminhavam enrijecidas
pelos espartilhos, os longos vestidos e grandes chapéus.
Os manuais de etiqueta que estabeleciam regras e modelos de sociabilidade de
acordo com a civilização ocidental tornavam-se obra obrigatória entre a elite brasileira,
porque era ela que distinguia os homens da corte do restante da multidão, descontando a
cor da pele, é evidente. Paradigmático é O código do bom-tom ou regras da civilidade e
de bem viver, publicado em Portugal em 1845, que deixava bem claro o lugar e o papel
da mulher na sociedade. O homem devia distinguir-se pela sua fala inteligente e correta,
a mulher por sua atitude modesta e silenciosa, evitando palavras difíceis. A ela o manual
recomendava:
Se se calarem, cala-te também. Se te divertires, não mostres senão uma
alegria moderada; se estiveres aborrecida, dissimula e não dês a
6
Jacques Rousseau em sua obra “Emilio – da educação” inventa a figura de anjo e rainha do lar.
Enclausura as mulheres no espaço doméstico, retirando-lhes toda capacidade e autonomia e é
surpreendentemente adorado por elas.
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
conhecer. Nunca por tua vontade prolongue a conversação. Aceita e
come o que te oferecem e quando desejes outra coisa não o diga. Não
ostentes em público as tuas prendas (ROQUETE, 1997, p. 150).
Esses guias de comportamento introduzem o uso da faca, do guardanapo e do
palito. Dão conselhos sobre a evacuação diária e os banhos de 15 em 15 dias ou uma
vez ao mês. Em relação às mulheres são profícuos os conselhos sobre como “não fazer”
e “não dizer”. O Código do bom-tom lembra aos leitores que o consumo do vinho deve
ser restritivo às mulheres, porque o sexo feminino aliado à bebida poderia extravasar-se.
Para os homens 3 copos de vinho, para as mulheres com idade inferior aos 40 anos
sugere-se que não bebam vinho algum. Tudo e todos referem-se à “natureza” da mulher
singular, sensível de um lado, perigosa de outro. Existem homens, todos diferentes, e
frente a eles esse tipo único, essa síntese, a Mulher. Analisar uma basta para conhecer
todas. Nas mulheres tudo é natureza e a ela as mulheres se reduzem.
Estes discursos todos, filosóficos, literários, de etiqueta, produziram efeitos. Não
foram palavras ao vento, sem importância, foram fundamentais na marcação da
identidade feminina e na construção de sua subjetividade. Portanto, se a história é uma
construção teórica, onde se fabricam heróis ou vilões, escondem-se ou ressaltam-se
sujeitos, torna-se urgente uma cartografia que desenhe um novo mapa na orientação de
uma história mais real, menos hierarquizada e estereotipada.
1.1.
“O voto da Costéla” 7
A criação dos direitos humanos que foram o suporte das constituições
democráticas estabelecia o direito às liberdades civis e políticas: liberdade de religião,
de consciência, de expressão, de associação, por um lado, e o direito de cidadania, por
outro. O liberalismo reconheceu o direito político como universal, porém negou seu
acesso ao mundo feminino.
Toda a formação política que acabou por transformar o Estado Moderno em um
Estado de Direito iniciou sua configuração nos dois grandes eventos que introduziram o
mundo no Estado Contemporâneo: a Independência Americana e a Revolução Francesa.
Os revolucionários franceses esqueceram-se de chamar para a liberdade, igualdade e
fraternidade as mulheres; isso correspondia a um sentimento generalizado sobre a
7
Título de uma reportagem no jornal Correio Serrano de Ijuí/RS de maio de 1933 quando da discussão
nacional sobre voto feminino. O mito da criação, relato onde Eva retirou toda a humanidade do paraíso,
sempre presente.
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inferioridade física e intelectual do sexo feminino. Em nenhum momento a igualdade
significou igualdade para todos.
Os revolucionários franceses que construíram para o mundo o conceito de
cidadão e de direitos humanos guilhotinaram Olympe de Gouges sob a acusação de dois
delitos, trair a natureza de seu sexo e querer ser um homem de estado, porque ousou
escrever. As mesmas mãos que mataram Olympe instituíram Marianne como deusa da
Revolução. A história desconheceu por muito tempo esta personagem que nada mais
fez do que escrever uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, porque não
se reconhecia na Declaração dos Direitos do Cidadão.8 Esta passagem importante da
história, transformada em silêncio, nos mostra como a representação produz sujeitos
reais e, para ser eficiente, apaga as marcas de sua construção, parecendo natural,
portanto, imutável.
Até o final do século XIX afirmava-se seriamente que o cérebro das mulheres
não estava adaptado a estudos superiores, o que serviu de pretexto para vetar o ensino às
mulheres, que tiveram de batalhar arduamente para ter acesso a todas as carreiras de
ensino e profissão. Exigia-se delas que desempenhassem bem suas funções de
reprodutoras e de amparo afetivo na criação dos filhos. A ocupação de seu tempo ocioso
deveria ser também em funções mecânicas como bordar, tocar piano, costurar.
Elucubrações teóricas eram para os homens. “O homem pensa e a mulher sente”, foi um
ditado que correu de boca em boca durante séculos. Tudo referendado pelas
constituições e códigos, numa demonstração que a legislação não atingia os homens e as
mulheres igualmente como tampouco afetava por igual os homens entre si.
Quando o baiano Domingos Borges de Barros9, deputado brasileiro nas Cortes
Constituintes de Lisboa, em 22 de abril de 1822, propôs o direito de voto a uma viúva,
mãe de 5 filhos, o deputado liberal português, Borges Carneiro, na tentativa de encerrar
a discussão sem colocar o projeto em votação, sentenciou: “Eu sou do parecer que esta
indicação não deve admitir-se a discussões. Trata-se do exercício de um direito político
8
Olympe de Gouges que se alfabetizou sozinha aos 32 anos de idade, propôs a Declaração na França em
1791 e foi decapitada em 1793. Segundo relatos de historiadoras, há registro de 374 execuções de
mulheres no período do Terror.
9
Domingos Borges de Barros figura na história das mulheres como um dos precursores mundiais na
defesa do voto feminino. Infelizmente a historiografia brasileira pouco fala da proposição do deputado
brasileiro, democrata que não havia entendido que quando os constituintes defendiam que o povo devia
ser chamado para as eleições, estavam a defender não o povo todo, mas uma parcela somente.
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e delles são as mulheres incapazes. Ellas não tem voz nas sociedades públicas: mulier in
ecclesia taceat, diz o Apostolo”10.
Muito tempo tiveram de esperar as mulheres, para, através de muitas lutas,
conquistar sua cidadania política. A idéia de que era mais fácil libertar os negros
escravos que as mulheres, era corrente após a Constituição de 1891. E todos sabemos a
ferrenha luta que foi travada para acabar com a vergonha brasileira que era a escravidão.
Somente em 1932, através do Código Eleitoral, que tentava disciplinar e modernizar o
país após a Revolução de 1930, incorporando novas camadas populares ao voto agora
secreto, foi dado à mulher o direito de enquadrar-se no preceito de que “todos os
cidadãos são iguais perante a lei”. A justificativa no Código Eleitoral, da admissão das
mulheres, desconhece a luta travada durante mais de cem anos e considera a “doação”
da cidadania política feminina como indispensável para que o Brasil se transformasse
em um país moderno, já que os países de primeiro mundo, modernos e avançados já
haviam concedido esse direito.
Apesar de na vida política serem consideradas cidadãs através da Constituição
de 1934, as mulheres brasileiras na vida privada eram menores perpétuas, sob o poder
do marido ao qual deviam obediência, através do Código Civil de 1917. Se o estado de
casada oferecia status a uma mulher, que não era considerada socialmente se fosse
solteira, o casamento reduzia sua capacidade e personalidade jurídica. Como explicar
essa contradição de uma moça, maior, capaz, ser excluída da vida jurídica e colocada
entre os loucos e os menores quando se juntava ao rol das casadas? A supremacia
marital, que é justificada pela inferioridade física das mulheres, só existe nas mulheres
casadas. O temor do desmantelamento do lar e da família é o argumento recorrente dos
defensores da conservação da ordem patriarcal.
O Código de Napoleão Bonaparte, de 1804, que influenciou a condição legal
feminina em todo o Ocidente e também no Brasil, deu corpo à idéia segundo a qual a
mulher é propriedade do homem, tendo como única tarefa gerar filhos. Esse código,
encarnação da modernidade jurídica, consagrou uma profunda desigualdade entre
marido e mulher, dando àquele os direitos e a esta as obrigações. Selou por um século e
meio a subordinação privada das mulheres e legitimou o princípio de sua incapacidade
civil. No caso brasileiro foi necessário esperar o ano de 1962, com a edição do Estatuto
10
O deputado luso recorre a São Paulo, “Na Igreja a mulher cala-se”, para desqualificar a proposta de
Borges de Barros, lembrando a todos que o lugar da mulher não é na política. São Paulo, um dos maiores
misóginos da Igreja Católica, foi um dos responsáveis pela discriminação da mulher através dos tempos,
freqüentemente utilizado pelos que negavam o acesso da mulher à categoria de cidadã.
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da mulher casada, para que a mulher perdesse a menoridade com o casamento e
anulasse o paradoxo: cidadã política desde 1934 e menoridade civil até 1962.
2. As relações de poder na história
O vínculo entre linguagem e a construção de identidades individuais é evidente
na forma pela qual a linguagem é usada para privilegiar representações que excluem
grupos subordinados. Desde o ele universal, ao inglês como padrão. A análise histórica
da relação entre poder e linguagem torna-se essencial para revelar como o poder
funciona como uma condição para a representação e como uma forma de representação.
É preciso compreender o relato histórico como um mecanismo imerso em
relações de poder. Como qualquer outro artefato cultural, como qualquer prática
cultural, nos constrói como sujeitos particulares, específicos, legitimando ou
deslegitimando, incluindo ou excluindo sujeitos. Um exercício pedagógico seria
perguntar constantemente – que conhecimentos, que grupos sociais estão incluídos e
excluídos do relato histórico? Que divisões do sujeito – gênero, raça, classe são
produzidas ou reforçadas pela historiografia?
Acostumamos a encarar a história como ligado ao cognitivo, às informações, aos
fatos, desprovidos de relações de poder e saber. Deixamos de vê-la em seus aspectos de
disciplinamento, de silêncios. Analisar quem a história convoca ou silencia nos seus
textos discursivos deveria ser uma tarefa permanente do historiador. A historiadora
Margareth Rago, atenta em observar os diversos rostos da história, nos pergunta:
Afinal, o que faz o historiador? Para que e para quem busca o acontecido? A
partir de que instrumentos, teorias, valores e concepções recorta seus temas,
seleciona seu material documental e produz sua rescrita do passado? E, aliás, de
que passado se trata? Dos ricos e dos pobres? Dos brancos e dos negros? Das
mulheres e dos homens especificamente considerados? Das crianças e dos
adultos? Ou do de uma figura imaginária construída à imagem do branco
europeu, pensado como ocidental? 11
Se a história é um reflexo das discriminações, desigualdades e preconceitos
instalados na sociedade poderá também ser um espaço de mudanças. As relações de
poder que atravessam a historiografia e os currículos de história vão continuar existindo,
11
RAGO, 2007, p. 12.
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com certeza. Mas se olharmos o texto histórico como uma verdade estabelecida num
certo contexto, e não como uma verdade absoluta e sempre dada, tudo pode ser
diferente.
Michel Foucault se declarava simplesmente um historiador, e suas obras nos
auxiliam na compreensão da história, quando nos mostra que a história também tem sua
história e, portanto pode ser mudada a cada instante. Considera o homem e a mulher
como criações e conseqüências de uma determinada estrutura de poder. Não há objetos
naturais, não há sexo fundado na natureza, nos ensina o filósofo. Seu trabalho nos ajuda
a compreender como determinadas verdades são instituídas em campo do saber e como
isto dificulta uma outra forma de olhar o passado.
O fato histórico escolhido depende do olhar do próprio historiador e do tipo de
história que gostaria de fazer. Que práticas discursivas e não discursivas fizeram esta ou
outra questão emergir e se constituir como objeto para o pensamento? Como foi
possível que tal objeto viesse à tona? Como foi possível acreditarmos como a-histórico
ou natural algo que foi urdido nos embates da História? São interrogações necessárias.
Trabalhar com a história das mulheres exige que nós a entendamos como uma
bem arquitetada invenção. As mulheres, assim como os homens, são simplesmente um
efeito de práticas discursivas e não discursivas como no ensina Michel Foucault.
Portanto, reconhecer os discursos e as práticas que nomearam as mulheres ou as
silenciaram no campo da história é uma tarefa primeira.
Concluindo
A História das mulheres ao colocar no centro a questão das relações entre os
sexos revisita um conjunto de problemas tão caros à historiografia - o poder, as
representações, as imagens e o real, o social e o político, o pensamento simbólico, enfim
a marginalização, o esquecimento de sujeitos na história do ocidente. A dificuldade de
sua história deve-se inicialmente ao apagamento de seus traços, tanto públicos quanto
privados. A falta de informações contrasta com a abundância dos discursos e das
imagens (musas e deusas). Fazer a história das mulheres é chocar-se contra este bloco
de representações que as cobre.
Em 1988 Michele Perrot indagava: “é possível uma história de mulheres?”,
porque tão longe quanto nosso olhar histórico alcança vê-se apenas a dominação
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masculina. Como então elas poderiam pensar sua história? Esta pergunta ainda nos
desacomoda. A história das mulheres é uma história diferente, é uma nova história ou é
outra história? Ainda achamos que incluir as mulheres no relato histórico não significa
incluir a metade da humanidade, mas um ato que afeta a humanidade em seu conjunto?
Paul Ricoeur em um texto que discute o passado, afirma que a história somente
sabe que há o passado porque a memória já o disse antes dela. Mas por menos confiável
que seja a memória, por menos fiel que ela seja ao passado, ela é a nossa primeira
abertura em relação a ele. Refazer a trajetória da memória rumo à história é buscar na
memória as raízes de nossa demanda de história. Se historicamente o feminino é
entendido como subalterno e analisado fora da história, porque sua presença não é
registrada, libertar a história é falar de homens e mulheres numa relação igualitária, é
resgatar a dívida com a memória. Falar de mulheres não é somente relatar os fatos em
que esteve presente, mas reconhecer o processo histórico de exclusão de sujeitos.
Encerro meu texto lembrando de Michel Foucault, autor que efetivou uma
ruptura paradigmática no campo do conhecimento, especialmente ao teorizar o poder.
Revolucionou a vida das mulheres, ou pelo menos a sua história, ao mostrar em suas
obras que os objetos históricos são meramente construções discursivas. Nos mostrou
que tudo aquilo que invocamos do passado passa por um intricado jogo de relações de
poder e saber que instituem verdades.
As historiadoras pegaram à história na mão, transformando-se em objetos e
sujeitos da história, mas agora o que fazer com ela? Como transformar a cultura que
aprendeu como verdade a desqualificação do feminino? Paul Veyne, em uma obra
sobre Foucault, utiliza a metáfora do aquário para nos dizer que sempre somos
prisioneiros de um aquário do qual nem percebemos as paredes, de discursos que se
arrogam a dizer a verdade de seu tempo. E que o passado da humanidade não passa de
um grande cemitério de verdades mortas. A cada época seu aquário diz ele. Como
fabricar a história das mulheres fora de um aquário?
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Recebido em 27 de abril de 2013
Aprovado em 2 de maio de 2013
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MEMÓRIAS ESCRITAS: UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA
Lorena Zomer1
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar a literatura escrita pelo jornalista
paraguaio Guido Rodriguez Alcalá como uma memória, porém dando ênfase nesta
como uma prática marcada pela ditadura militar paraguaia. Nesse bojo, compreendo que
pesquisar sobre a escrita de Guido Alcalá é um meio de compreender como os
testemunhos – registrados nas mais diversas formas – podem ajudar a trazer à tona
questões e histórias que ficaram caladas por tanto tempo, proporcionando um lugar justo
à memória daqueles que viveram ou sofreram o processo ditatorial paraguaio.
Palavras-chaves: Literatura, Ditadura Militar, Memória.
Abstract: This article aims to analyze the literature written by the paraguayan journalist
Guido Rodriguez Alcalá as a memory, but giving emphasis on this as a practice marked
by paraguayan military dictatorship. In this direction, I understand that to research on
Guido Alcala’s writing means a form of understanding how the testimonies -registered
in a lot of forms - can help to bring out some questions and histories that stayed silenced
for a long time, providing a fair place for the memory of those who lived or experienced
theparaguayan dictatorial process.
Keywords: Literature, Military Dictatorship, Memory.
Literatura em ruínas ou ruínas de memória
Em um processo ditatorial como o paraguaio, o silêncio calcado aos vencidos
pode acabar por manchar a vitória dos vencedores. Isto ocorre porque o sentimento de
culpa, os processos criminais, a campanha pelas (os) desaparecidas (os) e as
manifestações ocorridas às penumbras denunciam que nem tudo se ganhou, ou seja, o
que se tem é apenas o título de vitória. Ditaduras militares como as do Cone Sul2
1
Licenciada em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Especialista em Educação
Especial, Mestre e Doutoranda em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina. Tem
experiência em Ensino Fundamental, Médio e Superior. E-mail: [email protected]
2
O termo refere-se ao tema dos trabalhos do grupo de estudos do Laboratório de Estudos de Gênero e
História (LEGH), no qual a Bolívia, o Chile, o Paraguai, o Uruguai, o Brasil e a Argentina formam os
eixos centrais de análise. A pesquisa iniciada pelas (os) integrantes do LEGH tem três projetos principais,
sendo o primeiro e o segundo: “Movimento de mulheres e feminismos em tempos de ditadura militar no
Cone Sul (1964-1989)" e “Do Feminismo ao gênero: circulação de teorias e apropriações no Cone Sul
(1960-2008), ambos coordenados pela Prof.ª Dr.ª Joana Maria Pedro; e o terceiro: “O gênero da
resistência na luta contra as ditaduras militares no Cone Sul (1964-1989)”, coordenado pela Prof.ª Dr.ª
Cristina Scheibe Wolff. Nas reuniões ocorridas no ano de 2010 retirei as primeiras inspirações
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tendem a ser contadas como vitoriosas por seus causadores, manipulando a História,
dita oficial, ao seu favor. Mas, as ruínas espalhadas no decorrer de uma cidade mostram
outra face de atuação de uma ditadura; há também a ruína dos olhos daqueles que viram
atrocidades, daqueles que lutaram contra policiais, que viram suas (seus) vizinhas (os)
sendo levadas (os), enfim, daqueles que testemunharam os gestos de violência, os quais,
na realidade, mancharam de sangue a história do país.
Nesse sentido, analiso a escrita de Guido Rodriguez Alcalá. Uma literatura sobre
uma sociedade em ruínas, de um processo histórico que atrasou a economia, mas,
principalmente, arruinou a liberdade e os direitos civis de uma população inteira. Mais
que apontamentos do que sobrou depois desse período da história paraguaia, a literatura
de Guido Alcalá é analisada como uma resistência, uma reação enquanto as atrocidades
persistiam em continuar. Na fala do autor há elementos de um cotidiano, implicado de
experiências, testemunhos e de relações de gênero; e que têm por objetivo mostrar tanto
que a ditadura militar atingiu a população de diversas maneiras, quanto que insistiu em
continuar, especialmente entre os anos de 1980-1990, quando já se via enfraquecida.
Ressalto que a ditadura militar paraguaia foi a mais duradoura dentre todas as do Cone
Sul, sendo o seu período de 1954-1989. Friso ainda que, em seus anos finais, a escrita
de Guido Alcalá é impulsionada com a diminuição do policiamento e das perseguições.
O autor nasceu em Assunção (Paraguai – 06/10/1946), chegou a ser preso por
participar do Centro de Estudiantes e de uma manifestação contra Nelson Rockefeller.
Guido Alcalá teve a sua casa revistada por duas vezes, sendo, ainda, exilado na França,
nos Estados Unidos e na Alemanha (entre os anos de 1971 a 1982, com algumas
pequenas passagens pelo Paraguai) (PIZARRO, 2001). Tanto no tempo em que esteve
no exílio quanto no período de “redemocratização”, escreveu diversos contos e
romances, nos quais a centralidade dos temas é a história política do Paraguai; mas, tem
ainda como foco as perseguições sofridas por ele e pela população em geral durante a
ditadura militar de Alfredo Stroessner, uma ideia que apresento e analiso na seguinte
citação: “eldiosapollollegóseme y me dijo: [...] que registre elnumerososcuros, las bodas
y las muertes sospechosas en Paraguay, en Chile y Argentina” (ALCALÁ, 1981, p.9).
relacionadas à escrita de Guido Alcalá, para analisar as relações entre gênero e ditadura militar paraguaia,
e ainda, foi onde encontrei também uma entrevista realizada com Alcalá pelas professoras responsáveis
pelos projetos2. Desse modo, reuni fontes para elaborar meu projeto de doutorado: “(Des) caminhos da
História e da Literatura: Ditadura paraguaia e hierarquias de Gênero a partir de obras de Guido Rodriguez
Alcalá escritas entre 1960 a 2000”, o qual foi aprovado no Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal de Santa Catarina no ano de 2011.
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Dessa forma, compreendo que o escritor Guido Alcalá, ao descrever que se sentia
imbuído de falar sobre a sua experiência ou fatos ocorridos no Paraguai no período
discutido, está assumindo que em seus escritos existem intenções em se falar contra ou
denunciar atitudes tomadas pelos militares. Esta afirmação não objetiva significar que
toda a escrita de Alcalá teve como base fatos, dados ou nomes reais, porém, o que
motivou a escrita: o que a conduziu foram acontecimentos decorrentes em seu contexto,
em sua vivência, inscritos em sua memória. O que se tem sobre a ditadura na escrita de
Guido Rodriguez Alcalá, ao final do período ditatorial, é uma literatura que se
contrapõe à história dos vencedores, isto é, a escrita que foi antes perseguida, proibida,
torturada e exilada na figura do jornalista acabou por ganhar mais notoriedade, haja
vista o horror presenciado na história da ditadura paraguaia.
Lembrar pode ser considerado então um ato de restauração ou mesmo de
manutenção das características sociais, culturais e políticas que muitas vezes foram
solapadas pelo poder público ou em decorrência do exílio. Na mesma direção, Beatriz
Sarlo frisa que os testemunhos históricos serviram – e servem – para dar uma segurança
no que diz respeito aos direitos, sendo então considerados um “bem comum, um
dever...” (SARLO, 2005, pp.45-47). Esse dever, em centenas de ocasiões foi
“paralisado” a partir do instante em que mulheres e homens eram exiladas/os. Essa
prática era uma estratégia para fazer “calar” as vozes da oposição, a fim de causar um
esquecimento (SALRLO, pp.45-47). Considero que a memória de Alcalá foi reafirmada
no exílio e em sua literatura.
Ainda sobre esse tempo amargo da história paraguaia, em entrevista, Guido
Alcalá afirma que o motivo pelo qual saiu do país foi a falta de oportunidade para
estudar e também a própria ditadura militar que não permitia a sua escrita e, ainda, que
estava oprimindo um povo, que há muito já sofria com governos ditatoriais e
populistas3. Para Alcalá, o:
[...] nível da universidade paraguaia era muito baixo. Eu queria
estudar. Depois de retornar daquela época, nos anos 70, e os 60,
período na França. Na época dos anos 70 era a época do boom literário
latino americano. Em França, tenho (tinha) um amigo paraguaio, Juan
Barion Saier, também aí estavam Cortazar, García Marques, Carlos
Fontes. E eu queria conhecer esse ambiente literário, porque, sim, aqui
3
Em vários livros escritos por Alcalá – como Caballero: novela de la guerra de la triple aliança alianza e
Caballero Rey – o autor demonstra que a história do Paraguai é marcada por uma sucessão de governos
que não permitiram que população paraguaia experimentasse uma democracia plena com direitos.
Guerras com os países vizinhos apenas pioraram a situação do povo paraguaio.
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havia muito pouca comunicação. Tampouco estava muito bem no
Paraguai por problemas, não muito graves, mas problema político,
dificuldades. (ALCALÁ, 2008)
Percebo que o que Alcalá apresenta – sobre o Paraguai – é um país sem muitos
recursos no que se refere até mesmo às universidades, isto é, um descaso com o ensino
naquela época. Alcalá estava em meio a uma manifestação estudantil quando foi preso
e, segundo ele, não havia uma preocupação política de sua parte; porém, isso mudou a
partir do momento em que foi encarcerado naquelas circunstâncias. Sugiro que a sua
experiência na prisão ofereceu a ele um olhar mais crítico em relação ao que realmente
se passava na política paraguaia, algo marcado em sua memória.
De acordo com Alejandra Oberti, “[...] o que se diz, quando e como se diz e
também o que se silencia obedece a decisões que falam tanto desse passado que está
sendo recordado como do nosso presente, do aqui e agora da biografia” (OBERTI,
2006). É nesse sentido que analiso a fala de Alcalá, tanto quando relembra aquele tempo
em que foi obrigado a sair de seu país e, mesmo assim, continuou a conviver com uma
“realidade latina”, quanto pelo fato de se ver como um homem que testemunhou e
escreveu sobre as coisas que estava vivendo em relação à ditadura militar paraguaia.
O que Alcalá faz é resignificar na escrita os seus atos e as expectativas que tinha.
É justamente essa liberdade de repensar sua trajetória que traz à entrevista alguns pontos
mencionados por Alcalá, os quais me permitem compreender mais a relação que se
estabelece entre sua vivência e a escrita durante a ditadura militar paraguaia, porém sem
esquecer a influência que a experiência e o presente podem ter nas lembranças. Sobre
isso, concordo com uma ideia de Jacy Alves de Seixas, segundo a qual [...] “a memória
é ativada visando, de alguma forma, ao controle do passado [...] em função do presente
via gestão das memórias significa, antes de mais nada, controlar a materialidade em que
a memória se expressa”(SEIXAS, 2004, pp.37-38).
Como dito anteriormente, Alcalá esteve na França e na Alemanha em contato
com diversos outros escritores latinos, em geral anistiados de seus países, devido às suas
subversões. Na citação, Alcalá afirma que a época em que esteve fora, foi justamente
um tempo em que escritores (as) puderam trocar ideias. De acordo com Antônio
Callado, houve nessa época o “boom literário” (CALLADO, 2005, p.85). Uma onda que
vinha desde os anos de 1940, mesmo os escritores residindo fora de seus países, eles (e
elas) desenvolveram um gênero e uma escrita literária diferente dos padrões europeus
ou norte americano. Esse deslocamento do “eixo nórdico” para a América Central e do
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Sul originou o estilo literário latino, porém, foi também nessa época que ocorreu a
Guerra Fria e outros episódios da história mundial, fazendo com que partisse por
iniciativa dos Estados Unidos medidas de contenção do chamado “risco comunista”
direcionado pela URSS (CALLADO, 2006, p.85). E é nesse contexto que escritores,
como Gabriel Garcia Márquez, Carlos Fuentes, Roa Bastos e Isabel Allende tornaram a
América Latina conhecida em termos literários.
Portanto, o tempo em que Guido Alcalá esteve na França foi a época em que
escreveu muitos de seus contos, mas, segundo ele, a escrita não pode ser o centro de
suas atenções, já que necessitava trabalhar também como afirma a seguir:
Estive três meses e meio trabalhando, vivendo como podia e o ano
todo viajando. Mas comecei a ir estive em conferências feministas e
literárias. Havia um centro da América Latina (não recordo muito
como se chama). Para mim era uma novidade, porque no Paraguai
nunca havia visto. (ALCALÁ, 2008)
Nesse momento, pude perceber algo que acredito ter influenciado a escrita de
Alcalá. Os encontros que ocorriam nesse centro, segundo ele que prossegue na
entrevista falando sobre o assunto, reuniam muitas pessoas latinas. O que posso
considerar a partir dessa informação de Alcalá é que havia realmente um convívio com
outros/as escritores/as latinos/as, e isso me permite analisar que havia uma troca de
informações sobre o que estava ocorrendo na América Latina. Mesmo quando foi
exilado, o que é uma estratégia do governo para que haja esquecimento, distância do
que foi vivido, Alcalá continuou a escrever sobre as ditaduras militares.
Segundo Elisabeth Jelin, a memória de grupos que são perseguidos tem dois
sentidos: dar uma versão “verdadeira” sobre o tempo que lembram, que viveram e
também almejava uma justiça em relação às atrocidades e crimes que presenciaram
(JELIN, 2002). Portanto, suas memórias estão relacionadas com as suas experiências,
com as suas “verdades”, as quais estão imbricadas, segundo Beatriz Sarlo, “a uma
presença real do sujeito na cena do passado” (SARLO, 2007, p.24). O mesmo confirma
Elisabeth Jelin, pois, para esta historiadora, é preciso considerar que as testemunhas
podem ser aquelas que viveram o momento e depois o narraram e, por outro, lado pode
ser a versão de quem vivenciou um fato a partir de olhares de quem realmente “estava”
no acontecimento, isto é, “[...] que viu algo mesmo não tendo participação direta ou
envolvimento pessoal no mesmo. Seu testemunho serve para assegurar ou verificar a
existência de certo fato” (JELIN, 2002, p.80). Posso situar Alcalá nas duas perspectivas
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da palavra “testemunha” apontadas, visto que, de acordo com a entrevista, viveu e viu
repressões e manifestações quando ainda morava no Paraguai e enquanto estava exilado
pôde viver em outros países, especialmente na França, com outras/os escritoras/es, os
quais também sentiam e viviam memórias e sentidos semelhantes das ditaduras que
ocorriam no Cone Sul. Neste caso, não somente no modo de escrita, mas também de
conteúdo, já que a maioria dos (as) escritores (as) citados (as) tinha como foco poemas e
histórias sobre as ditaduras militares de seus respectivos países. Para Callado, a escrita
demonstra a estrutura de repressão das ditaduras militares com cada escritor, em seu
contexto, cultivando a sutileza, o subentendido (JELIN, 2002, pp.42-44).
Ao analisar as observações de Alcalá ou de Antônio Callado em relação à
literatura latina é possível apontar pontos positivos no exílio desses (as) escritores (as).
Porém, para Paul Ricoeur, quando se fala em anistia, esta está vinculada a uma ideia de
esquecimento comandado em que, a partir do perdão, o autoritarismo é esquecido,
causando uma “[...] denegação da memória” (RICOEUR, 2001, p.460). Paul Ricoeur dá
continuidade a esse pensamento ao relacionar o esquecimento causado pela anistia
como uma separação do passado da memória coletiva, vista como uma utilidade e sem
intenção de trazer uma verdade à tona (RICOEUR, 2001, p.462). Essa seria a causa de
muitos silêncios que são incentivados a partir do exílio, quando muitas atrocidades,
passados de perseguição e o direito de reclamar por justiça são denegados. Ainda, o
maior culpado seria o próprio Estado que “obriga” uma memória coletiva a esquecer os
sofrimentos que lhes foram impostos.
Nesse rol de escritores (as) exilados (as), situou-se Guido Alcalá, como afirma o
próprio escritor em uma entrevista (ALCALÁ, 2008). Analiso que o conteúdo e os
locais de produção da literatura em geral dos anos de 1960 a 1980 não estão marcados
diretamente por acontecimentos e fatos da América Latina; porém, se tratam desta.
Esses autores e autoras estavam compartilhando ideias, histórias que acabaram sendo
conhecidas, mesmo que longe de seus países.
Em um estudo de Sylvie Sagnes (SAGNES, 2011), a historiadora afirma que a
Retirada, movimento espanhol – no contexto da Guerra Civil – não foi lembrado ou
registrado apenas por pessoas que o viveram diretamente, mas também por conhecidos e
familiares das vítimas. Nesse caso, a autora chama à atenção que, embora o fato não
tenha sido vivido diretamente por muitos que narram essas histórias, a memória não
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pode de modo algum ser subestimada, já que registra lembranças e acontecimentos de
outros que, por sua vez, não puderam escrever sobre tal coisa.
Friso que as fontes de Sylvie Sagnes são romances de memória, não sendo o
caso dessa pesquisa(SAGNES, 2011). Os contos de Guido Alcalá, escritos no Paraguai
ou em qualquer outro país do hemisfério norte, tinham como centro testemunhos ou
fatos ocorridos em seu país natal. Ainda, são muitos os livros que compartilharam
dessas ideias, sendo a existência desses um argumento para que a sua escrita seja
considerada uma fonte sobre a memória da ditadura militar paraguaia. O que Alcalá fez
ao escrever seus contos foi contar com o seu olhar, sem uma preocupação de adequação
perfeita entre o passado e a memória da História do Paraguai. Entretanto, nem com
essas características, os contos podem ser considerados como ficcionais, sem sentido ou
sem verdade. Como nos romances pesquisados por Sylvie Sagnes, os contos estão
dentro e fora da memória, são reinventados por seu autor (SAGNES, 2011).
Considerando essas ideias, a literatura permite analisarmos os sentidos que nortearam a
experiência e a memória de quem viveu um fato, como foi o caso de Guido Alcalá. A
escrita desse autor traz memórias, defende um lado (ou vários) da história do Paraguai,
especialmente no período ditatorial.
Nesse caso, a literatura deve ter o seu lugar específico e demarcado na pesquisa
historiográfica; além disso, é preciso que seja vista de um modo especial, devido ao seu
caráter de resistência e de memória. A constante ameaça de morte, de silêncio e de falta
de liberdade tornam-se ferramentas de luta pela vida. O Paraguai atrasado, decadente
economicamente, sem um significante parque industrial gerador de empregos, sem uma
reforma agrária que atendesse uma maioria da população praticante de agricultura de
subsistência e, por vezes, analfabeta4, é apresentado por Alcalá por meio de suas cadeias
sujas, repletas de pessoas que nada entendem sobre a política stronista. Por atrás desse
país retrógrado havia uma multidão latente pelo direito de ir e vir, de pensar, de querer
ou simplesmente, de falar.
O cotidiano na escrita
No conto Memorias de una sindicalista (ALCALÁ, 1990, pp.111-119), Alcalá
descreve uma mulher que, após anos de luta por direitos trabalhistas e de liberdade de
expressão, acabou presa. Nessa história, sua intenção é demonstrar as condições das
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Termo que designavam àqueles que colaboravam com as investigações do Governo de Stroessner, mas
principalmente àqueles que denunciavam vizinhas (os), parentes e colegas.
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celas, de higiene, as torturas psicológicas e físicas. Porém, embora as condições das
cadeias fossem péssimas, as detentas – unidas – conseguem o apoio da Cruz Vermelha,
da Igreja Católica, o direito das visitas não serem molestadas durante a revista e, ainda,
conquistam os banhos de sol, prática tão requisitada quando se vive em uma cela
pequena, lotada e suja, como são apresentados os sistemas carcerários de Alcalá
(ALCALÁ, 2008). O que percebo é que além de resistir, Alcalá demonstra
possibilidades de conquistas em um tempo de perseguição. As condições de prisão
demonstradas nesse conto mostram um Paraguai atrasado também, em que
campesinas/os, que muitas vezes eram analfabetas (os) e não estavam ligados à
organização alguma acabam presas/os, torturadas/os pela simples ambição e orgulho de
alguns militares. Porém, é nesse contexto que a sindicalista presa alcança um “status”
de comando, de resistência, a qual acaba deportada para o Brasil.
Lembro que a década de 1980 é apresentada por Guido Alcalá como um tempo
de maior abertura, como ele demonstra nas vitórias obtidas pela personagem central no
conto Memorias de una sindicalista. Entretanto, a protagonista da história teria iniciado
sua luta sindical ainda na década de 1950, o que demonstra os primeiros movimentos
sindicais contra e do governo de Alfredo Strossner (NICKSON, 2010, pp.265-294).
Nessa época, o autor narra a história da sindicalista como um episódio em que os
sindicatos foram transformados em lugares de propagações de ideias do partido
Colorado, sem que qualquer outra voz fosse ouvida, como foi o caso da sindicalista. Um
tempo em que o medo começava a se “instalar” na realidade ditatorial paraguaia.
Porém, a partir de meados dos anos 1970, as reivindicações e manifestações passam a
ser mais proferidas, com menos retaliações, na escrita de Alcalá.
Guido Alcalá destaca que essa sindicalista saiu do partido Colorado no fim da
década de 1970, quando percebeu que os direitos trabalhistas não seriam atendidos,
assim como, após várias sucessões de acontecimentos, de manifestações frustradas,
notou que a ditadura não só deixava de atender às reivindicações, mas também não
permitia que ela – ou outras (os) - se manifestasse. Porém, o que tange aos aspectos
diretos sobre a ditadura militar é o fato de Alcalá demonstrar por meio da vida da
sindicalista a contestação dos direitos trabalhistas que foram publicados na década de
1960 (NICKSON, 2010, pp.265-294), exatamente à época de fortalecimento do regime
stronista: o momento em que Alfredo Stroessner transformou os sindicatos em lugares
de propagações das ideias de seu partido “Colorado”, além de frear as reivindicações e
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manifestações que surgiram nessa época. Um tempo em que o medo começava a se
“instalar” na realidade ditatorial paraguaia.
Na trilha da escrita de Alcalá: um dever, um ressentimento ou uma memória?
Nesse artigo, não objetivo elucidar ou chegar à conclusão sobre a veracidade dos
dados, histórias ou fatos narrados nos contos. Analiso que “a poesia é antes de tudo uma
reflexão” (BRESCIANI & NAXARA, 2004, p.154), um modo de refletir sobre uma
história mal contada – ou vista apenas sob um ângulo – sobre as ambiguidades de um
processo histórico que compreende toda uma população, atingindo-a duramente no que
se refere aos seus direitos. A poesia é uma voz, um meio de falar o que não se pode, o
que está calado. Para Guido Alcalá, o conto foi um meio literário de manifestação tão
explorado, devido ao descaso que a censura paraguaia tinha para com esse gênero, já
que considerava este uma escrita com ausência de características da realidade,
romanceado e sem “segundas intenções” (ALCALÁ, 2008).
As ruínas da literatura mostram ações de homens e mulheres, com uma violência
que traz tristezas à história; porém, é necessário voltar a essas ruínas, nessas ações, a
fim de ver os (as) outros (as) que foram derrotados (as) ou vitoriosos (as), enfim, de
transformar esses casos em memória para que não se repitam, para que não se
perpetuem. Como afirmei, as ruínas simbolizam a derrota, mas também lembram a
resistência. Sendo isso uma das premissas da análise sobre a literatura de Guido Alcalá
para esse artigo, como relacionar a sua escrita com a sua memória, a sua vivência?
Assim como, de que forma é possível compreender a sua escrita, isto é, é um
ressentimento, um sentimento de “dever da memória”?
Não é apenas ver a literatura de Guido Rodriguez Alcalá como algo que está em
ruínas, ou somente algo que apresenta resquícios de alguns fatos, mas sim, as ruínas
apresentadas sobre o Paraguai, sobre uma história oficial, mal contada e que deixou
muitos de seus personagens às margens dela. É outra história, uma estratégia, uma
resistência. As poesias, os contos e os romances tratavam-se de alternativas para aqueles
que não podiam escrever em um jornal, um livro ou uma revista vendida em bancas.
Para esse trabalho, a escrita de Alcalá é algo que denuncia crimes que foram cometidos
em nome do progresso do país; é uma literatura que gerou imagens, gestos e sentidos de
fatos que foram negados ou deixados de lado propositalmente.
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A história do século XX está marcada por vestígios, por uma avalanche de
testemunhos, memórias e histórias orais. Analisando o arquivo reunido sobre Guido
Rodriguez Alcalá, passei a questionar como poderia dar a essa “voz” o seu lugar, isto é,
como daria a ela a sua oportunidade, problematizando e também a questionando. Para
Paul Ricoeur, o testemunho é uma transição entre a memória e a história; além disso, o
fato de ser vítima ou de falar sobre a vitimização (RICOEUR, 2007) – no caso de Alcalá
– pode dar um caráter de veracidade e de autoridade, os quais devem ser argumentados
por nós historiadores. Por outro lado, François Hartog frisa o fato de a História ser
muitas vezes contada pelo lado vencedor, porém, por um breve período, já que a história
dos vencidos também marca o seu lugar posteriormente (HARTOG, 2011, pp.203-251).
A ideia de Hartog pode ser compreendida se analisarmos que, a partir da década
de 1970, houve um aumento significativo de instituições e grupos preocupados em
trazer à tona os mais diversos tipos de memória, como entrevistas gravadas, fotos e
documentos transcritos (HARTOG, 2011, pp.203-251). Importante ressaltar que é nesse
período também que a historiografia tem suas metodologias, fontes e ideias revisitadas,
ou seja, os chamados excluídos da História (mulheres, negros, crianças, entre tantos
outros grupos) passam a ser temas de análises, por meio de fontes muitas vezes
desconsideradas antes, como processos judiciais, diários, biografias, cartas. Porém, se
por um lado temos a epistemologia da história sendo revisitada, é preciso ver que a
memória evocada pelos grupos citados por François Hartog, como os da Fundação de
Steven Spielberg (HARTOG, 2011, pp.203-251) tinham por intenção, ao fundar seus
centros memoriais, tornar os seus “documentos” testemunhais como onipresentes,
autênticos, verdadeiros. O historiador nos lembra de que a (o) visitante, ao chegar ao
centro, poderia escutar e ver depoimentos, como se estes fossem a versão real do fato.
Considerando tanto o problema apontado por Hartog de analisarmos apenas um lado da
História ou atentarmos nossos olhares demais às fontes memoriais, como se delas
irradiassem a verdade tão buscada, nós, historiadoras (es), temos por incumbência não
somente procurar as várias versões de uma história, mas também considerar qualquer
vestígio que possa levar-nos a uma constatação justa. É sob essas premissas que a
memória deve ser problematizada, ou seja, junto a outras, vista como ressignificação no
presente e com pretensão de verdade. A literatura como fonte não está livre dessas
condições.
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Ao passo de um fortalecimento da noção de memória para a escrita da história, é
preciso considerar outras ideias de Paul Ricoeur. Para este filósofo, a memória não
existe sem a história e vice-versa, já que a memória é a fonte do registro historiográfico
(RICOEUR, 2007). Mas, uma fonte deve ser devidamente analisada, localizada em seu
lugar de produção, de conteúdo. Ainda sobre a memória, Paul Ricoeur escreve em seu
livro Memória, História e Esquecimento sobre a eterna desconfiança que nós,
historiadoras (es), temos sobre ela. Isso se deve em função do seu caráter imagético, isto
é, muitas vezes é confundida com a imaginação ou a ficção criada através de nossa
imaginação. Nesse sentido, não haveria como ter credibilidade em fontes relativas à
memória.O que o filósofo defende é o uso da imaginação pela memória.Para Ricoeur, a
memória deve ser analisada não como uma representação presente de uma coisa que
está ausente, mas – fundamentado em Aristóteles – como algo que foi anteriormente
percebido e passa ser lembrado no presente, auxiliado pela imaginação (RICOEUR,
2007). O presente, por sua vez, contamina a lembrança com suas ideias atuais,
reformulando o sentido dado ao fato lembrado.
A literata Beatriz Sarlo nos dá um exemplo bastante propício sobre isso ao
analisar a carta escrita pelos Montoneros, durante o sequestro do Presidente da
Argentina, Aramburu, na década de 1970 (SARLO, 2005). Segundo a autora, mesmo a
carta tendo sido escrita no dia posterior ao acontecido, os sequestradores, ao escreverem
o documento, modificaram a ordem dos acontecimentos, a fim de propiciar – a eles, no
caso – uma heroicização ao narrarem ora em primeira pessoa, ora em terceira pessoa, e
utilizarem leituras de Cortázar ou de Barthes para dar efeito de realidade, entre outros
(SARLO, 2005). O que a autora considera é que a carta é escrita depois do fato já
consumado, isto é, da morte do presidente, mostrando que aquele acontecimento dava
uma nova ordem na política argentina.
Na carta escrita pelos Montoneros é possível ver como a memória sofre uma
reordenação no presente, isto é, no momento em que ela é evocada. Nesse sentido, a
memória – que é do passado e não da imaginação, já que esta não tem compromisso
com algo que ocorreu – pode ser vista como uma prática discursiva de rememoração
(RICOEUR, 2007), cuja intenção é falar sobre algo que não é esgotável, já que toda vez
que for evocada, a partir do presente, pode ser construída de acordo com os novos
interesses. Essa ideia não retira a credibilidade da memória, enquanto fonte para a
história, porém nos adverte sobre os seus enganos e os cuidados que devemos ter; um
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procedimento que qualquer fonte exige. Precisamos da memória para compreender o
passado e a pretensão daquela em ser real, em ser a “verdadeira” história deve ser
contraposta à ideia de que a lembrança naquela fonte, seja uma entrevista ou um conto,
refere-se a um acontecimento (RICOEUR, 2007). E é neste que nós devemos deter
nossos olhares.
Nesse sentido, considero que os contos de Alcalá podem ser vistos como uma
escrita com referentes, ou seja, baseados em história conhecidas ou mesmo da memória
do autor, tanto em seu período de exílio, o qual pode ter instigado mais ainda seu
repúdio à ditadura militar, quanto em suas passagens pelo Paraguai. Características que
não podem ser deixadas de lado ou esquecidas são o fato de Alcalá reorganizar sua
memória no momento em que ela é lembrada, seja na entrevista ou na própria escrita.
Guido Alcalá é um homem que pôde utilizar a escrita para denunciar não somente os
abusos sofridos por ele, mas também de toda uma população, como afirma na seguinte
citação:
– [...] tenho contos como casos reais. Por exemplo, tenho em francês,
que se chama “Glória”, é um caso real. E o assunto é assim: [...] Bom,
havia um militar que se chamava [...]. Era ele que se encarregava de
estratégia de campo, para apresentar aos militares. Havia uma
senhorita, uma garota pobre de uns treze, catorze anos [...]. A
professora interessou-se em ajudar [...] a professora foi torturada e
passou por maus momentos, porque mexeu com quem não devia
mexer. (ALCALÁ, 2008)
Nesse contexto, laços de identificação com as histórias, por mais que não fossem
diretamente as de Guido Alcalá, acabavam sendo compartilhadas em sua escrita. Na
citação, o autor afirma que se baseava em acontecimentos reais ao escrever sobre
denúncias de casos de tortura, prisões sujas e sem condições de higiene durante a
ditadura militar, não diretamente citando nomes ou datas, mas processos históricos e
culturais. Histórias que, por sua vez, nem sempre eram conhecidas de Alcalá, mas sim
contadas a ele.
Dentro das discussões decorrentes da memória,
o que considero é que os
anos de 1970 trouxeram à tona a possibilidade de nós, historiadoras (es), contestarmos a
história oficial, ou de parte de uma população, a fim de compreender o outro lado, nesse
caso o dos (as)vitimados (as), como o que ocorreu com Guido Rodriguez Alcalá.
Entretanto, nem tornar o conto como verdadeiro, nem condená-lo como ficção dará a
escrita de Alcalá o seu lugar de direito.
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Segundo Luciana Heymann, a expressão “dever de memória” foi bastante
lembrada e argumentada nos últimos anos. Sobre ela, a historiadora afirma que passou a
ser mais discutida a partir da década de 1990, significando que as memórias de
sofrimento e opressão geram obrigações, por parte do Estado e da sociedade, em
relação às comunidades portadoras dessas memórias (HEYMANN, 2006) Essa ideia
está intimamente ligada a “onda” de discursos memoriais que foi incentivada já a partir
de 1970, principalmente relacionada com as questões do Holocausto na França. Sobre
essa época, o historiador François Hartog o mundo, pós Segunda Guerra e outros
acontecimentos posteriores, tem presenciado a proliferação de memória (HARTOG,
2011, pp.203-251).Para ele, o testemunho passou a ser visto como um novo gênero
literário seja transcrito, gravado ou arquivado em algum museu de resistência. Ainda em
uma discussão epistemológica, o autor fala sobre a diferença de histore
mantus(HARTOG, 2011, pp.203-251), cujo significado do primeiro é “a função do
social da memória”, isto é, refletida em relação ao seu contexto, mesmo que lembrada e
persuadida pelo presente; é nessa que o historiador (nós) deve concentrar sua análise.
Já a historiadora Luciana Heymannsugere que essas memórias são símbolos de
resistência, da memória das vítimas e, devido a esse motivo, não podem ser esquecidas
a fim de uma reparação ou justiça e também para lembrar ou homenagear (HEYMANN,
2006). O dever da memória tornou-se até mesmo uma expressão recorrente nos debates
sobre as guerras mundiais, processos ditatoriais, entre tantos outros que marcaram a
história do tempo presente.
Ainda sobre o dever da memória, para Pierre Ansart, após a Segunda Guerra
Mundial houve uma proliferação de literatura sobre memória, no sentido de não
esquecer o que se passou. Mas, para esse autor, o dever pode ser visto como um
ressentimento, isto é, um conjunto de reparação, de vingança, ou ainda, uma experiência
continuada de impotência (BRESCIANI & NAXARA, 2004, pp.15-36). Para o filósofo,
é possível dizer que aqueles que sofrem as mesmas atrocidades acabam por gerar um
ressentimento coletivo, o qual gera uma ideia de que são vítimas. Este processo causa
uma cumplicidade que aceita as ações dos outros, em nome do grupo. Um sentimento
que é vivido em especial, segundo Pierre Ansart, em uma reabertura democrática, como
se esta desse “um certo direito de expressão” (BRESCIANI & NAXARA, 2004, pp.1536).
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Doravante, mesmo considerando que o fim da década de 1970 e início de 1980,
o tempo de maior escrita de Guido Alcalá é uma época de enfraquecimento dos
alicerces da ditadura comandada por Stroessner, o que Alcalá fez foi registrar fatos
cotidianos de uma memória solapada, transformando sua escrita em uma ferramenta de
contestação, a fim de registrar além do queos jornais paraguaios vinham narrando.
A literatura como resistência
De acordo com Tununa Mercado, há sempre a ideia de que há algo implícito em
um texto, seja no sujeito da narração ou na pessoa do relato. Para a autora, o que ocorre
é uma transposição da escrita (MERCADO, 2009, pp.31-37), isto é, o autor reaparece
por meio dos elementos que se desdobram em um texto. O autor é o movimento do
texto, que conduz a seleção e a organização dos fatos. Nesse sentido, o texto não éuma
catarse, uma inspiração nem uma alienação do (a) autor (a); a escrita é um perder-se nos
personagens, um momento em que o (a) autor (a) acaba requisitando um espaço para si,
pois, para a literata Tununa Mercado, todo “enunciador é primariamente um eu que
pede um você e escapa por um ele” (MERCADO, 2009, pp.31-37).
O que concluo é que a literatura de Guido Alcalá é a sua memória, é sua
vivência, sem exagerar nem na noção de dever da memória, nem de ressentimento. A
escrita deve ser vista e analisada como um perdão à memória daqueles (as) que não
tiveram a oportunidade de contar, porque foram calados (as). Analisar e problematizar
essa escrita é também pedir outro perdão, a Guido Alcalá, por oferecer outra percepção
da ditadura militar.
FONTES PESQUISADAS
(Laboratório de Estudos de Gênero e Historia – UFSC)
ALCALÁ, Guido Rodriguez. Cuentos. Asunción: RP ediciones, 1993.
________, Guido Rodriguez. Curuzu Cadete: cuentos de ayer y de hoy. Asunción: RP
Ediciones, 1990.
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________, Guido Rodriguez. Entrevista concedida à Cristina Scheibe Wolff e à Joana
Maria Pedro (digital) Asunción, Paraguai, 19/02/2008. Acervo do LEGH/UFSC.
Transcrita por Isabel Cristina Hentz, Priscila Carboneri de Sena, revisada por Lorena
Zomer.
________, Guido Rodriguez. Leviatãnet Cetera, 1981.
REFERÊNCIAS
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Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
HEYMANN, Luciana. O devoir de mémoire na França contemporânea: entre memória,
história, legislação e direitos.
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI, 2002.
MERCADO, Tununa. Testemunho. Verdade e literatura. In: GALLE, Helmut et all. Em
primeira pessoa: abordagem de uma teoria da autobiografia. São Paulo: Annablume;
Fapesp, 2009, pp. 31-37.
OBERTI, Alejandra. Contarse a símismas. La dimensión biográfica enlos relatos de
mujeres que participaronenlasorganizaciones político-militares de los ´70. in:
CARNOVALE, Vera; LORENZ, Federico y PITTALUGA, Roberto (comps.). Historia,
memoria y fuentesorales. Buenos Aires: CeDInCI Editores, 2006.
NICKSON, Andrew. El Régimen de Stroessner (1954-1989). In.: TELESCA, Ignacio.
Historia del Paraguay. Assunción: Taurus, 2010, pp.265-294.
PIZARRO, M. Mar Langa. Guido Rodríguez Alcalá em el contexto de la narrativa
histórica paraguaya. Tese (Tese em História). Universidad de Alicante, 2001.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da
Unicamp, 2007.
SAGNES, SYLVIE. Uma memória compartilhada: o romance francês da guerra civil,
do êxodo e do exílio espanhóis. Florianópolis: 2011. Artigo inédito que está sendo
traduzido pela Prof.ª Dra. Joana Maria Pedro.
SARLO, Beatriz. A paixão e a exceção: Borges, Eva, Montoneros. São Paulo: Cia das
Letras, 2005.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
SEIXAS, Jacy A. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In:
BRESCIANI, Stella e NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento:
Historien – Revista de História [8] Petrolina, dez 2012 – maio 2013
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Ano IV
indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, pp.3758.
Recebido em 19 de abril de 2013
Aprovado em 5 de maio de 2013
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NAS “BATALHAS DE FLORES” NÃO FALTAVAM ESPINHOS: SILVA
JARDIM E A PRINCESA ISABEL NO CENÁRIO POLÍTICO DO FINAL DA
MONARQUIA BRASILEIRA (1886-1889)
Rafael de Oliveira Cruz1
Resumo: Em meados da década de 1880 o movimento abolicionista ganhou um amplo
destaque no cenário nacional mobilizando diversos setores da sociedade brasileira,
inclusive membros da Família Imperial. A Princesa D. Isabel, então filha e herdeira do
Imperador D. Pedro II, participou ativamente deste processo fazendo-se presente das
chamadas “batalha de flores”, bem como adornando o vestido com camélias e
escondendo escravos fugitivos no palácio. O presente artigo busca analisar o discurso
do republicano Antonio da Silva Jardim, o qual refutava a participação de D. Isabel,
enquanto mulher, em tais questões. A partir desse discurso, traçamos um painel da
situação política do Brasil no final da monarquia e a inserção das mulheres dentro do
jogo político brasileiro.
Palavras-chave: Princesa Isabel. Silva Jardim. Abolição. Monarquia.
Resumen: A mediados de la década de 1880 el movimiento abolicionista ganó un
amplio protagonismo en el escenário nacional con la movilización de diversos sectores
de la sociedad brasileña, incluyendo personas de la Familia Imperial. La Princesa D.
Isabel, hija y heredera del Emperador D. Pedro II, participó activamente de este proceso
haciendose de las llamadas “batalha das flores”, como también adornando el vestido con
camelias y escondiendo esclavos fugitivos en el palacio. El presente artículo intenta
analisar el discurso del republicano Antonio da Silva Jardim, que rechaza la
participación de D. Isabel, como una mujer, en este asunto. A partir de ese discurso
dibujamos un panel de la situación política de Brasil en el final de la monarquia y la
inserción de las mujeres dentro del juego político brasileño.
Palabras-clave: Princesa Isabel. Silva Jardim. Abolición. Monarquia.
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Mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia. Licenciado em História pela
Universidade de Pernambuco – Campus Petrolina. Professor da Rede Estadual de Ensino da Bahia. Email: [email protected]
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Ano IV
Introdução
Discutir sobre a atuação da Princesa D. Isabel (1846-1921) é um assunto que
tem merecido grande destaque a partir do final da década passada. Muito em nossa
historiografia tem se questionado do papel da Princesa Imperial do Brasil, acerca da
participação política no processo de extinção da escravidão.
É um tema que requer algumas atenções e que remetem à necessidade de
observar do ponto de vista teórico da Nova História Política, que a partir de suas
influências recebidas da antropologia, sociologia e outras correntes das Ciências
Humanas, ultrapassou as fronteiras de uma narrativa que buscava apenas declarar o
feitos de reis e heróis, mas que buscou analisar as estruturas e transformações do
cenário político, e que no dizer de Ferreira (1992:269), busca a “diversidade dentro dos
fundamentos dos poderes econômico, religioso e cultural. Levando em conta as
instituições, os homens, as idéias, ao mesmo tempo que as práticas, o simbólico e o
imaginário.” Que não seja apenas uma narrativa das estruturas, mas da relação entre a
estrutura, as instituições e o modo de pensar.
Como remete Falcon (1997:119), o estudo do político vai compreender a partir
das inserções de novas abordagens – profundamente identificadas com o subjetivo e o
imaginário – não mais apenas a política em seu sentido tradicional, mas, as
“representações sociais ou coletivas, os imaginários sociais, a memória ou memórias
coletivas, as mentalidades, bem como as diversas práticas discursivas associadas ao
poder”.
A Nova História Política busca estudar essas novas maneiras de interpretação da
realidade. Diferente da praticada no século XIX e princípios do século XX que buscava
apenas analisar a figura de “grandes personagens” – os heróis –, que poderiam ter se
destacado durante o processo e mostrados como únicos protagonistas. Para uma nova
concepção da História Política, seria necessário um estudo da relação do Estado e suas
instituições com a sociedade. Uma história que vá além de grandes nomes e
personagens. (OLIVEIRA, 2007).
A pontecialização no caso específico de D. Isabel abre espaço para um debate
para a análise do caso participação desta mulher dentro de um universo estritamente
masculino e que em torno dela circulavam idéias e expectativas que eram a chave de
manutenção de um regime. Trazendo à luz da História de Gênero, como diz Soihet
(1997), o estudo das mulheres recomenda a ampliação dos campos de investigação
histórica e as esferas de participação feminina nos campos de poder, não apenas como
meras submissas.
Michelle Perrot (1992) afirma que o termo “Poder” dentro da esfera política
possui uma predominância estritamente masculina. Quando essa palavra passa a ser
pronunciada no plural, equivalendo a “influências”, as mulheres terão a sua devida
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participação, isso principalmente, no Ocidente Cristão. Elas estão inseridas dentro do
poder privado, no familiar e até mesmo, dentro das relações sociais. São pertencentes ao
imaginário masculino.
Entretanto, em algumas ocasiões – raras, é verdade –, a mulher deixou os
bastidores da política e assumiu um papel central e incisivo. Durante o século XIX,
sejam como soberanas (D. Maria II, de Portugal; D. Isabel II, de Espanha, Vitória I, do
Reino Unido; Lilioukalani I, do Havaí; e Guilhermina I, dos Países Baixos), ou como
Regentes (D. Maria Cristina das Duas Sicílias2, Rainha de Espanha; D. Maria Cristina
da Áustria, Rainha de Espanha3; Emma de Waldeck-Pyrmont, Rainha dos Países
Baixos4; e D. Isabel, Princesa Imperial do Brasil). (BARMAN, 2005).
Pelo período em que foi herdeira do Trono Imperial, e por três vezes, Regente do
Império, D. Isabel exerceu duas funções que poderíamos descrever como masculinas e
femininas. As femininas seriam aquelas tidas como “naturais” às mulheres do século
XIX: era filha, esposa e mãe. Dentro da esfera masculina, a Princesa lidou com as
funções de Estado, o exercício do poder político, longe de ser atribuída uma mera
influência, mas como protagonista do papel.
Barman (2005) analisa a dificuldade entre a discussão do exercício de poder
atrelado ao gênero. Segundo o autor, o poder é exercido por um indivíduo ou um grupo,
que pode e consegue fazer com determinado grupo de pessoas façam algo que ele
próprio não faria. O poder é construído, não nasce em determinada pessoa, e ele obtém
sucesso a partir da forma como controla os indivíduos e os recursos, que pode ser desde
a com a força física até o domínio das línguas.
O poder está associado a símbolos, uma que construção que é assimilada
culturalmente e fica impregnada em mentes e corações de grupos sociais. Aliado ao
poder deve-se vir o carisma – não necessariamente obrigatório, mas extremamente
comum dentro da realeza. Geertz (2006) afirma que o carisma que a realeza exerce
dentro da população não nasce com ela, mas é construído e é necessário fazer com que
as camadas sociais identifiquem-se com ela. Cardoso (2012) afirma que o exercício do
poder é uma troca, uma crença partilhada da autoridade, formando os mecanismos de
legitimidade de poder.
A participação feminina na política oitocentista
Antes de nos debruçarmos sobre a participação da Princesa Imperial no jogo
político brasileiro, é preciso que façamos um breve balanço da participação feminina da
2
Viúva de D. Fernando VII, assumiu a regência durante a menoridade da filha, a futura D. Isabel II.
Viúva de D. Afonso XII, assumiu a regência durante a menoridade do filho, o futuro D. Afonso XIII.
4
Viúva de Guilherme III, assumiu a regência durante a menoridade da filha, a futura Guilhermina I.
3
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política imperial. Consideradas cidadãs passivas (CARVALHO, 2010), as mulheres
estavam excluídas do cenário político nacional, já que não possuíam direito de voto e de
representatividade.
Ainda que em meados do século XIX vão existir uma série de transformações,
como o incremento da vida urbana, que oferece novos espaços de convivência e
sociabilidades. Nesse meio, surge a figura da mulher burguesa e uma valorização dos
espaços de intimidade e maternidade. Era um novo mundo com aspectos burgueses que
marcam a formação de um novo aspecto social no Brasil (D’INCAO, 2008). Entretanto,
no que tange aos aspectos políticos, a mulher ainda permaneceu afastada. Como afirma
Costa (2010), as mulheres brasileiras não tinham acesso à educação, e dessa forma, não
dispunham de meios para a sua emancipação como as oportunidades de trabalho, e nos
direitos ao sufrágio e à cidadania.
O Brasil, sendo uma monarquia, trouxe à América um dispositivo distinto: a
hereditariedade de poder. No caso da Princesa, como herdeira e sucessora legítima de D
Pedro II, estava inserida “acidentalmente” neste processo.
Através dos séculos, muitas mulheres exerceram o poder político
através de suas conexões com homens politicamente importantes.
Nascer ou casar-se em uma família real é comprovadamente um dos
meios mais antigos pelos quais algumas mulheres atingiram o poder,
pois que em várias sociedades era permitido às mulheres tanto quanto
aos homens o exercício do governo. Monarcas do sexo feminino
nunca foram uma novidade na Europa ou no antigo Oriente próximo.
O caso único da existência de um império no Brasil possibilitou a
existência de mulheres governantes na forma tradicional européia,
diferentemente do resto da América Latina. (HAHNER, 1978:75).
Apesar desta especificidade, a mulher não deixaria de ser um elemento estranho em
nossa política monárquica. Não importamos o costume franco-alemão da lei sálica, mas
para José de Alencar (1867), isso não passou de um ajuste feito pela tradição ibérica
para que a coroa não recaísse em mãos de um parente afastado e estranho.
Barman (2003) diz que essa tradição era uma continuidade do que já existia em
Portugal, mas assegura que apesar de D. Isabel pertencer à minoria privilegiada do
Império, é importante enfatizar as relações de seu gênero e sua classe ao processo de
compreensão do Brasil.
As Regências e o movimento abolicionista
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As ocasiões e que a Princesa Imperial assumiu a Regência, somam-se três anos e
meio. As duas primeiras passaram quase despercebidas. Na primeira, apesar de D.
Isabel ter assinado a Lei de Ventre Livre, ela não criou um mecanismo de administração
de diferisse do pai ou que chamasse a atenção (DAIBERT JR., 2004). De acordo com
Barman (2003), um dos motivos para que a Princesa não buscasse criar um estilo
próprio na época, estava no fato do Terceiro Reinado mostrar-se distante e o Imperador
ainda ser relativamente jovem.
Também era evidente que a Princesa tinha outras preocupações mais urgentes: a
maternidade. Durante dez anos, os condes d’Eu tentaram produzir um herdeiro
(LACOMBE, 1989). Não conceber um filho acarretava dois problemas à D. Isabel;
primeiro que nela residia o princípio da continuidade monárquica e segundo, a sua
própria satisfação pessoal ao realizar o que era tido como uma obrigação feminina: ser
mãe. (BARMAN, 2003).
O afastamento dos assuntos políticos só criou um ambiente desfavorável à
Princesa, e na segunda Regência, além dos problemas pessoais ligados à realização do
sonho da maternidade, estavam os problemas sociais do Brasil como a seca do
Nordeste, a crise dos bispos e a necessidade de reformas profundas. A segunda
Regência foi marcada ainda pelo descaso do gabinete com a Regente. O ministério
simplesmente travou, não queriam submeter-se à liderança de uma mulher, prefeririam
esperar a volta do Imperador. (BARMAN, 2005). Para o Positivismo no século XIX, era
“natural” a crença na inferioridade feminina, e o estabelecimento do poder na esfera
masculina. À mulher caberia unicamente o espaço privado. (ALMEIDA, 1998).
O período que vai da primeira Regência até a década de 1880 marca a ascensão
do movimento republicano e do abolicionismo. Embora o republicanismo jamais tivesse
conseguido uma popularidade entre as pequenas camadas urbanas e rurais, já que era
uma proposta vazia de questões sociais ou mesmo da abolição (BASBAUM, 1986),
serviu para criar um ambiente de desestabilização da estrutura monárquica já instável. O
outro, o abolicionismo, crescera principalmente depois do conjunto de leis – Eusébio de
Queirós, Rio Branco e Saraiva-Cotegipe –, que não resolviam de imediato a questão do
elemento servil. É nesse quadro que iniciamos a participação da Princesa Imperial no
movimento e os antagonismos e simpatias causadas.
A Terceira Regência e a causa abolicionista – preparando a futura Imperatriz
A Princesa passou alguns anos na Europa após o final da Segunda Regência. Foi
uma maneira de se afastar um pouco das desavenças ocorridas no Brasil. Quando D.
Isabel retornou, o Brasil era diferente no que se refere ao trato com as mulheres.
Decerto que quando esteve na França nunca nutriu nenhuma simpatia pelo movimento
feminista. Ainda assim, em território brasileiro as mulheres passaram a cursar o nível
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superior e novos debates acerca dos papéis femininos na esfera pública passaram a ser
foco de atenções. (BARMAN, 2005). O que não se punha em questão era a barreira
imposta às mulheres dentro do mundo político. Ambiente que a Princesa era uma
intrusa. (LYRA, 1964).
A partir de 1881, ficou iminente a possibilidade do falecimento do Imperador, e
a conseqüente ascensão de D. Isabel ao trono. (BARMAN, 2005). Como forma de
tornar-se conhecida pelos brasileiros, a Princesa Imperial e o esposo empreenderam
inúmeras viagens pelo território brasileiro. D. Isabel havia sido preparada desde
pequena para substituir D. Pedro II, e tinha plena preocupação com a sua imagem.
(DAIBERT JR., 2004). E durante essas viagens, através de cartas e diários, ela
construiu o seu perfil de futura governanta.
As diversas aparições públicas faziam com que a população se familiarizasse
com a imagem da futura Imperatriz do Brasil. (DAIBERT JR., 2004). E mesmo que ela
e o marido não fossem dotados de uma popularidade tão grande quanto o Imperador,
isso não fazia com que as visitas não fossem um motivo de festa e curiosidade para a
população. (MESQUITA, 2008).
Para determinados círculos políticos brasileiros, a Inglaterra era o modelo
político a ser seguido, e a Rainha Vitória I, a fonte de inspiração para a Princesa.
(DAIBERT JR., 2004). Entretanto, para Calmon (1941), D. Isabel jamais iria querer ser
uma governante parecida com a soberana britânica.
D. Isabel fazia questão de mostrar-se como católica, e não tinha medo de tecer
críticas ao comportamento do Imperador através das inúmeras cartas trocadas. Para
Foucault (2006), escrever cartas é uma maneira de se expor, de fazer aparecer sua
própria imagem perto de outra pessoa. Através de uma carta, o remetente oferece ao
destinatário, a maneira como enxerga a si mesmo. Segundo Daibert Jr. (2004), essa
ligação de D. Isabel com os setores religiosos poderia ser um bom veículo de
propaganda e sustentação do Terceiro Reinado. Para ele, a religiosidade da Princesa não
significava despreparo ou alienação, só não condizia com a expansão do
anticlericalismo do século XIX.
A partir de 1884, o abolicionismo retoma o fôlego. A Lei do Ventre Livre
mostrou-se ineficaz. O movimento abolicionista reorganiza-se a via na figura de D.
Isabel e do Conde d’Eu aliados naturais para a causa. (BARMAN, 2005). De fato, o
único membro da Família Imperial que havia decididamente mostrado como
abolicionista tinha sido o Príncipe Consorte, desde que assinou o decreto pondo fim a
escravidão no Paraguai. (ESTRADA, 2005). Nesse primeiro momento, para outros
como o Barão de Cotegipe, a herdeira do trono não deveria envolver-se com essa
questão. (BARMAN, 2005).
Ainda em 1884, as Províncias do Amazonas e do Ceará já haviam libertado os
seus cativos. Em junho do mesmo ano, assume o gabinete Dantas, com a proposta de
libertar os escravos sexagenários. (ESTRADA, 2005). Segundo Andrade (1988), Dantas
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já havia sugerido a proposta de libertação de todos os escravos até 31 de dezembro de
1889, dando tempo para que os proprietários organizassem suas lavouras até a extinção
completa do elemento servil. De acordo com Afonso Celso (1998), a proposta buscava
ampliar o fundo de emancipação – que havia fracassado após a Lei do Ventre Livre.
Segundo Carvalho (2007), o abolicionismo era irreversível, e transformou-se no
primeiro grande movimento nacional de opinião pública. As fugas de escravos eram
estimuladas e o crescimento do número de quilombos era espantoso. Nesse contexto
subversivo que a Princesa irá se aproximar da causa abolicionista. De acordo com
Daibert Jr. (2004), a construção da imagem de D. Isabel enquanto governante
abolicionista poderia angariar bons frutos à futura Imperatriz do Brasil. Entretanto, a
mesma se relacionou com segmentos abolicionistas moderados como Joaquim Nabuco,
André Rebouças e José do Patrocínio, que desejavam um movimento pacífico, dentro da
legalidade e que não ocasionasse uma mudança brusca no sistema.
D. Isabel sabia muito bem o que seu novo papel suscitava. Como medida para
afirmar-se como futura Imperatriz, mudou-se para o Palácio de São Cristóvão.
(BARMAN, 2005). A causa abolicionista passava a exigir da Regente uma posição mais
agressiva pela causa. Assumindo o comando do país pela terceira vez, a Princesa
Imperial tornava-se alvo das esperanças abolicionistas. Não era mais suficiente apenas
as alforrias e atitudes simbólicas. Era necessário extinguir o elemento servil.
(DAIBERT JR., 2004). O Brasil que D. Isabel assumiu em 1887 estava completamente
transformado.
Com tudo isso, e mais o que se esperava pudesse acontecer na
ausência do Imperador, a regência da Princesa Isabel inaugurava-se
sob as mais sombrias perspectivas. Não se tratava de por em dúvida
seus predicados de discernimento e de senso político para assumir a
chefia de Estado, predicados que já dera provas quando lhe coubera
por duas vezes a responsabilidade do poder, sendo que da primeira ela
era bem mais moça do que agora e se iniciava, por assim dizer, na arte
de governar. O que se dizia era que as condições do país se
apresentavam agora bem diferentes, bem mais delicadas, e os
problemas que ela teria que resolver eram bem mais complexos.
(LYRA, 1964:168).
Para Barman (2005), o abolicionismo despertou na Princesa um gosto enorme
pelos negócios públicos e pela arte de governar. Envolvendo-se diretamente no que é
chamado de “batalha de flores”, que era uma forma de angariar fundos para a
emancipação de cativos. Segundo Daibert Jr. (2004), a referida batalha aproximava a
Regente dos abolicionistas. De acordo com Silva (2003), D. Isabel participou
ativamente ajudando os refugiados no quilombo que ficava às margens da praia do
Leblon, no Rio de Janeiro. Chegou a interceder perante o Imperador para que a polícia
não invadisse a comunidade.
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Silva Jardim, reconhecido líder republicano se usa do fato para desmerecer a
figura de D. Isabel, dizendo que a mesma havia transformado o palácio em um
quilombo. Chamava a Princesa de festeira, tocando principalmente no papel que as
mulheres deveriam exercer na sociedade. E é nos discursos desse personagem que nos
detemos no presente trabalho. Antônio da Silva Jardim (1860-1891) era um fervoroso
admirador das idéias positivistas de Augusto Comte. Considerava que a república
deveria vir através de um processo revolucionário, o que o indispôs com inúmeros
líderes republicanos por o considerarem demasiadamente radical. (FARIA, 2008). Um
de seus lemas era: “abdicação, ou deposição; exílio ou execução”. (JARDIM, 1978:85).
Em um dos discursos, proferido na cidade de Santos em fevereiro de 1888, Silva
Jardim faz um traçado sobre a dinastia brasileira e quando começa a tratar da Princesa
Isabel, que, antes de qualquer coisa, o primeiro problema dela é o gênero.
É-lhe o primeiro e original obstáculo o seu sexo. Meus senhores, no
conjunto de sua sábia legislação, a Nação francesa tinha incluído a lei
sálica, que impedia à mulher de subir aos degraus do trono. Bem
avisada andou; pois a natureza, e depois a sociedade, por uma larga
experiência sempre justificada, demarcaram a cada sexo as suas
funções na economia humana: - próprias as de conselho e amor à
Mulher, as de comando e feitos ao varão. Desde que a Mulher sai fora
de seu papel – se há dito – deslustra o seu sexo, e consegue apenas
tornar-se um mau homem... Brilhantes exceções aponta-nos a
História; mas quem não vê que entre essas não pôde alinhar-se a nossa
infantil princesa? (Op. Cit., 1978:58-59).
Jardim segue dizendo que D. Isabel jamais poderia ser comparada à heróica
Joana d’Arc ou mesmo à Catarina da Rússia, que começou o reinado com mãos de ferro
e mandando matar o esposo. O republicanismo de Jardim afasta qualquer possibilidade
de aceitar uma mulher como dirigente máxima do Brasil. Segundo Barman (2003), o
republicanismo brasileiro era inspirado no republicanismo francês, que se opunha a
qualquer tipo de participação feminina nos negócios públicos. Para eles, as mulheres
seriam fiéis aliadas da Igreja e da Monarquia.
Decerto que o discurso contra a presença feminina não era exclusivamente
republicano, na década de 1860 quando se discutia no Senado, a possibilidade da
Princesa Imperial participar do Conselho de Estado, o senador Silveira da Mota
argumentava que em todo o “mundo civilizado [o sexo feminino] é excluído dos cargos
públicos” (apud RODRIGUES,1976:111).
José de Alencar (1867) afirmava que a mulher apesar de em nossa legislação ser
permitido o posto máximo de Imperatriz, ela não tinha o direito de participar de atos
majestáticos que eram próprios à virilidade, como o alto comando das tropas do
Exército e da Marinha. É o que ele chama de impossibilidade de inversão dos sexos.
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Segue enfatizando que a Imperatriz pode ser a primeira pessoa da Nação, mas em casa,
o marido é o seu senhor. Posteriormente, Alencar argumenta que a mulher sim pode
estar bem preparada para as funções de Estado, mas a sua natureza o impede de
participar de tais assuntos
Uma senhora, por mais prepara que esteja para o governo do estado,
não pode ser um auxiliar útil da administração. Não convém mesmo
que ela se sobrecarregue e fatigue seu espírito com pequenos assuntos
de expediente, que podem inspirar-lhe o tédio da ciência de governo.
(Op. Cit.,1867:10).
Embora o texto de Alencar tenha sido publicado em uma época bem anterior à
qual estamos nos debruçando no presente trabalho, percebemos que já era de muito
tempo que a insatisfação que o destino dos negócios políticos do Brasil estivesse em
mãos femininas. Mattos (2012:26) coloca as representações na imprensa para esse
momento:
O jornal O Mequetrefe publicou, em julho de 1887, uma charge em
que D. Isabel agia como estadista ao mesmo tempo em que cuidava
dos assuntos domésticos, dando a entender que a regente não percebia
– ou não queria perceber – a trama política ao seu redor. A intenção
era pôr em dúvida sua capacidade de governança. E mais: sutilmente,
o jornal questionava a presença de mulheres em assuntos de âmbito
público, postura bastante comum na época. A princesa imperial sofria
constantes ataques de parte da imprensa, que a retratava como
submissa ao seu marido, conhecido pejorativamente como “o francês”.
De forma inclemente, o jornal O Pharol afirmava, em 5 de junho de
1888, que “ela faz o que o marido quer e não o que é desejo do povo;
faz mais – afronta os interesses do povo para afagar os desejos do
marido”. As ácidas palavras do texto enfatizam a questão da
submissão feminina. Não se faz alusão clara a questões políticas,
econômicas ou sociais. O artigo busca desqualificar D. Isabel a partir
de sua “frágil condição feminina”. Na mesma linha, o jornal Gazeta
Nacional se transformou num dos maiores críticos da monarquia e de
sua possível futura imperatriz. Em artigo datado de 4 de dezembro de
1887, volta a destacar a fragilidade feminina e a religiosidade
extremada de D. Isabel.
São dois pontos negativos na figura da herdeira do trono: o gênero e a
religiosidade. Voltando a Jardim, outro ponto preocupante na figura da Princesa era a
sua participação com o movimento abolicionista. A Princesa transformou o Palácio
Imperial em uma espécie de quilombo, recebendo e escondendo negros fugidos, em um
esquema com a participação de André Rebouças, João Clapp, Joaquim Nabuco e José
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do Patrocínio. (SILVA,2003). Rui Barbosa criticava esse ato dizendo que a Regente
realizava o acoitamento de negros.
No discurso proferido no Rio de Janeiro, em 22 de setembro de 1888, Silva
Jardim criticou a Princesa por ter acoitado os negros no Palácio quando ela poderia por
simples vontade libertar todos os escravos do cativeiro (1978:208). Eduardo Silva
(2003) comenta a visão simplista do propagandista republicano, quando os destinos da
abolição não estavam apenas nas mãos da coroa.
D. Isabel por diversas vezes em 1888, assumiu um papel incisivo na propaganda
abolicionista. Adornava o vestido e enfeitava os salões com camélias brancas – a flor
símbolo do abolicionismo –, promovia concertos beneficentes para angariar fundos para
a emancipação e descontentava cada vez mais a classe política brasileira.
José do Patrocínio viu com entusiasmo a participação da Princesa, uma mulher,
dentro do movimento abolicionista. Para Silva Jardim, se tratava de uma imoralidade e
uma leviandade. Chamava a Regente de festeira, ao fazer atividades que em sua
concepção eram pueris e que de nada serviam, além de retirar a mulher de seu espaço
obrigatório: o lar. Diz Silva Jardim:
Mas quando estes, para a moral do povo, verdadeiros escândalos,
partem daquela que nos promete governar, não é justo que se lhe diga
que os brasileiros são homens sérios, e repreenderiam suas esposas
por graças e brinquedos deste jaez? Que, portanto, homens sérios,
querem ser seriamente representados, e não por quarentonas que
desconhecem a própria idade, o próprio sexo, a própria posição?...
Batalha de flores! Cuidado, Senhora! Que estas flores não se vos
tornem demasiado encarnadas, que elas não vos tornem vermelhas!
(1976:82).
Segundo Silva (2003), parece que as camélias brancas incomodavam muito a
Silva Jardim. A ostentação do símbolo abolicionista por parte de D. Isabel foi visto
como uma atitude escandalosa, além dela ter refugiado negros fugidos.
A princesa, até então uma jovem senhora educada, religiosa e discreta,
manifestou-se abertamente abolicionista, cercou-se de gente
abolicionista e rompeu com todas as conveniências políticas da
neutralidade. Que ninguém se engane com aquele ar doce e maternal
de certa iconografia, a jovem princesa tinha opiniões fortes. Sua
intervenção na vida política com essas “camélias do Leblon” e as
batalhas de flores simplesmente pôs por terra o Ministério
conservador, que justamente, lutava com as maiores dificuldades para
combater a agitação abolicionista e/ou republicana. A comoção foi
enorme porque todo mundo conhecia a simbologia das flores. André
Rebouças anotou em seu diário íntimo, no mesmo dia, como que
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deslumbrado: “12 de fevereiro. Primeira batalha de flores em
Petrópolis. Primeira manifestação abolicionista de Isabel I”. André
Rebouças sabia o significado imenso daquelas camélias. [...] depois da
batalha de flores e das camélias do Leblon, a princesa tomou as rédeas
da história e fez-se rainha antecipada, era já Isabel I, a Redentora.
(SILVA, 2003:36).
E tais atitudes desagradaram a muita gente. Inclusive o barão de Cotegipe, então
Presidente do Conselho de Ministros e ferrenhamente escravocrata. Assim que assumiu
a Regência, D. Isabel não aceitou o pedido de demissão do gabinete, conforme mandava
a prática parlamentar. (BARMAN, 2005). De acordo com Lyra (1964), a Princesa não
tinha nada contra a figura do Presidente do Conselho de Ministros, mas não admitia a
forma como ele tentava frear a abolição. Para Andrade (1988), Cotegipe era um
ferrenho monarquista, mas este acreditava que a maneira de conter o avanço do
republicanismo seria batendo de frente, nem que fosse à força. Não acreditava no
diálogo, na reforma ou na concessão. O resultado para ele a para a Monarquia acabou
sendo drástico. No começo de 1888, o ministério tornava-se um obstáculo a ser
derrubado. Os próprios filhos de D. Isabel publicavam um jornalzinho abolicionista.
(DAIBERT JR., 2004).
Segundo Carvalho (2008), Cotegipe afirmava que a atitude da Regente era
escandalosa. Logo no início de 1888, a polícia prendeu um oficial reformado que estava
embriagado causando confusões. Os militares puseram-se ao lado do colega, e o barão
defendeu o chefe da polícia. D. Isabel ansiosa em demitir o chefe do gabinete, ficou ao
lado dos militares. O barão pediu demissão.
A Princesa escolheu o pernambucano João Alfredo Correia de Oliveira, que
havia participado do gabinete Rio Branco de 1871-1875. Deu-lhe liberdade para definir
o gabinete e o novo programa de governo. (BARMAN, 2005). Para os abolicionistas,
era uma demonstração de força contra os escravocratas. (DAIBERT JR., 2004). Em sua
Fala do Trono, em 3 de maio de 1888, D. Isabel foi incisiva:
A extinção do elemento servil, pelo influxo do sentimento nacional e
das liberdades particulares, em honra do Brasil, adiantou-se
pacificamente de tal modo, que é hoje aspiração aclamada por todas as
classes, com admiráveis exemplos de abnegação da parte dos
proprietários. Quando o próprio interesse privado vem
espontaneamente colaborar para que o Brasil se desfaça dessa infeliz
herança, que as necessidades da lavoura haviam mantido, confio que
não hesitareis em apagar do direito pátrio a única exceção que nele
figura em antagonismo com o espírito cristão e liberal de nossas
instituições. (ISABEL, 2006:136).
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Ano IV
Para Afonso Celso (1998), as palavras da Regente provocaram um entusiasmo
no Parlamento. Com um programa já definido e confiante de que a abolição era uma
aspiração nacional. (DAIBERT JR., 2004). A lei número 3.353, mais conhecida como
Lei Áurea, assinada no tão comentado 13 de maio de 188, trazia um forte impacto na
sociedade. José do Patrocínio foi um dos grandes entusiastas da atitude da Princesa,
escreveria dando a ela o epíteto de “a Redentora”. (GUILHON, 2005).
Como pode-se observar, a assinatura da Lei Áurea causou um grande
impacto sobretudo no que diz respeito às opiniões, valores e
esperanças que alimentavam por décadas o sonho de liberdade. Mas
tanto nas críticas quanto nos elogios apresentados por Patrocínio, a
condição feminina de Isabel aparece como pressuposto explicativo de
seus atos. A esfera privada consagra-se como o melhor fundamento
para a construção de uma imagem positiva da Princesa como uma boa
governante. Suas qualidades de boa filha, boa esposa e boa mãe
complementavam-se como características positivas de sua figura
como futura Imperatriz. [...] A partir da assinatura da lei, buscou-se
retratar a Princesa como uma líder monárquica corajosa, aquela que
teria coroado e concretizado os ideais aclamados pelos também
ilustres membros da Confederação Abolicionista. (DAIBERT JR.,
2004:136).
O povo celebrava na rua. O movimento isabelista tomou fôlego. Alguns
acusavam José do Patrocínio de ser um “vira-casaca”, era republicano, mas passou a
defender a Princesa. Ele chega a se justificar em um artigo escrito para o “A Rua”, em
19 de maio de 1888. Começava dizendo: “Enquanto houver sangue e honra
abolicionistas, ninguém tocará no trono de Isabel, a Redentora” (PATROCÍNIO, 2004).
Prossegue enfatizando o Terceiro Reinado:
Partiam dessas primícias governamentais a nossa veneração e a nossa
esperança por Isabel, a Redentora; confiávamos que o seu futuro seria
a confirmação de seu passado; que ela seria a imperatriz -opinião; a
rainha-fraternidade; exortávamo-la a perseverar nesse sistema de
governar, porque enquanto houvesse honra e sangue abolicionistas o
seu trono seria sagrado. (PATROCÍNIO, s/d:174).
E ao final, destaca sua fidelidade ao ato da Princesa:
Descanse A Rua; não fui vender-me a Isabel, a Redentora, no dia 13
de maio; fui apenas reiterar o protesto abolicionista de fidelidade e
solidariedade com a política atual da Coroa, que, disse eu, está hoje
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colocada sobre um ideal tão grande, que far-se-ia em estilhaços se o
quisesse comprimir. (Op. Cit., s/d:174).
O povo continuava aclamando a Princesa. Joaquim Nabuco diz que o ato é
apoteose da monarquia brasileira:
Essa dinastia teve só três nomes. O fundador fez a independência do
jovem país americano, desintegrando a velha monarquia européia de
que era herdeiro; seu filho encontra aos quinze anos o Império
enfraquecido pela anarquia, rasgando-se pela ponta do Rio Grande, e
funda a unidade nacional sobre tão fortes bases que a Guerra do
Paraguai, experimentando-a, deixou à prova de qualquer pressão
interna ou externa, e faz tudo isso sem tocar nas liberdades políticas
do país que durante cinqüenta anos são para ele um noli me tangere5...
Por último, sua filha renunciava virtualmente o trono para apressar a
libertação dos últimos escravos... Cada reinado, contando a última
regência da princesa como um embrião de reinado, é uma nova
coroação nacional: o primeiro, a do Estado; o segundo, a da nação; o
terceiro, a do povo... A coluna assim está perfeita e igual: a base, o
fuste, o capitel. (NABUCO, s/d:116).
Para Silva Jardim, José do Patrocínio é um traidor. Em seu dizer: um “Judas
Iscariotes’:
Este homem, de cor, mas até então tolerado por todos os brancos, que
jamais lhe haviam feito questão de raça, muito amado mesmo pela
mocidade e pelo público generoso, em vista de uma suposta dedicação
à causa dos escravos, – converteu-se em órgão da dinastia,
principalmente da Princesa D. Isabel, e do ministério, que apenas
presidira ao ato parlamentar da abolição; - e daí começou a sustentálos, traidor então à sua raça [...], traidor ao partido a quem disseram
pertencer, não como um renegado confesso, como Judas Iscariotes
[...], e traidor de sua Pátria. (JARDIM,1976:312).
Joaquim Nabuco também não escapou dos discursos do republicano. Silva
Jardim o acusou de ser incoerente, argumentando que não poderia existir afinidade entre
a dinastia e o povo.
Ela se vê apoiada pelas classes populares. José do Patrocínio cria a famigerada
Guarda Negra, que era formada por negros libertos agradecidos pela atitude da Princesa.
5
Expressão em latim que significa “não me toques”.
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(GUILHON, 2005). A Guarda portava-se tendo como principal foco de ação o ataque às
conferências republicanas. (DAIBERT, 2004). Jornais acusam e glorificam as atitudes.
Enquanto isso vários jornais continuam estampando a imagem da Princesa como
“imortal, santa, heroína e libertadora”. (DAIBERT, 2004). A abolição servia para
justificar o trono da futura Imperatriz. Faltava agora só a benção da Igreja. Em 28 de
setembro de 1888, D. Isabel recebia de Leão XIII, em pomposa cerimônia na Capela
Imperial, a Rosa de Ouro. O ato impunha um reconhecimento internacional do feito dela
e favorecia ao Brasil; no interior do país, traduzia em mais uma glorificação da herdeira
do trono, era uma espécie de coroação antecipada. (DAIBERT, 2004). Entretanto, essa
cerimônia selou o destino da Princesa na mente dos políticos, era beata em demasia para
ser governante da Nação. (BARMAN, 2003).
Meses depois da Lei Áurea, em setembro de 1888, a princesa recebeu
a Rosa de Ouro, uma condecoração oferecida apenas a chefes de
Estado em reconhecimento por sua fidelidade à Santa Sé. Por carta, o
papa Leão XIII não só lhe agradecia como interpretava a assinatura da
Lei como sinal de dedicação de sua “Filha muito amada” às
orientações da Sé Apostólica. Nos meios católicos, a celebração em
torno da entrega da Rosa de Ouro revestia-se de simbolismos. Para
uns, seria o início do Terceiro Reinado, uma espécie de coroação
antecipada e chancelada pela Igreja. Outros viam no episódio um novo
momento de fundação. Era a “segunda missa no Brasil”, diziam. Mas
o fato é que Isabel, durante a solenidade, causou constrangimento nos
meios políticos liberais ao jurar fidelidade ao papa, um soberano
estrangeiro. (DAIBERT JR., 2012:25)
Como todas as rosas possuem espinhos, o destino de D. Isabel não parecia
menos espinhoso, a maioria conspirava contra a figura da Princesa, nesse meio até
mesmo dentro da Casa Imperial, havia forças contra ela. A começar pelo sobrinho, D.
Pedro Augusto, filho de sua irmã D. Leopoldina. Jovem, bonito e inteligente, o jovem
príncipe procurava cada vez mais macular a imagem da tia. (PRIORE, 2007). No início
da moléstia do Imperador, cogitava-se na sua substituição em favor do neto. Mas esse
fragilizava na saúde mental. (BARMAN, 2003). De fato, morreria trancado em um
hospício de Paris, em 1934.
A campanha de desmoralização da Princesa e do marido é forte. Ela acreditava
que a abolição seria seu triunfo, aconteceu diferente:
Quanto a Isabel, se calculava acumular créditos para um terceiro
reinado, equivocou-se redondamente. Ganhou, sem dúvida, amplo
apoio popular, refletido nas grandes festas de 13 de maio e no título de
Redentora que lhe foi dado por José do Patrocínio. Sem discutir o
peso real de sua contribuição para a Lei Áurea, é certo que o
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imaginário popular registrou o título, que resiste até hoje às tentativas
de desmoralizar. No momento da proclamação da República, a
monarquia ficou sozinha. (CARVALHO, 2007:190).
A ambição de D. Pedro Augusto em ocupar o trono pode ter sido inútil, mas
contribuiu para aumentar a antipatia por D. Isabel. A abolição lhe dera a devoção do
povo, mas lhe rendera o ódio de quem dominava a riqueza. Esse distanciamento da
Princesa dos negócios políticos só facilitou os ataques dos políticos radicais e da
imprensa. De fato que a Princesa se adiantou ao alcançar o apoio das massas que os
líderes progressistas diziam representar. Mas a elite política jamais teve interesse na
massa analfabeta, e a possibilidade do Terceiro Reinado parecia cada vez menos
ilusória, dessa forma, os ataques à Princesa redobraram nos meses que se seguiram à
abolição. (BARMAN, 2003).
Outro alvo de críticas era o Conde d’Eu. Ele nunca foi bem aceito, era tido como
um estrangeiro, um indesejado. E, ainda por cima, surgiam boatos de que explorava
cortiços no Rio de Janeiro. (CARVALHO, 2007). Decididamente, para alguns, a
Monarquia brasileira não apresentava perspectivas favoráveis.
A Terceira Regência findou-se em agosto de 1888. D. Isabel não tinha tanta
ambição política, o sentimento filial era maior. Poderia ter assumido as rédeas do
governo, já com o pai moribundo. Preferiu a vida privada. (BARMAN, 2003) Quando o
Imperador retornou, a monarquia parecia estar no auge. Mas a Casa Imperial não se
iludia com essa situação política. O conde d’Eu escreveu ao pai, o duque de Nemours,
dizendo que a monarquia nunca esteve tão insegura. (CARVALHO, 2007).
Gabinete Ouro Preto e a República: O Terceiro Reinado que não veio
É inegável que a Regência tenha transformado a relação que D. Isabel tinha com
os negócios públicos. Tinha plena consciência de seu papel e de sua provável coroação
como Imperatriz do Brasil.
A experiência de regente em 1887 e 1888 certamente deu a D. Isabel
muito mais consciência do governo como um mecanismo por meio do
qual é possível operar mudança e aprimoramento. [...] Não obstante,
para ela, uma coisa era preocupar-se com o que precisava ser feito, e
outra coisa muito diferente conceber as políticas específicas para
atingir esses fins. O pai não incluíra em sua educação o treinamento
prático no exercício do poder. Em sua primeira regência, a princesa
era uma novata e preferiu deixar o serviço do governo para o visconde
do Rio Branco. A combinação das circunstâncias pessoais com as
públicas, durante a segunda regência, em 1877 e 1878, tornou-lhe
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muito difícil, senão impossível, empenhar-se em promover mudança e
aprimoramento. Agora, em 1888, os problemas enfrentados por
qualquer um (monarca ou presidente) que governasse o Brasil eram
formidáveis, a ponto de desafiar a capacidade do mais experimentado
governante homem. (BARMAN, 2003:251).
Em sua Fala de Trono de maio de 1888, D. Isabel havia deixado claro a
preocupação com a situação econômica do Brasil. No mesmo texto, ela ainda destacou a
questão da criação do Código Civil, das reformas na organização militar, da reforma dos
Códigos Penal e de Processo. Toca na reestruturação do sistema educacional brasileiro e
chama atenção para a modificação dos métodos de administração pública nas esferas
provinciais e municipais.
Recentemente, tentaram apresentar um aspecto revolucionário para a Princesa.
Em um artigo publicado na edição de maio de 2006, da revista Nossa História, assinado
por Priscilla Leal, afirma-se a descoberta de uma carta supostamente escrita por D.
Isabel endereçada ao Visconde de Santa Victória. Na epístola, ela defendia o sufrágio
feminino e a reforma agrária. A autenticidade foi confirmada por uma historiadora do
Museu Imperial de Petrópolis, Maria de Fátima Moraes Argon. Entretanto, segundo
Lago (2008), a carta é uma fraude, e que nem condiz com o perfil ideológico da
Princesa. Discussões se a carta é autêntica ou não, provocou um debate e torno da
participação da Princesa Imperial no processo político oitocentista.
D. Isabel era uma mulher devota, consciente de seu papel enquanto futura
Imperatriz Constitucional e Defensora Perpétua do Brasil. Seu abolicionismo unia
fatores religiosos e políticos. Primeiro porque a Igreja através de sua Doutrina Social
passa condenar a escravidão. Segundo Vieira (1989), quando a Princesa ainda era
adolescente, questionou às suas aias de que forma os escravos africanos chegavam ao
Brasil; quando soube disse que um homem que praticava tal ato não pode ser um
verdadeiro cristão. Depois, seria uma forma de construir uma imagem de uma soberana
em consonância com a aspiração nacional. Restava à Princesa, após a abolição construir
o caminho para o reinado efetivo.
D. Isabel jamais seria aquilo que poderíamos considerar uma defensora dos
ideais feministas, ao contrário, censurou o pai quando este visitou a escritora Georges
Sand, pseudônimo da francesa Aurore Dupin, em 1872. A Princesa considerava aquela
mulher fora dos padrões católicos, uma imoral, apesar de reconhecer-lhe o talento
literário. (DAIBERT JR., 2004).
A religião era uma espécie de óculos pelos quais Isabel olhava o
mundo. Certa vez, ela censurou D. Pedro II por ter visitado uma
sinagoga na Europa. Também implicou com sua visita à escritora
George Sand (1804-1876), a quem considerava imoral. Sand era uma
precursora do feminismo, defensora de idéias socialistas, famosa por
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suas roupas masculinas e seus casos amorosos. Uma figura bem
diferente daquelas por quem, desde a infância, Isabel demonstrava
admiração e devoção, como os reis e rainhas canonizados pela Igreja
Católica. São Luís de França e Santa Isabel, fosse a de Portugal ou a
da Hungria, eram seus modelos. Em Caxambu, a princesa iniciou a
edificação de uma igreja consagrada a Santa Isabel de Hungria. Em
sua primeira viagem à Europa, fez questão de beijar as mãos de Santa
Isabel de Portugal, cujo corpo encontrava-se preservado em um
caixão. E conforme antiga tradição católica, além de comemorar seu
próprio aniversário de nascimento, a princesa também celebrava e
recebia presentes nos dias dedicados às duas santas suas homônimas e
de quem descendia. (DAIBERT JR., 2012:)
Podemos discordar de Barman (2005) quando ele afirma que a Princesa teve
uma existência subordinada, explorada e limitada, que o seu gênero tivesse impedido o
desenvolvimento de um senso crítico para os negócios públicos. Ser mulher não a
impediu de construir uma visão política, mesmo que tenha sido por convicções
religiosas. Como diz Mesquita (2008), ela circulou nos mundos feminino e masculino,
público e privado como exigiam sua posição social e suas atribuições de herdeira do
trono. Enfrentou todas as contradições que seu papel exigia – seja entre os valores
católicos e a permanência de normas culturais ou com os ideais de progresso e da
modernidade.
O problema estava justamente em uma mulher ter caído “acidentalmente” como
herdeira do trono. Os dois irmãos faleceram ainda crianças e a ela coube o destino de
ser a futura Chefa de Estado da única Monarquia da América do Sul. Foi inserida dentro
do universo preponderamente masculino do qual não poderia ser vista como além de
uma intrusa.
Em junho de 1888, o gabinete João Alfredo pediu demissão. O Imperador
pensava no Conselheiro Saraiva para assumir a função. O experiente Senador teria
falado em conversa que o reino de D. Isabel não era deste mundo. Tinha receio de seu
posicionamento religioso. Em conversa com D. Pedro II, anunciou que declararia ao
Parlamento que teria como programa de governo, preparar a transição do regime, de
Monarquia para a República. Alertou ao monarca que a mudança era inevitável.
(CARVALHO, 2007).
Pela primeira vez, D. Isabel interferiu na administração paterna. Negociou com o
visconde de Ouro Preto, e conseguiu que ele fosse nomeado Presidente de Conselho de
Ministros. Ao contrário de Saraiva, a proposta de Ouro Preto era esvaziar a propaganda
republicana. Em 7 de junho, ele se apresenta ao Parlamento de maioria conservadora:
Prometeu pôr em prática o programa de reforma aprovado no
congresso do Partido Liberal realizado na corte. Eram, segundo ele,
largas reformas, inspiradas na escola democrática. Incluía a ampliação
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do direito de voto pela abolição da exigência de renda, o fim da
vitaliciedade do Senado, a liberação do culto público a outras igrejas
além da Católica, a eliminação das atribuições políticas do Conselho
de Estado. A que julgava mais urgente era a autonomia dos
municípios, inclusive o da capital. Prometeu eleição popular dos
executivos municipais e a nomeação dos presidentes de província com
base em lista formadas pelo voto popular. (CARVALHO, 2007:205).
As críticas contra a Princesa continuavam, principalmente durante esse ato. Em
abril de 1889, saiu em um jornal um artigo intitulado: “Novo Reinado: Enxerto dos
Orleans na Dinastia Brasileira”. O texto era impiedoso. Ataca a figura do conde d’Eu,
dizia que o Imperador era incapaz e que não reinava mais, e concluía dizendo que o
Terceiro Reinado já havia começado secretamente. (PRIORE, 2007).
Na seção em que apresentou o projeto, alguns deputados republicanos
ovacionaram dizendo que era o começo da República. Ouro Preto retorquiu dizendo que
era a inutilização da mesma. (CARVALHO, 2007).
O certo é que com estranheza vemos o desgaste da imagem da Princesa por sua
religiosidade, várias vezes, taxada de ultramontana. Seria incompatível com o perfil de
uma pessoa que tivesse esse pensamento quisesse realmente empreender as reformas
sugeridas por Ouro Preto. O certo mesmo é que a figura feminina e piedosa não atraia às
elites agrárias e as correntes liberais embasadas de um espírito positivista. Ela e o
marido eram indesejados.
Segundo Mello (2007:167-168), a propaganda republicana tomou fôlego a partir
de 1889, principalmente com os escritos na imprensa de Silva Jardim e Rui Barbosa
contra a Princesa. Silva Jardim chegou a propor a execução do Conde d’Eu, tentando
dar um aspecto revolucionário e glorioso para a implantação da República brasileira,
apresentava a Regente além de festeira, como carola, melômana, incompetente e
tutelada pelo marido francês.
A mesma propaganda procurava tecia críticas à estrutura da Monarquia ao
mesmo tempo em que buscava desacreditar a idéia da ascensão de D. Isabel ao trono.
Pairavam as questões sobre o federalismo, a descentralização política, a separação da
Igreja e o Estado. Todos esses problemas estavam além das suas possibilidades
enquanto herdeira do trono. Para os republicanos, não havia possibilidade de reformas
dentro do regime monárquico, daí a situação insustentável com a possibilidade de um
Terceiro Reinado, era preciso abortá-lo antes que se concretizasse. Vejamos a posição
de Silva Jardim (1976:326-327):
Mas o impõe, sobretudo, e altamente, o futuro da Pátria em perigo
real; porque Pedro II está perdido para o governo do estado, e, Isabel I
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é o escapulário, Gastão I é o chanfalho6; correspondem ambos à dupla
retrogradação clerical e militarizada, enquanto que a ciência e o
trabalho são o ideal para o homem moderno. Todos percebemos que
esse terceiro reinado será para a nossa terra a triste época em que, ao
lado da desordem administrativa, da orgia financeira e da política
corruptora, característicos do governo do imperador moribundo,
teremos a opressão material do militarismo [...]; e a opressão moral do
beatério papista, e a opressão do clero, encarnados na futura
imperatriz; tirania à fortuna, tirania ao trabalho, e tirania ao
pensamento.
Apesar desse clima de insatisfação republicana, D. Isabel continuar a ser
ovacionada com o epíteto de “A Redentora”. Pela defesa do reinado da Princesa, a
Guarda Negra continuou praticando os seus ataques, principalmente com o aval da
polícia da Corte. (MATTOS, 2009). Os republicanos teceram ferozes críticas contra a
atuação desses negros caracterizados como baderneiros no dizer de Rui Barbosa. Silva
Jardim assegurava que não passavam de assaltantes, baderneiros e ignorantes, já que a
Princesa não fez mais do que uma restituição do direito deles. Chegou a acusar,
inclusive, que foi D. Isabel que incitou os negros a provocar as perseguições contra os
republicanos. (JARDIM, 1976).
É fato que os libertos festejavam a “Redentora”. As tradições
africanas de realeza embasavam o respeito a reis e rainhas,
legitimando culturalmente um possível Terceiro Reinado, sob as
bênçãos de D. Isabel. Para os cativos, ela seria vista como eterna
soberana, pois soube enfrentar os diversos obstáculos que
postergavam a Abolição. Além disso, ajudava quilombos, escravos
fugitivos, estimulava jornais antiescravistas. Cercava-se, enfim, de
pessoas de almas livres. Pode não ter chegado ao trono, mas, como
dizia o velho Aires no romance machadiano Esaú e Jacó (1904), “toda
alma livre é imperatriz”. (MATTOS, 2012:29).
Para Mello (2007), a opinião dos republicanos retratada nos jornais era
caracterizada como a verdadeira opinião pública longe da que saía de forma fraudada
das ruas. Entretanto, para Carvalho (2000), a Monarquia tinha conquistado o auge de
sua popularidade diante a população brasileira, principalmente a mais pobre.
Segundo Carvalho (2007), esse mesmo povo não teve qualquer poder ou
participação na condução dos movimentos de 1889. Esteve à parte de tudo que tenha
acontecido. Em 15 de novembro de 1889, um golpe de Estado derruba a Monarquia. A
Princesa ainda tenta resistir, mas o esforço é em vão.
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Espada velha e enferrujada.
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O advento da República, diante daquelas circunstâncias não poderia
contar com o apoio da opinião pública, nem tampouco com um
movimento popular que destronasse o Imperador e sua adorada filha.
Por outro lado, um golpe a partir da instauração do Terceiro Reinado
seria provavelmente muito menos aceito, uma vez que a popularidade
de Isabel certamente estaria em alta ao assumir o trono. Assim, era
preciso antecipar-se aos fatos. Abortar o Terceiro Reinado antes de
sua concretização era o caminho mais pertinente. (DAIBERT,
2004:183).
A Princesa perdeu seu trono. Partiu com a família para o exílio a bordo do
Alagoas. Passou trinta anos sem poder retornar ao Brasil. Voltou morta para ser
sepultada em Petrópolis.
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Aprovado em 5 de maio de 2013
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Ano IV
O CINEMA COMO AGENTE DA HISTÓRIA: AS RELAÇÕES DE PODER
ATRAVÉS DAS PELÍCULAS
Renata Santos Maia1
Resumo: A proposta deste artigo é refletir sobre o cinema como fonte histórica,
tentando perceber de que forma os aspectos do presente atuam no registro do passado e
apontando, também, as relações de força e poder que se encontram por trás da
elaboração dos discursos historiográficos, utilizando para isso a revisão bibliográfica e a
análise fílmica.
Palavras-chave: história; cinema; relações de poder; ficção e realidade.
Abstract: The purpose of this paper is to discuss the cinema as a historical source,
trying to understand how aspects of the present act in the past record and also indicate
the relationships of strength and power that lie behind the development of
historiographical discourse, using for this literature review and the film analysis.
Keywords: history; cinema; power relations; fiction and reality.
O filme é uma prática discursiva que produz sentidos e, assim como a história,
considerada por Keith Jenkins (2001) como um discurso em litígio que está a serviço
dos interesses de determinados grupos, também parte de constructos ideológicos e
pessoais e das relações de poder. Há os exemplos mais explícitos de tal afirmação como
ocorreu na Rússia com o Cinema Revolucionário Soviético, que utilizou este recurso
para promover uma maior adesão ao movimento socialista e para tratar de temas
políticos e episódios históricos
Assim também ocorreu com o Cinema Expressionista Alemão que, nascido
como um movimento artístico que se opunha ao racionalismo e à burguesia, após a
ascensão do regime nazista na década de 1920, passou a produzir filmes de propaganda
do partido e de exaltação à figura de Hitler. A despeito disso, para Marcel Martin,
“convertido em linguagem graças a uma escrita própria que se encarna em cada
realizador sob a forma de um estilo, o cinema tornou-se por isso mesmo um meio de
1
Mestranda em História Social pela Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. Possui Pósgraduação Latu-Sensu em História, Sociedade e Cultura no Brasil. Está vinculada ao Grupo de Pesquisa
Gênero e Violência e ao Grupo de Estudos Gênero e Cinema. E-mail: [email protected]
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Ano IV
comunicação, informação e propaganda, o que não contradiz absolutamente sua
qualidade de arte (MARTIN, 2007: 16)”.
Outros exemplos são os filmes Amistad e Danton, discutidos em um artigo por
Marcos Napolitano, onde trata da escrita fílmica e da história e a monumentalização do
passado. Neste artigo, ele mostra como o primeiro faz uma apologia à democracia
estadunidense, monumentalizando um episódio obscuro de sua história; e outro, que
dessacraliza a Revolução Francesa e alguns de seus protagonistas mais conhecidos
como Danton e Robespierre. Ao problematizar esses dois filmes, Napolitano demonstra
como o filme pode funcionar como lembrança ou memória do passado e na produção de
monumentos históricos, podendo enaltecer e erigir um acontecimento de forma positiva,
ou também o contrário. Por isso, ele alerta que para melhor compreender as pretensões
do diretor e analisar o filme como fonte histórica é preciso entendê-lo como um
conjunto de elementos que buscam encenar uma sociedade, nem sempre com intenções
políticas ou ideológicas explícitas (NAPOLITANO, 2011).
Em vista disso, acreditamos que o cinema funcione como um amplo difusor dos
padrões de comportamento que, muito antes da televisão, já era um dos principais meios
de entretenimento. Por isso mesmo, as indústrias de cinema podem ser consideradas
como grandes produtoras de cultura de massa.
As características citadas acima fizeram do cinema uma preciosa fonte de análise
para a História, e a busca por novas e diferentes formas discursivas aproximaram-na de
outros campos epistemológicos. Nesse movimento, um dos discursos que se adequou
perfeitamente a essa proposta interdisciplinar foi o ficcional, que por agregar elementos
da realidade e do imaginário social, contribuiu de forma indelével para a descoberta de
novos caminhos historiográficos.
As dimensões temáticas que utilizam o cinema, a literatura, a geografia, a
psicanálise (e outros mais) como “novos parceiros”, ganharam corpo a partir da História
Cultural que, como bem ressalta Sandra Pesavento (2003), possibilitou a inclusão de
novas temáticas e abordagens, e também o uso de outros campos do saber como auxílio
para produzir discursos. Assim, o cinema passa a ser uma fonte de grande relevância
para a história, a partir do momento em que o imaginário, o lúdico, o não-real começam
a ser enfocados e valorizados como instâncias para a produção de conhecimento e
sentido.
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Para Marc Ferro (2010), o filme possui elementos que ultrapassam o seu
conteúdo e as pretensões do próprio realizador e, por ser um testemunho singular do seu
tempo, revela aspectos da realidade e das condições de sua produção. Essas
particularidades permitem ao historiador acessar o imaginário, a ideologia e os aspectos
não visíveis de uma determinada sociedade, mesmo em regimes onde há um controle da
produção artística.
Mônica Almeida Kornis lembra que o cinema, com sua linguagem peculiar,
trouxe uma nova dimensão da leitura do passado, propiciando a reconstrução de
aspectos da realidade, na medida em que o filme possui a capacidade de articular
imagem, palavra, som e movimento ao contexto histórico e social que o gerou, e isso o
constituiu em uma valiosa fonte para a pesquisa histórica. Conforme argumenta esta
autora,
(...) nesse contexto de abertura da história para novos campos, o filme
adquiriu de fato o estatuto de fonte preciosa para a compreensão dos
comportamentos, das visões de mundo, dos valores, das identidades e
das ideologias de uma sociedade ou de um momento histórico. (1992:
239)
Walter Benjamin apresenta o cinema como detentor de uma particularidade que
possibilita a todos se sentirem com autoridade para debater e expor suas impressões
acerca dele. É uma arte que extrapola os limites do cotidiano, levando a viagens
aventurosas, que permitem ao espectador imergir em uma experiência do inconsciente
ótico (1994: 189). Ele lembra, ainda, que
(...) através dos seus grandes planos, de sua ênfase sobre pormenores
ocultos dos objetos que nos são familiares, e de sua investigação dos
ambientes mais vulgares, o cinema faz-nos vislumbrar, por um lado,
os mil condicionamentos que determinam nossa existência, e por outro
assegura-nos um grande e insuspeitado espaço de liberdade
(1994:189).
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Outro elemento que colaborou para o uso desse tipo de fonte pela História foi a
crise do marxismo e do estruturalismo2 que marcaram a segunda metade do século XX.
O colapso desses paradigmas, ao mesmo tempo em que provocou um abalo nas certezas
da escrita da História, fez emergir novas formas discursivas e ferramentas mais
complexas que ampliaram os horizontes da pesquisa. Desse modo, a narrativa histórica
sofre uma reciclagem, que modifica as formas acadêmicas convencionais, tornando seus
textos mais atraentes e palatáveis (SANTOS, 2008).
Ainda dentro desta análise, segundo José Carlos Reis (2003), a segunda fase
pós-moderna, denominada pós-estruturalismo, rompe de fato com os pressupostos da
Modernidade iluminista3, cujo projeto era promover a visão de uma história global,
racional e unificada. Ao contestar essa concepção, o pós-estruturalismo propõe uma
fragmentação extremada, repleta de pluralidade, contradições e baseada nas diferenças e
tensões, sem pleitear a verdade histórica.
Desta forma, a pós-modernidade4 livre da influência que a razão exercia sobre a
história, passa a dar vazão a outras possibilidades de pesquisa, diferentes recursos
metodológicos (o cinema é um deles) e novos sujeitos históricos como a mulher, o
louco, a criança, o homossexual, entre outros. Essa postura desconstruiu a dimensão
universal da história, tornando-a mais flexível e poética, e mostrando, também, que do
mesmo modo como as fontes ficcionais contêm plausibilidade histórica, também os
acontecimentos históricos possuem, na sua dinâmica, a força do imaginário.
Nessa onda de desconstrução aparece também Paul Veyne (2008) com sua
concepção desestruturadora em Como se escreve a História, onde rejeita a pretensão
globalizante e científica da história (ou melhor, de alguns historiadores) e a compara ao
romance, cuja narrativa é tão espontânea como a nossa memória e resulta das
indagações que fazemos a partir de questões subjetivas. E assim também é o historiador,
que como um romancista seleciona, simplifica, organiza e analisa os fatos e, em cada
época, reconta a história a seu modo. Deste modo, a narrativa apresenta-se como uma
tessitura, uma trama, cujas causas materiais são muito mais humanas que científicas.
2
Esses dois conceitos apóiam-se em explicações globalizantes e concebem a realidade social como um
conjunto de relações baseadas no conflito entre classes e nas grandes estruturas, respectivamente.
3
A Modernidade Iluminista é um paradigma historiográfico partidário de uma história científica e
racional que busca uma realidade social global a ser historicamente explicada.
4
O paradigma Pós-moderno se apresenta cético em relação às noções globalizantes e com tendência a
enfatizar as representações construídas historicamente. Nesse paradigma o sujeito e o objeto se
confundem, partindo da crença de que o observador/ investigador é parte integrante daquilo que estuda.
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Também o cinema, entendido como arte, passou por diversas reformulações ao
longo da sua história, inaugurando novas estéticas que trouxeram à baila discursos e
formas de pensamento críticos como o Expressionismo Alemão, o Experimentalismo
Soviético, o Neo-Realismo Italiano e a Nouvelle Vague Francesa. Com o advento da
pós-modernidade, a partir do final do século XX, talvez ainda não se possa apontar uma
nova estética, mas um traço contemporâneo parece integrar os enredos das produções
cinematográficas. Filmes como Being John Malcovich, Pulp Fiction, Forrest Gump, só
para citar alguns, apresentam personagens fragmentados, contraditórios, uma ruptura
com a lógica dicotômica e a dissolução do sujeito.
Diante dessa postura interdisciplinar, já anunciada, pode-se inferir que tanto a
história quanto o cinema funcionam como abordagens da realidade, em que nenhum
deles é capaz de absorvê-la de forma literal ou esgotá-la, fazendo representações e
aproximações do passado com linguagens e perspectivas diferentes. Portanto, o cinema
pode oferecer informações e características de uma determinada sociedade,
considerando que tais sinais são representações, muitas vezes indiretas, apresentadas
mediante o ponto de vista, o pensamento e as crenças do diretor, dos roteiristas, dos
produtores, o que implica na interseção entre o contexto histórico e o da narrativa. Por
essa capacidade de
veicular valores e representações
coletivas, a análise
cinematográfica ganhou uma dimensão documental e criou sólidos vínculos com a
História.
E é exatamente isso que Marc Ferro defende em sua obra, pois o filme é uma
fonte múltipla e, para torná-lo mais tangível, é preciso destrinchar não só a narrativa,
mas “o cenário, a escritura, as relações do filme com aquilo que não é filme: o autor, a
produção, o público, a crítica, o regime de governo” para que a “compreensão não seja
apenas da obra, mas também sobre a realidade que ela representa” (FERRO, 2010: 33).
Na verdade, as fontes ficcionais (e aí está incluída também a literatura) vão mais
além, pois, de uma forma geral, possibilitam essa alternativa de realizar, ao menos no
plano da fantasia, os sonhos, desejos, vontades não permitidos pelo real, e também se
reconhecer ou projetar nos personagens. Ou simplesmente viver por alguns minutos ou
horas a experiência do inconsciente ótico anunciada por Walter Benjamim. Nesse
sentido, Gustavo Bernardo lembra que:
A ficção, a literatura, fazem mais do que ampliar as nossas
perspectivas, ao mapearem a realidade, anunciando territórios
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inexplorados e desconhecidos; a ficção e a literatura nos permitem
viver o que de outro modo talvez não fosse possível, ou seja, nos
permitem ser outros (os personagens) e adquirir, ainda que
momentaneamente, a perspectiva destes outros – para, adiante, termos
uma chance de cumprir o primado categórico de todas as éticas, de tão
difícil realização: ser o que se é (1999: 147).
A produção cinematográfica ganhou uma dimensão de realidade que tem na
verossimilhança o suporte dessa relação que se torna cada vez mais íntima. Realidade e
imaginário se entrelaçam, se confundem, diluem as fronteiras entre verdade e ficção,
real e não real, ciência e arte (PESAVENTO, 2006).
História e Cinema: discursos em litígio
Muitas vezes, as referências históricas em algumas produções são bem sutis, e
talvez por isso mesmo, consigam ser assimiladas mais facilmente do que documentários
e filmes que se destinam a esse fim. Em Narradores de Javé, filme dirigido pela
cineasta Eliane Caffé e produzido por Vânia Catani, é dada uma verdadeira aula de
historiografia.
O filme, lançado em 2003, se passa na cidade fictícia Vale de Javé, interior da
Bahia, que será submersa após a construção de uma barragem sem que haja indenização
aos seus moradores, pois as terras não possuem registro de posse. A única forma de
evitar que isso aconteça é comprovar de forma científica que ali existe algum
patrimônio histórico. Em uma comunidade iletrada, ironicamente, todos acreditam que a
melhor maneira para se produzir esse registro é de forma escrita. Como apenas o
carteiro, Antônio Biá, é quem sabia ler e escrever e tinha uma imaginação para lá de
criativa, é ele o escolhido, à revelia, para contar a história da fundação da cidade.
Assim começa a crônica da “história grande de valor” sobre o Vale de Javé, e
começa também um tremendo desvario para tentar fazer prevalecer a versão que melhor
convinha a cada um. Remexendo na memória, os moradores contam a lendária história
de Indalécio, fundador de Javé e nobre chefe de guerra, que conduziu seu povo, expulso
pela coroa portuguesa, até a terra onde viveria em paz.
Mas também aparecem outras versões que têm como fundadores Mariardina,
mulher forte e destemida; e, em outra, Indaleu, guerreiro africano. O primeiro caso
evidencia uma tendência recente de representar o feminino como figura de liderança; e
o segundo caso demonstra a necessidade, também recente, de valorização das raízes
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africanas que o Brasil possui e que passam pela intenção de se criar um herói nacional
negro. Tanto é assim que Zumbi dos Palmares teve sua imagem revista, inclusive, nos
livros didáticos de história.
A Odisséia Javélica, assim chamada por Antônio Biá, não poderia ser escrita de
qualquer jeito, era preciso florear um “bocadinho”, pois “uma coisa é o fato escrito,
outra coisa é o fato acontecido. O acontecido tem que ser melhorado no escrito de forma
melhor para que o povo creia no acontecido”. A partir dessa fala, podemos depreender
as várias nuances que permeiam a construção de mitos, heróis, lendas e também “fatos”
históricos. Nesse momento a fantasia e as diferentes interpretações entram em cena.
Hayden White chama a atenção para isso quando se refere à história como uma
grande narrativa que pouco difere da literatura. Assim, para este autor, as narrativas
históricas são como “ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto
descobertos e cujas formas têm mais em comum com seus equivalentes na literatura do
que com seus correspondentes nas ciências” (2001: 98). Para ele, os mesmos elementos
que aparecem na urdidura do enredo de um romance ou uma peça (ou um filme), como
apontados acima, fazem parte também da história, que pode ser contada de diversas
formas (romântica, trágica, satírica) conforme o interesse de quem narra.
A busca pela construção de uma identidade frequentemente mergulha as pessoas
na profundidade de suas histórias, por meio de um caráter espontâneo ou direcionado e
a memória funciona como uma forma de preservar e reter o tempo, daí a sua relação
com a História. É a memória como fundamento da identidade a responsável por resgatar
o passado histórico de um povo, o que possibilita a sua inserção social (NEVES, 2000).
No filme, este aspecto é abordado com freqüência quando os moradores vão
apresentando, através dos fragmentos de memória, fatos que remetem à fundação do
vilarejo. Por isso, a História e a memória são consideradas suportes das identidades
individuais e coletivas, pois ao mesmo tempo em que estão narrando os acontecimentos
passados do povoado, eles se projetam nessa história e inserem nela suas experiências
de vida.
A história oral representada pelos relatos dos personagens Vicentino, Firmino,
Deodora, Gêmeo, Outro e tantos mais que queriam ver seu nome registrado para a
posteridade constitui-se em um instrumento vivificador da relação entre história,
memória e identidade, pois, a partir da rememoração se faz história e isso incita a
reflexão do ser sobre si e o seu passado, e demonstra esse anseio intrínseco ao humano
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de não ser consumido pelo tempo (NEVES, 2012). Assim, Narradores de Javé compõe
uma narrativa condensada que mescla memória, fatos e fontes que, embora não sejam
tão científicos como gostariam seus moradores, revelam reflexões sobre a teoria da
história e demonstram de maneira jocosa como a historiografia pode ser construída.
O litígio que há entre as várias versões sobre a origem do lugarejo evidencia a
dinâmica que envolve os registros historiográficos. Como aponta Heloísa Helena
Cardoso:
O que a “história de Javé” nos mostra é um campo de disputas, de
tensões vividas, não só pela construção da hidrelétrica, mas pela
permanência de memórias, entre as muitas histórias que significam o
lugar. Nelas, a relação entre o presente vivido (os conflitos gerados
pela construção da represa), o passado lembrado (a disputa pela
grande história) e o futuro (a possibilidade de um amanhã diferente)
transforma a história no espaço onde as contradições do social
emergem como possibilidade de mudanças (CARDOSO, 2008: 7).
Ao refletir sobre o cinema como recurso didático e mais, como possibilidade
para o debate historiográfico, esta autora entende que a dinâmica do filme se assemelha
à da História, na medida em que expressa “um conhecimento elaborado a partir das
inserções sociais e políticas” (CARDOSO, 2008: 3). Por isso, ela afirma que cabe ao
historiador interpretar as reconstruções dos sentidos produzidos no passado, colocandose como sujeito desse processo. Nesse sentido, também Marc Bloch (2001) afirma que a
História é a ciência dos homens no tempo e o ofício do historiador é estudar o que
passou buscando entender o seu presente.
De acordo com Jacques Le Goff (1992) existem duas formas de manifestação da
memória coletiva, cujo formato científico é a História: os monumentos, herança do
passado; e os documentos, escolha do historiador. Para ele, o documento é uma
montagem, um produto da sociedade e cabe ao historiador fazer a crítica, desestruturar
as suas montagens e analisar as condições de produção deste documento, que é algo que
se constitui a partir das relações de força e poder.
Tal ideia pode ser percebida no filme, e se revela a partir do momento em que o
documento, que trataria da história da fundação da cidade, vai sendo construído pelos
personagens que tentam, cada um a seu modo e através de pistas, indícios e sinais como sugere Ginzburg (1989) -, captar uma realidade e construir o seu cenário, como as
peças de um quebra-cabeças que ficaram espalhadas esperando alguém que as juntasse e
lhes desse sentido. Mais ainda, há uma tentativa de monumentalização da cidade e de
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alguns de seus moradores com o intuito de se produzir uma memória sobre o lugar e
heróis para a sua história.
Mas o movimento contrário também é mostrado, ou seja, a desconstrução dos
mitos e dos personagens históricos. O personagem Firmino tenta o tempo todo
avacalhar com o relato de seus conterrâneos. Aponta Indalécio como um líder confuso,
desnorteado e que morreu agachado por conta de uma diarréia, e Mariardina como uma
mulher louca que anuncia profecias a partir de falas desconexas.
Le Goff assinala, ainda, que o documento não deve ser pensado como memória
ou reflexo do acontecimento que permite reconstruir o passado em sua totalidade, mas
como práticas discursivas que produzem abordagens e objetos históricos.
Nesse sentido, Keith Jenkins nos chama a atenção para a própria História como
um discurso em constante transformação. Para ele, quando nos questionamos sobre o
que é a história, a pergunta mais apropriada seria “para quem é a história”, pois ela se
constitui em um discurso que parte de constructos ideológicos e pessoais e das relações
de poder que determinam a forma como vamos investigar as fontes, estudar e registrar o
passado. Por isso, a história é relativa e, embora a princípio isso possa parecer algo
desestabilizador, na verdade é o que move a constante produção, (des)construção do
conhecimento e da própria história, e é o que lhe dá sentido. Para este autor,
(...) a história é basicamente um discurso em litígio, com diferentes
significados para diferentes grupos. É um campo de batalha onde
pessoas, classes e grupos elaboram autobiograficamente suas
interpretações do passado para agradarem a si mesmos (2001: 43).
Essa dinâmica é apresentada no filme com maestria quando são mostradas cenas
em que cada uma das personagens alega possuir uma ligação íntima com a história da
cidade e laços de parentesco com seus fundadores, com a finalidade de imprimir traços
da própria vida no registro feito por Biá. As diversas versões com protagonistas
diferentes reforçam o que foi apontado por Jenkins de que a história é subjetiva e
intencional e de como isso atua na produção de sentidos. Tudo isso desestabiliza e
fratura o passado, mas são exatamente essas “rachaduras” que vão produzir novas e
diferentes histórias.
Outro exemplo que ilustra esse envolvimento entre o presente e a forma como
registramos o passado está na observação de filmes como Carlota Joaquina, Princesa
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do Brasil, dirigido por Carla Camurati. No período em que esse filme foi produzido - o
contexto pós-declínio do governo Collor -, tinha-se uma péssima imagem do governante
central. Por isso, a leitura do personagem histórico D. João VI se deu nos moldes de um
líder fanfarrão, bon vivant e que não tinha a mínima preocupação com o povo e os
rumos tomados pelo reino; uma postura muito próxima da assumida por Fernando
Collor, que aparecia nos registros da imprensa como um sujeito bem nascido, que
gostava de se divertir e que, de fato, não parecia se preocupar com a repercussão que
suas decisões teriam para a população.
Hoje, percebemos o claro intento em resgatar a figura de D. João VI de forma
positiva como um líder estrategista e bem articulado, e isso está relacionado à visão,
desta vez otimista, que estamos tendo do governante central. Por isso, é oportuno que
queiram rever essas imagens e adequá-las ao discurso vigente. Isso porque são
justamente as inquietações do presente e as relações de poder que conduzem as
pesquisas sobre o passado e norteiam a forma como a história é contada.
Considerações finais
A relação estabelecida entre história e cinema e o olhar que ela lançou sobre o
presente criou um espaço para a diversidade cultural, para descobertas e novas formas
de enxergar, conhecer e narrar a história. Mais ainda: demonstra o quanto de nós está
nos filmes e o quanto dessas histórias está em nós, se revelando um inesperado convite
para mergulhar em seus encantamentos. Pois o cinema tem essa capacidade de despertar
os sentidos mais sublimes e recônditos das pessoas, e não implica a necessidade de um
conhecimento superior, está presente em todos nós, desde o princípio da humanidade e
nos permite, a partir de indícios e pistas deixados pelo caminho trilhado pelos
personagens, acessar uma realidade mais profunda e complexa.
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Ano IV
PANORAMA DO NEGRO NO CINEMA BRASILEIRO: DOS PRIMÓRDIOS À
ERA COLLOR
Fernando Rodrigues Oliveira1
Resumo: O presente artigo tem por objetivo realizar uma breve discussão sobre a
representação do negro no cinema ficcional brasileiro, desde a sua “época de ouro”
(1907-1911) até a chamada “Era Collor”, na década de 1990, onde serão apontados os
estereótipos mais comuns aplicados a personagens negros, a partir, principalmente, dos
estudos de João Carlos Rodrigues (1988), e os vários papéis assumidos pelo Estado no
período em questão.
Palavras-chave: cinema; preconceito; discriminação; democracia racial.
Abstract: This paper aims to conduct a brief discussion of the representation of blacks
in brazilian fictional cinema, since its "golden age" (1907-1911) until the call "Collor
Age" in 1990, where will be appointed the most common stereotypes applied to black
characters, from mainly from studies of João Carlos Rodrigues (1988), and the various
roles played by the State in the period in question.
Keywords: cinema; prejudice; discrimination; racial democracy.
Não há como refletir sobre a condição do negro na vida cultural brasileira sem
destacar que o modelo seguido no Brasil – e que ainda persiste – é o dos Estados
Unidos -, e por que não falar em um paradigma geral eurocêntrico, percebido
claramente na ordem simbólica estabelecida na mídia brasileira, onde há predomínio de
pessoas brancas em programas, comerciais e em praticamente todo o quadro de
programação.
1
Aluno do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Social – PPGDS, da Universidade Estadual
de Montes Claros/Unimontes. Bolsista – CAPES. Graduado em Ciências Sociais (Unimontes). Discute a
relação entre Cinema, Cultura e Sociedade. Membro da Sociedade Brasileira de Estudos e Pesquisas em
Cinema e Audiovisual (SOCINE). Sócio-Fundador e atual Diretor de Programação e Produção do Cinema
Comentado Cineclube (Montes Claros-MG). E-mail: [email protected]
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Esse quadro hegemônico de representação dos valores e padrões
estabelecidos pelo segmento branco na televisão brasileira reflete a
desigualdade racial profundamente arraigada no país. Não pode,
entretanto ser entendido somente como resultado de uma acomodação
dos afro-brasileiros ao sistema, embora uma parcela desse grupo tenha
grandes problemas de identidade em decorrência dos preconceitos e
discriminação sofridos ao longo da sua história. Parece-nos, portanto,
que a resistência cultural e política da população negra brasileira ainda
não conseguiu produzir na televisão, em quantidade significativa,
imagens e programas que revelem os seus valores e as experiências do
seu próprio grupo. (ARAÚJO, 2004, p. 65/66)
Passemos agora a uma breve discussão a respeito da participação do negro no
cinema brasileiro de ficção, desde o início do século XX até o fim da Empresa
Brasileira de Filmes (Embrafilme), no início dos anos 1990.
Se o cinema brasileiro vivenciou sua chamada “época de ouro”2 no início do
século passado (1907-1911), com um estrondoso processo de produção de filmes
mudos, foram necessárias muitas décadas ainda para que o negro e outras questões
referentes à sua condição fossem tratados com maior seriedade nas produções
cinematográficas em nosso país. “O cinema mudo coincide exatamente com o período
áureo das teorias racistas, quando as religiões afrobrasileiras eram perseguidas pela
polícia, e os mulatos claros usavam pancake para parecer brancos”. (RODRIGUES,
2000).3
Conforme explica Rodrigues (2000), muitos dos filmes mudos brasileiros
pertencentes a esse período se perderam, na sua maioria em incêndios, dificultando ou
impossibilitando quase que praticamente uma análise mais concreta sobre a participação
e a representação dos negros em nosso cinema. Porém, de acordo com o pouco material
audiovisual preservado, pode-se ter uma ideia de como isso se dava.
Quanto aos filmes de ficção, nos poucos que sobreviveram,
encontramos quase sempre personagens estereotipados, abobalhados,
supersticiosos e covardes. A um passo da debilidade mental. Em um
deles, o perfil de uma criança negra é intercalado na montagem com
2
Durante essa fase (1907-1911), o cinema brasileiro vivenciou o seu primeiro grande ciclo de produções,
visto que a hegemonia do cinema dos Estados Unidos ainda não havia se consolidado. Predominou,
assim, uma forte conjunção entre os produtores e os exibidores nacionais, influenciados, sobretudo, pela
ampliação do número de salas comerciais fixas em nosso território. (LEITE, 2005)
3
RODRIGUES, João Carlos. Artigo: O negro no cinema brasileiro de ficção, 2000. Disponível em:
<http://www.mnemocine.art.br/index.php?option=com_content&view=article&id=73:o-negro-nocinema-brasileiro-de-ficcao&catid=35:histcinema&Itemid=67>. Acessado em 6 de dezembro de 2009.
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as fuças de um sapo, animal associado à feiúra, à feitiçaria e ao mal.
(RODRIGUES, 2000)
Desde as primeiras décadas do século XX, no cinema dos Estados Unidos,
personagens negros eram interpretados nas produções hollywoodianas por atores
brancos pintados com tinta preta (aqui também chamados de blackface4), uma clara
maneira racista de impedir a inserção e ascensão dos negros na indústria da sétima arte.
Como o Brasil – e praticamente todo o resto do mundo – seguiam como modelo o
cinema dos Estados Unidos, pouco pode ser dito sobre a participação de negros nos
filmes dessa década, exceto quando como personagens abestalhados e infantis, meros
coadjuvantes ou figurantes. (RODRIGUES, 2000)
O Cantor de Jazz (EUA, 1927) revolucionou ao ser a primeira produção
cinematográfica sonora a ser produzida, trazendo o ator Al Jolson (branco) com o rosto
pintado interpretando um músico negro. Esse não é um caso isolado, já que centenas de
filmes se inspiraram no chamado minstrel show (espetáculo teatral criado nos Estados
Unidos no século XIX e que durou até os anos 1960), que utilizava personagens negros
interpretados por brancos. (COHEN e COHEN, 1994, p. 113)
Rodrigues (2000) nos informa que, no Brasil, a partir dos anos 1930 (e perdurando até a
década de 40), com o início da Era Vargas, os negros passaram a ser tratados em tom
paternalista pelo cinema, em face das diretrizes políticas que buscavam falsamente
disseminar a ideia de que o nosso país era habitado por uma enorme maioria branca,
seguido de longe por negros e mestiços. Aliado a essa política, com a publicação, em
1933, do livro Casa-Grande e Senzala, do historiador, antropólogo e sociólogo Gilberto
Freyre, tinha início a ideia de uma “democracia racial”
5
brasileira, onde todos
conviviam harmonicamente, apesar das diferentes matrizes étnicas.
É possível perceber que, assim como nas teorias de Franz Boas, em Gilberto
Freyre a temática da raça é exposta a partir de seu papel cultural. Por isso, pode-se
afirmar que a miscigenação racial não é vista como uma característica negativa da
4
A “blackface” já aparece em “O Nascimento de uma Nação” (1915), de D. W. Griffith.
Ideologia que parte da afirmação de que negros, brancos e índios vivem em harmonia e em completa
igualdade de condições, acusada de omitir todo e qualquer tipo desigualdade étnica realmente existente no
Brasil.
5
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formação do povo brasileiro, mas, sobretudo, como um potencial em sua contribuição
civilizatória.
Apesar de ser indicado como o pai da “democracia racial” no Brasil, Gilberto
Freyre nunca usou esse termo em suas principais obras, atendo-se muito mais à
utilização das expressões “democracia social” e “democracia étnica”.
(...) Gilberto Freyre (1933 - 1936) não pode ser responsabilizado
integralmente, nem pelas idéias nem pelo seu rótulo; ainda que fosse o
inspirador da “democracia racial”, evitou, no mais das vezes, nomeála assim, tendo-a conservado, ademais, com um significado bastante
peculiar. (GUIMARÃES, 2005, p. 02)
Polêmicas à parte, com a criação, em 1936, do Instituto Nacional do Cinema
Educativo (INCE), esse novo ideal foi disseminado também pela produção
cinematográfica oficial, tendo o governo instituído ainda o “dia da raça”, que tinha
como objetivo celebrar a junção de brancos, negros e índios na formação do povo
brasileiro.
A ideia da nova nação é a de que não existem raças humanas, com
diferentes qualidades civilizatórias inatas, mas sim diferentes culturas.
O Brasil passa a se pensar a si mesmo como uma civilização híbrida,
miscigenada, não apenas europeia, mas produto do cruzamento entre
brancos, negros e índios. O “caldeirão étnico” brasileiro seria capaz de
absorver e abrasileirar as tradições e manifestações culturais de
diferentes povos que para aqui imigraram em diferentes épocas;
rejeitando apenas aquelas que fossem incompatíveis com a
modernidade
(superstições,
animismo,
crendices
etc.).
(GUIMARÃES, 2002, p. 117-18)
Em relação à citação acima, do sociólogo Antônio Sérgio Alfredo Guimarães,
cabe esclarecer que rejeitar as crendices, o animismo e as superstições implica, de
maneira incisiva, principalmente, na rejeição aos cultos de raízes africanas, o que se
intensificou com a instauração do Estado Novo, ainda pelas mãos de Getúlio Vargas. O
Babalorixá Rogério de Oxalá explica:
Por volta de 1937, com a criação do Estado Novo de Vargas, começou
o que se pode chamar de quebra-quebra dentro das roças e sítios e nos
terreiros de umbanda, uma perseguição implacável aos chefes e
adeptos, que enquadravam-se como psiquiatricamente doentes. Cenas
de extorsão em troca de proteção policial eram comuns. Nessa época
as roças e os terreiros eram enquadrados na Secção Especial de
Costumes, Diversões do Departamento de Tóxicos e Mistificações do
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Rio de Janeiro, secção essa que lidava com álcool, jogos, drogas e
prostituição. Imagens eram quebradas, congas eram destruídas,
objetos religiosos e pertences dos chefes da roça e/ou terreiro eram
confiscados. As casas eram obrigadas a mudar o nome para o de
santos católicos bem como suas festas deveriam coincidir com o
calendário católico, e muitas tiveram que adotar a denominação de
"Centro Espírita", pois causava melhor impressão. (D‟OXALÁ, 2010,
site eletrônico Centro Afro Reino de Oxalá)6
Para ilustrar o tom paternal e a censura com que o cinema brasileiro desse período
passou a tratar a questão dos negros no Brasil, podemos citar o filme O Despertar da
Redentora (1942), dirigido por Humberto Mauro e produzido pelo INCE, que
demonstrava a abolição da escravatura como um simples ato de bondade e compaixão
de uma princesa branca, obscurecendo todo e qualquer traço da luta abolicionista e dos
movimentos de insurreição levados a efeito pelos escravos durante décadas no Brasil.
Depois de mostrar, no meio da narrativa, cenas dantescas do
sofrimento dos negros, sob os toques solenes de uma mórbida
sinfonia, o filme se encerra com o sorriso agradecido de um escravo,
libertado das correntes. Nenhuma menção das fugas em massa das
fazendas, das centenas de mortos, nem da campanha dos
abolicionistas, que durou quase 70 anos e empolgou negros e brancos
de todo país (RODRIGUES, site eletrônico Mnemocine, 2000).
Com a criação dos estúdios cinematográficos Atlântida (início dos anos 1940),
um gênero tipicamente brasileiro começa a ganhar corpo: a “chanchada”7. Misto de
comédia e musical, as chanchadas eram dirigidas às camadas mais populares de nossa
sociedade, e atingiram o seu ápice em filmes protagonizados pela dupla Oscarito e
Grande Otelo (este último interpretando personagens estereotipados, como o negro
cachaceiro, o vagabundo, o malandro, o bobo ou o „crioulo doido‟).
Um dos questionamentos mais freqüentes feitos ao cinema brasileiro
por intelectuais e artistas negros é o de que os nossos filmes não
apresentam personagens reais individualizados, mas apenas arquétipos
6
D‟OXALÁ, Babalorixá Rogério. A Umbanda é Culto Afro? Disponível em:
<www.centroafro.com/index.php?center=orixas&ori_id=22>. Acessado em 15 de novembro de 2010.
7
“As chanchadas foram um gênero de filme brasileiro que teve seu auge entre as décadas de 1930 e 1950.
Elas eram comédias musicais, misturadas com elementos de filmes policiais e de ficção científica. Esse
tipo de humor, porém, não pode ser considerado uma invenção brasileira, pois fitas assim também eram
comuns em países como Itália, Portugal, México, Cuba e Argentina. Quando o gênero chegou por aqui, a
crítica nacional o considerava um espetáculo vulgar, por isso ele foi apelidado de chanchada - palavra de
origem controversa, mas que pode ter surgido na língua espanhola, significando "porcaria". A aversão dos
críticos, no entanto, não prejudicou o sucesso de bilheteria desses filmes” (Disponível em:
http://mundoestranho.abril.com.br/materia/o-que-eram-as-chanchadas).
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e/ou caricaturas: “o escravo”, “o sambista”, “a mulata boazuda”. A
acusação é pertinente, embora o cinema brasileiro moderno prefira em
geral personagens desse tipo, esquemáticos ou simbólicos, negros ou
não. (RODRIGUES, 1988, p. 29)
Apesar da justificativa de Rodrigues em relação a tal questionamento, é preciso
frisar que o cinema moderno brasileiro, apesar de engendrado a partir da segunda
metade dos anos 1950, só teve início em bases mais concretas no início da década de
1960, com o Cinema Novo. Ou seja, já que as chanchadas vivenciaram o seu ocaso em
1960, não acho pertinente incluir as produções desse gênero no rol da modernidade do
cinema brasileiro.
Discordâncias à parte, e prosseguindo com a discussão, segundo Rodrigues
(2008) há alguns arquétipos relacionados ao negro no campo do imaginário popular, e
que nas produções artísticas são freqüentemente utilizados.
Os mais importantes são o Preto Velho (que transmite a tradição
ancestral africana), o Mártir da escravidão, o Nobre Selvagem, o
Negro Revoltado, o Negro da Alma Branca (trágico elo entre
oprimidos e opressores), o Crioulo Doido (equivalente assexuado e
cômico do Arlequim da Commedia dell‟Arte), a Musa Negra. Há dois
com uma nítida conotação sexual exacerbada: o ameaçador Macho
Negro (Negão) que povoa os sonhos racistas com estupros e
violências; e a Mulata Sedutora (Mulata Boa), uma espécie de mulherobjeto cor de chocolate, desejada por todas as raças. Todos os
personagens negros e mulatos da ficção brasileira se enquadram em
uma dessas categorias, quando não em mais de uma. (RODRIGUES,
2000, site eletrônico Mnemocine).
Cabe ressaltar que, nas chanchadas, Grande Otelo servia de “escada” para
Oscarito, ou seja, sua presença em relação a este último era quase sempre a de
coadjuvante, apesar de sua consolidada carreira de sucesso por conta, principalmente,
de sua atuação no teatro desde os anos 1930. Sobre esse fato, o próprio Grande Otelo,
em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1987, fez questão de dar a
sua explicação, ao ser questionado pelo crítico de cinema Luciano Ramos sobre os
motivos que o levaram a ser “escada” de colegas como Carmen Miranda, o ator Paulo
Autran e, principalmente, Oscarito:
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Eu ainda continuo "escada". Eu continuo "escada", porque "escada" é
uma coisa muito importante em teatro. É, às vezes, mais importante
do que o astro. É importante. Às vezes, o ator, o primeiro ator não faz
nada se não tiver um "escada" à altura. E aí passa a não ser "escada",
passa a ser dupla. Você vê O Gordo e o Magro, quem é "escada" de
um e "escada" do outro? É uma dupla. Você vê eu e o Oscarito, eu não
era "escada", a gente era "escada" [um do outro] lá no cartaz e tudo,
mas, no fundo, quem ia assistir, o trabalho era igual, o trabalho era
igual. Então, não dependia de "escada". (OTELO, Programa Roda
Viva, 1987)
“Escada” ou não, o fato é que Grande Otelo notabilizou-se por interpretar
personagens que se enquadravam naturalmente no tipo “crioulo doido”, arquétipo já
apontado por Rodrigues (2000). O autor explica que:
O cinema brasileiro é pródigo nesse tipo, que reúne comicidade,
simpatia, ingenuidade e infantilidade. Raramente, no entanto, é o
personagem central. Em geral acompanha um branco, como uma
espécie de contraponto. Daí as duplas de grande Otelo com Oscarito e
depois Ankito, e a presença de Mussum no quarteto Os Trapalhões.
Note-se que o Crioulo Doido, mesmo quando adulto, tem o mais das
vezes características assexuadas e/ou infantis, sendo, portanto
inofensivo, o contrário do perigoso Negão. (RODRIGUES, 1988, p.
49)
Um das maiores demonstrações de preconceito do governo brasileiro se deu em
1941, quando da chegada do famoso cineasta Orson Welles em nosso país para a
realização de seu documentário intitulado It´s All True (É Tudo Verdade). Por ter dado
grande destaque ao samba e à cultura dos negros brasileiros, o Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP) de Vargas impediu a continuidade das filmagens,
frustrando, demasiadamente, o diretor Welles e a produtora norte-americana RKO
Pictures. “Isso levou o Departamento de Propaganda da ditadura a pressionar e obter o
cancelamento do documentário (...). O grande cineasta só se interessou pelo samba e
pela cultura afro-brasileira, irritando as autoridades.” (RODRIGUES, 2000). As cenas
filmadas só seriam montadas cerca de 50 anos depois, em 1993.
De acordo com Leite (2005), após o fim da Era Vargas e na segunda metade da
década de 1950, o cinema brasileiro começa a passar por inúmeras transformações. Aos
poucos, sob influência do neo-realismo italiano - um cinema mais engajado – e da
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nouvelle vague francesa, muitas produções abandonavam o mero entretenimento para
dar margem às questões sociais e estéticas mais latentes.
Em 1955, Nelson Pereira dos Santos lança Rio 40 Graus, semidocumentário
sobre a vida de crianças faveladas que vendem amendoins pelas ruas de Copacabana e
outros pontos turísticos do Rio de Janeiro. Proibido pela censura, este filme é
considerado um dos marcos iniciais do que viria a ser chamado posteriormente, no
início da década de 1960, de Cinema Novo brasileiro.
O impacto do filme – produzido no contexto da enorme comoção
nacional provocada pelo suicídio de Getúlio Vargas - foi tão grande
que a polícia e o Serviço de Censura tentaram vetar sua exibição. As
justificativas foram desde a frágil e inverossímil alegação de que os
termômetros oficiais da cidade do Rio de Janeiro, mesmo no verão,
não atingiam 40 graus até a truculenta afirmação de que o filme havia
sido feito por comunistas com o objetivo de denegrir a imagem da
[então] capital federal. Porém, uma campanha liderada por críticos e
cineastas conseguiu bloquear a ação dos censores. (LEITE, 2005, p.
95)
Em 1957, o mesmo Nelson Pereira lança Rio Zona Norte, contando as
desventuras de um sambista negro que, agonizando após um acidente, relembra sua
vida de tristezas e sofrimentos.
As temáticas do cinema novo valorizavam, sobretudo, os excluídos e a
miscigenação racial do Brasil. Nesse momento, cineastas como Glauber Rocha, Nelson
Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Roberto Santos e Arnaldo Jabor, por exemplo,
aproveitando-se da iminência de reformas sociais suscitadas pelo governo João Goulart,
trouxeram à tona as difíceis condições de vida dos negros, favelados e nordestinos do
país. (LEITE, 2005).
Mas a euforia durou pouco: com o golpe de 1964, chegava ao fim o sonho
socialista e iniciava-se a ditadura militar. A censura, mais uma vez, apertava o cerco,
principalmente com o Ato Institucional nº 5 (AI-5)8, decretado em 1968.
8
O Ato Institucional nº 5 foi o quinto dos decretos emitidos pelos militares logo após o golpe de 1964,
suspendendo várias garantias constitucionais e dando poderes absolutos ao presidente da república.
(MARTINS, Franklin. Ato Institucional nº 5 (AI-5). Íntegra (1968). Disponível em:
<www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titulo=ato-institucional-n-5-ai-5-integra1968>. Acessado em 12 de dezembro de 2010.
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Para Leite (2005), a partir daí, principalmente com a criação da Empresa
Brasileira de Filmes (Embrafilme), em 1969, houve novamente uma maior
aproximação do Estado com a produção cinematográfica (já que ele assumiu o papel de
produtor e distribuidor), sendo assegurada uma certa liberdade temática – desde que
esta não atentasse diretamente contra o governo ou explicitamente sobre questões
sociais. A questão dos negros no Brasil volta, aos poucos, a ser tratada pelo cinema,
com ressalvas, sendo assegurada a produção de inúmeros filmes que mostravam a
inserção do negro na sociedade de classes e diversos outros temas relacionados à
cultura afro-brasileira.
Entretanto, cabe aqui citar o caso da novela Passos dos Ventos, de autoria de
Janete Clair e exibida pela Rede Globo em 1968. Segundo Guimarães (2009), na trama,
uma mulher branca (interpretada por Djenane Machado) se apaixonava por um negro
(vivido pelo ator Jorge Coutinho). Após se beijarem (naquela que se tornou a primeira
cena de beijo interracial da história das telenovelas no Brasil), uma grande polêmica foi
criada, tendo a Rede Globo e a autora da novela recebida inúmeras manifestações de
repúdio por parte do público:
Dois atores acabaram causando polêmica durante a novela. O primeiro
foi Mário Lago que foi preso na vida real por problemas políticos e
acabou tendo que ficar de fora da trama por um bom tempo, e a outra
foi Djenane Machado que interpretava uma jovem que se apaixonava
por um negro, interpretado por Jorge Coutinho. Naquela época, o
namoro interracial dos dois provocou protestos e muitas cartas e
telefonemas para a emissora e em especial para a autora Janete Clair,
classificando o romance entre os dois como um "amor absurdo".
(GUIMARÃES, site eletrônico Blog do Paçoca: Era Uma Vez na TV,
2009)9.
Esse fato revela que, se de um lado o cinema poderia tratar com mais liberdade às
questões envolvendo os negros em nossa sociedade, por outro, com a televisão - por
expor diversas situações dentro dos lares das pessoas - a história era bem diferente. E
nesse caso não foi o governo quem censurou a situação, mas o próprio público.
Nos anos 1970, filmes como Compasso de Espera, de Antunes Filho; Crioulo
Doido, do montes-clarens e Carlos Alberto Prates Correia; O Amuleto de Ogum (1974)
9
GUIMARÃES, André. Era uma Vez na TV (Passos dos Ventos – 1968 a 1969). Disponível em:
<superblogdopacoca.blogspot.com/2009/11/era-uma-vez-na-tv-passos-dos-ventos.html>. Acessado em 8
de dezembro de 2009.
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e Tenda dos Milagres (1977), ambos de Nelson Pereira dos Santos; além de Xica da
Silva (1976), de Cacá Diegues, deram prosseguimento, dentre outros títulos, à
visibilidade do negro e sua cultura através do cinema – embora muitos destes ainda se
apoiassem em personagens estereotipados. Mas, conforme lembra Rodrigues:
Um fato importantíssimo deve, no entanto ser lembrado. Esse
renascimento pouco ou nada tem a ver com o negro brasileiro. Todos
os cineastas citados até o momento, mesmo os que fizeram bons
filmes sobre o tema, são brancos. A mesma coisa podemos afirmar
dos roteiristas. (RODRIGUES, 2000).
Enquanto isso, nos Estados Unidos, a indústria cinematográfica hollywoodiana
começava a perceber que chegava ao fim a era do público de massas, passando a
conceber, a partir dos anos 1970, filmes voltados para públicos bem determinados.
Assim, diversas produções direcionadas ao público negro são lançadas.
Deixando de lado os estereótipos racistas que sempre povoaram o cinema dos
Estados Unidos, os novos filmes desse filão eram produções inteiramente negras. Desta
forma, foram lançados filmes de detetives negros, faroestes negros, filmes policiais
negros, e até refilmagens negras para filmes de terror (Blacula, 1972, e Blackenstein,
1973).
Assim, Hollywood tomava um banho de juventude graças à renovação
através de versões negras de seus estereótipos e receitas mais gastos.
Uma só inovação: desta vez, os heróis eram negros e os papéis
ridículos e de malfeitores reservados aos brancos. (HENNEBELLE,
1978, p. 55)
É preciso frisar, entretanto, que esses filmes não tinham a preocupação de realizar
um sério exame da condição dos afroamericanos nos Estados Unidos, pois tratavam-se
somente de “versões negras de gêneros estandardizados”. (HENNEBELLE, 1978).
De volta ao Brasil, Leite (2005, p. 108) reforça a necessidade de citar que a
década de 1970 também foi marcada por algumas produções conhecidas como
“pornochanchadas” – em grande parte realizada por produtoras localizadas numa região
conhecida como “Boca do Lixo”, em São Paulo. Eram comédias com temáticas eróticas
realizadas com baixo orçamento e que permitiram que muitos cineastas continuassem a
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sobreviver diante da intensa invasão do cinema hollywoodiano no Brasil e da falta de
espaços exibidores para as produções nacionais.
O ciclo das comédias eróticas foi um dos principais responsáveis pela
volta do espectador brasileiro para assistir ao filme nacional, apesar
dos preconceitos da crítica e da perseguição implacável da censura.
(...) As comédias eróticas foram a manifestação, no cinema nacional,
da onda de permissividade, de liberação dos costumes e da revolução
sexual, fenômenos que afloraram na década de 1960. (LEITE, 2005, p.
108).
Essas comédias, que antecederam os filmes pornográficos - só liberados pela
censura do governo militar no início dos anos 1980 – utilizaram de forma sistemática os
estereótipos da “mulata boazuda” e do “macho negro” (ou “negão”), conforme
enumerados anteriormente no decorrer deste artigo.
Nos anos 1980, o cineasta Cacá Diegues ainda retoma a temática do negro em
Quilombo (1984); e Murilo Salles lança Chico Rei (1985), sobre a lenda de um líder
africano que vem para o Brasil como escravo e luta pela liberdade de seu povo.
A crise econômica brasileira desse período fez com que o público se afastasse das
salas de cinema. Faltava, também, dinheiro para a realização de filmes sérios e
caprichados. O cinema pornográfico já representava metade das produções nacionais
em 1985, visto que eram realizados com baixíssimo orçamento e nenhum apuro
técnico. Empresas exibidoras nacionais, aliadas às majors norte-americanas, deixaram
cada vez mais de exibir filmes brasileiros. E os anos 80 prosseguiram com o declínio do
produto cinematográfico no Brasil. (LEITE, 2005).
A crise do cinema nacional se acentua com a posse de Fernando Collor de Mello
na presidência da república. Em retaliação à falta de apoio dos artistas à sua campanha
eleitoral em 1989, ao assumir o cargo, Collor extingue o Ministério da Cultura e a
Embrafilme, levando a quase zero o número de produções do cinema nacional – que só
voltaria a dar sinais de vida nos anos 1990, com a criação da Secretaria do Audiovisual
e o início do momento que ficou conhecido como “retomada” do cinema brasileiro.
É possível perceber, a partir deste breve histórico da representação do negro no
cinema brasileiro de ficção, diversos momentos da situação paradoxal relacionada ao
mito da democracia racial versus o preconceito contra os afro-descendentes. Podemos
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perceber que a situação sofreu diversas transformações ao longo do tempo, passando
pelo paternalismo, momentos de censura, falta de engajamento dos próprios artistas
negros, valorização das temáticas da cultura negra, preconceito, desvalorização da
própria imagem (como no caso dos filmes eróticos), o uso recorrente de estereótipos
que minimizavam a figura negra, dentre outras. E percebemos também a influência do
modelo cinematográfico dos Estados Unidos no fazer audiovisual brasileiro.
O importante é ressaltar que a cada dia os negros vêm se afirmando e
conquistando cada vez mais um lugar de destaque em nossa sociedade e nas artes,
lutando contra o racismo dissimulado ainda existente no Brasil e mostrando a todos que
a raça é humana, não se limitando à cor da pele ou à aparência física.
Segundo observa o pesquisador João Carlos Rodrigues (2000), é preciso que os
negros passem, cada vez mais, a ser os protagonistas no tocante à representação de sua
própria história, assumindo papéis de direção, roteiro e produção no campo do fazer
audiovisual, visto que todos os filmes aqui citados foram dirigidos e produzidos por
brancos.
Em suma, foi possível verificar, através do estudo feito para este artigo, que o
preconceito racial é uma grande realidade em nosso país, realidade esta que impede a
mobilidade social e a dignidade de uma parcela considerável do povo brasileiro. O
acesso ao mercado de trabalho, à formação educacional de qualidade, à moradia, à
saúde, à liberdade de cultos religiosos (ainda vistos como ligados ao Mal), por
exemplo, encontram inúmeros obstáculos por parte dos negros por conta de um
preconceito – muitas vezes não declarado – que se arraigou em nossa sociedade. Mas,
apesar de muitas frustrações vivenciadas pelo negro no Brasil, cabe ressaltar que alguns
passos importantes vêm sendo dados se analisados a partir da crescente visibilidade
conquistada pelo movimento negro e pela transformação de suas próprias estratégias de
ação.
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Recebido em 19 de abril de 2013
Aprovado em 2 de maio de 2013
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Ano IV
A HISTÓRIA, O PODER E A APRENDIZAGEM DOS PRAZERES
Daniel da Nóbrega Besarria1
RESUMO: História parece condenada a uma sentença de dizer o real, enquanto
literatura emerge como arte da ficção; destoando desta fronteira este trabalho pensa a
história com a literatura, a partir do pensamento de Michel Foucault e de Clarice
Lispector serão analisadas algumas possibilidades de produções de poder e de prazer.
Ao pensar na palavra poder o historiador é levado para conclusões simplistas de que
este mecanismo só reflete repressão e controle, sem negar esta hipótese citada o artigo
demonstra outros efeitos produzidos pelas relações de poder, dentre eles os fluxos de
aprendizagens e de prazeres na arte de fazer história.
PALAVRAS-CHAVE: História – Poder – Prazer.
ABSTRACT: The history seems condemned to a sentence to tell the real, while
literature emerges as the art of fiction; clashing this border think this work history with
literature, from the thought of Michel Foucault and Clarice Lispector will analyze some
possible productions power and pleasure. When you think of the word power is taken to
the historian simplistic conclusions that this mechanism only reflects repression and
control, without denying this hypothesis cited article demonstrates other effects
produced by power relations, including the flow of learning and pleasure in art make
history.
KEYWORDS: History - Power- Pleasure.
Não é verdade que só alguns pensam e outros, não. Há pensamento
como há poder. Não é verdade que numa sociedade há pessoas que
têm o poder e, abaixo delas, pessoas que não têm nenhum. O poder
deve ser analisado em termos de relações estratégicas complexas e
móbeis, em que todo mundo não ocupa a mesma posição e não
mantém sempre a mesma. Com o pensamento ocorre o mesmo. Não
1
Graduado em licenciatura plena em História pela Universidade de Pernambuco. Pós-Graduando em
História do Brasil pela Uniesb. Graduando em Direito pela Universidade do Estado da Bahia. Monitor do
projeto: Discursos e Relações de Poder do Direito na cidade de Juazeiro-BA. E-mail:
[email protected]
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Ano IV
há de um lado, por exemplo, o saber médico a ser estudado em termos
de história do pensamento e, abaixo dele, o comportamento dos
doentes. Há 20 anos que o objeto da história muda. Desde o final do
Século XIX até mais ou menos 1960, a sociedade foi objeto
fundamental da história. (FOUCAULT, 2011, p.257).
Mas era como se ele quisesse que ela aprendesse a andar com as
próprias pernas e só então, preparada para a liberdade por Ulisses, ela
fosse dele - o que é que ele queria dela, além de tranquilamente
desejá-la? No começo Lóri enganara-se e pensara que Ulisses queria
lhe transmitir algumas coisas das aulas de filosofia mas ele disse: „não
é de filosofia que você está precisando, se fosse seria fácil‟.
(LISPECTOR, 1998, p.16).
Escrever sobre a história é sempre um exercício de prazer, variação de posições,
trocas de experiências, percepções complexas, mudanças de desejos, imprevisibilidade
do próximo objeto da história, do seguinte gozo a ser usufruído. O historiador Michel
Foucault e a literata Clarice Lispector navegaram pelos estudos do saber, do poder e do
prazer, inventaram suas histórias, suas temporalidades, sempre preocupados em novas
aprendizagens.
O objetivo deste trabalho envereda pelas múltiplas relações de poder no fazer
história e suas produções de prazer, deste objetivo pode ser afirmado que o poder não é
algo meramente repressivo e centralizado; para isto será seguida à fala de Ulisses, não
será necessária a filosofia, a história será pensada com a literatura, não ocorrerá à
delimitação da história como uma ciência do real em detrimento da literatura como
ciência representativa da ficção. A história pode ser pensada e teorizada com a literatura
(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p.44); pensar o poder com Foucault e Lispector só
pode resultar num exercício gostoso de prazer.
Poder e prazer estão atrelados nas relações e nas estratégias da sociedade, o
poder não é posse de determinada classe ou de certa estrutura como enfatiza parcela de
historiadores, o poder corre em rede, em papéis, em acontecimentos, em sujeitos, nos
corpos, nos poros, nos sexos e nos pensamentos. O poder produz prazer e a recíproca
pode ser testada, o gozo do personagem Ulisses em exercer parcela do poder de ensinar
o prazer a sua amada Lóri que friamente resistia ao mergulho do fluxo de seu amado.
Com estes personagens da Lispector podem ser pensadas algumas maneiras de
exercer o poder e de fazer a história. Lóri era uma mulher reservada, acostumada com a
dor, com o distanciamento frio de seus objetos, vida sem risos e sem expectativas.
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Ano IV
Ulisses por sua vez estava aberto ao prazer, a novas aprendizagens, recheado com um
cotidiano rico de quem consome e é consumido, ordinariamente. (CERTEAU,
2009,p.88).
A história de Lóri estava presa à concepção de poder repressivo, a dominação de
determinado grupo contra outro, o medo de novas intervenções em seu campo, a zona
de conforto, a repetição das hierarquias e a previsibilidade dos acontecimentos. História
calculista, insensível, demasiadamente dolorida. “E o seu amor que agora era impossível
– que era seco como a febre de quem não transpira era amor sem ópio nem morfina”.
(LISPECTOR, 1998, p.22-23).
A história de Ulisses é movimentada, corrói as hierarquias, entrega-se aos
devires até então invisíveis, abandona a continuidade e a evolução, encara o poder como
exercício, acontecimentos decorrentes de táticas e estratégias semelhantes a uma guerra
cotidiana. História com sustos, abismos e surpresas, que apesar de tudo, deve se viver,
acasos, suspiros e suspenses meticulosos da genealogia. “Foi o apesar de que me deu
uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida”. (LISPECTOR,
1998, p.26).
O poder provoca gozo, olhares e vontades na produção de novas
descontinuidades, “ele não se limita a reprimir, a demarcar o acesso à realidade, a
impedir a formulação de um discurso: o poder trabalha o corpo, penetra no
comportamento, mistura-se com o desejo e o prazer”. (FOUCAULT, 2011, p.311). Na
sua obra História da Sexualidade – A vontade de saber o historiador Michel Foucault
debruça sobre a hipótese repressiva do poder e sua presença no fazer história.
O poder da hipótese repressiva é algo essencialmente voltado para produção de
obediências, desenha as ausências, expõe as falhas e investe no dizer não; o poder
repressivo seria unicamente responsável pelas barreiras entre o lícito e o ilícito,
decorreria da uniformidade das engrenagens.
... do Estado à família, do príncipe ao pai, do tribunal à quinquilharia
das punições quotidianas, das instâncias da dominação social às
estruturas constitutivas do próprio sujeito, encontrar-se-ia, em escalas
diferentes apenas, uma forma geral de poder. Essa forma é o direito,
com o jogo entre o lícito e o ilícito, a transgressão e o castigo. Quer se
empreste a forma do príncipe que formula o direito, do pai que proíbe,
do censor que faz calar, do mestre que diz a lei, de qualquer modo se
esquematiza o poder sob uma forma jurídica e se definem seus efeitos
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HISTÓRIA E PODER
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como obediência. Em face de um poder, que é lei, o sujeito é
constituído como sujeito – que é “sujeitado” – e aquele que obedece.
À homogeneidade formal do poder, ao longo de todas essas instâncias,
corresponderia, naquele que o poder coage – quer se trate do súdito
ante o monarca, do cidadão ante o Estado, da criança ante os pais, do
discípulo ante o mestre – a forma geral da submissão. Poder
legislador, de um lado, e sujeito obediente do outro. (FOUCAULT,
2012, p.195).
A hipótese do poder repressivo insiste numa analise pobre da repetição, escassa
em recursos só um golpe de Estado solucionaria as angústias sociais, pois o Estado seria
este representante detentor do poder. A essência negativa do poder que apenas limitaria,
cotidiano sem alegria e sem aprendizagem, temor de armadilhas e das palavras, poder
de esconder-se de si mesmo e de seus prazeres como fez a Lóri, “não nos temos
entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos”.
(LISPECTOR, 1998, p.48).
A história e suas escritas, seus modos de vestir-se, suas inquietações do tempo e
do espaço, é abundante em produzir relações de poder, de construir novos pensamentos
e de arriscar arranhar as zonas de conforto. “A tragédia de viver existe sim e nós a
sentimos. Mas isso não impede que tenhamos uma profunda aproximação da alegria
com essa mesma vida”. (LISPECTOR, 1995, p.95). Com o personagem Ulisses a
história não nega o poder, a dor e a tragédia, mas utilizam estes elementos em novos
lugares, desloca o pré-estabelecido, remói a repressão em tesão de novos afazeres.
Acusado de assassinar a história, o “réu” Michel Foucault só queria “bagunçar”
o comodismo da hierarquia e das determinações dos saberes, combater concepções
desencarnadas e isoladas, mostrar a “dança” de forças dos enunciados, fazer aparecer a
superficialidade discursiva e os investimentos que preenchem as relações de exclusão e
de oposição. Livros de história também são puras ficções, mas não são os historiadores
que as inventam, a epistemologia do período e sua massa de enunciados são os
responsáveis por estes romances. (FOUCAULT, 2008, p.69).
A divisão compartimentada dos saberes entra na zona do esquecimento a partir
das reconstruções existentes entre as relações da literatura, da matemática, da música,
da história e da economia; poder que forma novas relações de saber, fronteiras e
cartografias de novas aprendizagens, ditos e escritos em busca do perigo, história e
poder vivenciada por Ulisses: “Lóri, você nem ao menos consegue sentir o que há de
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
profunda e arriscada aventura no que nós dois tentamos? Lóri, Lóri! Nós estamos
tentando a alegria!”. (LISPECTOR, 1998, p.59).
Os acontecimentos de 1950 a 1960 “formaram um planeta cultural, estético,
científico e artístico de um tipo completamente diferente do que havia podido ser
elaborado ou legado pelo marxismo e pela fenomenologia” (FOUCAULT, 2011, p.253).
Adentrando nas estratégias e nas manipulações do poder o historiador comunica-se com
os documentos, objetos e épocas; rejeita a interpretação, da busca de causas e
consequências, vai à busca de novos sentidos, novas sensibilidades inventadas para os
fatos de modo ativo no presente.
Com Lispector o historiador pode aprender que mais do que entender os fatos
históricos devem jogar com estes, posicioná-los de modo a produzir novas relações
humanas. “Compreender era sempre um erro – preferia a largueza tão ampla e livre e
sem erros que era não entender. Era ruim, mais pelo menos se sabia que estava em plena
condição humana”. (LISPECTOR, 1998, p.44).
Embora Lóri resistisse a se posicionar naquela relação de poder e de prazer com
Ulisses, ela foi capturada de forma imperceptível, o gosto pelo desejo, de mergulhar no
aprendizado, de não cortar a dor, de produzir prazer.
Quando esta morreu, ao ver que ele não tinha a menor intenção de
ensinar-lhe um modo de viver “filosófico” ou “literário”, já era tarde:
estava presa a ele porque queria ser desejada, sobretudo gostava de ser
desejada meio selvagemente quando ele bebia demais. (LISPECTOR,
1998, p.40-41).
Lóri tinha receio que todo aquele emaranhado de saber de Ulisses, que seu
cotidiano gélido fosse invadido por alegria, por prazer, que fosse transformada em uma
aprendiz da alegria e do prazer, uma história reacionária do poder punitivo, da hipótese
repressiva que torce pelo retrocesso que tenta paralisar e matar as metamorfoses dos
objetos históricos, perspicaz como todos personagens de Clarice, Lóri sente-se mais
sensível, mais embelezada pelo prazer, “esses pensamentos que ela chamava de agudos
ou sensatos já eram resultado de sua convivência mais estreita com Ulisses”.
(LISPECTOR, 1998, p.20).
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Lóri ao longo do romance histórico vai descobrindo que a história não está
restrita a hipótese do poder repressivo, em que o historiador deve manter-se afastado,
neutro, apenas combatendo um pretenso poder centralizado e uniforme.
O poder não para de questionar, de nos questionar; não para de
inquirir, de registrar; ele institucionaliza a busca da verdade, ele a
profissionaliza, ele a recompensa. Temos de produzir a verdade como,
afinal de contas, temos de produzir riquezas, e temos de produzir a
verdade para poder produzir riquezas. E, de outro lado, somos
igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade é a
norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele
veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder. Afinal de contas, somos
julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a
uma certa maneira de viver ou uma certa maneira de morrer, em
função de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos
específicos de poder. Portanto: regras de direito, mecanismos de
poder, efeitos de verdade. Ou ainda: regras de poder e poder dos
discursos verdadeiros. (FOUCAULT, 2005, p.29).
O que Ulisses gostava de mostrar a sua amada Lóri era que ela devia deixar
mostrar-se mais, não ficar escondida sob o receio de si mesma, combater seus medos e
seus limites; Foucault fez isso com a história, longe de ensinar como exercer o poder,
ele queria demonstrar que o historiador pode adentrar nas relações de poder, manipular
os fatos históricos de modo que estes interfiram no presente, trata de posicionar-se de
forma efetiva nas estratégias que produzem poder, saber e prazer.
Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a
multiplicidade de correlação de força imanentes ao domínio onde se
exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de
lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os
apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras,
formando cadeias ou sistemas ou ao contrario, as defasagens e
contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se
originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo
nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais.
A condição de possibilidade do poder, em todo caso, o ponto de vista
que permite tornar seu exercício inteligível até em seus efeitos mais
“periféricos” e, também, enseja empregar seus mecanismos como
chave de inteligibilidade do campo social, não deve ser procurada na
existência primeira de um ponto central, num foco único de soberania
de onde partiriam formas derivadas e descendentes; é o suporte móvel
das correlações de força que, devido a sua desigualdade, induzem
continuamente estados de poder, mas sempre localizados e instáveis.
Onipresença do poder: não porque tenha o privilégio de agrupar tudo
sob sua invencível unidade, mas porque se produz a cada instante, em
todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro. O
poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque
provém de todos os lugares. (FOUCAULT, 2012, p.103).
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História dos prazeres, das economias e políticas dos desejos, escrita no/pelo
corpo, a presença do corpo na história que enfrenta os saberes, maquina poderes de
dizer novas verdades de exercitar o prazer no corpo. O olho que deseja, a função da
visibilidade, o movimento típico do cabelo jogado para trás e o encontro de olhares
produzindo fluxos e ardores nos poros da pele. Ulisses gosta dos corpos e tenta cativar
isto para Lóri. “Veja aquela moça ali, por exemplo, a de maiô vermelho. Veja como
anda com um orgulho natural de quem tem um corpo. Você, além de esconder o que se
chama alma, tem vergonha de ter um corpo”. (LISPECTOR, 1998, p.68).
O poder que vem de baixo, que é produtor de resistências, com Foucault os
historiadores podem aprender que a história deve ser nominalista, o nome é dado de
forma estratégica, meticulosa e proposital. “Irá mudar tudo tão de repente?”
(LISPECTOR, 1998, p.24), a história da mudança, da decifração, das produções de
novas aprendizagens, de novos devires. “Portanto, o papel da história será o de mostrar
que as leis enganam que os reis se mascaram, que o poder ilude e que os historiadores
mentem”. (FOUCAULT, 2005, p.84).
A história e seus manuais se desenvolveram com uma função de soberania, com
a eliminação de saberes considerados inúteis e subordinados, daí pode decorrer a tão
enfatizada hipótese repressiva do poder, a concepção da lei, do soberano, por muito
tempo os manuais de história eram manuais de direito público. História fechada,
reprimida, assim como Lóri que “sabia que ainda não estava pronta para dar-se a ele
nem a ninguém, e nesse ínterim talvez ele a largasse”. (LISPECTOR, 1998, p.63).
O poder da história de Ulisses abre espaços para o imperceptível, para o
acontecimento e as imprevisibilidades das relações humanas, pois, “é preciso não
esquecer e respeitar a violência que temos. As pequenas violências nos salvam das
grandes”. (LISPECTOR, 1998, p.99). História dos instintos, dos sentimentos e dos
prazeres que põe sobre si mesmo o outro, desinibida, orgulhosa de seus fazeres.
A história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu
refinamento progressivo, de sua racionalidade continuamente
crescente, de seu gradiente de abstração, mas a de seus diversos
campos de constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de
uso, a dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída
sua elaboração. (FOUCAULT, 2009, p.4-5).
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HISTÓRIA E PODER
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Recortes, esquecimentos e repetições incomodam os traços da história e de seu
poder repressivo de fazer memorizar, a história do prazer e seu poder de apagar, de
fazer viver e produzir múltiplos sentidos. “E em Lóri o prazer, por falta de prática,
estava no limiar da angústia. Seu peito se contraiu, a força desmoronou: era a angústia
sim. E, se ela não fizesse nada contra, sentia que seria a pior de suas angustias”.
(LISPECTOR, 1998, p.123).
O poder e o prazer transitam entre os indivíduos, estes não são alvos nem
sujeitados inertes, a rede social circula e suas relações possibilitam os sujeitos estarem
submetidos e exercerem o poder. Dificuldade presente na história de Lóri, presa a
história repressiva, a personagem como vários historiadores distanciam-se do presente,
faz de seu oficio um orifício para a passagem de mortes e simples repetições; “que é que
eu faço, é de noite e eu estou viva. Estar viva está me matando aos poucos, e eu estou
toda alerta no escuro”. (LISPECTOR, 1998, p.115).
A história de Lóri é ofuscada, decorre do medo de envolver-se com as pessoas,
busca o distanciamento do contato, do toque e do corpo; a hipótese repressiva do poder
investe em pobrezas, em vidas inertes que se matam aos poucos, historiadores com
nervos protegidos para manter suas pretensas imunidades e neutralidades.
Você está pronta, Lóri. Agora eu quero o que você é, e você quer o
que eu sou. E toda essa troca será feita na cama, Lóri, na minha casa e
não no seu apartamento. Vou escrever neste guardanapo o meu
endereço. Você sabe dos meus horários na faculdade e das aulas
particulares. Fora dessas horas, estarei em casa esperando por você.
Encherei de rosas o meu quarto, e quando murcharem antes de você ir,
comprarei novas rosas. Você pode vir quando quiser. Se eu estiver no
meio de uma aula particular, você espera. Se você quiser vir no meio
da noite e tiver medo de pegar um táxi sozinha, me telefone que irei
buscar você. (LISPECTOR, 1998, p.139).
No fim das contas Lóri e Ulisses se amam negando seus papeis de resguardada e
de professor, o risco das dores de Lóri passam a rondar os saberes de Ulisses, os
prazeres de Ulisses são freneticamente desejados por Lóri; eis uma aprendizagem da
história, o poder não é meramente repressivo, pode ser abandonado o espaço do
historiador oprimido que espera uma queda da vontade soberana da lei e do rei.
Ao mergulhar nas relações de poder o historiador produz um imenso gozo de
prazer, de riso e de deslocamento, a história é toque e descolamento de corpos, é
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
devaneio de respirações e suores noturnos, mas Foucault e Clarice lembraram que tudo
isto não passa de uma aprendizagem dos prazeres.
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro:
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Recebido em 11 de abril de 2013
Aprovado em 1 de maio de 2013
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Ano IV
INTERAÇÕES ENTRE A POLÍTICA INDIGENISTA E A INDÍGENA: A
ATUAÇÃO DE JOÃO BATISTA DA COSTA NA APLICAÇÃO DO
DIRETÓRIO NO RIO DE JANEIRO (1765-1779)
Luís Rafael Araújo Corrêa1
Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar a atuação de João Batista da Costa,
capitão-mor da aldeia de São Barnabé, no que diz respeito à aplicação da política
indigenista pombalina no Rio de Janeiro. Nesse sentido, a atuação de João Batista da
Costa é crucial a fim de denotar a participação ativa dos índios nesse processo - que,
enquanto agentes históricos, procuraram agir a partir de seus próprios interesses e
motivações - e o progressivo avanço colonial sobre as aldeias estimulado pelos
pressupostos assimilacionistas do Diretório. Além disso, a trajetória em questão permite
concluir que a efetivação da política indigenista pombalina foi condicionada pelas
especificidades locais e pela interação constante com a política indígena, representada
principalmente pelas lideranças das aldeias.
Palavras-chave: Política Indigenista Pombalina; Política Indígena; Aldeias coloniais.
Abstract: The aim of this paper is to analyze the role of João Batista da Costa, indian
capitão-mor of the Indian village of São Barnabé, concerning the application of
Pombal's Indian policy in Rio de Janeiro. In this sense, the role of João Batista da Costa
is crucial to denote the active participation by indians in the process – which, as
historical agents, sought to act on their own interests and motivations – and the
progressive colonial expansion in Indian villages stimulated by the assimilationist rules
of the Diretório. Furthermore, the trajectory in question indicates that the realization of
Pombal's Indian policy was conditioned by local specificities and the constant
interaction with indigenous politics, represented mainly by the leaders of the villages.
Keywords: Pombal‟s Indian policy; Indigenous policy; Indian villages.
A Política Indigenista Pombalina
A maior parte dos estudos sobre as mudanças introduzidas pela política
indigenista pombalina destaca particularmente o Grão-Pará e o Maranhão. Isto se deve,
em grande parte, ao fato dela ter sido construída e pensada para tal região. Em meados
1
Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Mestre em História Social pela
mesma Universidade. Professor das redes públicas de ensino do Município e do Estado do Rio de Janeiro.
E-mail: [email protected]
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do século XVIII, perante uma situação turbulenta herdada dos últimos anos do reinado
de D.João V, D. José I chega ao trono de Portugal colocando à frente de seu ministério
Sebastião José de Carvalho e Melo, que já nos primeiros anos empreendeu um esforço
de reorganização administrativa do império português. Tendo seu irmão como
governador do Grão-Pará e Maranhão, a região amazônica desde o princípio foi alvo do
interesse do futuro Marquês de Pombal (MENDONÇA, 1986), depositando nela grande
expectativa econômica (ALMEIDA, 1990, p. 110). As pretensões do ministro incluíam
o estabelecimento de maior controle sobre a mesma, por razões estratégicas e para
garantir melhores rendimentos (CARREIRA, 1988); a abolição do poder das ordens
religiosas, sobretudo em relação às populações indígenas locais (AZEVEDO, 1999); e a
consolidação de fronteiras nesta área que disputava com a Coroa espanhola 2. As
palavras de ordem eram ocupar, povoar, controlar e desenvolver.
Como parte do projeto que se tinha para a região, diversas medidas seriam
formuladas pela Coroa em relação aos índios com vistas a alcançar os objetivos
previstos. No entanto, o contexto local e as demandas dos agentes sociais envolvidos
incidiriam sobre os rumos da política indigenista, que tomaria corpo definitivo na
legislação conhecida como Diretório. O Diretório, projetado inicialmente para o Estado
do Grão-Pará e Maranhão, conciliava em seus parágrafos a demanda dos colonos por
mão-de-obra e o interesse régio em converter os indígenas em agentes da colonização e
integrá-los a sociedade colonial. Várias mudanças previstas davam o tom dessa política
notadamente
assimilacionista,
havendo
uma
clara
intenção
de
propiciar
a
homogeneização cultural e de assimilar os indígenas de modo que, em um futuro não
muito distante, a integração dos mesmos chegasse a um nível que não fosse mais
possível distinguir índios e brancos3. Todavia, sem se resumir a efetivação do que
desejavam os agentes administrativos metropolitanos, a referida política, que não nasceu
pronta, foi construída e aplicada mediante as circunstâncias, aos acontecimentos e aos
interesses envolvidos.
2
O uti possidetis adotado no Tratado de Madri previa que, na demarcação dos limites territoriais, a posse
das terras caberia à Coroa que houvesse ocupado as mesmas efetivamente. Tal situação remete à
importância em converter os índios em agentes da colonização. Sobre isso, ver: DOMINGUES, Ângela.
Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no norte do Brasil na segunda metade
do séc. XVIII.Lisboa: CNCDP, 2000. p.211-224.
3
“Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará e Maranhão, enquanto Sua Majestade
não mandar o contrário”. In: ALMEIDA, Rita Heloísa de. O diretório dos índios: um projeto de
“civilização” no Brasil do século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. Apêndice.
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Posteriormente, por meio do alvará de 17 de agosto de 1758, as determinações
do Diretório foram estendidas para o estado do Brasil. Quanto a isso, penso, amparado
em diferentes estudos de caso, que nas demais capitanias essa experiência não ocorreu
de maneira idêntica ao que se deu no Grão-Pará e Maranhão, mas sim que possuiu
especificidades condicionadas pela própria realidade local4. No Rio de Janeiro, região
de colonização mais antiga, bem estabelecida e que apresentava um diferente grau de
integração das populações indígenas à sociedade colonial, a aplicação do Diretório
apresentou variações fundamentais e produziu conseqüências distintas quando
comparadas ao contexto para qual a legislação foi planejada. Assim, considerando a
dinâmica de aplicação da referida legislação em várias partes da América portuguesa,
que em algumas regiões motivou inclusive a criação de leis que adaptavam os
parágrafos do Diretório à realidade em questão, conclui-se que a dita implementação
não se limitou a uma mera transposição das medidas formuladas para a região
amazônica. Ela foi, antes de tudo, condicionada pelas especificidades locais, resultando,
portanto, em experiências que, mesmo não sendo completamente singulares, guardavam
contornos próprios.
No Rio de Janeiro, diante da expulsão dos jesuítas e das novas determinações
indigenistas, diversas cartas régias foram enviadas com o intuito de instruir as
autoridades sobre como proceder em relação às aldeias. Em primeiro lugar,
determinava-se que as aldeias fossem convertidas em vilas ou freguesias. Nas mesmas
instruções, é perceptível também a preocupação constante em preservar o patrimônio
dos aldeamentos para os índios, já que, de acordo com elas, “nas igrejas das missões é
tudo pertencente aos índios, e que no seu nome e a título de tutela é que se achavam na
mera administração deles religiosos da Companhia de Jesus”5. Porém, apesar das
aldeias terem sido convertidas em freguesias, a aplicação do Diretório no Rio de Janeiro
transcorria com alguma lentidão. Em 28 de abril de 1759, o governador interino da
capitania, José Antônio Freire de Andrade, manifestava a sua intenção de efetivá-lo.
4
Refiro-me a trabalhos que surgiram nos últimos anos em diferentes programas de pós-graduação e que
analisaram as especificidades da aplicação do Diretório em outras regiões. Para a região Sul, ver:
GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no
extremo sul da América portuguesa. Tese de Doutorado: UFF, 2007. Para o Mato Grosso, ver: BLAU,
Alessandra Resende Dias. O “ouro vermelho” e a política de povoamento da capitania de Mato Grosso:
1752-1798. Dissertação de Mestrado em História, UFMT, 2007. Para Pernambuco e suas províncias
anexas, ver: LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte
sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese de Doutorado: UFPE, 2005; SILVA, Isabel Braz Peixoto
da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o diretório pombalino. Tese de Doutorado:
Unicamp, 2003.
5
Carta régia ao bispo do Rio de Janeiro. Arquivo Histórico Ultramarino. RJ Avulsos, Cx.63, Docs.63.
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Mas, quanto a isso, muito pouco foi feito e, em 1761, o Conde de Bobadella ainda
discutia sobre a aplicação do Diretório em sua jurisdição6. A referida lentidão muito
provavelmente pode ser explicada pela ausência do referido governador, que rumou em
1752 em direção ao sul a fim de participar como comissário português da demarcação
dos limites da América meridional e só retornou definitivamente ao Rio de Janeiro em
1759. Mesmo após o seu retorno, as preocupações do Conde estiveram voltadas
principalmente para as ordens de Pombal em relação à defesa da cidade e para a
conservação das conquistas no extremo sul. Apesar de ter atentado para o tema, o que
fica patente através das proposições presentes no ofício de 1761 a esse respeito, a morte
do dito governador, em 1763, acabou por interromper qualquer intenção aviltada pelo
próprio no ofício de 1761. Posteriormente, o Conde da Cunha, que assumiu já no posto
de Vice-rei, também teve uma administração especialmente voltada para a defesa e a
manutenção das fronteiras, deixando o tema em segundo plano.
Foi apenas no vice-reinado seguinte, o do Conde de Azambuja, que se verificou
uma maior preocupação em efetivar a política indigenista pombalina. Apesar de não ter
ocupado o cargo por muito tempo em virtude de sua saúde debilitada, o então Vice-rei
determinou que o capitão-mor da aldeia de São Barnabé, João Batista da Costa, fosse
responsável por “reger e administrar debaixo de sua patente todas as aldeas desta
capitania”, tendo a seu dispor “em cada huma dellas todos os officiais de milicia q se
faziao necessarios assim para as guarnecerem e fortificarem como para acomodarem os
distúrbios q os Indios nellas fizessem”7. Começava ali a intensa participação do então
capitão-mor de São Barnabé na aplicação do Diretório na capitania.
A participação de João Batista da Costa na administração do Conde de Azambuja
Antes de tudo, é fundamental trazer a tona uma importante questão: o que levou
o Conde de Azambuja a conferir tais responsabilidades a esse índio? Para respondê-la,
vale à pena considerar um fato que contribuiu decisivamente para a escolha de João
Batista da Costa como o encarregado do Vice-rei: a concessão do posto de capitão-mor
e de um soldo de 4 mil-réis para o mencionado indígena, dois anos antes da chegada do
Conde de Azambuja ao Rio de Janeiro. Quando estes foram concedidos pelo Conselho
6
Carta de José Antônio Freire de Andrade ao rei. AHU. RJ Avulsos, Cx.57, Docs.45,46; Ofício do
governador conde de Bobadela a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1761. AHU. RJ Avulsos, Cx.
61, D. 5816.
7
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139.
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Ultramarino, Costa, então sargento-mor, estava a dois anos na Corte em busca de seu
provimento no posto de capitão-mor – que estava vago – alegando que possuía dez anos
de serviços prestados sem qualquer ordenado. Tal agraciamento colocou Batista da
Costa em uma situação diferenciada ao retornar, já que sua posição havia sido
confirmada diretamente pelo Conselho e juntamente com isso lhe foi concedido o soldo.
Nesse sentido, é relevante lembrar que essa não era uma situação incomum no que diz
respeito aos indígenas inseridos à ordem colonial8. Como Carvalho Junior bem destaca,
a prática dos índios irem diretamente ao reino requisitar mercês, já verificada no século
XVII, possuía um significado especial para os mesmos, pois nas localidades tais
agraciamentos despendidos pelo centro monárquico eram percebidos como sinais de
distinção, tanto entre as autoridades locais quanto entre os próprios índios
(CARVALHO JÚNIOR, 2005). Ao retornar do reino, portanto, as referidas concessões
a João Batista da Costa certamente representavam prestígio e reconhecimento na
sociedade local, tendo modificado diretamente tanto a forma como o mesmo se via
como a que os outros o viam. Uma boa prova disso é que, mirando o mesmo
reconhecimento social, lideranças de outras aldeias, a partir do precedente aberto por
Costa, solicitaram semelhantes mercês utilizando o caso do capitão-mor de São Barnabé
como um argumento a favor de suas demandas.
Para melhor compreendermos o caso em questão, é de suma importância refletir
a respeito da importância e dos sentidos inerentes à posição de liderança indígena.
Nesse sentido, há de se considerar que as chefias indígenas desempenhavam papel
essencial enquanto intermediários políticos, personagens que, como salientou Farage,
“definem-se por articular as demandas de seu grupo de origem àquelas da ordem
envolvente que se instaura e, note-se, desta habilidade na tradução de dois códigos
mutuamente ininteligíveis, derivando sua autoridade” (FARAGE, 1991, p. 156-157).
Corroborando tal idéia, Maria Regina Celestino de Almeida destaca o fato de que as
chefias tiveram “papel fundamental no processo de integração de seus subordinados ao
sistema colonial”, cabendo aos mesmos a posição de “intermediários entre o mundo
indígena e o mundo ocidental” (ALMEIDA, 2003, p. 164). Rita Heloísa Almeida
também chama a atenção para isso ao ressaltar que os líderes indígenas “foram
escolhidos pelos colonizadores para responder por sua gente e transmitir mensagens de
ambos os lados”, lembrando ainda que essas alianças estabelecidas com as chefias
8
Requerimento de João Batista da Costa, ao rei D. José I. 1765. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 81, D. 4.
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nativas correspondiam a uma prática recorrente empregada pela Coroa portuguesa em
relação às populações conquistadas (ALMEIDA, 1997, p. 65). Aliás, quanto a isso, vale
salientar que o projeto colonial não se sustentaria unicamente com base na violência,
fato que pressupunha, então, um momento de reorganização social desses grupos a fim
de edificar a nova ordem colonial, etapa esta que contou com a ativa participação dos
líderes nativos.
A propósito, é fundamental levar em conta as mudanças verificadas nas bases de
poder das lideranças indígenas tendo em vista o processo de construção de uma nova
ordem no bojo da colonização. Sobre isso, é importante, antes de tudo, atentar para a
observação que Gândavo faz a respeito de tais chefias indígenas nos primórdios da
colonização, afirmando que elas eram obedecidas “por vontade, e não por força”. Essa
constatação feita pelo dito cronista explicita um aspecto fundamental no que tange a
esse tema, que diz respeito ao fato de que era o prestígio que o líder possuía perante o
seu grupo que constituía a base de seu poder. Como bem atentou Florestan Fernandes
em seus minuciosos estudos sobre as sociedades tupis, o respeito adquirido era fruto,
sobretudo, do domínio da oratória, essencial para mobilizar os seus liderados, e da
capacidade enquanto guerreiro e líder militar, elemento esse que remetia a centralidade
da guerra para a organização social dos mesmos. Aliás, Fernandes dimensionou
apropriadamente a guerra para as sociedades tupis, ressaltando que era principalmente
na guerra que as lideranças confirmavam o seu prestígio. Assim, posto que o poder não
estava pautado na coerção, mas sim na tradição e na aceitação da comunidade em
relação ao líder, é possível depreender que essa posição, que pressupunha mais deveres
do que direitos, estava diretamente ligada ao respeito que a chefia gozava frente aos
seus liderados (FERNANDES, 1970). Esses pontos também são percebidos por Pierre
Clastres em seus estudos. Visando denotar que os povos indígenas da América do Sul
não desconheciam o poder, mas sim que refutavam e limitavam a presença do Estado
em suas organizações sociais, o autor em tela destaca que a posição de chefia,
sustentada pela admiração junto ao grupo, exigia uma série de obrigações que
demandavam habilidades específicas. Segundo Clastres, “o chefe não dispõe de
nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar ordem”, de
modo que, sem representar um comando, “as pessoas da tribo não têm nenhum dever de
obediência” (CLASTRES, 1990, p. 143). Sem dispor de meios de mando, a liderança
era determinada pela capacidade de reunir homens ao seu redor, sendo que, de acordo
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com Clastres, para além da generosidade, “o talento oratório é uma condição e também
um meio de poder político”. Mais do que isso, o chefe era tido como “a instância
moderadora do grupo”, função que se expressava no fato de que “a temática de seus
discursos está estreitamente ligada à sua função de „fazedor de paz‟” (Ibid., p. 23).
Portanto, as constatações que Clastres faz a fim de comprovar a sua tese, corroboram o
que estamos tentando dizer. A propósito, a pertinência da perspectiva aqui considerada
também fica evidente na pesquisa de Nádia Farage. A autora, no que diz respeito às
lideranças indígenas dos povos que habitavam a região do Rio Branco, salienta, com
base em diversos cronistas, que os feitos guerreiros de um chefe “conferiam-lhe
„séquito, representando assim um efeito catalisador sobre o grupo local”, remetendo à
importância da guerra para o prestígio dessas lideranças. Tendo isso em vista, Farage
não deixa de reforçar a idéia de que o poder das chefias indígenas residia no respeito e
não na coerção, de modo que, em virtude do fato de que o “prestígio de um chefe era de
natureza fugidia, necessitava ser continuamente alimentado para ser objeto de
legitimidade por parte do grupo”, a legitimidade “era questão em aberto, corda bamba
em que andavam os chefes” (FARAGE, 1991, p. 156). Fica claro, então, que a posição
de chefia era indissociável da aceitação da comunidade, correspondendo, como
pudemos perceber, ao principal elemento de legitimação da mesma.
Posto isso, diante da situação colonial, a Coroa portuguesa se inseriu enquanto
uma instância essencial no que diz respeito a legitimação das lideranças indígenas, de
maneira que, tendo como base a tradição nativa somada aos pressupostos advindos da
lógica social ibérica – apropriada pelos índios a sua maneira – se deu a construção de
uma elite ou nobreza indígena. Nesse sentido, o papel da Coroa enquanto instância
legitimadora se fez presente no fato de que, nos aldeamentos, o cargo de principal
passou a exigir o devido provimento pelo governador e, em determinados casos, tornouse hereditário:
Quando o legítimo principal da aldeia morrer, tendo legítimo filho de
capacidade e idade, lhe sucede o governo, sem mais outra diligência;
mas não havendo filho, ou não sendo capaz, o estilo é que o padre,
que tem cuidado da aldeia, consulte com os maiores, quem tem
merecimento para ser principal; e esse se propõe ao governador para
que mande passar provisão (BEOZZO, 1983, p. 204).
No que tange a hereditariedade do cargo, Almeida já havia observado pertinentemente a
incidência de tal aspecto na aldeia de São Lourenço, que foi governada pelos
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descendentes de Araribóia até o final do século XVIII (ALMEIDA, 2003). Enfim,
tratava-se, obviamente, de mudanças significativas quando comparadas com a tradição
nativa, na qual a dita posição dependia essencialmente da aceitação pública, não
pressupondo a hereditariedade ou a presença de uma outra instância legitimadora.
Mesmo assim, o prestígio do líder ainda era um elemento fundamental no que tange a
capacidade de mobilizar a comunidade, de modo que, “a qualidade da oratória, tão
valorizada entre os índios, mantinha-se nas aldeias para pregar novos valores: o trabalho
cotidiano nas roças e as virtudes cristãs” (ALMEIDA, 2003, p. 158). Ou seja, apesar da
incidência significativa da Coroa portuguesa sobre a legitimação das chefias, a aceitação
do grupo ainda era um ponto importante quando consideramos o papel de
intermediários que agora recaíam sobre as lideranças. Se aos líderes indígenas cabia
atender às demandas inerentes ao empreendimento colonial, o mesmo pode ser dito em
relação aos seus liderados, pois, enquanto representantes da comunidade, cabia ainda
aos esses chefes zelar pelos interesses da mesma. Dessa maneira, a posição de chefia
indígena no bojo da situação colonial, implicava um constante equilíbrio entre os
interesses da colonização, da comunidade a que pertenciam e os seus próprios
interesses. Portanto, no que diz respeito a esse tema, é preciso cuidado para não
apreender essa aliança como sendo unicamente uma relação de submissão na qual as
lideranças eram meros fantoches. Ao invés da passividade atribuída por interpretações
tradicionais, as chefias indígenas buscaram agir tendo em vista as suas próprias
motivações e interesses, o que remete ao fato de que, longe de simples aculturação, elas
foram capazes de oferecer respostas conscientes ao novo contexto em que estavam
inseridas a partir da experiência e da apropriação da cultura letrada e institucionalizada
européia. Mais do que isso, enquanto sujeitos de suas próprias histórias, os líderes
nativos não se furtaram a atuar dentro dos limites da ordem colonial estabelecida a fim
de garantir tanto as suas demandas quanto a de seus liderados.
Tendo isso em vista, o mais provável é que a escolha do Conde de Azambuja
tenha se dado pela intenção do mesmo em encarregar alguém que gozasse de prestígio e
de suficiente autoridade para mobilizar os índios das aldeias com vistas a atender os
interesses régios. Dentre esses interesses, inclui-se não só o de propiciar a assimilação
dos indígenas à sociedade colonial a partir da intensificação das relações e dos contatos
com os colonos, como também o de garantir mão-de-obra para o real serviço. Desse
modo, a fim de garantir o bom andamento das povoações indígenas – que vivenciavam
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uma nova realidade desde a expulsão dos jesuítas e da promulgação do Diretório – era
crucial manter e reforçar a tradicional política de alianças com os índios levada a cabo
pela Coroa. Costa, que ocupava posição privilegiada decorrente da concessão régia
supracitada, certamente reunia tais quesitos em função dos longos anos que exercia o
posto de liderança em São Barnabé, o que influiu diretamente na sua escolha.
Cabe ressaltar que esse não constituiu um caso singular no bojo do processo em
tela. Sobre isso, Ligio Maia destaca a participação ativa das chefias indígenas quanto à
aplicação da política indigenista pombalina em Pernambuco e suas anexas. Em sua tese,
ele dedica-se a delinear as concessões que o governador da dita capitania, Lobo da
Silva, fez às lideranças indígenas locais em uma reunião a fim de obter o apoio dos
mesmos para pôr em prática as novas determinações da Coroa. De acordo com a sua
perspectiva, o autor denota que tal reunião constituiu “o ponto chave para a
compreensão da importância das lideranças indígenas na aplicação do diretório, pois
sem elas, o novo systema – como citavam os documentos coevos – era simplesmente
impraticável” (MAIA, 2010, p. 271). Dessa maneira, como Maia também indica, é
evidente, portanto, que a colaboração de tais chefias era indispensável nesse contexto,
tendo sido devidamente compreendida pelas autoridades em diversas localidades da
América portuguesa.
Assim, em um contexto em que os diretores ainda não tinham sido
providenciados para as aldeias, o capitão-mor de São Barnabé emergiu como uma figura
importante quanto à aplicação da política indigenista pombalina no Rio de Janeiro. E, de
fato, ele agiu nesse sentido. De acordo com várias certidões, Costa desempenhava o
importante serviço de “aprontar Indios para o serviço de S. Magestade”, de maneira que
ia “a todas as aldeas desta capitania para visitar o estado e numerar os Indios dellas para
quando for necessário extrahir de cada huma os indios mais capazes para o dito
serviço”. Em um dos documentos, o pároco da aldeia de São Francisco Xavier de
Itaguaí confirma a visita de Batista da Costa com esse propósito “por ordem do Conde
de Azambuja”9. Mas, ao que parece, as visitas iam além do provimento de índios para o
real serviço, como bem destaca o padre da aldeia de Cabo Frio. O citado pároco informa
que
veio o Capitao aos 20 de junho de 1766 e juntou todos os moradores
aos 24 do mesmo mes e os admoestou que vivessem como Deus
9
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139.
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mandava e que fossem prontos para o real serviço cuidando
juntamente no seo proprio aproveitamento pellos achar geralmente
destituidos de bens sem cuidarem em lavouras nem couza alguma de
que se pudessem sustentarem a si e as suas famillias10.
O seu zelo no que tange a efetivação dos novos pressupostos indigenistas também pode
ser percebido em uma denúncia que fez em relação a José Dias Quaresma, capitão-mor
da Aldeia da Sagrada Família de Ipuca. Nessa denúncia, João Batista da Costa,
confirmando que o “Conde Azambuja lhe ampliou mandando que o dito capitam mor
corregesse todas as Aldeas desta capitania”, delata que Quaresma é casado com uma
negra, fato que contrariava os princípios do Diretório11. Enfim, ao que tudo indica, o
capitão-mor de São Barnabé foi não apenas incumbido da referida tarefa, mas também a
assumiu, sobretudo se levarmos em conta que a denúncia em tela foi feita pouca depois
da saída do Conde de Azambuja do posto de Vice-rei.
Para compreender o comprometimento de Costa, vale considerar a possibilidade
de inserção dos capitães-mores das aldeias indígenas na hierarquia social portuguesa a
partir do importante papel exercido pela Coroa como definidora de tal hierarquia. Isso
porque, à primeira vista, tais considerações podem parecer contraditórias quando damos
conta que estamos falando de uma sociedade caracterizada pela rígida ordenação social
e que era particularmente excludente em relação a determinados grupos: segundo a
cultura política do Antigo Regime português, havia barreiras quanto à mobilidade social
mediante as noções de pureza de sangue e defeito mecânico. Porém, tais impedimentos,
como destacou Raminelli, tenderam a ser relativizados de acordo com o contexto.
Segundo o próprio, “a produção de lealdade em terras tão remotas era mais relevante do
que a classificação social do próprio reino”, o que fazia com que regras rigorosas como
o defeito mecânico e a pureza de sangue se flexibilizassem no ultramar (RAMINELLI,
2008, p. 53). Além disso, como lembra Monteiro, embora o cume da pirâmide
hierárquica tenha se mantido rigidamente encerrado, a mobilidade social em relação aos
graus menores da nobreza eram acessíveis. Segundo o próprio, apesar da ascensão
social à alta nobreza se fazer pelo meio da riqueza e pelo modo de vida, as distinções
intermediárias poderiam ser alcançadas através de serviços prestados ao rei, reforçando,
portanto, a posição da monarquia na regulação da mobilidade. Dessa maneira, Monteiro
enfatiza que a legislação portuguesa sempre destinou às lideranças locais os principais
10
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139.
11
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139.
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postos da hierarquia local (MONTEIRO, 1997). Assim sendo, as chefias indígenas, que
desempenhavam a importante função de intermediários, acabavam por se inserir na
hierarquia social dado aos serviços que prestavam em prol do empreendimento colonial
e do prestígio que possuíam junto aos seus liderados. Portanto, se por um lado havia o
interesse do Vice-rei em garantir o bom andamento da aplicação do Diretório ao
conferir responsabilidades a um índio que possuía prestígio em relação aos demais, por
outro havia o interesse de Costa em alcançar uma posição mais favorável no bojo da
hierarquia social colonial.
Fica patente então que o favorecimento e as distinções sociais reservadas às
chefias indígenas estão intimamente relacionados à consolidação do governo nas aldeias
convertidas em vilas ou freguesias, sendo tais figuras essenciais no sentido de zelar
pelos pressupostos do Diretório e de atuarem enquanto intermediários entre os
interesses da Coroa e os índios. No entanto, vale destacar que as novas determinações
indigenistas abriram variadas possibilidades de ação para essas lideranças, de modo que,
para além de cumprir com os interesses régios, elas se valeram dos princípios expressos
pelo Diretório para galgarem melhores posições na hierarquia social portuguesa e,
ainda, concretizarem as demandas e as reivindicações de suas povoações. Isso nos
permite atentar para o importante espaço de interlocução propiciado pela política
indigenista pombalina e que as chefias indígenas se valeram, em diversas ocasiões, a
fim de concretizar os seus interesses e, enquanto representantes de grupos os quais
conferiam grande parcela da autoridade que possuíam, as demandas de suas
comunidades. Desse modo, os índios, ao invés de meros objetos da dita política
pombalina,
tiverem
possibilidades,
principalmente
por
intermédio
de
seus
representantes, de atuar ativamente nesse processo. Assim, a aplicação do Diretório no
Rio de Janeiro, longe de uma simples imposição, foi marcada pela constante interação
com a política indígena, representada então por João Batista da Costa.
O Diretório na administração do Marquês de Lavradio
Em 1769, quando o Marquês de Lavradio assumiu o vice-reinado, a participação
de Costa nos rumos da política indigenista declinou. Preocupado em fazer valer
sistematicamente os pressupostos do Diretório em sua jurisdição – tarefa que
considerava “bastante árdua”, mas que estava entre “os negocios bastantemente
importantes” – o Marquês empreendeu uma série de mudanças quanto ao tema
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(LAVRADIO, 1978, p. 95). A sua proposta, ao invés de centralizar as responsabilidades
em alguém, pautou-se na interação com as demais lideranças das aldeias, as quais foram
reforçadas, e na designação de diretores – incumbidos de civilizar os índios – para
algumas delas. Com isso, a posição de destaque usufruída por Batista da Costa na
administração do Conde de Azambuja diminuiu sensivelmente.
A propósito, se a autoridade de Costa em relação aos demais aldeamentos
deixou de existir em virtude dessa nova orientação, o dito capitão-mor viu sua
influência ser ameaçada também no interior de sua própria comunidade em virtude das
mudanças empreendidas pelo Marquês de Lavradio. Quanto a isso, é preciso ressaltar a
atenção especial dada pelo então Vice-rei à aldeia de São Barnabé, que se tornou
emblemática dada a sua singularidade no contexto da capitania do Rio de Janeiro por ter
sido a única a ser transformada em vila, em 1772, com o nome de Vila Nova de São
José D‟El Rei. Além disso, ela foi a primeira a ter sido provida de um diretor
encarregado de reger a povoação, fato que geraria consideráveis conflitos com João
Batista da Costa no que tange ao exercício da autoridade na comunidade.
Todavia, é preciso salientar que o esforço do Marquês em aplicar o Diretório
teve como reflexo não apenas a deterioração do poder político do capitão-mor de São
Barnabé, como também o avanço colonial sobre as terras da aldeia. No bojo dos
propósitos civilizacionais e assimilacionistas presentes no Diretório, Lavradio
responsabilizou-se por “muitas índias que estavam em bastante perigo de se perderem,
mandando-as criar, e educar nesta cidade, a fim que possam ter mais sentimentos de
pureza, e honestidade”, tendo “já casado seis ou sete com homens brancos” (Ibid., p.
117). Mandou também que vários índios de São Barnabé aprendessem ofícios na cidade
do Rio de janeiro e enviou três a um colégio para serem devidamente educados. Mas,
mais do que isso, ele abriu espaço para que os colonos, agora incentivados a viver no
interior das aldeias, avançassem sobre as terras das mesmas12.
Diante dessa situação conturbada, Batista da Costa não hesitou em mobilizar os
índios da aldeia em uma revolta contra as usurpações das terras coletivas. Ciente da
revolta, o Vice-rei não mediu esforços para pacificá-la. Ordenou a Feliciano Joaquim de
12
Vários requerimentos dos índios denunciavam tal situação: Requerimento do capitão-mor Baltazar
Antunes Pereira e mais índios da povoação da vila Nova de São José d' El Rei. 1799. Arquivo Histórico
Ultramarino, RJ Avulsos, Cx. 137, D. 13014; Requerimento dos índios da vila nova da aldeia de São
Barnabé. 1801. AHU, RJ Avulsos, Cx. 194, D. 13878; Requerimento do capitão-mor Baltazar Antunes
Pereira e mais índios americanos da povoação da vila Nova de São José d'El Rei. 1804. AHU, RJ
Avulsos, Cx. 226, D. 15513.
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Sousa, o primeiro diretor nomeado para tal povoação, que não tivesse “procedimentos
forte com nenhum deles, ainda dos que quiserem ir”, procedendo “com muita brandura,
e aqueles que forem ficando lhes dará todas as liberdades que eles por ora quiserem,
fazendo-lhes em tudo a vontade”, de modo que se “vejam tão abundantes, e satisfeitos
que eles possam ir conhecendo pouco a pouco a grande felicidade que têm tido”. Como
parte da pacificação, enviou também uma patente ao capitão-mor e mandou o Diretor
esperançar aos índios de que ele iria providenciar para “reparti-lhes as terras, e dar-lhes
instrumentos que as cultivem”, além de determinar que fosse realizada a medição das
terras do aldeamento com o objetivo de preservá-las (LAVRADIO, 1978, p. 117). As
providências, apesar de terem levado ao fim da revolta, não deixaram os índios
satisfeitos, tendo em vista que, segundo Costa, as medidas do Marquês de Lavradio
eram não apenas onerosas, já que o que era gasto com as medições saía dos rendimentos
da aldeia, como também ineficazes, pois não solucionava o problema13. Mesmo assim, a
consideração das demandas dos índios pelo Vice-rei, que tentou uma saída para o
problema, denota bem a contínua interação entre a política indígena e a indigenista. Tal
fato revela que Costa, mesmo não dispondo mais das prerrogativas reconhecidas a ele
durante a administração do Conde de Azambuja, foi capaz de valer-se da posição de
intermediário político a fim de recorrer ao espaço de interlocução propiciado pelo
Diretório com o objetivo de ter as suas demandas e as de seu grupo atendidas.
Essa importância pode ser novamente atestada em 1779, quando as conturbações
vivenciadas pela recém-criada vila atingiram o seu ápice. Capitalizando a insatisfação
dos índios aldeados com as usurpações cometidas pelos colonos em suas terras e com a
série de desmandos cometidos pelos seguidos diretores da povoação, João Batista da
Costa redige um requerimento endereçado à rainha D. Maria I no qual pede
providências imediatas para os agravos sofridos pelos indígenas, em uma clara
apropriação da cultura política letrada e institucionalizada ibérica. De acordo com o seu
relato, os seguidos regentes que passaram pela povoação foram responsáveis apenas por
se aproveitarem do trabalho dos índios e dos rendimentos da mesma, cometendo
diversos abusos e submetendo os indígenas a inúmeras privações. Diante de
administrações tão despóticas, o capitão-mor em questão destaca as fugas de diversos
índios como uma alternativa a essa situação, justificando: “huma liberdade constrangida
he como o ar emserrado nas estreitas concavidades da terra, que com repetidos aballos
13
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139.
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pretende solicitar a fuga”14. Mais do que isso, Costa presta-se a criticar a regência dos
diretores, seguindo o argumento de que os mesmos administravam a povoação a partir
de seus interesses particulares. Na sua perspectiva, a presença dos diretores – que “so
servirao para destruhir a Aldea e amotinarem os Índios”, bem como utilizar “do trabalho
deles, como se focem seus escravos, maltratando-os pondo-os em fuga e emriquecendo
com os lucros e com os rendimentos da Aldea sem aumento para ella” – era
desnecessária, tendo em vista que os ditos regentes em nada contribuiriam para uma
povoação que era desprovida de grandes atrativos:
Se os Excelentissimos Condes de Bobadella e Azambuja quando
governarao esta Cidade vicem que era necessario Derector na Aldea o
teriao posto, pois por saberem que nella nunca houverao nem ha
fabricas de qualidade alguma desde o seu principio, porque os Indios
da dita Aldea se ocupao na Cidade do Real serviço e outros com suas
mulheres em lavouras para os seus sustentos, tambem em fazerem
balaios, esteiras e acentos para cadeiras para com o produto se
vestirem e nao nessecitao para esta execução de direcção nem de
Director porque sabem fazer15.
A essas, somam-se ainda as várias queixas que novamente remetiam às
investidas dos colonos sobre as terras da aldeia, problema recorrente a partir das
mudanças introduzidas pelo Diretório. Enfim, através das reivindicações de João Batista
da Costa, podemos perceber, para além das fugas e da revolta, a postura crítica a
respeito de aspectos importantes do Diretório a partir da ótica indígena. Não estamos
querendo dizer que o capitão-mor em tela tenha sido um opositor da política em
questão, até porque, como vimos anteriormente, ele foi um significativo colaborador no
que tange a aplicação da mesma durante a administração do Conde de Azambuja. Mas
sim que Costa, com o apoio de seus liderados, apontava conscientemente para os
desvios decorrentes da aplicação do Diretório de modo a conseguir, através da
intervenção régia, solução para os seus problemas.
E, de fato, a Coroa interviu a favor dos índios. No parecer do Conselho
Ultramarino, determinou-se que fosse mandado “devassar os excessos de que neste
papel se acuzavao os dous Directores desta Aldea” e foi sugerido reparações para os
agravos que a aldeia sofria. Mas, mais do que isso, o parecer corroborava a posição
defendida por Costa a respeito da inutilidade dos diretores. O documento destaca que a
14
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139.
15
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139.
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presença de tais diretores “nao convem mais nesta e nas mais Aldeas como tenho por
certo, tendo visto as queixas que se fazem dos do Pará e Maranhão, abula este
pernicioso official, creado em bem e convertido sempre em dano dos Índios”16. Ao fim,
a ação dos índios obteve sucesso e o diretor foi substituído.
Dessa maneira, o resultado do requerimento de Costa, que capitalizava a
insatisfação dos aldeados, demonstra de forma emblemática que os índios, ao invés de
meros objetos da política indigenista pombalina, tiveram participação ativa na mesma,
incidindo, inclusive, sobre os seus rumos. Havia, portanto, um evidente cenário de
disputa de poder que envolvia as autoridades coloniais e os índios, sobretudo as
lideranças das povoações. Fica evidente, enfim, que a aplicação do Diretório, menos do
que uma simples imposição, foi o produto da interação constante entre a política
indigenista e a indígena.
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2005.
16
Consulta do Conselho Ultramarino sobre a representação de João Batista da Costa. AHU. Rio de
Janeiro, Cx. 122, D. 33.
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SILVA, Isabel Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande. Tese de Doutorado
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Recebido em 19 de abril de 2013
Aprovado em 9 de maio de 2013
Historien – Revista de História [8] Petrolina, dez 2012 – maio 2013
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O CÓLERA EM FORTALEZA: ANÁLISE DO BOSQUEJO HISTÓRICO DO DR.
JOAQUIM ANTONIO ALVES RIBEIRO
Mayara de Almeida Lemos1
Resumo: O texto intitulado Bosquejo Histórico, de autoria do Dr. Joaquim Antonio
Alves Ribeiro, foi redigido para publicação em uma revista fundada pelo mesmo
médico no ano de 1862, intitulada “Lanceta”, como um resumo sobre a invasão do
cholera morbus epidemico a Fortaleza, capital do Ceará. Este artigo pretende lançar luz
sobre a vivência da epidemia, na Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza, partindo do
olhar e lugar social do referido médico acerca de questões como as causas da epidemia,
a forma como a cidade foi atingida, os tratamentos utilizados e sua eficácia, quem eram
as pessoas recolhidas para tratamento no Hospital da Santa Casa e os aspectos referentes
ao enterramento dos coléricos. A partir das suas observações, este médico se posicionou
em meio aos debates em curso durante a segunda metade do século XIX, que buscavam
a compreensão sobre a doença.
Palavras-chave: Cólera. Fortaleza. Santa Casa de Misericórdia.
Abstract: The text entitled Bosquejo Histórico, authored by Joaquim Antonio Alves
Ribeiro, was written for publication in a magazine founded by the same doctor in 1862,
entitled "Lanceta", as a summary about the invasion of cholera morbus to Fortaleza,
capital of Ceará State. This article aims to shed light on the experience of the epidemic,
in the Santa Casa de Misericórdia of Fortaleza, from the look and social place of this
doctor about issues such as the causes of the epidemic, the way the city was hit, the
treatments used and its effectiveness, whom were the people taken for treatment at the
Santa Casa Hospital and the aspects related to the burial of cholerics. From his
observations, this doctor positioned himself in the midst of the ongoing discussions
during the second half of the 19th century, which was seeking understanding about
disease.
Keywords: Cholera. Fortaleza. Santa Casa de Misericórdia of Fortaleza.
O cólera é adquirido através do consumo de água ou alimentos
contaminados por fezes ou vômitos contendo o vibrio colerae. Os principais sintomas
são diarréias, vômitos e câimbras, que se manifestam de forma violenta, agredindo e
enfraquecendo o organismo rapidamente, devido à desidratação ocasionada com a perda
de líquidos contendo eletrólitos essenciais para o funcionamento correto do corpo. 2
1
Possui Especialização em Perspectivas e Abordagens em História – UECE. Atualmente é Mestranda em
História - UECE, e membro do GT História da Saúde e das Doenças e do Grupo de Pesquisa PRAETECE
– Práticas de Edição de Textos do Estado do Ceará. Bolsista pela Fundação Cearense de Apoio ao
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Funcap. E-mail: [email protected].
2
Cf. LEWINSON, Rachel. Três epidemias: Lições do passado. Campinas: Unicamp, 2003. p. 95-111.
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No ano de 1862, o cólera chegou ao Ceará. Segundo o Dr. Guilherme
Chambly Studart, o Barão de Studart, em sua obra Datas e factos para a História do
Ceará, o cólera se manifestou em Icó3 no dia 05 de abril, proveniente da Paraíba,
atingindo Fortaleza no mês de maio (STUDART, 2001: 152). O responsável pelo
transporte da doença teria sido um viajante, José Leandro Tavares, vindo da região
paraibana de Rio do Peixe, situada na fronteira com a cidade de Icó: “dahi propagou-se
aos diversos pontos, verificando-se sempre sua transmissão pelos boiadeiros ou por
fugitivos de lugares já accommettidos” (STUDART, 2001: 54).
O então presidente da província do Ceará, Manoel Antonio Duarte de
Azevedo4, “com a noticia do flagello que actualmente grassa no interior da província de
Pernambuco iniciou as necessárias cautelas para preservar esta da invasão do mal ou
para encontral-a prevenida”. Tais cautelas foram: recomendações às Câmaras
Municipais, autoridades e facultativos; nomeação de uma comissão médica em
Fortaleza para estudar e elaborar “um systema de medidas preventivas”, e a seleção de
“indicações para ser rebatido o flagello ou modificados os seus perniciosos effeitos”. 5
A responsabilidade por administrar o Ceará durante a epidemia de cólera
primeiro recaiu sobre o Comendador José Antonio Machado, presidente da província no
início de 1862. Dando continuidade às medidas implantadas por Duarte de Azevedo,
nomeou seis comissões de socorros para Fortaleza, com a incumbência de atuar nos
distritos médicos - áreas em que a cidade foi dividida para uma melhor cobertura. Os
demais pontos da província também tiveram comissões nomeadas e ordens para
estabelecer enfermarias “onde sejam tratados os indigentes, que assim acharão um
abrigo contra a intempérie do tempo á que ficarão expostos em suas habitações
insalubres”. 6
3
Cidade localizada no centro-sul cearense.
4
Duarte de Azevedo: Presidente do Ceará de 06 de maio de 1861 a 12 de fevereiro de 1862. Bacharel em
direito nomeado em 1861. Cf. GIRÃO, Raimundo. Evolução histórica cearense. Fortaleza:
BNB/ETENE, 1985. p. 299.
5
Relatório que à Assembleia Provincial do Ceará apresentou no dia da abertura da Sessão ordinária de
1861 o Presidente da Província Doutor Manoel Antonio Duarte de Azevedo. Disponível em:
<http://www.crl.edu/brazil/provincial>. Acesso em: 12 jun. 2011.
6
Relatório com que o quarto Vice-Presidente Commendador José Antonio Machado passou a
administração da Província ao Excelentíssimo Senhor Doutor José Bento da Cunha Figueiredo Junior em
05 de maio de 1862. Fortaleza: Typographia Cearense, 1862. p. 04. Disponível em: <
http://www.crl.edu/brazil/provincial>. Acesso em: 12.07.11.
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As comissões tinham como função “prestarem à população pobre, além de
remédios e dietas, todos os meios indispensáveis para o seu curativo”. A instalação dos
equipamentos de saúde nos núcleos populacionais, afetados e/ou ameaçados, consistia
basicamente no estabelecimento de enfermarias provisórias e no envio de ambulâncias
contendo medicamentos e cobertores. Em Fortaleza, os esforços do governo da
província, no sentido de prover os ditos “indigentes” da assistência médica necessária,
podem ser observados a partir de 1837, com a criação do cargo de médico da pobreza,
instituído pelo então presidente, José Martiniano de Alencar, para atender a presidiários
e demais pessoas pobres, bem como para coordenação do serviço de vacinação.
A criação do cargo de médico da pobreza foi uma das primeiras medidas
implantadas para a organização dos serviços de saúde no Ceará; o mesmo deveria
atender gratuitamente à população desprovida de recursos, inclusive realizando visitas
domiciliares. Com o passar do tempo e o crescimento da população, percebeu-se que
apenas o médico da pobreza não seria suficiente para atender a demanda, pois fazia-se
necessário um local onde os indigentes pudessem ser tratados e receber os
medicamentos e dietas considerados adequados. Nesse intuito, foram implantadas as
enfermarias da caridade, os lazaretos e o hospital da Santa Casa de Misericórdia.
O presente artigo é uma análise do Bosquejo Histórico7, de autoria do
médico Joaquim Antonio Alves Ribeiro8, no intuito de compreender a atuação da Santa
Casa de Misericórdia de Fortaleza durante a epidemia de cólera na referida cidade, em
1862. O médico citado anteriormente foi autor de obras9 voltadas ao público leigo,
7
Ofício do Dr. Joaquim Alves Ribeiro ao Dr. José Bento da Cunha Figueiredo Junior (Presidente da
Província do Ceará) 20.09.1862. Fundo: Santa Casa. Correspondências expedidas. Arquivo Público do
Estado do Ceará (APEC), Fortaleza/CE.
8
Joaquim Antonio Alves Ribeiro nasceu em Icó a 09 de Janeiro de 1830 e faleceu em Fortaleza no dia 02
de Maio de 1875. Formado em medicina pela Universidade de Harvard, em 1853. Foi médico do hospital
da Caridade de Fortaleza, cirurgião da Guarda Nacional, e possuía os títulos de Cavaleiro da Ordem da
Rosa, obtido em 1858, e de Cavaleiro de Christo, de 1867. Atuante na produção literária e científica
internacional, foi sócio correspondente das seguintes sociedades: Imperial Academia de Medicina do Rio
de Janeiro, Sociedade Medica de Massachusetts, Sociedade de História Natural de Frankfurt e da
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Cf.: STUDART, Barão de. Dicionário bio-bibliográfico
cearense. Fortaleza: Typo Lithographia a Vapor. s.d.
9
As obras de sua autoria foram as seguintes:
-Instrucções feitas em linguagem vulgar para o tratamento dos bexigosos indigentes por pessoas não
profissionaes na povoação de Acarape, seguidas de instrucção para a boa vaccinação, 1859.
-Instrucções feitas em linguagem vulgar sobre o tratamento do cholera-morbus, Ceará, 1860.
-Instrucções para o curativo da febre amarella por pessoas estranhas á medicina, Typ. Cearense, Ceará,
1860.
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escritas em “linguagem vulgar” para possibilitar que a população pudesse promover o
próprio tratamento diante de moléstias como a varíola, ou bexiga, febre amarela e
cólera.
O documento ora analisado trata-se de uma cópia, manuscrita, do texto
escrito para publicação na Revista A Lanceta, jornal de medicina, physiologia, cirurgia,
chimica, etc, fundada e redigida pelo mesmo médico no ano de 1862. Além deste, foram
utilizados outras correspondências expedidas pelo Dr. Joaquim Antonio Ribeiro ao
presidente da província, José Bento da Cunha Figueiredo Junior. A grafia dos
documentos é respeitada nas citações.
Em 1498, a regente de Portugal, Dona Leonor, fundou o primeiro hospital
da Santa Casa de Misericórdia, seguindo os preceitos cristãos de socorrer os enfermos,
especialmente os pobres, medida que se estendeu às futuras colônias portuguesas. As
primeiras Santas Casas brasileiras foram fundadas em Santos, Salvador e Rio de
Janeiro. Financiadas por doações e verbas públicas, suas atividades consistiam em
abrigar e cuidar dos doentes e, nos casos mais graves, proporcionar assistência religiosa
aos moribundos. No Brasil colônia, até o início do período republicano, quase todas as
iniciativas voltadas para a assistência à saúde da população partiam da filantropia, ou
seja, da caridade dos cidadãos ricos e da Igreja Católica (TELAROLLI JUNIOR, 1995:
31).
O Hospital da Caridade de Fortaleza começou a ser construído em 1845,
durante a gestão do presidente coronel Inácio Correia de Vasconcelos, após os estragos
causados pela seca ocorrida no mesmo ano; no entanto, a obra não foi concluída. A
construção foi retomada somente em 1854, durante a gestão do presidente padre Vicente
Pires da Mota. Posteriormente, o Hospital da Caridade passou a se chamar Santa Casa
de Misericórdia, cujo funcionamento regular teve início em 1861 com a criação da
Irmandade da Misericórdia de Fortaleza, sendo administrada por um provedor, que era o
próprio presidente da província, o qual nomeava os demais membros da mesa
administrativa, chamados de mordomos (SUCUPIRA, 1985: 212-220).
-Manual da Parteira ou pequena compilação de conselhos na arte de partejar, escripta em linguagem
familiar, Leipzig, 1861. Cf. Id.
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HISTÓRIA E PODER
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Os cargos de funcionários que compunham a Santa Casa de Misericórdia no
ano de 1862 eram os seguintes: médico, escrivão, almoxarife, contínuo, capelão,
sacristão, cozinheiro, enfermeiros, coveiros e serventes.10
O desconhecimento das causas do cólera era evidente nas palavras do Dr.
Joaquim Ribeiro: “o apparecimento da epidemia nesta Cidade, quanto a nós, dormirá
em grande obscuridade”. A metodologia de pesquisa adotada pelo mesmo consistiu na
análise das estatísticas de tratamento nas clínicas públicas e particulares, objetivando
perceber incidências de moléstias gástricas. O resultado obtido apontou para o aumento
considerável de “desarranjos gástricos e diarrhéa” em Fortaleza, desde o mês de março
de 1862, e o médico concluiu que “somos levados a acreditar na origem miasmática ou
domestica do cholera” 11.
A teoria miasmática12 vigorou até finais do século XIX, consistindo no
principal paradigma médico de explicação das doenças, o de infecção. Acreditava-se
que ao respirar o ar poluído pelos miasmas, o indivíduo contraía as doenças.
Para o Dr. Joaquim Ribeiro “a invasão da epidemia foi anunciada pelo
augmento das diarrheas com um typo especial”, não havendo, portanto, sustentação para
a ideia de que a doença teria sido importada de outras localidades, pois “não temos
exactas observações meteorológicas, que provem as alterações na constituição physica
da Capital”. Assim, a doença teria surgido na própria cidade, como decorrência dos
casos de diarréia, agravados por algum fator, por ele desconhecido, mas decisivo para a
proliferação da moléstia. 13
Conforme exposto no Bosquejo Histórico, o tratamento a ser administrado
aos coléricos, recolhidos na Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza, era organizado de
10
Ofício do Dr. Joaquim Alves Ribeiro ao Dr. José Bento da Cunha Figueiredo Junior (Presidente da
Província do Ceará) 16.09.1862. Fundo: Santa Casa. Correspondências expedidas. Arquivo Público do
Estado do Ceará (APEC), Fortaleza/CE.
11
Ofício do Dr. Joaquim Alves Ribeiro ao Dr. José Bento da Cunha Figueiredo Junior (Presidente da
Província do Ceará) 20.09.1862. Fundo: Santa Casa. Correspondências expedidas. Arquivo Público do
Estado do Ceará (APEC), Fortaleza/CE.
12
Conforme a teoria miasmática as doenças eram causadas por matérias orgânicas em decomposição e
águas estagnadas. Cf. SCLIAR, Moacyr. Um olhar sobre a saúde pública. São Paulo: Scipione, 2003. p.
18.
13
Ofício do Dr. Joaquim Alves Ribeiro ao Dr. José Bento da Cunha Figueiredo Junior (Presidente da
Província do Ceará) 20.09.1862. Fundo: Santa Casa. Correspondências expedidas. Arquivo Público do
Estado do Ceará (APEC), Fortaleza/CE.
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
acordo com a fase da doença; dessa forma, era dividido em três períodos,
correspondendo o último a fase mais grave do cólera.
De acordo com as observações feitas pelo Dr. Joaquim Ribeiro, o tratamento
que trouxe melhores resultados para os coléricos no primeiro período da doença era a
utilização dos seguintes itens: “vomitivos d’ipecacuanha, purgativo de óleo de rícino,
infusões diffusivas, narcóticos, ora o ópio, ora a tintura de hyoscyamo negro”. 14
Para o segundo período da doença, por sua vez dividido em duas fases,
empregava – na primeira – “clysteres emolientes ou adstringentes. Já na segunda,
quando o doente marchava para um sofrido termo fatal, recorríamos aos estimulantes
applicados internamente”. Porém, não utilizava medicamentos em pílulas, pois
conforme observou nos vômitos e evacuações de coléricos, as pílulas eram expelidas
inteiras, sem que permanecessem no organismo dos enfermos o tempo necessário para
sua absorção.
Cabe aqui mencionarmos que as experiências anteriores nos
auctorizarão a não administrar pílulas no segundo período, porque já
tínhamos observado que neste estado era commum ver os doentes nas
enfermarias lançarem, no vomito e na defecação, as pílulas inteiras,
que havião tomado algumas horas antes de entrar para o Hospital,
assim como que nestas condições muitas veses uma diarrhea
choleriforme, que tende melhorar é agravada pela não digestão das
pílulas, o que não só observamos mas é até confirmado por muitos
auctores modernos.15
Além de procurar justificar seu posicionamento em relação às pílulas
através do embasamento em “auctores modernos”, o Dr. Joaquim Ribeiro partia do
pressuposto de que o organismo do colérico estaria debilitado e, por isso, o enfermo não
conseguia realizar a digestão das pílulas, que levaria horas para ser completada ao
contrário dos medicamentos líquidos, absorvidos com maior rapidez.
Para provar o equívoco cometido pelos demais médicos que clinicavam em
Fortaleza, o Dr. Joaquim Ribeiro afirma que se:
os collegas, cujas opiniões aliás respeitamos, não tiveram occasião de
observar, o que acabamos de referir, é porque não lidarão tão de perto,
como nós com os verdadeiros cholericos, indigentes, e não se
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entregarão com constancia a um exame nas evacuações de seus
doentes. 16
Os “verdadeiros cholericos” aos quais o médico se referia eram os
indigentes, numa associação entre doença e pobreza, pois a medicina da época
acreditava que o cólera se manifestava de forma mais violenta nos organismos
debilitados pela fome e más condições de habitação e trabalho.
Quanto ao tratamento destinado aos doentes no terceiro período da doença,
consistia em combater a “estimulação sudorífica”, além de “tônicos, antisepticos,
poucas veses os revulsivos”. Nesta fase, os médicos acreditavam que não poderiam
fazer praticamente nada que trouxesse a cura para os coléricos, tendo em vista que esta
seria possível quanto mais cedo fossem iniciados os tratamentos.17
Segundo afirmou o Dr. Joaquim Ribeiro, a maioria dos coléricos, atendidos
na Santa Casa, apenas haviam procurado os serviços médicos no terceiro período da
doença, quando não restavam muitas opções de tratamento e chances de cura. Essa era a
justificativa utilizada pelo médico para explicar o número de mortes ocorridas no
estabelecimento:
Deve-se notar, que esta crescida mortalidade só tem por causa não a
gravidade do mal, mas em se ter julgado o Hospital o receptáculo dos
doentes nas peores condicções, incluindo muitos particulares, que erão
mandados somente para morrerem lá, com o receio de empestear suas
casas: isto deu lugar a entrada de grande numero de moribundos que
não erão medicados por nós.18
Nesse sentido, há a busca pela isenção do Hospital, e dos que lá
trabalhavam, pelo elevado número de mortos, tanto como forma de manter a imagem da
instituição como de legitimar suas práticas terapêuticas, pois os que chegavam quase
mortos não haviam sido tratados pelos profissionais da Santa Casa, e carregavam
consigo o resultado de tratamentos considerados errados pelo Dr. Joaquim Ribeiro.
Assim, o referido médico salientava que, em vez de enfermaria de coléricos,
o Hospital estava sendo utilizado como “um verdadeiro recolhimento de moribundos” e
que os tratamentos teriam obtido sucesso se “não nos coubesse exactamente o
tratamento da ultima classe da sociedade”. Ao que parece, a maioria dos atendidos na
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Santa Casa eram pessoas pobres, no entanto, havia também os “particulares”. O que
demonstra que não eram apenas os chamados indigentes os enviados para este
estabelecimento; porém, o fato de apenas buscarem a Santa Casa quando não havia mais
esperanças aponta para uma resistência da população em ser tratada neste novo espaço,
ao invés de receber os cuidados em suas próprias casas.
Mesmo após mortos, os coléricos representavam perigo, enquanto fonte de
contaminação, portanto, fazia-se necessário sepultá-los o mais rápido possível, em
condições que não permitissem a descoberta das covas por animais ou chuvas. A esse
respeito, o Dr. Joaquim Ribeiro salientou a “promptidão com que se fazião os
enterramentos” no Cemitério da Santa Casa, no intuito de evitar os miasmas condutores
da doença. “Como é geralmente sabido, as exalações de cadáveres mesmo em princípio
de putrefação, infeccionando bastantemente a atmosphera” poderiam ampliar os
estragos causados pelo cólera, espalhando a doença através da circulação do ar
contaminado. Para completar o sepultamento dos coléricos, de forma adequada, era
considerado essencial o depósito de cal nas covas, e a falta deste material foi motivo de
preocupação na Santa Casa, levando o Dr. Joaquim Ribeiro a solicitar várias vezes a
compra deste material ao presidente da província, e provedor da Santa Casa, José Bento
da Cunha Figueiredo Junior. 19
O cemitério público, cujas rendas eram destinadas à manutenção da Santa
Casa, era a última morada de pessoas provenientes de variadas classes sociais. As
catacumbas para adultos custavam 50 réis, e as de crianças 25 réis. Caso o enterro fosse
realizado após as 18h00min, a taxa seria aumentada em mais cinco réis. “A Resolução
Provincial nº 911 de 12 de setembro de 1859 concedeu se erigirem no cemitério
sepulturas perpetuas mediante a compensação de 500 réis por cem palmos quadrados”;
além deste pagamento, a família enlutada ainda teria que obter uma licença com o
presidente da província para adquirir a sepultura perpétua. 20
Apesar de o Cemitério ser público, a cobrança desses valores era justificada
pelos membros da Santa Casa da seguinte forma:
19
Ofício do Dr. Joaquim Alves Ribeiro ao Dr. José Bento da Cunha Figueiredo Junior (Presidente da
Província do Ceará). 04.06.1862. Fundo: Santa Casa. Correspondências expedidas. Arquivo Público do
Estado do Ceará (APEC), Fortaleza/CE.
20
Ofício do Dr. Joaquim Alves Ribeiro ao Dr. José Bento da Cunha Figueiredo Junior (Presidente da
Província do Ceará) Data desconhecida. Fundo: Santa Casa. Correspondências expedidas. Arquivo
Público do Estado do Ceará (APEC), Fortaleza/CE.
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Todo o homem ao descer ao tumulo deve ter sem ônus algum, um
pequeno espaço de terra, em que receba seus restos mortais, sempre
que esse homem ou os seus que lhe sobreviverem se conformarem em
dar-lhe um jazigo modesto em harmonia com o nada das cousas
humanas, há no cemitério um grande quadro para estes enterramentos;
mas sempre que com magnificência posthuma se pretende ostentar à
posteridade a existência do pó, que do pó sahis, e em pó revertes, he
justo que o orgulho do rico morto seja em proveito do vivo desvalido,
a quem nas angustias da enfermidade faltão os soccorros da medicina,
o alimento e até um miserável tecto em que se abrigue da intempérie
do ar.21
Logo, a ideia defendida pelos membros da Santa Casa era que a renda
obtida com os sepultamentos deveria ser destinada ao tratamento dos enfermos. Porém,
com o passar dos meses e o aumento de casos de cólera, o espaço destinado ao
sepultamento das vítimas da epidemia foi se extinguindo, e essa preocupação se tornou
objeto de vários ofícios enviados ao presidente da província, que acumulava ainda o
cargo de provedor da Santa Casa.
Em outro relatório apresentado ao presidente da província, consta o número
de pessoas atendidas na Santa Casa por ocasião da epidemia de cólera:
Durante a invasão da epidemia 203 cholericos forão tratados na Santa
casa por conta dos soccorros públicos (...) paga pela Thesouraria da
Fazenda. Durante os meses de janeiro a 31 do passado o movimento
do hospital foi o seguinte. Doentes que passarão de Dezembro de 1861
para janeiro do corrente anno: 24. Entrarão durante este mês até 31 de
Agosto passado: 212, formando ao todo o numero de 236, dos quais
sahirão 198, morrerão 20, e ficão 18 em tratamento.22
Apesar deste balanço, apresentado no mês de setembro quando se acreditava
na extinção da epidemia, novos casos de cólera foram informados ao presidente nos
meses de outubro e novembro, tendo a doença permanecido de forma esporádica no
Ceará até o ano de 1864, em alguns municípios.
Este artigo pretende contribuir para os estudos em História da Saúde e das
Doenças, através da análise isolada de um dos médicos que atuou em Fortaleza, capital
do Ceará, durante a ocorrência da epidemia de cólera, em 1862. Partindo do ponto de
vista do Dr. Joaquim Ribeiro, eivado de intencionalidades científicas e até mesmo
21
Id.
22
Ofício do Dr. Joaquim Alves Ribeiro ao Dr. José Bento da Cunha Figueiredo Junior (Presidente da
Província do Ceará) 16. 09.1862. Fundo: Santa Casa. Correspondências expedidas. Arquivo Público do
Estado do Ceará (APEC), Fortaleza/CE.
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políticas, vislumbra-se o funcionamento da Santa Casa, com a chegada dos enfermos, a
aplicação de tratamentos distintos na busca pela cura, e nos casos em que estes não
surtiam efeito, os óbitos de coléricos, cujo sepultamento requeria cuidados especiais a
fim de evitar a propagação de miasmas provenientes dos cadáveres.
REFERÊNCIAS
GIRÃO, Raimundo. Evolução histórica cearense. Fortaleza: BNB/ETENE, 1985.
LEWINSON, Rachel. Três epidemias: Lições do passado. Campinas: Unicamp, 2003.
SCLIAR, Moacyr. Um olhar sobre a saúde pública. São Paulo: Scipione, 2003.
STUDART, Barão de. Datas e factos para a historia do Ceará. Tomo II[1896]. Ed.
fac-sim. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001.
_________________. Dicionário
Lithographia a Vapor. s.d.
bio-bibliográfico
cearense.
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SUCUPIRA, Luís. Origem e desenvolvimento da Santa Casa de Fortaleza. In: Revista
do Instituto do Ceará, Fortaleza: 1985.
TELAROLLI JUNIOR, Rodolpho. Epidemias no Brasil: uma abordagem biológica e
social. São Paulo: Moderna, 1995.
Recebido em 14 de janeiro de 2013
Aprovada em 10 de maio de 2013
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A ESCRITA DA INFÂNCIA MALDITA EM JUAZEIRO - BAHIA (1984)
Sérgio Pessoa Ferro1
Resumo: O artigo decorre de uma pesquisa sobre os discursos acerca da infância na
cidade de Juazeiro-Bahia, no ano de 1984. Com base no método genealógico
desenvolvido por Nietzsche e Michel Foucault, textos extraídos do Jornal de Juazeiro,
publicados no referido período histórico, são analisados com o objetivo de cartografar
as táticas, as linhas cruzadas, os jogos de forças que, desafiando as divisões técnicas do
direito, produziram uma subjetividade infantil marcada por processos de filtragem
social. A análise dos enunciados faz emergir um mapa dos dispositivos de poder,
distribuídos na forma de sistemas de justiça, públicos e privados, que se encarregavam
de normalizar e castigar as crianças desniveladas, esquisitas e desordeiras.
Palavras-chave: Direitos da Criança. Discurso. Genealogia.
Abstract: This article stems from a research on discourses of childhoods in the town of
Juazeiro-Bahia, in 1984. Based on the genealogical method developed by Nietzsche and
Michel Foucault, texts extracted from the Journal of Juazeiro, published in that
historical period, are analyzed with the aim of mapping the tactics, the lines cross,
which forces games, challenging technical divisions of law, produced a child
subjectivity marked by social filtering processes. The analysis of utterances brings out a
map of power devices, distributed in the form of systems of justice, public and private,
who were in charge of punishing and normalize uneven, weird and rowdy children.
Keywords: Children's Rights. Discourse. Genealogy.
Introdução
1
Graduando em Direito pela Universidade do Estado da Bahia. E-mail: [email protected].
Orientadora: Profª Ms. Anna Christina Freire Barbosa.
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Modernizar o homem na tradição ocidental sempre significou produzi-lo, fazê-lo
passar pelos vários círculos e linearidades da sociedade em que vive para obter o sujeito
humano, racional, consciente de si. Os procedimentos de subjetivação, no entanto, não
se exercem de forma lacunosa, senão demandam práticas contínuas, ininterruptas,
voltadas à captura do vivente, buscando suprimir o esquecimento e atiçar nele uma
memória, tornando-o confiável (NIETZSCHE, 2009).
Nesse labirinto de incessantes retornos e invenções do humano, algo de
incontestavelmente novo, criativo, revolucionário emerge e sua chegada, por si só, já
causa um curto-circuito no funcionamento das engrenagens dessas máquinas de
modelação do corpo e do espírito: a criança.
Diante dessa irreverência desmedida, desse devir-criança, as tecnologias de
poder encontram talvez o seu mais querido e inelutável objeto de dominação. Forçar à
infância, tornar pequeno, fechar a ferida que se abriu na cultura quando uma intensidade
estranha ao costume irrompeu pela natureza e apareceu em seu meio. O nascimento
provoca reações imunológicas no corpo social, daí os esforços médico-terapêuticos que,
sob a forma de sistema de justiça, buscam restabelecê-lo.
As tensões sociais que marcam a produção da criança são camufladas por
imagens a-históricas de transcendência religiosa ou científica. Dizer a infância faz com
que ela exista. Os enunciados desse discurso de infantilização, todavia, não se propagam
livremente, abrindo caminhos para singularidades, mas se produzem na lógica restrita
da linguagem gramatical, das estruturas semânticas e do Significante.
Em Juazeiro, município localizado no Norte da Bahia, artigos e reportagens de
relevante jornal variavam entre movimentações políticas militando a favor das eleições
diretas e os clamores dos “cidadãos de bem” que almejavam limpar as vias da cidade de
menores “repugnantes, pervertidos e inconvenientes”, cujos futuros eram ditos como
fatalmente consagrados à delinquência.
Para tratar do tema, o presente trabalho busca historicizar2 os discursos
juazeirenses sobre o “problema do menor” no ano de 1984 veiculados no Jornal de
Juazeiro, objetivando cartografar as formações discursivas3 das quais emergiram novas
2
Na linguagem de Michel Foucault (1979), historicizar os discursos significa extrair-lhes a mobilidade,
mapear as forças que concorreram para a produção de seus enunciados, analisar as descontinuidades e
rupturas pelas quais passaram para lograr a aparência de naturais, definitivos.
3
Para Foucault (2007, p. 43), o pesquisador se depara diante de uma formação discursiva quando puder
descrever, “entre um certo número de enunciados”, um sistema de dispersão, “e no caso em que entre os
objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade”.
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técnicas de poder sobre a criança. Como aporte teórico, autores como Michel Foucault,
Gilles Deleuze, Félix Guattari, Philippe Ariès e Edson Passetti conduzirão as reflexões,
operacionalizando-se uma empreitada genealógica sobre a infância e seus dispositivos
de normalização.
O texto foi organizado em duas seções, na primeira, examinando as fontes
primárias, abordarei a produção e circulação do modelo pudico de criança em Juazeiro,
os dizeres da infância inventada nas creches, nos desfiles cívicos, nas campanhas de
vacinação. Trata-se da analítica de um bem-dizer da infância, expondo aos viventes o
axioma geral da subjetividade infantil.
Na segunda, me ocuparei daquilo que foi dito sobre a criança desordeira,
desajustada, “perigosa”. São os menores com seus olhos “protegidos” por tarjas pretas.
Essa infância mal-dita passava mais pela voz de promotores de justiça, juízes e
comissários de menores que por padres ou professores.
Os trajes assépticos da criança quebrável: a escrita do bem-dizer
Ordem, desenvolvimento, progresso – três palavras que comandavam as
atividades da vida pública juazeirense no fim do século XX. Pavimentar os logradouros,
recolher o lixo, vacinar as crianças, estocá-las em creches, centros comunitários, casas
de passagem. Unidades de disciplinamento e etiquetagem dos corpos infantis se
acoplavam a dispositivos totalizantes de governamentalidade biopolítica cujas práticas
não demandavam clausuras, mas regulações políticas a céu aberto (PASSETTI, 2011).
A justiça da criança, tal qual se firmou no Brasil nos anos 1990, na forma do
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, foi composta de infinitesimais justiças
paralelas, reguladoras do cotidiano das crianças e suas famílias por meio de um aparelho
difuso de justiça que não distinguisse atividades jurisdicionais da prática médica ou da
assistência social4. Esse produto social somente foi elaborado em decorrência de um
4
O “problema menor” surgiu no Brasil através das discussões dos juristas, que buscavam por uma
alternativa teórica para a culpabilização das crianças e adolescentes que praticavam crimes. De início, o
argumento jurídico separou a menoridade da maioridade, decidindo pela organização de uma justiça
especial para os menores. Esta justiça não se ocupa das atividades tradicionais do Judiciário, como julgar
processos e resolver litígios. Na verdade, ela possui uma feição assistencialista, preocupa-se com a
educação, a saúde, a vida das crianças. Nesse agenciamento, promoveu-se uma judicialização das relações
sociais, difundindo o jurídico por campos que, originariamente, não são de sua competência. Ver:
SCHUCH, Patrice. Práticas de justiça: uma etnografia do “campo de atenção do adolescente
infrator” no Rio Grande do Sul, depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. Tese de
doutoramento. UFRS, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social: Porto Alegre, 2005.
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conjunto de enunciados que compunham uma formação discursiva baseada em projetos
de modernização, ordem e desenvolvimento; em Juazeiro, havia um projeto desses:
Juazeiro é uma cidade tão carente de Ordem e Disciplina, em quase
todos os seus setores de atividade pública, que já pode ser comparada
a uma Casa de Orates, cuja caracterização fundamental é a
DESORGANIZAÇÃO. [...] As águas, sujas e fedorentas, que correm
pelas ruas da periferia, em valas a descoberto, formando poças nos
sítios mais baixos, onde os porcos vadios se chafurdam para refrescar
as banhas, e os anofelinos depositam seus ovos para a proliferação da
família das muriçocas, que constituem um suplício para toda a
população, desafiando a Saúde Pública, sem que as autoridades
municipais, através de seu setor de Saneamento, dessa desgraça se
apercebam e tomem providências para emanilhar essas valas,
higienizar as ruas da periferia e proteger sua população – essa mesma
população que as elegeu exatamente para defendê-la. (UMA
CIDADE..., 1984).
O tom do locutor desse enunciado se mistura ao que, efetivamente, é dito por ele
(MAINGUENEAU, 1997). As vozes, sensivelmente inaudíveis, não se reproduzem no
texto do jornal antigo, mas a composição das orações, a estruturação sintática, a
distribuição dos predicados faz surgir um discurso de médico-judicialização das
contingências sociais da época. O locutor-enunciador convoca uma legião de soldados
sanitários e judiciais para “higienizar as ruas da periferia e proteger sua população”
(UMA CIDADE..., 1984).
Das efervescências populares, seus costumes, seus modos de vida, extrai-se a
tela caótica da “DESORGANIZAÇÃO” (UMA CIDADE..., 1984), com maiúsculas
calamidades e repugnâncias. Modelos de beleza e feiura são inventados para separar a
desordem da ordem e permitir a administração de pessoas, ambientes e animais.
O enunciado, conectado a outros textos do periódico e a sua linha editorial
moralizante, narrava um discurso de defesa da sociedade, de sua pureza. Nesse
contexto, o “direito de espada” que fazia morrer e deixava viver os menores facilmente
substituíveis, acometidos pela diarreia, desnutrição ou tuberculose, ia sendo arrastado
por um direito sobre as vidas (FOUCAULT, 1999, p. 287), com a messiânica função de
sacralizar os corpos infantis e fazê-los viver.
Enquanto elaborava a história dos mecanismos de modernização, Foucault
(1999) observou a formação dessa tecnologia política das totalidades, das massas, cuja
principal estratégia consiste em apoderar-se da vida das pessoas, geri-la, regulá-la,
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autorizá-la a depender dos fluxos econômicos, das projeções semióticas, dos interesses
do todo; o intelectual francês a chamou de biopoder:
Ora, durante a segunda metade do século XVIII, eu creio que se vê
aparecer algo de novo, que é uma outra tecnologia de poder, não
disciplinar dessa feita. Uma tecnologia de poder que não exclui a
primeira, que não exclui a técnica disciplinar, mas que a embute, que a
integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-la
implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente
graças a essa técnica disciplinar prévia. [...] Ao que essa nova técnica
de poder não disciplinar se aplica é – diferentemente da disciplina, que
se dirige ao corpo – a vida dos homens, ou ainda, se vocês preferirem,
ela se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser
vivo; no limite, se vocês quiserem, ao homem-espécie. [...] São esses
fenômenos que se começa a levar em cona no final do século XVIII e
que trazem a introdução de uma medicina que vai ter, agora, a função
maior da higiene pública, com organismos de coordenação dos
tratamentos médicos, de centralização da informação, de normalização
do saber, e que adquire também o aspecto de campanha de
aprendizado da higiene e de medicalização da população.
(FOUCAULT, 1999, p. 289-291).
Como o corpo do rei apodreceu, o povo passou a constituir o novo corpo
político. Cada sujeito em suas múltiplas relações horizontais e verticais dentro da
cultura, os aglomerados humanos, as pequenas unidades comunitárias tornaram-se o
corpo da sociedade, seus órgãos, seu sangue, seus ossos. Daí os cuidados de pureza,
farmacologia, vacinação:
A fundação SESP lembra ainda que todas as crianças menores de 5
anos devem ser vacinadas; que as crianças que já foram vacinadas,
precisam tomar novamente essa vacina; que a vacina não tem contra
indicação. Mesmo que a criança esteja com febre, diarreia ou tosse,
pode tomar a vacina. [...] Mãe que é mãe vacina novamente. Não
deixe de dar o „Santo Remédio‟ ao seu filho. (VACINAÇÃO..., 1984).
Por conseguinte, as crianças, em Juazeiro-Bahia, foram inseridas nesse empuxo
de tensões biopolíticas, flutuavam nos braços de suas mães pelas ruas higienizadas para
tomarem o “Santo Remédio”. Os dizeres da infância que circulavam em 1984
marcavam, no município baiano, a ruptura entre as antigas práticas de negligências
autorizadas em relação à infância e os investimentos modernos para manter as crianças
vivas e saudáveis enquanto semente da sociedade, “futuro da nação”, continuação da
espécie.
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O discurso de medicalização da infância, em Juazeiro, propôs vasculhar as
periferias da cidade, invadir casas e barracos, perfurar a pele macia dos bebês para
examinar o corpo social, tratar de suas enfermidades, aplicar terapias, preservar o homo
sapiens com fundamento na observação contínua e total de seus filhotes (CRECHE...,
1984; VACINAÇÃO..., 1984; FOUCAULT, 1999).
O sujeito-criança se moldava conjuntamente à invenção de uma população
infantil regida por normas elásticas de administração da miséria, da escassez e da fome.
No primeiro texto, intitulado “Uma Cidade sem Ordem e sem Disciplina” (UMA
CIDADE..., 1984), o enunciador do periódico juazeirense protestava por ações políticosanitárias para “higienizar as ruas da periferia e proteger sua população”.
A população “é um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se
não infinito pelo menos necessariamente numerável” (FOUCAULT, 1999, p. 292). Esse
comboio politicamente organizado, no mínimo organizável, se constituiu pelo
cruzamento de forças contra a gente de tipo infantil, os saberes médicos, pedagógicos,
psicológicos, estatísticos; as regulações de vida e morte, o incentivo à distância de
violências institucionalizadas, a tolerância da punição doméstica, desde que ministrada
nos limites da boa educação.
O tempo do biopoder é o nosso tempo, afirma o professor Guilherme Castelo
Branco (2011, p. 11). Recorrer a essas ações banais do cotidiano de uma cidade
sertaneja, na década de 1980, possibilita o exercício de uma história do presente a partir
do modelo contemporâneo de gestão de crianças, cada vez mais alheio aos locais
tradicionalmente reservados à atuação de juízes e advogados porque baseado numa
estratégia de descentralização e aprofundamento do regime de justiça, que,
medicalizando as funções judiciárias, termina por judicializar a vida das crianças.
No dia 18 de maio de 1984, religiosos, autoridades e o prefeito de Juazeiro
convocaram moradores de um bairro periférico para a inauguração de uma creche no
local. O evento foi registrado por jornalistas da época, que, animados, descreviam a
uniformização das crianças através do fardamento e as bênçãos do bispo que purificou o
ambiente consagrado à educação de crianças pobres, certamente futuros homens de
bem, servientes e dóceis a qualquer hierarquia:
O Prefeito ressaltou o empenho de sua administração em atender às
reivindicações que minorem os problemas sociais (gritantes) em nosso
município e o reconhecimento pelo atendimento por parte da Urbis, a
responsável pela implantação do Núcleo Residencial, da necessidade
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do Centro Comunitário e da Creche. A psicóloga e coordenadora da
Assistência Social da Prefeitura enfatizou o trabalho que há dois
meses vem sendo empreendido na comunidade, visando a adaptar a
população ao seu novo meio de vida, tornando-o mais humano e
participativo. Frisando não ser suficiente a ajuda que estava sendo
materializada naquele momento, a presidente das Voluntárias Sociais,
Dnª. Léa Khoury, distribuiu às crianças que se utilizaram dos serviços
prestados na Creche inaugurada, calções e camisetas. Dnªa. Léa ainda
ressaltou ser aquele o primeiro passo na escalada de contribuição que
darão as Voluntárias Sociais, na ajuda às crianças carentes da
localidade. O Bispo benzeu as instalações. (CRECHE..., 1984).
O texto faz funcionar uma máquina de espacialização, demarcando os locais de
urbanidade, os territórios e necessidades da população infantil urbana. Longe de buscar
o fim dos “problemas sociais” da localidade, as autoridades pretendiam “minorá-los”,
mantê-los na elasticidade típica do governo neoliberal que se consolidaria na década
seguinte (SCHUCH, 2005).
A convocação de variadas autoridades, profissionais e dos habitantes do bairro
periférico no qual se inaugurava a creche visava menos à publicidade dos louváveis atos
do prefeito que à chamada pública a participação, isto é, tomar parte no governo das
crianças, difundir fiscais, vigilantes, rigorosos controladores das atitudes infantis, que,
ante uma “situação irregular” (BRASIL, 1979), estariam autorizados a violentá-las no
silêncio sagrado do lar ou a acionar os aparelhos de Estado encarregados da violência
institucional.
Humanizar a estranheza das periferias num período de transição política,
norteada pelo misto indissociável de capitalismo neoliberal com democracia
(PASSETTI, 2003), exigia um posicionamento do Poder Público que adaptasse “a
população ao seu novo meio de vida, tornando-o mais humano e participativo”
(CRECHE..., 1984).
As crianças, para bem ocuparem a categoria de sujeito de direitos, dignos da
proteção integral da sociedade civil e do Estado, precisavam ser uniformizadas, trajadas
com “calções e camisetas” (CRECHE..., 1984) que as identificasse, que forçasse a elas
uma identidade infantil transcendente, limpa, ordeira, historicamente gêmea das
imagens angelicais do século XVI (ARIÈS, 2011). Como afirmou Deleuze (2006, p.
268-269) num diálogo com Foucault, “não são apenas os prisioneiros que são tratados
como crianças, mas as crianças como prisioneiras. As crianças sofrem uma
infantilização que não é delas”.
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Nesse regime de infantilidades servientes, de crianças pudicas e fictícias,
inventadas a cada castigo, a cada composição de filas, a cada campanha de vacinação,
onde não só o juiz tem a função de vigiar e punir os excessos, as barbaridades, mas
todos os integrantes da sociedade, a justiça não mais é reconhecida pelo semblante
tradicional de justiça (SCHUCH, 2005). Com as estratégias de modernização de
Juazeiro, o discurso jurídico de uma justiça tutelar para a infância, que não se esgotava
no gabinete do juiz, aliás, cuja pragmática operava realmente fora das paredes do fórum,
acoplando-se às instituições médicas e assistencialistas, circulava com intensidade na
mídia local.
As bombas sangrentas da criança asquerosa: a escrita do mal-dizer
Quando a conservação da espécie é introduzida na consciência humana como
instinto e a criança passa a ser educada em defesa da sociedade, vertida num animal
biologicamente direcionado à preservação de si e dos outros, qualquer ato de
irreverência cotidiana, qualquer existência errante desafia a lei e, consequentemente, o
poder deve voltar-se contra o pequeno subversivo.
Na década de 1980, vigorava no país o Código de Menores, de 10 de outubro de
1979, que dispunha sobre a “assistência, proteção e vigilância” de todos os brasileiros
menores de dezoito anos em “situação irregular” e menores de vinte e um, “nos casos
expressos em lei” (BRASIL, 1979).
O Código se referia a uma categoria única: o menor, sem discriminá-lo entre
criança (até onze anos) e adolescente (até dezoito anos), como ocorre na atualidade. A
quimera do traço decisivo entre a menoridade e a maioridade fundamenta todo o sistema
de infantilização:
Como num passe de mágica, deixamos de ser menores. Completamos
dezoito anos e tudo faz crer que, com a maioridade, nossa vida
mudará, porque podemos votar, decidir que carreira seguir, receber
salário integral, tirar carta de habilitação para dirigir carros e motos,
enfim, parece que socialmente seremos reconhecidos como capazes de
tomar decisões. Num certo sentido, completar dezoito anos é uma
façanha que nos coloca de verdade no mundo. (PASSETTI, 1987, p.
09).
A necessidade de criar um mecanismo especial para gerir a infância e a
adolescência surge para a ciência jurídica quando o Código Penal classifica como
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“inimputáveis”, ou seja, sem responsabilidade penal, “os menores de 18 (dezoito) anos”
(BRASIL, 1940). O jurista Cezar Roberto Bitencourt pontifica que
a legislação brasileira seguiu o sistema biológico, ignorando o
desenvolvimento mental do menor de dezoito anos, considerando-o
inimputável, independentemente de possuir a plena capacidade de
entender a ilicitude do fato ou de determinar-se segundo esse
entendimento, desprezando, assim, o aspecto psicológico.
(BITENCOURT, 2009, p. 381).
Diante disso, o saber jurídico abre, dentro dele mesmo, uma questão de ordem
lógico-estrutural: onde encaixar os sujeitos desviantes quando inimputáveis em
decorrência de sua menoridade? E mais: que mecanismos deverão ser utilizados nesse
governo das pequenas estranhezas, uma vez que a prisão só se justifica para os adultos,
humanos formados, e não para as crianças, consideradas “seres em formação”
(BITENCOURT, 2009, p. 381), situadas no lado de cá da faixa racional das
responsabilidades sociais?
Responder a esta questão passa por tentativas de sacralizar a vida das crianças,
zelar pela alvura de seus trajes, regular seus desejos sexuais, conferindo ao “problema
menor” o status de ordem pública (CORRÊA, 2001), para além do campo estritamente
jurídico e seus procedimentos tradicionais.
Legitimado por um direito misto, o poder que se exerce sobre as crianças não é,
no fundo, nem estritamente médico nem judiciário, visto que não se destina a
administrar doentes ou delinquentes, mas pessoas cuja subversão se enquadra no âmbito
da anomalia, da impureza, da perversidade (BUENO, 2001).
Foucault (2010, p. 39) chamou esse poder de “poder de normalização”,
descrevendo-o: “Não se trata de uma exclusão, trata-se de uma quarentena. Não se trata
de expulsar, trata-se ao contrário de estabelecer, de fixar, de atribuir um lugar, de definir
presenças, e presenças controladas. Não rejeição, mas inclusão”. Os próprios órgãos do
sistema de justiça não podiam se afeiçoar a tribunais comuns, destinados à apuração de
delitos, visava-se, antes, normalizar uma “situação irregular”, como prescrevia o Código
de Menores (BRASIL, 1979).
Realmente, no estudo desse poder de normalização, Foucault (2010, p. 35)
percebeu que “é um tribunal da perversidade e do perigo, não é um tribunal do crime
aquele a que o menor comparece”, de maneira que os dispositivos normalizadores de
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crianças dizem “muito mais respeito ao contexto de existência, de vida, de disciplina do
indivíduo, do que ao próprio ato que ele cometeu”.
Nessa perspectiva, na edição de 29/30 de novembro de 1984 do Jornal de
Juazeiro, a juíza Ruth Santa Bárbara de Abreu, titular da Vara Criminal da comarca de
Juazeiro convocou os comissários de menores, pessoas incumbidas de vasculhar a
cidade em busca de crianças esquisitas, desordeiras, para uma reunião, na qual ela
“orientará como proceder com os menores em situações irregulares e anormais”
(JUIZADO..., p. 08, 1984). À redação do jornal, a magistrada “adiantou que esta
reunião visa mobilizar os „Comissários de Menores‟ para a fiscalização intensiva em
casas noturnas, cinemas com películas exibidas para maiores” (JUIZADO..., p. 08,
1984).
Em outra edição, cujo mês não foi possível precisar em razão do estado físico
dos jornais, entrevistado por um jornalista, o promotor de justiça e curador de menores
da comarca de Juazeiro, Valdir Oliveira, afirmou que “a sociedade não dá assistência ao
menor abandonado, que não vê outra saída, senão tornar-se um delinquente. O problema
do menor é de caráter Nacional” (PAIS..., p. 08, 1984).
Em Juazeiro-Bahia, um racismo interno intolerável
aos “pequeninos
repugnantes”, indesejáveis do cotidiano, acendia os corações dos serventuários desse
sistema de justiça difuso; um racismo de perigos provocados pela idade, pelo ócio, pelo
desejo perpassava por este discurso:
é o racismo contra os indivíduos, que, sendo portadores seja de um
estado, seja de um estigma, seja de um defeito qualquer, podem
transmitir a seus herdeiros, da maneira mais aleatória, as
consequências imprevisíveis do mal que trazem em si, ou antes, do
não normal que trazem em si. É portanto um racismo que terá por
função não tanto a prevenção ou a defesa de um grupo contra outro,
quanto a detecção, no interior mesmo de um grupo, de todos os que
poderão ser efetivamente portadores do perigo. Racismo interno,
racismo que possibilita filtrar todos os indivíduos no interior de uma
sociedade dada. (FOUCAULT, 2010, p. 277).
Assim, os discursos de judicialização da infância, em Juazeiro, no ano de 1984,
produziam uma filtragem das criancinhas nefastas, eliminação dos pivetes malditos, dos
menininhos grotescos, da pequena vagabundagem, composta, na linguagem dos
jornalistas da época, por “anõezinhos esfarrapados”, verdadeira “geração de terroristas
em potencial” (MENOR..., p. 02, 1984).
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Nesse mesmo texto, o locutor do enunciado, que associava o terrorismo à
criança anormal, reclamava da presença de moleques pedintes nas ruas da cidade e nos
comércios, argumentando que esse tipo humano “compromete a limpeza do ambiente”
(MENOR..., p. 02, 1984).
Um continuum moralizador penetrava no campo jurídico e, atingindo outros
campos de saber-poder, o ultrapassava, movido pela delirante tarefa de produzir a
infância bendita através da eliminação dos menores malditos, desobedientes,
sexualmente excitados. Os enunciados se repetiam na eloquência de consolidar a
seguinte mensagem: “ninguém duvida de que elas [as crianças], por nossa omissão, são
os grandes marginais de amanhã” (MENOR..., p. 02, 1984).
Ademais, esta criança como “ser em formação”, “em desenvolvimento mental”,
funcionou para a elaboração de um imaginário social sobre o corpo infantil concorrendo
para a prática de abusos e violações contra ele (PASSETTI, 1999). As tensões sociais da
modernização capitalista em Juazeiro moviam-se entre os grupos tidos como
fragilizados nesta sociedade, fazendo com que os indivíduos sustentassem com seus
corpos este obscuro projeto de civilidade no sertão.
Assim, o antigo suplício do regime de soberania, no qual o corpo devia ser
esquartejado, triturado, estraçalhado, ressurge como tecnologia de punição das crianças,
entretanto, desloca-se do campo público para o privado, a realizar-se não aos olhos do
povo, na praça central, mas no resguardo do lar, no berço, na cozinha ou, ainda, no
quarto do casal na forma de violência sexual (PASSETTI, 1999).
De cima a baixo, a série ininterrupta das violências se reproduzia na sociedade e
o corpo da criança parecia ser seu destinatário final. Uma matéria jornalística intitulada
“Pais torturam filhos na periferia” descreveu casos de suplício privado contra crianças
em Juazeiro, contando com o depoimento do promotor de justiça:
O Curador de Menores da Comarca de Juazeiro, promotor público
Valdir Oliveira, disse que no Juizado de Menores desta Comarca
temos registrado muitos casos de violência contra menores, praticada
tanto pelos pais quanto por policiais. Explicou que “vários pais,
revoltados pela situação econômica, castigam seus filhos empregando
meios de tortura: achando que estão educando a criança, pais
queimam seus filhos com uma colher quente nas nádegas, na sola do
pé ou na palma da mão. Outros, querem corrigir os filhos que
comentam na rua o que acontece no lar, colocam ovo quente ou brasa
na língua, e alguns pais acorrentam ou amarram seus filhos para tirar o
vício de andar na rua.” (PAIS..., p. 08, 1984).
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As técnicas de correção eram impiedosas: queimaduras com colher quente nas
nádegas, brasa na língua, acorrentamentos. O corpo da criança parecia vazio, mole,
modulável como uma argila nas mãos de Deus. A família normalizadora, detentora
desse misto paradoxal entre poder de morte e poder de vida sobre as crianças, distribuía
as punições às rebeldias infantis reatualizando a economia dos castigos.
Segundo Foucault (2006, p. 221), o princípio de normalização investe a família
no “poder imediato e sem intermediário sobre o corpo da criança, mas que é controlada
de fora pelo saber e pela técnica médicos”, diríamos também judiciários nos casos de
famílias pobres.
Outrossim, o intelectual francês se atentou para o fato de que, no auge da elaboração do
poder de normalização, a mesma burguesia que organizava o exame doméstico da
infância, preocupada com o desenvolvimento da sexualidade infantil, combatia as
misturas operárias, rotulando a família pobre como “desestruturada” e exigindo uma
estruturação baseada em relações familiares sem contato físico, sem agressões, sem
toques:
Ora, esse tema maior, essa campanha pela solidificação matrimonial
foi acompanhada, e até certo ponto corrigida, por outra campanha, que
era a seguinte: nesse espaço familiar agora sólido, que vocês são
chamados a constituir e no interior do qual devem permanecer de
maneira estável, nesse espaço social tomem cuidado. Não se
misturem, distribuam-se, ocupem o maior espaço possível; que haja
entre vocês o mínimo contato possível, que as relações familiares
mantenham, no interior do espaço definido, suas especificações e as
diferenças entre os indivíduos, entre as idades, entre os sexos.
(FOUCAULT, 2010, p. 237).
Cravados os espaços de civilidade, os estamentos da normalidade, os cubículos
da boa convivência familiar nas habitações periféricas, qualquer pai que, visando
corrigir seus filhos, em obediência a uma torrente de imperativos pela infantilização das
crianças, terminasse por agredi-los, violá-los, rompendo com os enquadramentos
ditados pela concepção burguesa de família, se via lançado à arena de combate às
estranhezas, substituindo a criança na economia dos castigos porque a repugnância de
sua conduta tinha sido maior que a esquisitice infantil que pretendera corrigir. Sobre o
que foi dito acerca das violações ao “sentimento de infância” (ARIÈS, 2011), vejamos
alguns relatos descritos no Jornal de Juazeiro:
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Menores que são induzidas para a prostituição pelos chamados “papaanjos” (homens que têm mania de seduzir meninas). Elas são
assediadas por adolescentes e adultos até cederem e entrarem na vida
de prostituição. Quando isso acontece, alguns pais a expulsam de casa,
colaborando para procurarem as casas de tolerância situadas na
periferia da cidade, ou se tonarem em “meninas-moças de aluguel”
(adolescentes ou menores que frequentam boates, saindo com
desconhecidos, com os quais mantêm relações sexuais). [...] Numa
pesquisa feita por essa reportagem, ficou constatado que cerca de 60%
dos crimes contra o patrimônio (furtos, roubos e arrombamentos), em
Juazeiro, são praticados por menores de 18 anos. No comum eles são
detidos e espancados por policiais desavisados, que sentem satisfação
em torturá-los para dar conta dos objetos roubados. Quanto mais os
menores infratores são torturados nas delegacias, a delinquência
infanto-juvenil tem aumentado na cidade. [...] A vítima de violência
policial mais recente foi o garoto M. R., de 12 anos de idade, que foi
torturado por um Cabo PM, no interior do Posto Policial do bairro
Taboleiro, nesta cidade, no último dia 12 às 11 horas. A denúncia foi
prestada pelo pai do menino, Elias Pinheiro de Souza, de 50 anos, no
Juizado de Menores. O senhor Elias explicou que o seu filho “brigou
na escola com um coleguinha seu, possível parente do Cabo, que
sequestrou o menino, conduzindo-o para o Posto Policial, onde o
espancou com uma chibata e deu-lhe uma dúzia de bolos a palmatória,
deixando suas mãos inchadas”. (PAIS..., p. 08, 1984).
O corpo vazio da criança e sua alma “ainda em construção” autorizavam
qualquer indivíduo, rico, pobre, adulto, adolescente, militar ou civil, a violentá-la.
Porque eram excessivas por natureza, vulneráveis em decorrência de sua psicologia
tenra, penetráveis em razão de sua biologia fraca, certamente macia, as crianças
circulavam como alvo concêntrico das tensões sociais.
A análise dos textos extraídos do Jornal de Juazeiro, datados do ano de 1984,
nos permitiu mapear as visibilidades da infância naquela sociedade, cartografar o
regime de presenças e ausências, o desenho das silhuetas infantis, as articulações de
poder que insistiam em moldá-las. A esquisitice da criança desordeira, sua feiura foi
mal-dita em oposição à doçura e à meiguice dos anjinhos efeminados – duas faces da
mesma moeda.
Conclusão
Os eixos de subjetivação variam constantemente em nossa sociedade
especializada, a luta pelo direito de dizer o verdadeiro acontece sem cessar, marcada
pelos declínios de antigos impérios e pelo surgimento de novas dinastias. Os castelos de
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verdade não se edificam pelo trabalho monótono dos obreiros, mas exigem câmbios
estratégicos na distribuição das tarefas e designação das competências.
Kafka (2011), na primeira quadra do século XX, já nos provocava: ora, de
quando em quando aparecem discursos de proteção integral à infância, reconhecendo
garantias especiais às crianças; mas para que toda essa enunciação, se a única coisa à
qual estamos obstinados a fazer é cumprir as exigências do discurso, preencher os
requisitos para o acesso à justiça, obedecer aos comandos do bem viver, as etiquetas de
uma infância aparentemente feliz?
Em Juazeiro-Bahia, em sintonia com o que acontecia no restante do país, a
história recente da criança foi escrita com o sangue dos fascismos, com a higiene das
técnicas de assepsia social, com os exames pontuais do poder de normalização. O corpo
vazio e a alma ainda não formada da criança autorizava a violência em todas as
direções.
O sistema de justiça da cidade, representado pelas manifestações que alguns
juízes e promotores fizeram no jornal que estudamos, assumia a tarefa de purificar o
corpo social dos males da infância desordeira. Com esse propósito, uma verdadeira caça
aos pivetes, malandrinhos, aos pequeninos pervertidos foi realizada. O discurso de
infantilização procurava preservar o homo sapiens de suas próprias patologias, expurgar
das veredas da sociedade as sementes de delinquência, livrá-la dos desnivelamentos, das
estranhezas.
A cultura autoritária da infância se sedimentava no par anjo-pestinha, estimulava
a garotinha doce, uniformizada, disciplinada ao tempo que combatia a menina indócil,
esquisita, de “instintos sexuais aflorados”. No limite, a perversidade desse discurso
fabricava a imagem do menino bem comportado à custa dos nojosos garotos podres,
habitantes das periferias, vagabundos mirins, trombadinhas de todas as ruas.
Acorrentar crianças, queimá-las com ferro quente, explorá-las sexualmente,
aprisiona-las em creches e abrigos, vaciná-las, vasculhar a cidade em sua procura e,
quando encontradas, capturá-las, examinar suas intenções, seus desejos, suas vontades,
regular sua miséria, atiçar sua fome, dar-lhes de comer. A quebra da linearidade do
governo sobre as crianças através da história nos permite recompor os fragmentos de
poder que se pretendiam distantes uns dos outros, incomunicáveis pela aparência
forçada da imparcialidade.
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Os discursos de infantilização, portanto, são múltiplos, cambiam de acordo com
as necessidades, as utilidades sociais, mas funcionam numa estratégia geral destinada à
filtragem das esquisitices. A crença na criança angelical, congelada na fôrma axiomática
do sujeito de jure, convocava um racismo interno para servir de instrumento a essa
empreitada. A experimentação trágica dos enunciados escandaliza os horrores desse
equipamento de justiça que cultuava uma infância santa alimentando-a do sangue
decantado nas crianças demonizadas, malditas.
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Jornais:
CRECHE e centro comunitário. Jornal de Juazeiro, Juazeiro, 10/23 de maio de 1984.
MENOR abandonado. Jornal de Juazeiro, Juazeiro, p. 02, 08/11 de janeiro de 1984.
JUIZADO de menores reúne comissários. Jornal de Juazeiro, Juazeiro, p. 08, 29/30 de
novembro de 1984.
PAIS torturam filhos na periferia. Jornal de Juazeiro, Juazeiro, p. 08, 1984.
UMA CIDADE sem ordem e sem disciplina. Jornal de Juazeiro, Juazeiro, p. 02, 05/09
de maio de 1984.
VACINAÇÃO: um direito da criança. Jornal de Juazeiro, Juazeiro, 1984.
Recebido em 19 de abril de 2013
Aprovada em 9 de maio de 2013
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HISTÓRIA, IMAGEM E FOTOGRAFIA
Rubens Nunes Moraes1
Resumo: O presente artigo propõe-se a discutir sobre a história da fotografia: o início e
os avanços obtidos pelos pesquisadores do assunto que passaram dias, semanas, meses,
anos pesquisando materiais e equipamentos, até que obtivessem êxito no seu propósito.
Discorre sobre alguns inventores com suas criações utilizadas na área fotográfica que ao
longo do tempo provocaram a popularização e disseminação da fotografia até chegar à
escala comercial.
Palavras chaves: imagem, câmera escura, fotografia.
Abstract: This article aims to discuss the history of photography: the beginning and the
progress made by the researchers of the subject that spent days, weeks, months, years
researching materials and equipment, until they got success in its purpose. Discusses
some inventors with their creations used in photographic area that over time led to the
popularization and dissemination of photography until you reach the commercial scale.
Keywords: picture, camera dark, photography.
Pressupostos teóricos sobre a história da fotografia
Desde os primórdios o homem sempre teve uma necessidade de representar
acontecimentos ou fatos através de registros que correspondessem à realidade, fatos
comprovados em pinturas rupestres que mostram cenas do cotidiano através de figuras
que representam o homem, animais, plantas, rituais e batalhas. Para desenhar, o homem
utilizava resina de plantas, frutas, sangue de animais, carvão, rochas e outros materiais.
Algumas imagens pré-históricas encontradas datam aproximadamente de 10.000
a 50.000 a.C., como as encontradas em Lascaux na França e na Serra da Capivara que
está em São Raimundo Nonato-PI, no Brasil: (SANTAELA, 1998, p. 13) “Imagens têm
1
Graduando Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco. E-mail: rubensn-
[email protected]. Orientador: Prof. Ms. Reinaldo Forte Carvalho
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sido meios de expressão da cultura humana desde as pinturas pré-históricas das
cavernas, milênios antes do aparecimento do registro da palavra pela escrita”.
Com o tempo o homem foi aperfeiçoando as artes, porém nenhuma conseguia
reproduzir fielmente o que o olho do humano conseguia ver. O homem prossegue na sua
incessante busca por aperfeiçoar essas representações, através da arte evolui em técnicas
e representatividade, que cada vez mais lembram a realidade, como nos quadros
pintados pelos artistas e retratos por retratistas. Mas, o homem não estava satisfeito e
continua na sua busca pela perfeição à representatividade, onde pretendia fixar a
imagem no papel, prossegue nesse intento até chegar a experimentos que culminarão na
invenção da fotografia.
A câmara escura
A fotografia não tem um só inventor, e sim um processo evolutivo que durante
longos anos foram se aperfeiçoando, nesse sentido é uma junção de acontecimentos e
descobertas tendo como evento considerado importante: o descobrimento da câmera
obscura2 ou câmera escura.
Originalmente, a câmara escura de orifício era uma caixa ou mesmo
um quarto escuro (de onde o nome câmara), no qual uma das paredes
possuía um pequeno orifício por onde passava um filete de luz. Este
filete de luz penetrando pelo pequeno orifício projetava na parede
oposta, uma imagem do que se encontrava do lado de fora. (HARREL,
2005, p. 05).
Para entendermos o processo da fotografia temos que atentar que tudo funcionou
através da luz, que pode ser refletida, absorvida e transmitida. Pairam sobre a história
da fotografia algumas vertentes, no que se diz respeito aos primeiros experimentos que
viriam a despertar o interesse, no que seriam os primeiros passos a estudos de
acontecimentos que foram pontos chaves para o início do uso da luz em experiências.
Alguns atribuem o primeiro uso, ou o conhecimento do seu funcionamento a Mo Tzu
(470-391 a.C.), chinês e filósofo, que teve vida no século V a.C., seus pensamentos e
teorias estão registrados nos Cânones Moísta. Outros concordam que foi Aristóteles
(384-322 a.C.), grego e filósofo, do século IV a.C., quem observou um fenômeno: “O
princípio é muito mais antigo, pois já era conhecido na Grécia antiga quando Aristóteles
2
Câmara obscura (ou escura) termo do Latim que significa: quarto escuro e, que se refere a recinto
vedado à luz exterior onde se processa/ visualiza as imagens fotográficas. In FERREIRA, Aurélio
Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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(384 -322 a.C.) fez uma discrição da formação de imagens durante a passagem da luz
por pequenos orifícios”. (HARREL, 2005, p. 05).
Outros estudiosos como o matemático árabe Abu AL-Hasan Ibn AL-Haytham
(965-1040) conhecido como Alhazen, também desenvolveram estudos a respeito dos
fenômenos observados na câmara escura, conforme corrobora Peter Pollack, o referido
matemático: “descreveu em uma obra sobre os princípios fundamentais da óptica3 e
comportamento da luz, o fenômeno natural da luz solar passando por pequeno furo na
parede de um quarto escuro”. (HARRELL apud POLLACK, 1977, p. 35).
Roger Bacon (1214-1294) no século XIII e Leonardo di Ser Piero da Vinci
(1452-1519) conhecido como Leonardo da Vince que no século XVI relataram
experimentos com a câmara obscura. No século XVII a câmara escura foi utilizada
como auxilio no desenvolvimento de desenhos, transparências e pinturas. Com os
avanços apareceram vários modelos: “No final do século XVIII, existia um grande
número de modelos e câmeras em funcionamento, desde aquelas com dimensões
gigantescas até as mais pequenas, pouco maiores que caixas de fósforo”. (HARREL,
2005, p. 05). O interesse pela câmera escura era grande, conseqüentemente surgiam
vários tipos, através dos experimentos realizados por vários estudiosos naturalmente o
aparelho caminhava para a evolução. O interesse pela busca de algum material que
permitisse a fixação da imagem projetada na câmara escura era o desejo de muitos, mas
não conseguiam êxito. Uma importante figura que contribuiu mesmo sem estar
pesquisando a fotografia, foi o alemão Johann Heirich Schulze (1687-1744), que em
1727 publicou o resultado de uma pesquisa comprovando que: quando tratadas com
nitrato de prata as folhas de papel ficavam negras ao serem expostas à luz do dia.
Schulze publicou o seu trabalho, o qual teve o seguinte título “De como descobri o
portador da escuridão ao tentar descobrir o portador da luz”. Na verdade, o referido
estudioso estava pesquisando com intenção de fabricar pedras luminosas de fósforo, e
por obra do acaso descobriu a fotos sensibilidade dos sais de prata. Nesse sentido,
percebe-se que ele não tinha intenção de fazer descoberta fotográfica. Outra experiência
que também faz parte da história da fotografia é a descoberta de material fotossensível
ou material que se altera em contato com a luz, mas que fosse um material altamente
sensível. Então começaram a pesquisar com os sais de prata: “A própria alquimia
3
Óptica ou Ótica: de acordo com o Dicionário Aurélio (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001) é a parte da física que
investiga os fenômenos de produção, transmissão e detecção da radiação eletromagnética (luz).
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renascentista já registra as propriedades fotossensíveis da prata sendo referenciada em
1566, por Georg Fabricius o que indica que o conhecimento destas propriedades devia
ainda ser anterior ao séc.XVI”. (GUIMARAES, 2009, p. 45).
Em 1802, o pesquisador inglês Thomas Wedgewood (1771-1805), relata um
processo semelhante ao de Schulze, utilizando nitrato de prata, porém, necessitava de
alguma forma para fixar as imagens. Ele também falhou na tentativa de encontrar um
agente fixador para as imagens produzidas na câmara escura.
Na época em que Wedgewood relatou as suas experiências no começo
do século XIX, já existiam inúmeros pesquisadores em diversos países
do mundo, a maioria sem saber os uns dos outros, mas todos unidos
no propósito de descobrir alguma forma de fixar a imagem produzida
dentro da câmara escura. (HARREL, 2005, p. 04).
As imagens não fixavam, pois ao entrar em contato com a luz, o material de
prata reagia e ficava escuro - quanto maior a quantidade de luz mais escurecia. Isso foi
o entrave que os pesquisadores encontraram, eles queriam um material que não fosse
sensível à luz após fixarem as imagens. A incorporação da lente convergente no lugar
do orifício da câmara escura durante o século XVI contribuiu para o desenvolvimento
da fotografia. Esse passo foi dado por Daniele Matteo Alvise Barbaro (1514-1570)
conhecido por Daniele Barbaro, veneziano que estudou filosofia, matemática e óptica:
“As lentes convergentes estão ente as mais antigas que conhecemos e que temos
notícias de que o veneziano BARBARO foi o primeiro a colocar uma lente convergente
na câmara escura”. (HARRELL, 2005, p. 07).
No início do século XVII, os avanços na fabricação de lentes convergentes
prosseguiriam, e seriam relatados usos de lentes por estudiosos, que usavam em
distâncias e focos diferentes combinando até três distâncias diferentes, também
utilizando espelhos. Ao final do século XVII, são encontrados relatos dos avanços: “No
final do século um monge chamado Johann Zhan, ilustrou na sua obra Oculos
Artificialis teledioptricus vários tipos de câmeras portáteis que possuíam 23 cm de
altura e 60 cm de largura”. (GUIMARAES, 2009, p. 41).
As lentes continuaram a evoluir nas pesquisas no campo astrológico com os
telescópios, e conseqüentemente avançavam também na câmera escura com adaptações
para uso na mesma. Com advento do século XIX, o homem começa a dar passos
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importantes para conseguir fixar a imagem - anteriormente só exibia imagens captadas
na câmara escura.
A primeira fotografia de Niépce
No processo de invenção da fotografia, a história não atribui e não reconhece
como um único inventor, e sim um processo de descobertas e eventos que culminaram
no desenvolvimento da fotografia, vários inventores chegaram a resultados parecidos
em épocas e lugares diferentes. Contudo, o evento que marca o nascimento da técnica,
foi obtido pelo francês Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) entre os anos 1824 e
1827, ele era filho de dono de gráfica e se interessou ainda cedo pelo processo de
litografia.4 Niépce buscava reproduzir desenhos através da impressão, e após várias
experiências chegou a um avanço: “Cobriu um papel com cloreto de prata e expôs
durante várias horas na câmara escura, obtendo uma fraca imagem parcialmente fixada
com ácido nítrico”. (GUIMARAES, 2009, p. 46). A princípio Niépce queria evoluir no
processo litográfico, porém ele tinha formação em mecânica, química e física. A partir
de experimentos e misturando várias fórmulas conseguiu êxito em fixar no papel uma
imagem projetada na câmara escura, depois de oito horas exposta a luz.
A esse
processo ele chamou heliogravura,5 sendo que em 1822 conseguiu resultados, desses
estudos ficou registrada uma imagem pouco definida que ficaria conhecida como “A
mesa posta”. Posteriormente, Niépce continuou tentando, e testando fórmulas que
proporcionasse chegar ao seu objetivo, até que em 1826 testando várias fórmulas,
quando obteve êxito utilizando uma placa com betume da Judéia6 na câmara escura.
O processo de Niépce consistia em dissolver o betume em óleo de
lavanda (um solvente de tintas utilizado na época) e ao obter um
composto pastoso, ele espalhava essa mistura sobre uma fina chapa de
metal (eram utilizadas placas de uma liga de cobre, chumbo e
estanho). (FELZ FERREIRA, 2007, p. 23).
4
Litografia: de acordo com o dicionário Aurélio (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini
Aurélio Século XXI: O mini dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000)
Processo de gravar sobre pedra calcária ou placa de metal, a estampa obtida por esse processo litogravura.
5
Heliogravura: de acordo com o dicionário Luft (LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft. São Paulo.
Editora Ática, 2001) Processo de gravura que utiliza a luz solar. Gravura produzida por esse processo.
6
Dá-se o nome de betume da Judéia ao asfalto natural, substância de composição semelhante à do asfalto
que resulta da destilação do petróleo bruto. In FELZ FERREIRA, Jorge Carlos. A fotografia como
processo físico-químico de captura da realidade. Minas Gerais, 2007, p. 22.
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Aperfeiçoando o processo, em 1826 Niépce chegou à primeira fotografia
conhecida como vista da janela em Le Gras, que foi feita da janela do seu laboratório, e
exposta durante horas: “Após oito horas de exposição, e do processamento com óleo de
lavanda, ele conseguiu uma pálida imagem dos telhados que compunham a vista da
janela do seu laboratório”. (FELZ FERREIRA, 2007, p. 23). Essa primeira imagem
inicial tinha pouca definição, mas foi um grande passo no avanço da fotografia. Pouco
tempo depois, Niépce é procurado pelo francês Lois Jacques Mandé Daguerre (17871851), pintor, cenógrafo e físico que soubera das suas experiências e teve interesse em
conhecer sobre o avanço das pesquisas, Daguerre ficou sócio de Niépce para dar
seguimento ao processo de heliogravura. Com a parceria firmada entre os dois, Niépce
continuava a pesquisar com o betume, e Daguerre estudava compostos à base de sais de
prata mais sensíveis à luz. Na verdade essa sociedade durou pouco, pois Niépce morre
em 1833, e o reconhecimento de sua contribuição em relação à fotografia vem no século
XX.
Imagem e fotografia no processo ou método daguerreótipo
A partir do uso da figura representativa, uma descoberta que vem para mudar o
conceito de representação foi à descoberta do processo para fixar a imagem ou a
chamada photographia.7 Isso aconteceu no século XIX, avanço dado pelos dois
pesquisadores franceses Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) e Lois Jaques Mandé
Daguerre (1787-1851). Os dois em parceria desenvolveram um sistema que através da
dissolução de sais de tiossulfato de sódio permitiu a fixação permanente do objeto
focalizado, que ficou mais tarde conhecido como processo ou método daguerreótipo,8
como corrobora (BENJAMIN, 1985, p. 92): “Os clichês de Daguerre eram placas de
prata, iodadas e expostas na câmera obscura; elas precisavam ser manipuladas em vários
sentidos, até que se pudessem reconhecer, sob uma luz favorável, uma imagem cinzapálida”. Com a morte de Niépce, Daguerre continua com as pesquisas e aperfeiçoa o
processo, quando descobre de forma quase acidental um fixador que levava menos
tempo, para aparecer à imagem em 1835 quando descobriu acidentalmente: “Após
7
Fotografia (photographia) do grego (photo=luz + graphos=escrever) ou “escrever com a luz”.
Trata-se de uma imagem única e positiva (não pode ser reproduzida), formada em uma placa de cobre
revestida por uma camada de prata polida (que lembrava um espelho) e sensibilizada por vapores de iodo,
que lhe conferem um tom levemente dourado. In TURAZZI, Maria Inez. Poses e trejeitos: a fotografia e
as exposições na era do espetáculo - 1839/1889. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
8
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expor rapidamente algumas chapas, Daguerre colocou-as em um armário contendo
diversos frascos de produtos químicos. Depois de alguns dias, ao retornar, descobriu
que a imagem latente tinha se desenvolvido”. (FELZ FERREIRA, 2007, p. 25).
Ele concluiu que teria sido por causa de um termômetro quebrado, e os vapores
de mercúrio que teriam fixado a imagem, fez outras experiências e diminuiu o tempo de
revelação que anteriormente era de oito horas para trinta minutos. Mas,
somente
em
1839 apresenta a descoberta oficialmente na academia de ciências de Paris em sete de
Janeiro. Porém, Daguerre encontrou dificuldade para patentear a sua descoberta,
conseqüentemente houve intervenção do estado indenizando-o e colocando o invento
em domínio público. Isso serviu para popularizar a descoberta e como conseqüência
posterior o surgimento e disseminação de uma nova profissão: o fotógrafo. Após
Daguerre tornar público o seu invento, em outros lugares fora da França, outros
anunciavam que também tinham conseguido fixar imagens no papel, alguns merecem
destaque.
A descoberta da fotografia fora da França
Na Inglaterra um pesquisador que vinha tentando obter avanços na fotografia foi
William Henry Fox-Talbot (1800-1877) que também como outros estudiosos do
assunto, ele também tinha dificuldade para fixar a imagem, entretanto ele desenvolveu
um método em 1835 e patenteou em 1941. Esse passo foi importante para o
desenvolvimento da fotografia, pois proporcionou a reprodução das fotos. Processo que
não fora alcançado anteriormente já que a foto produzida era única. Esse método ficou
conhecido como calotipia ou processo calótipo, que tinha o seguinte princípio: “ao invés
de emulsionar uma chapa metálica, Talbot emulsionou uma folha de papel, e com
cloreto de prata; obteve uma imagem negativa; se emulsionasse outra folha de papel e as
colocasse em contacto, obteria uma imagem positiva”. (GUIMARAES, 2009, p. 50).
Talbot ficou sendo o criador do processo de reprodutibilidade de um mesmo
original, através do método negativo/positivo, usado até hoje. Os dois métodos foram
soberanos como processos de qualidade, e foram espalhados na Europa, América e
Ásia, mas, o método calótipo superava o daguerreótipo, por possibilitar a reprodução
ilimitada de cópias a partir da matriz negativa, mesmo sem os resultados serem ideais.
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Entretanto, em 1851 o inglês Frederick Scoth Archer (1813-1857), escultor
inglês que desenvolveu a emulsão de colódio úmido em 1851 daria um importante
passo. Esse processo utilizava uma chapa de vidro que ficou conhecido como chapa
úmida, esse método tornou-se uma febre, mas tinha um inconveniente, pois a emulsão
secava e perdia as propriedades fotográficas.
O médico inglês Richard Leach Maddox (1816-1902), que em experimentos no
ano de 1851, substituiu o colódio por nitrato de prata, em gelatina. Essa substituição de
componentes proporcionaria resolver o problema anterior em relação à secagem com
perda das propriedades fotográficas: “A gelatina não só conservava a emulsão
fotográfica para uso após a secagem como, também aumentava drasticamente a
sensibilidade dos haletos de prata, tornando a fotografia, finalmente, instantânea”.
(GUIMARAES, 2009, p. 50). Esse processo foi chamado chapa seca, e ajudou na
difusão da fotografia. A fotografia evoluía e juntamente com essa evolução ficava cada
vez mais conhecida e mais acessível ao público. O novo avanço no uso do colódio foi
supremo durante três décadas, e o número de retratistas ou fotógrafos aumentou
consideravelmente, mas a evolução da fotografia não pararia nesse processo. A
fotografia começa a deixar de ser artesanal para caminhar para ser técnica, pois os
processos que existiam contribuíram inicialmente para esse novo cenário.
Nesse contexto surge à figura de George Eastman (1854-1932), norte-americano,
que conhecendo o equipamento fotográfico de sua época achou pesado e complicado,
pois ainda estava no processo de chapa úmido. Ele se incomodou com o trabalho que
dava para se locomover com o equipamento, e pensa na possibilidade de fazer alguma
mudança para que aquele trabalho se tornasse mais fácil. Resolve estudar para
simplificar todo o processo, pesquisou e desenvolveu um novo sistema, aperfeiçoando a
técnica existente. Eastman substituiu a base existente que era de vidro por uma
igualmente transparente de nitrocelulose e fez o primeiro filme de rolo da história. Em
1880 monta uma companhia de chapas secas, patenteia o seu invento e prossegue em
estudos para desenvolver produtos. Em 1888 desenvolve uma câmara que chamou de
Kodak N.º 1: “A máquina fotográfica de Eastman, chamada de Kodak n.º 1, era uma
caixa pequena, com uma lente simples que focalizava de 2, 5 metros ao infinito”. (FELZ
FERREIRA, 2007, p. 23). Com filme de rolos o cliente tirava as fotos e ao terminar
enviava para o laboratório de Eastman, onde ele revelava e enviava de volta a máquina
com um novo rolo para produzir 100 imagens. Em 1902 a sua companhia era o maior
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produtor de rolos de filme do mundo produzindo 85%, e não parou nisso, começou a
fabricar máquinas fotográficas e se tornou um importante fabricante mundial. Uma frase
de Eastman que ficou famosa foi “você aperta o botão, nós fazemos o resto”.
Significava a simplificação do processo na fotografia, que antes para tirar uma foto era
necessário ter conhecimentos, agora com a praticidade ficava fácil, tudo era bastante
simples. A contribuição de Eastman proporcionou a fotografia para todos, pois ele
simplificou o processo da fotografia, onde ela se popularizou e agora as pessoas podiam
registrar o seu cotidiano.
A fotografia no Brasil
Um francês chamado Antonie Hercule Romuald Florence (1804-1879),
conhecido como Hércules Florence, chegou ao Brasil em 1824, morou durante 50 anos
na cidade de São Carlos, São Paulo. Criou seu próprio método de prensa que chamou de
polygrafie, onde a partir desse método inicia testes para reproduzir imagens. Em 1832
Hércules Florence descobriu um método de gravação de imagens, a esse método ele
chamou de fotographie.9 Escreveu em seus diários, descobriu-se então que ele chegou a
um processo de reprodução antes de Daguerre, mas não foi divulgado pela imprensa no
mundo. De acordo com o historiador Boris Kossoy “Em 1833, Florence fotografou
através da câmera escura com uma chapa de vidro e usou um papel sensibilizado para a
impressão por contato”. (KOSSOY, 2007, p. 29). Kossoy resgatou a história de
Hercules Florence que ficou perdida e trouxe um novo paradigma na história da
fotografia.
O processo pinhole
O escocês David Brewster (1781-1868), físico, matemático, astrônomo e inventor do
estereoscópio10 e do caleidoscópio.11 Em 1850 fez fotografias estenopeicas12, ou sem
9
Florence utilizava chapas de vidro sensibilizadas com sais de prata que eram expostas numa câmara
escura. Essas chapas eram posteriormente reveladas e fixadas com urina (que é rica em amônia, outro
poderoso fixador) In FELZ FERREIRA, Jorge Carlos. A fotografia como processo físico-químico de
captura da realidade. Minas Gerais. 2007, p. 29.
10
Instrumento de óptica no qual duas imagens planas, superpostas pela visão binocular, dão a impressão
de uma única imagem em relevo. De acordo com o dicionário online. Disponível em:
<http://www.dicio.com.br/estereoscopio/>. Acesso em: 13 out. 2012.
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uso de lente convencional através de uma caixa com um pequeno orifício da espessura
da cabeça de uma agulha. Brewster chamou de pinhole ou pin-hole13, esse processo: “A
imagem produzida numa pinhole apresenta uma profundidade de campo quase infinita,
ou seja, tem um foco suave em todos os planos da cena”. (GUIMARAES, 2009, p. 55).
O processo pinhole era baseado no principio da câmara escura, mas Brewster
simplificou, diminuindo de tamanho a câmara.
Contexto histórico do surgimento da fotografia na Europa
Os avanços na pesquisas fotográficas provocaram mudanças, pois a arte dos
pintores e retratistas vai sendo substituída pela técnica na produção da fotografia
provocando resistência e fascínio ao mesmo tempo, as transformações ocorridas nos
avanços fotográficos coincidem com a própria revolução industrial na Europa no final
do século XIX e durante o XX, culminando em questões cruciais: “tecnologia e arte” e
“indústria de massa”. No século XIX surgem inovações técnicas que revolucionaram o
cotidiano do homem moderno, como a dominação da eletricidade que mudou a vida
noturna nas cidades. Outra invenção que encurtou distância foi à locomotiva que
diminuiu distância entre cidades e países na Europa. O telefone também provocou uma
revolução nas comunicações possibilitando contado entre longas distâncias.
A fotografia, além do seu desenvolvimento revela uma busca, um gosto, uma
curiosidade na Europa que é a idéia de “vista” do “panorama” da cidade. Surgia um
comportamento novo dentro de universo que estava se formando onde a técnica passa a
dominar a arte, pois, anteriormente para terminar um retrato de uma pessoa, retratista e
retratado gastavam horas em sessões de pinturas, agora em pouco tempo a fotografia
estava pronta, para alguns destituía a “aura da obra de arte”, pois agora não era arte e
sim técnica, mas, a tecnologia não foi absorvida por todos houve resistência de artistas e
críticos da época como pintores, escultores, poetas, etc., que não reconheciam nas
imagens fotográficas um valor estético à altura da pintura, escultura e gravura.
11
Ou calidoscópio: Pequeno tubo no qual se podem ver pequenos objetos coloridos. A maioria dos
calidoscópios tem de cinco a 08 cm de diâmetro e 25 cm de comprimento. As duas extremidades do tubo
são fechadas, mas uma delas tem uma ocular através da qual você pode ver dentro do calidoscópio.
Dicionário online. Disponível em: <http://www.dicio.com.br/calidoscopio/>. Acesso em: 13 out. 2012.
12
Fotografias feitas sem lentes através de uma fenda ou abertura estreita para entrada de luz. Que se
refere à estenopéia. Dicionário online. Disponível em: <http://www.dicio.com.br/estenopeico_2/>.
Acesso em: 13 out. 2012.
13
No inglês significa buraco de alfinete, basicamente um compartimento todo fechado onde não existe
luz, ou seja, uma câmara escura com um pequeno orifício.
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Charles Pierre Baudelaire (1821-1867) poeta, representante importante da
cultura francesa em seu texto em 1859 “O público moderno e a fotografia” foi um dos
críticos da nova invenção, quando falou nesse texto sobre o salão da academia de belas
artes da França. Existiram fotógrafos famosos entre eles Félix Nadar (1820-1910) na
verdade Gaspard Félix Tournachon, jornalista, caricaturista, e extraordinário fotógrafo
francês que retratava a alta sociedade francesa cobrando caro por seus trabalhos, era um
entusiasta da fotografia. Quando surgiu no século XIX, a fotografia no campo
acadêmico não foi considerada pela história metódica que predominava como
documento histórico, embora fosse encarada como reprodução da realidade. Foi
considerada como documento de segunda categoria e sua utilização objetivava apenas
confirmar as fontes escritas. Sobre isso corrobora Maria Eliza Borges: “a inclusão da
imagem fotográfica entre os historiadores se deu a partir de uma mudança de
paradigma, onde um novo tratamento foi dado ao documento e pontos de vista novos
entram nas abordagens históricas”. (BORGES, 2003, p. 31).
Um movimento artístico e literário que também surgiu no século XIX na Europa,
especificamente na França foi o realismo que predominou entre os anos 1850 e 1880 e
se estendeu pela Europa, manifestado na escultura e na arquitetura, retratando a vida e
os costumes da classe média baixa. As inovações tecnológicas do século XIX e XX
provocaram uma ruptura do homem moderno em formação com o homem medieval.
O tempo da reprodutibilidade
Quando a fotografia entra na era de reprodução ou reprodutibilidade técnica,
houve uma revolução, pois anteriormente se utilizava desenhos produzidos pelos
pintores retratistas. Essas reproduções não eram uma representação real do momento
como as imagens transferidas para o papel, e sim a sensibilidade do artista em captar e
representar a cena composta pelo cenário, que poderia levar dias para ficar pronto, e que
não retratava um só momento, mas algumas horas. Com a fotografia se eternizava um
momento real que o fotógrafo tinha captado naquele exato momento e o cenário
presente no campo de captura da foto. Nesse sentido o objetivo inicial da fotografia
seria conforme corrobora Walter Benjamin “fixar as imagens da câmera obscura, que
eram conhecidas pelo menos desde Leonardo”. (BENJAMIN, 1985, p. 91).
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As invenções não nascem do acaso e a descoberta para fixar a imagem, nasceu a
partir da idéia de outros experimentos em que o homem buscava gravar as imagens. A
partir da fotografia conseguia gravar o momento que passava em uma centelha de
segundos, e aquela cena única que não era possível reproduzirem em estúdio por
pintores, ficava impresso na foto em pouco tempo, o que tornava assombroso para a
sociedade daquela época. Ao se observar uma foto que tem um valor significativo para
o observador seja a foto mostrando uma pessoa, um lugar, a natureza, dependendo da
perfeição da fotografia ela terá um valor, superior a um quadro pintado: “a técnica mais
exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca terá para nós”.
(BENJAMIN, 1985, p. 94). Para as pessoas comuns a fotografia era um assunto
misterioso; como conseguia a partir daquele aparelho, produzir a imagem fiel mesmo
que em preto e branco do fotografado e do cenário composto na imagem. Nesse
contexto a foto tinha o poder de representar a realidade e sentimentos, ou seja, era
nítido: o olhar, o sorriso, a tristeza, o medo, o espanto e outros sentimentos captados em
algumas obras fotográficas. As primeiras fotos mostravam a face humana, e
posteriormente serviam para cultuar a recordação e o olho vê o rosto de uma pessoa
querida, que tinha partido para um lugar distante em uma longa viagem ou levado para
sempre pela morte: “A aura acena pela última vez na expressão fugaz de um rosto, nas
antigas fotos”. (BENJAMIN, 1985, p. 175). Na metade do século XIX, o retrato
fotográfico, toma um novo rumo saindo do ambiente em que circulava, onde estava
presente a aristocracia e alta burguesia, devido ao seu custo e também ao gosto e
costume que estavam presente nessas classes sociais. Surge a figura do fotógrafo
Francês, André Adolphe Eugène Disdéri (1819-1889), que com uma idéia consegui
baratear a fotografia com um formato que ficou conhecido como cartão de visita “cartede-visite photographique”. Essa saída foi proporcionada graças a uma invenção que
posteriormente serviria para dar condições para que a fotografia avançasse em
popularidade e escala comercial e industrial:
Em 1854, o fotógrafo francês André Adolphe Eugène Disdéri (18191889) cria um aparelho que permitiria a tomada de até oito clichês
simultâneos, iguais ou diferentes, em uma única chapa. Estava
inventado o chamado cartão de visita, um retrato de cerca de 9,5 x 6,0
cm, montado sobre um cartão rígido de 10 x 6,5 cm aproximadamente.
(BORGES, 2003, p. 50).
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Disdéri conseguiu colocar a fotografia numa escala industrial, barateando e
popularizando a fotografia em um enfoque que antes não havia acontecido, pois
conseguia colocar seis fotografias em uma mesma chapa.
Com essa invenção ou renovação técnica, o custo da fotografia diminuiria um
pouco, e estaria acessível a camadas sociais menos abastardas, e dava início à atividade
de um novo profissional. A fotografia entrava na era dos estúdios fotográficos,
substituindo aos poucos o retrato feito pelos pintores artesanalmente por fotografias
feitas por fotógrafos. O novo profissional divulgava em jornais o seu endereço, com
anúncios para atrair o seu público ou clientes que começavam a se interessar pelo novo
produto que a democratização fotográfica havia proporcionado. Esses estúdios
funcionavam como fábricas de ilusões e contavam com acessórios para enriquecer e dar
vida ao cenário conforme a preferência da pessoa a ser fotografada. Na preparação do
cenário, envolvia a escolhas: do pano de fundo, o tipo de roupa, o instrumento musical
ou outros objetos, tudo isso levava a devaneios e dava um sentido mágico a todo o
processo da fotografia nos estúdios.
Réplicas de tapetes persas, cortinas de veludo e brocado, almofadas
decoradas, panos de fundo pintado com cenas rurais e/ou urbanas,
roupas de gala, instrumentos musicais, bengalas, sombrinhas, de seda,
etc., eram disponibilizadas aos clientes interessados em atribuir
realidade a seus sonhos e desejos. (BORGES, 2003, p. 51).
Com o tempo foi democratizado o consumo da imagem, e cada vez mais ficava
acessível o preço das fotografias, aumentou a mobilidade dos fotógrafos que viajavam e
atendiam em outras cidades, alguns até abriam filiais em outros lugares. Esse
desenvolvimento da fotografia proporcionou criação de novos negócios, como fábrica
de máquinas fotográficas, e casas de comércios especializados em venda de filmes.
Além disso, proporcionou também o surgimento da figura do fotógrafo ambulante, que
se deslocava de uma cidade a outra ou em eventos festivos na região em que habitava.
Os fotógrafos também atendiam nas casas para produção de álbuns familiares, para que
memorizasse entes queridos: “Em todos esses trabalhos, o fotógrafo independente ou
vinculado a alguma empresa, desempenhava o papel de mediador da cultura do olhar
fotográfico, mas tarde seguido de perto pelos amadores”. (BORGES, 2003, p. 54).
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Surgia então, o fotógrafo itinerante que se deslocava para exercer o seu ofício,
em lugares pertos ou distantes e mais tarde se popularizou nas praças das cidades
trabalhando como fotógrafos.
Considerações finais
Percebemos que dentro do contexto da revolução tecnológica e industrial no
século XIX ocorrida na Europa, que a invenção da fotografia no seu aspecto técnico
acompanhou o movimento de inovações em outras áreas como transportes,
comunicações, arquitetura. Porém houve resistência por parte de artistas e críticos, que
concordavam que a fotografia destituía a “aura da obra de arte”, nesse sentido existiu
tensão entre arte e fotografia. Notamos que a priori a fotografia não foi considerada uma
fonte primária nas pesquisas acadêmicas pela escola metodista, mas, servia como
complemento das fontes escritas. Concluí-se que a fotografia não tem um só inventor e
sim descobertas ou invenções que ao longo do tempo foram contribuindo para a
evolução do processo fotográfico como a câmara escura, as lentes convergentes, papel
fotossensível que possibilitaram avanços na área. (FABRIS, 1991, p. 09) corrobora
quando diz que: “Se foram determinantes três momentos fundamentais para o
aperfeiçoamento dos processos fotográficos”. Nessa evolução na história da fotografia
são perpassados três momentos ou fases, em que cada uma teve o seu apogeu. O
Primeiro momento é referente às primeiras experiências com colódio úmido, gelatina
bromuro, que se estenderia dos anos 1839 a 1850, quando a fotografia se restringia a um
número pequeno de fotógrafos. O segundo momento em 1854 com Disdéri, barateando
e colocando a fotografia no embrião da escala industrial, com o cartão de visita que
tornava acessível às classes menos favorecidas, possibilitando ter um retrato ou
fotografia. O terceiro momento se dar a partir de 1880, onde a fotografia passa a ter o
seu uso com prioridade comercial, com George Eastman fundando a companhia Kodak.
Posteriormente surgiriam outras companhias no mundo que iriam disseminar cada vez
mais a fotografia pelos continentes, porém, tudo isso foi possibilitado pela nova
configuração que a tecnologia trouxera ao longo dos anos, e pela mudança na formato
de urbanização das cidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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HISTÓRIA E PODER
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Recebido em 27 de março de 2013
Aprovado em 10 de maio de 2013
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O LIVRO DIDÁTICO E O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA
Luciano Silva de Menezes1
Resumo: Este artigo tem como principal objetivo analisar os conteúdos referentes à
História da África em virtude de sua relevância, profusão de culturas diversificadas,
inúmeros dialetos em sua imensa dimensão geográfica que fora e ainda continua sendo
incompreendidos,
homogeneizado,
preteridos
por
muitos
autores,
mediante
desconhecimento, desinteresse ou mesmo, omissão. Nas observações desses livros
didáticos destacaremos os aspectos similares e as nuanças com outros temas inseridos
nos livros. O livro didático possui limites, vantagens e desvantagens como outros
materiais dessa natureza, portanto precisa ser sempre avaliado e analisado.
Palavras-chave: Livro didático; História da África; cultura, educação.
Abstract: The main objective of this article is to analyze the data referring to the
history of Africa as a result of its relevance, profusion of diverse cultures, and
innumerable dialects within its
immense geographical area which were and are still
misunderstand, homogenized, and unsuccessful by many authors, because of a lack of
knowledge, interest, or even omission. Observing these textbooks, we will flows on the
similar aspects and nuances with other themes inserted in the books. The textbooks have
limits, and advantages and disadvantages, like other subjects of this nature, it therefore,
needs to be evaluated and analyzed.
Key – words: Textbooks; History of Africa; Culture; education.
Hoje, depois de se passarem quase dez anos da aprovação da Lei que impõe o ensino da
História da África em sala de aula, se tornou muito fácil de perceber o quanto temos a
aprender sobre a África e suas inúmeras diversidades culturais, políticas.
Se há um traço verdadeiramente africano, esse traço é a diversidade,
antes da mal denominada „divisão‟ da África pelas potências
1
Graduando em História pela Universidade de Pernambuco – Campus Petrolina. E-mail:
[email protected]. Orientador: Prof. Ms. Reinaldo Forte Carvalho.
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imperiais, o continente abrigava milhares de entidades políticas
distintas, que acabariam reunidas pelos colonizadores em cerca de
meia centena de Estados. (MAGNOLI, 2009, p. 222).
Percebemos o quanto temos a aceitar, a respeitar, a entender e, através de novas
pesquisas as ambiguidades são extirpadas e, consequentemente erigidas novas
possibilidades através de novos questionamentos. Embora, sendo uma historiografia
concernente à Nova História, encontraremos ainda vestígios do eurocentrismo e do
positivismo. Como afirma Fernandes (2005) que “vários livros didáticos ainda
permanecem arraigados ao positivismo, priorizando o modelo da historia das classes
dominantes”. As buscas de mudanças da historiografia que persistem desde Marc Bloch
e Lucien Febvre, após a instauração da Escola dos Annales, essas inovações de postura
encontram obstáculos nos paradigmas estabelecidos, modelo que foi intitulado como
uma história vista pela ótica de cima, do poder dominador. Essa visão unilateral,
inalterável tem impossibilitado de se observar a existência de outros elementos, de
outras culturas, de outra fé, de outras crenças, de outras raças, de outras línguas, o que
entendemos como etnocentrismo, dentro de um contexto contemporâneo.
A não observação, a recusa, a comparação, e o silêncio, a omissão dentre outros
comportamentos, quando se trata de África se torna mais agravante, não somente em
razão da imposição da lei, mas, por se ter posto em mente a ideia de que devemos muito
às culturas africanas e aos seus diversos povos; muito embora, não somente pela
inerência entre os dois povos, mas, por um passado escravista a que fora submetido
muitos africanos. Como mencionou Galeano (2011), que grandes legiões de escravos
vieram da África para o Brasil, era uma força de trabalho gratuita para servir o „reiaçúcar. ‟ Por essa égide caminhou muitos autores, afirmando e descrevendo o período
escravista, dentro de suas subjetividades, alguns mostraram números e dados
estatísticos, outros se preocuparam mais com as circunstâncias degradantes dos navios
em que se transportavam africanos com destino a América. “Durante a viagem,
inúmeros africanos morriam, vítimas de epidemias ou de desnutrição ou se suicidavam
negando-se a comer, enforcando-se em suas correntes ou lançando-se no oceano eriçado
de barbatanas de tubarões.” (GALEANO, 2011, p. 119). Talvez esse passado de
imposição indelével dos trabalhos forçados, tenha contribuído por essas buscas
exacerbadas de exaltação da África, uma espécie de Pan-Africanismo mais amplo,ou
seja, além das ideologias propagadas por figuras como Du Bois, Blyden, Garvey e
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outros que mobilizavam elementos inerentes à África, tanto nos EUA como na Europa.
“O homem só trabalha para o outro quando é obrigado. Se tiver acesso a terra na qual
possa produzir para si, não trabalhará para mais ninguém.” (HUBERMAN, 1986, pag.
119). Diante do sistema escravista posto em questão, torna-se irrefutável a condição do
negro, situação que não o impediu de reagir, muito embora, esse caráter reacionário não
caracteriza uma aceitação de uma constante reação e que se deva a partir de agora
deixar latente o negro aprisionado opressivamente.
As primeiras análises serão feitas no livro didático que tem como autora, Braick,
(2010). O compêndio tem uma divisão em vinte capítulos, sendo que o segundo foi
destinado à África e tem como título: “A África dos grandes reinos impérios.
Descobrindo a África.” Em primeiro momento, uma foto aérea de uma aldeia na região
de Darfur, no Sudão. Em questionamento está o título. Será que se deve dar ênfase a
essas expressões do mundo capitalista – grandes reinos, impérios? Será que estamos
repetindo o modelo pobre da historiografia, reduzido a jogo de poder entre “grandes.”
mesmo sendo numa cultura dentro da África. As necessidades de uma história mais
ampla, com as necessidades humanas, mais holísticas – sentir, pensar e agir, que de
acordo com Kant (2010), ao homem é necessário conhecer, fazendo o uso da razão para
determinadas ações.
Com a revista Annales, surgida na França, o que estava em questão era essa necessidade
de enriquecimento da História, e essa expansão da visão do historiador que era
fortalecida e enriquecida com a inerência com outras disciplinas, contatos com a
Filosofia, Antropologia, Geografia, Sociologia, dentre outras disciplinas – uma
renovação historiográfica. Então percebemos no título de Braick uma continuidade do
que foi combatido pelos Annales e a Nova História, e contrário também a Michelet,
(1815 – 1979), quando diz que a história é daqueles que sofreram,trabalharam,
definharam e morreram sem nenhuma chance de ter seus nomes e seus sofrimentos
descritos na historiografia. Michelet e os historiadores da Nova História não foram
unânimes nesse pensamento. “Marx também oferecia um paradigma histórico
alternativo ao de Ranck. Segundo sua orientação teórica, as causas fundamentais da
mudança histórica deveriam ser encontradas nas tensões existentes no interior das
estruturas socioeconômicas.” (BURKER, 1991, pag. 12).
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Um segundo ponto que deve ser destacado positivamente é quando Braick destaca a
“importância dos povos africanos” em virtude de ser elemento base do povo brasileiro;
“origem do povo brasileiro,” essa é expressão usada por ela. Além da contribuição na
formação cultural do Brasil, esses povos trouxeram idiomas e religiões desconhecidas.
A autora vai afirmar em primeira mão,que o estudo do capítulo é destinado África
Atlântica – região do Senegal e Angola. Dando destaque, ao que ela chama de
conhecimento de técnicas avançadas de produção agrícola, marcenaria, ourivesaria e
metalúrgica. Bitencourt (2011) menciona a ausência nos livros didáticos de conteúdos
voltados para a população africana anterior ou posterior ao período escravista. Além de
ficar latente a contribuição dos africanos no quadro econômico.
Um terceiro momento tem o subtítulo “O olhar estrangeiro sobre a África”. O
continente chamado pelos europeus de Etiópia, em grego, terra de homens de pele
negra, uma inerência ao sentido depreciativo, como descreve Hernandez (2008):
Os africanos são identificados com designações apresentadas como
inerentes às características fisiológicas, baseadas em certas noções de
etnias negras, assim sendo, o termo africano ganha um significado
preciso: negro ao que se atribui um amplo espectro de significações
negativas como frouxo, fleumático, indolente e incapaz, todas elas
convergindo para uma imagem de inferioridade e primitivismo.
(HERNANDEZ, 2008, p. 18).
A autora afirma essa generalização e desconhecimento da África, com exceção das
terras localizadas a cima do Deserto do Saara, nos proximidades do Mar Mediterrâneo.
Diante desse desconhecimento afirmado por Braick, Oliva, (2003) irá reforçar uma ideia
de necessidade de conhecimento da África, quando declara que devemos conhecer o
continente africano, não tão somente, para mostrá-lo como exótico aos alunos, mas para
introduzir em seu âmago.
Os reinos sudaneses, destacadas na região subsaariana, mais uma vez a autora destaca a
ideia de reino relevante aos padrões do eurocentrismo, sendo que agora o destaque se
volta para o comércio transaariano exercido, com produtos diversos, como cereais,
pimenta, ouro, âmbar e escravos em escambos por sal, conchas e tecidos. Antagônica as
afirmações de Braick, estão às declarações de Lovejoy (2002), quando diz que o
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comércio nessa região da África era totalmente autônomo do setor externo, embora
antiquíssimo, era relativamente isolado. O ponto principal que ela menciona,
indubitavelmente são os contatos com outras culturas e sincretismos religiosos
possibilitados. E sobretudo, o grande números de línguas faladas na África, superior a
dez mil como o mandinga, o igbo, o iorubá e o hauça no oeste,o suaíli no leste, o
amárico e o orono no noroeste; o zulu e o soto no sul; e o árabe no norte. Uma
diversidade cultural ampla representada através de costumes, crenças, religiosidades,
hábitos, e outros aspectos peculiares a cada micro região. O que torna necessário
conhecer a África não são os aspectos a ela inerentes, ou influenciados por ela, mas
simplesmente ela própria e suas riquezas culturais.
Somente o conhecimento da África e do negro poderá contribuir para
desfazer os preconceitos e estereótipos ligados ao seguimento afrobrasileiro, além de contribuir para o resgate da autoestima de milhares
de crianças e jovens que se veem marginalizados por uma escola de
padrões eurocêntricos, que nega a pluralidade étnico-cultural de nossa
formação. (FERNANDES, 2005, p. 382).
A autora Azevedo (2010), em “História em Movimento,” usa como subtítulo, “África,
berço da humanidade.” Destacando de início o fóssil de uma menina encontrado em
2006, na Etiópia, África; ela teria aproximadamente três anos de idade e vivera há cerca
de 3,3 milhões de anos. Ou seja, pertencente à espécie bípede Australopithecus
afarensis, similar a de Lucy, encontrada também na África em 1974. Portanto, a ideia
defendida pela autora, é que há dois milhões de anos os primeiros seres do gênero
Homo aparece na África. E afirma M, Bokolo (2009), que “somente na África se
encontra os vestígios de todas as fases da hominização e podemos, por consequência,
reconstituir as incertezas e hipóteses.
Tombuctu, no Reino do Mali, é mencionada pela autora, pela profusão cultural com
destaque para uma biblioteca no século XVI, onde ocorriam encontros de artistas e
intelectuais; nas informações a respeito do Mali, o comércio de escravos é posto em
pauta relevância e valorização similar ao ouro.
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Em primeiro lugar a escravidão ocupou uma área geográfica cada vez
maior, difundindo-se fora daquelas regiões diretamente envolvidas no
comércio exterior de escravos. Em segundo lugar, o papel dos
escravos na economia e na sociedade tornou-se crescentemente
importante, do que resultou a transformação da ordem social,
econômica e política. (LOVEJOY, 2009, p. 29).
O escravo era uma propriedade e,de certa forma, nessa conjuntura em que fala a autora,
tinha grande valor, mas discrepante a essa ideia sustenta Galeano (2011), que “os
traficantes davam um fuzil velho por um escravo vigoroso que tiravam da África, para
logo vendê-lo em Cuba por 600 dólares”.
Ao destacar a música e as possíveis influências sofridas por ela, Braick, segue de forma
aprisionada ideias do espírito Pan Africanismo, usa-se agora,a África como parâmetro
referencial um modelo padrão e intocável toma o lugar do eurocentrismo. Parece
também ser necessário exaltar os valores culturais africanos explícitos ou implícitos em
diversos gêneros musicais, sobretudo, o classicismo. Sobre a música clássica Bennet
(1986), sustenta que “corresponde ao curto período que incluem as músicas de Joseph
Haydan e Mozart, até as composições iniciais de Beethoven”. Logo, uma visão limitada
no tocante á música é apresentada no livro didático, onde se priorizava a estética como
elemento principal. Portanto, algumas disparidades nas afirmações não comprometem a
ênfase dada à música.
Em outro momento, a autora mencionará o contanto com os portugueses, que de acordo
com ela dinamiza o setor comercial internacional, dando ênfase a escravismo. “Mesmo
o silêncio das estatísticas, a existência do intenso tráfico negreiro equatorial é atestada
de forma eloquente pela história do tráfico português e brasileiro.” (RODRIGUES,
2008, pag. 37). As circunspectas informações de Nina Rodrigues no que refere as
comercializações da coroa portuguesa, mobilizando o comércio lusitano harmonizam
com Braick, em seus destaques no livro didático. O que não implica em a ideologia de
passividade ou da inexistência de escravidão antes dos processos colonizadores. Como
afirma Skidmore (2009), sobre o período pré-colonial, às vezes visto, ou pensado de
maneira harmônica, destituídos de conflitos e querelas sendo somente quebrada tal
conjuntura mediante a chegada o europeu. O colonizador e comerciante de escravos,
supostamente propiciador de todas as mazelas, logo, não salutar a África e seus
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habitantes. Sobre tais circunstâncias bélicas, sobre a égide do sistema escravista ou não,
muitas vezes a violência era elemento indispensável.
Mesmo quando o motivo da guerra não era adquirir escravos, a
ligação entre guerra e escravidão era muitas vezes estreita. Nas
sociedades onde era costumeiro escravizar prisioneiros, os
beligerantes invariavelmente levavam em consideração as
possibilidades de custear as despesas de guerra com a venda ou
utilização de escravos. Quando as guerras e as invasões eram crônicas,
eram constantes a escravização e a reescravização dos povos, e a
incidência da escravidão em tais situações aumentava. (LOVEJOY,
2002, p. 32).
Mitigar os diversos e constantes conflitos africanos seja eles oriundos do sistema
escravista, anterior ou ulterior ao colonialismo, talvez não será a melhor via dentro dos
estudos historiográficos, assim como o eufemismo em relação às circunstâncias
aviltantes dos períodos de exploração do homem pelo homem. Maestri (2001) defende o
escravismo como forma germinal, tendo surgido pelo menos, 3000 a. C. no sul da
Mesopotâmia e no Egito – colocando como nível de desenvolvimento das forças
produtivas materiais em destaque: a força de trabalho, ferramentas, matérias-primas e
técnicas. Por esse encalço, o Egito, sendo ele, nordeste da África, as relações de
servidão já procediam em tempos remotos, dessa forma, destaca-se a península grega,
que também se mostra vinculada as bases de escravidão. “O mundo micênico teve o
essencial de sua riqueza assentado sobre a exploração da comunidade aldeã, livre e
tributada pelo poder central.” (MAESTRI, 2001, p. 16). As comunidades incorporavam
produtores oriundos de outras localidades, sob o contexto de relações servis variadas,
em geral não hereditárias. Contudo, as diversificações, dentro das culturas,
circunstâncias e períodos distintos, elucida as formas de servidão e escravidão ao longo
da história, e no tocando a África e suas múltiplas diversidades culturais e geográficas, é
mais que necessário uma análise mais cautelosa.
As análises desses livros didáticos não tentam mitigar as interrogações, nem saná-las,
uma vez que os questionamentos no sentido dialético, contribuem para o
enriquecimento a amplitude do conhecimento dos pesquisadores, professores e alunos.
Assim como, a diversidade nos conteúdos a serem avaliados e estudados fazendo deles
um suporta imprescindível ao livro escolar, uma extensão do mesmo. Quebrando os
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paradigmas que parecem indeléveis, dentre ele o estereótipo sobre os grupos étnicos e a
impossibilidade de indagações, contestação e, sobretudo, a própria produção do aluno e
do professor. Bitencourt (2011) defende que “esse é o maior e mais grave problema do
livro didático é sua impossibilidade de questionamento apresentando num discurso
unitário – uma verdade intocável, axiomáticas”. Embora, tenha o livro didático
caminhado progressivamente nas fragmentações, matizadas e elucidadas formas de
apresentar seus conteúdos, ainda se tem um longo caminho a se percorrer.
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Ano IV
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Recebido em 22 de fevereiro de 2013
Aprovado em 15 de maio de 2013
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ASPECTOS HISTÓRICOS DAS ALDEIAS DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
E DA BARRA DO SALGADO NO SUL DA BAHIA (1810-1875)
André Mariano Neri1
RESUMO: Este artigo tem como objetivo discutir a dinâmica relação das aldeias de
São Pedro de Alcântara e da Barra do Rio Salgado entre os anos de 1810 a 1875. É
interessante salientar que este estudo parte de uma nova perspectiva historiográfica, na
qual concebe o índio como protagonista de sua própria história, pois por muito tempo a
história dos índios no Brasil, principalmente ao se discutir a inserção destes nos
aldeamentos foi abordada pelo víeis da “aculturação” e “assimilação”. Com base nos
estudos realizados até o momento percebe-se que os dois aldeamentos em estudo foram
também espaços indígenas, nos quais estes ingressavam pelos seus próprios interesses.
É importante salientar que poucos estudos têm sido realizados sobre essas experiências
em aldeamentos no Sul da Bahia. Pioneiros são os estudos de Maria Hilda Baqueiro
Paraíso, que se iniciam a partir de 1982.
PALAVRAS – CHAVE Aldeia de São Pedro de Alcântara; Aldeia Barra do Salgado;
História Indígena; Política Indigenista.
ABSTRACT: This article aims to discuss the dynamic relationship of the villages of
San Pedro de Alcantara and Bar Salt River between the years 1810-1875. It is
interesting to note that this study is part of a new historiographical perspective, which
sees the Indian as the protagonist of his own story, as long a history of Indians in Brazil,
especially when discussing the inclusion in these villages was approached by the víeis
"acculturation" and "assimilation." Based on the studies conducted so far it is clear that
the two villages under study were also indigenous spaces in which they were entering
for their own interests. Importantly, few studies have been conducted on these
experiences in villages in southern Bahia. Pioneers are the studies of Mary Hilda
Baqueiro Paradise, beginning from 1982.
KEY - WORDS: Village of São Pedro de Alcantara; Village Bar Salgado, Indian
History, Indian Politics.
INTRODUÇÃO
1
Graduando em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC. Bolsista do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID/CAPES. E-mail: [email protected].
Orientadora: Profª Ms. Graciela Rodrigues Gonçalves
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A aldeia indígena da Barra do Rio Salgado, entre os anos de 1810 a 1875, reunia
índios do grupo Kamakã-Mongoió. Quanto à data exata de fundação as fontes
encontradas não tratam com precisão. Segundo documentos esta aldeia surgiu em
decorrência da abertura de uma estrada que deveria partir de Ilhéus e, acompanhando o
leito do Rio Pardo, chegar a Minas Gerais. Mas tarde esta aldeia foi transformada num
grande aldeamento para dar apoio à abertura e a conservação da nova estrada.
O aldeamento de São Pedro de Alcântara foi um dos mais importantes do
período em questão, situado a margem setentrional do Rio Cachoeira e a 12 léguas da
Vila de Ilhéus. Os índios que constituíam este aldeamento estavam posicionados nas
regiões sul e sudoeste da Província da Bahia. Esses índios estavam subdivididos em três
grandes grupos: os Aimoré, os Pataxó e os Camacã. O local onde ficava o reduto
missionário chama-se atualmente, Ferradas, bairro da cidade de Itabuna uma das
maiores e mais populosas da região sul baiana.
Para a realização deste trabalho foram utilizados como fontes, documentos
encontrados no Arquivo Público do Estado da Bahia - (APB), principalmente, as
Correspondências trocadas entre as autoridades coloniais e as metropolitanas
localizadas na Seção Colonial e Provincial. Além das preciosas informações deixadas
pelos viajantes que tiveram na Bahia entre os anos de 1815 e 1817, sendo eles o
príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied, e H.Perret que visitaram as aldeias de
São Pedro de Alcântara e da Barra do Salgado, em diferentes momentos, mas que
deixaram relatos interessantes dos grupos indígenas que ali encontraram. Todavia, essas
fontes precisam ser analisadas com bastante cuidado, pois se pode constatar nos escritos
o olhar preconceituoso e eurocêntrico para com as populações nativas estudadas.
As discussões aqui levantadas partem do diálogo realizado com as fontes
consultadas, e está baseado nas novas proposições historiográficas que se dedicam a
estudar os povos originários. No que tange tal perspectiva, Maria Regina Celestino de
Almeida, constitui referência obrigatória para as reflexões aqui abordadas. Nos últimos
anos, ALMEIDA vem se debruçando a fim de salientar o protagonismo indígena,
afirmando que as populações indígenas tiveram participações significativas e atuantes
no que se refere à construção dos aldeamentos.
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
CONTEXTUALIZANDO O SURGIMENTO DAS ALDEIAS DA BARRA DO
SALGADO E SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
Nas terras, onde hoje está localizado o Município de Itapé na Mesorregião Sul
Baiano2, vivem 10.995 mil habitantes segundos dados do censo do IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010. A principal atividade econômica da
região é mista, cacau e pecuária, e não há ali qualquer aldeia indígena. Entretanto, há
pessoas que se identificam como indígenas segundo consta no mesmo levantamento do
IBGE: 36 indivíduos se auto, declararam como índios sendo 17 do sexo masculino e 18
do sexo feminino, mas não constam as quais etnias esses indivíduos pertencem.3.
O primeiro nome dado a Itapé foi: Estreito D’Água tratava-se de um pequeno
arraial que recebeu esse nome devido ao estreitamento do leito do rio Cachoeira 4·. O
arraial começou a crescer e recebeu o nome de Vila de Itaúna em detrimento de uma
grande pedra que existia junto ao rio que em tupi – guarani significa pedra = Ita + pedra
= Una. O nome também advém da língua tupi e se traduz como “caminho de pedra” (Ita
= pedra + pé = caminho). 5 Na primeira metade do século XIX, existiu nessas terras uma
aldeia indígena na Barra do Rio Salgado reunindo índios do grupo Kamakã-Mongoió. O
que se sabe é que aldeia da Barra do Salgado surgiu em decorrência da abertura de uma
estrada para a região de Minas Gerais.
“O brigadeiro Felisberto Caldeira Brant, proprietário do engenho Santa Maria,
perto de Ilhéus mandou, em 1810, abrir à sua custa uma estrada da vila de São Jorge dos
Ilhéus para o arraial da Conquista, com extensão de 42 léguas, na qual empregou mais
2
Itapé está inserida na Microrregião Ilhéus – Itabuna, que ainda comporta os municípios de Almadina,
Arataca, Aurelino Leal, Barra do Rocha, Barro Preto, Belmonte, Buerarema, Camacan, Canavieiras,
Coaraci, Firmino Alves, Floresta Azul, Gandu, Gongogi, Ibicaraí, Ibirapitanga, Ibirataia, Ilhéus, Ipiaú,
Itabuna, Itacaré, Itagibá, Itajú do Colônia, Itajuípe, Itamari, Itapé, Itapebi, Itapitanga, Jussari, Mascote,
Nova Ibiá, Pau Brasil, Santa Cruz da Vitória, Santa Luzia, São José da Vitória, Teolândia, Ubaitaba,
Ubatã, Una, Uruçuca, Wenceslau Guimarães.
3
Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel.php?codmu=291620#topo. Acesso em: 15 de
setembro de 2012.
4
O rio Cachoeira é formado pela junção dos rios Colônia e Salgado. O primeiro nasce na serra da
Ouricana, município de Itororó, bem na divisa com o município de Caatiba. O segundo tem a nascente na
serra do Salgado, a cerca de 2 quilômetros do povoado de Ipiranga, dentro do município de Firmino
Alves. Esses rios banham diversas localidades como Itambé, Itororó, Santa Cruz da Vitória, Ibicaraí,
Floresta Azul, Firmino Alves, Itapé até chegar a Itabuna e Ilhéus.
5
A área onde está situada a cidade de Itapé pertencia a Capitania de São Jorge dos Ilhéus. Com a criação
da Comarca de Ilhéus em 1816 e depois em município de Ilhéus em 1881, ficou pertencendo a esse
território. Em 1906 passou a fazer parte da área territorial de Itabuna e finalmente em 28 de dezembro de
1961 o governador da Bahia Juracy Montenegro Magalhães sancionou a Lei nº 1.601 na qual torna Itapé
município independente.
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
de 15.000 cruzados”. (CAMPOS, 2006, p.307-308). Em fins de 1812, a estrada havia
atingido o rio Salgado habitada pelos índios guerens. Vale considerar ainda, a hipótese
de que o coronel Caldeira Brant, também estivesse interessado em ter acesso aos
indígenas que poderiam ser aldeados próximos a estrada enquanto mão de obra. Muitos
empreendimentos dos colonos só poderiam se consolidar com atuação efetiva do
trabalho indígena.
Assim, essa estrada deveria partir de Ilhéus e, acompanhando o leito do Rio
Pardo, chegar a Minas Gerais passando por Vereda, Gavião, Valo e Arraial da
Conquista, regiões dominadas pela família de João Gonçalves da Costa. É interessante
salientar a origem deste,
Nascido na cidade de Chaves, região de Trás-os-Monte, em Portugal
onde supostamente teria nascido por volta de 1717 ou 1719. Consta
que chegou às terras brasileiras muito cedo, aos 16 anos de idade,
fixando-se na região de Minas Nova, que naquela época, pertencia à
capitania da Bahia, iniciando ali sua trajetória de bandeirante. (IVO,
2004, p. 56-57)
“Para as autoridades do governo central e provincial, essa estrada seria
fundamental para a integração das vilas litorâneas aos centros produtivos interioranos
por ser o caminho mais curto do que o aberto pelo Rio Jequitinhonha” (SOUZA, 2007,
p.70). A abertura de estradas, obedecendo às ordens da coroa, se dá a partir do
cumprimento à determinação da carta régia de 12 de julho de 1799. O objetivo era
facilitar o transporte de gado, de algodão e demais produtos das regiões interioranas.
Observa-se que os colonos a todo o momento estavam procurando melhores condições
para o desenvolvimento da região, e conseqüentemente o seu próprio enriquecimento,
entretanto, em alguns momentos encontraram determinados empecilhos como, por
exemplo, alguns grupos indígenas hostis como os Pataxó.
Supõe-se que os Pataxó resistiram o quanto puderam a política dos aldeamentos
em favor a eles, assim como as demais etnias, por terem uma vida errante e sem o
costume de fixar-se em um espaço específico. E ao ingressar no aldeamento tal ação
acarretaria mudanças significativas em toda sua organização social, cultural. Então,
agiam atacando as plantações existentes nos aldeamentos e atacavam quem passava
pelas estradas da região, ou seja, eram tidos como “selvagens”, “primitivos” e por isso
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Ano IV
precisavam ser catequizados e civilizados, embora tal façanha não tenha sido fácil para
o colonizador.
Entre os anos de 1815 e 1817, o príncipe alemão Maximiliano de Wied –
Neuwied percorreu os territórios dos atuais estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo,
Minas Gerais e Bahia. Tinha por objetivo estudar a fauna, flora e os índios. Wied –
Neuwied, em passagem pelas terras do sul da Bahia, mais precisamente na Aldeia de
São Pedro de Alcântara, a descreve como um lugar miserável, isso fica evidente no
seguinte relato:
O lugar em que agora nos encontrávamos, era uma miserável aldeia,
com apenas umas dez casas de barro e uma igreja, que não passa de
uma espécie de alpendre, construído também de barro; deram, no
entanto, a essa aldeia o nome de vila de São Pedro de Alcântara;
todavia, há ainda o costume de chamá-la impropriamente de “as
Ferradas”, porque, a pouca distância dela, o leito do rio é atravessado
por porções de pedras conhecidas por banco das ferradas. Essa vila, ou
melhor, essa aldeola, foi fundada há dois anos, quando se concluiu a
estrada de Minas. Reuniram-se aí homens de toda sorte, alguns
espanhóis, várias famílias de índios, e homens de cor (pardos), além
de um grupo de índios Camacãs trazidos da mata e de uma que os
portugueses conhecem com o nome de Mongoiós. Esses índios só se
estendem ao sul até o Rio Pardo, enquanto que ao norte se encontram
até além do rio das Contas, onde, todavia já renunciaram de todo à
vida selvagem. Somente aqui, no sertão da capitania da Bahia, pode-se
ainda observá-los em seu estado primitivo, pois muitos deles nunca
viram um europeu. Entretanto, são mais civilizados que os Patachós e
os Botocudos, seus vizinhos, visto como não vivem mais
exclusivamente da caça e já cultivam plantas para sua subsistência,
prendendo-se assim, mais ou menos, ao lugar que desbravam, embora
não para sempre. (WIED – NEUWIED, 1989, p. 356).
Na perspectiva do Wied – Neuwied, a ideia de que para uma aldeia ser
considerada desenvolvida nos moldes europeus, a presença de um grande contingente de
moradores era essencial e a questão das moradias nas aldeias, ou seja, como as casas
deveriam ser feitas é outro ponto que o viajante destaca. Todavia, precisamos ressaltar
que os índios não se fixavam em um determinado espaço por um longo período de
tempo. Pode-se supor que o naturalista passou pela aldeia justamente no momento em
que estivesse pouco habitada e os ameríndios estivessem em outras localidades.
Wied-Neuwied afirma que a aldeia de São Pedro de Alcântara era habitada por
moradores de diversas origens étnicas, provavelmente esta prática de inserir não
indígenas nos espaços indígenas é resultante da política pombalina das vilas de índios.
Segundo Francisco Cancela:
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Ano IV
Diferentemente dos antigos aldeamentos jesuíticos, nestas novas
povoações a presença do elemento não – indígena era obrigatório. De
acordo com o Diretório dos Índios, o contato e a convivência regulares
entre os índios e não índios seria um instrumento eficaz para a
civilização dos povos nativos. Como podemos deduzir as vilas de
Índios não eram concebidas como um espaço de simples
arregimentação de mão-de-obra, nem tampouco apenas ambiente de
catequização coletiva de almas infiéis. (CANCELA 2007, p. 48 - 49).
É válido ressaltar, que esta análise demonstra muito bem a ideia de que os
ameríndios precisavam passar por um processo de “civilização”. Ainda com base no
relato do naturalista, os índios que se encontravam aldeados em São Pedro de Alcântara,
os Kamakã- Mongoió eram mais “civilizados” do que os Pataxó e os Botocudo, estes
últimos, eram vistos como os arredios, bravios e que necessitavam serem catequizados;
enquanto que os Kamakã não viviam mais exclusivamente da caça, já cultivavam
alimentos para própria subsistência, pratica esta fundamental para permanência e
fixação da área.
“Viviam em Ferradas os índios Kamakã-Mongoió aldeados pela família de João
Gonçalves da Costa.” (FREITAS; PARAÍSO, 2001, p.53). O Ouvidor da Comarca de
Ilhéus Balthazar da Silva Lisboa, em 1815, construiu uma capela para catequizar e
promover esses índios ao convívio social. Por esse motivo, Balthazar recorreu ao Conde
dos Arcos, em 04/07/1815, para que enviasse um Diretor este teria a função de aldear e
administrar essa nova localidade que se construía6.
Frei Ludovico de Livorno foi quem veio para o aldeamento que se formava, em
1816. Sendo que esse missionário permaneceu nesta região durante um período de trinta
e dois anos até 1848 e sucedido pelos frades Vicente Maria d’ Ascoli, Joaquim de
Colorno, Rainero de Ovada e Luiz de Grava. Além desses missionários estarem
presentes nesse aldeamento, também estavam inseridos em outras localidades que
acabavam se transformando em redutos missionários como foi o caso do aldeamento da
Barra do Salgado. É interessante destacar que o número de religiosos capuchinhos que
se encontravam aqui na região era bastante reduzido, talvez por isso não houvesse um
missionário em cada aldeamento. Essa constatação pode ser vista no Jornal Falla Bahia,
datado de 02/02/1844, que traz a seguinte informação:
6
LISBOA, Baltazar da Silva, Desembargador e Ouvidor da Comarca de Ilhéus. Oficio enviado ao conde
dos Arcos. Governador Geral da Bahia, 4/7/ 1815, Bahia, APB, Secção Colonial e Provincial, Fundo
Capitania da Bahia. Série. Diversas, Cartas ao Governador. Maço 230.
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[...] Nem por zelo da Religião, nem por amor à civilização, tem
aparecido Eclesiásticos, que se queiram encarregar de Catequisar os
indígenas selvagens, e reduzi-los ao Grêmio da Igreja, dando a
sociedade mais essa porção de indivíduos que apesar de poucos
laboriosos; são, todavia aproveitáveis para o serviço da marinha, côrte
de madeiras, e exercício de correios de terra. O exemplo do Ver. Fr.
Ludovico, Capuchinho Italiano, recomendável por suas virtudes, que
existe nas Ferradas, lugar da Comarca dos Ilhéus, onde vai lentamente
domesticando e convertendo alguns selvagens, e tratando da
civilização dos convertidos, não tem servido de estimulo a outros se
ocuparem de tão importante serviço a Região,e ao Estado, sendo certo
que ou por incuriados respectivos diretores ou por propensão natural
para a vida errante, nenhuma das Aldeias de Indios de que tenho
noticia tem apresentado auguento de população nem industria pura
mercantil ou manufatureira; pelo contrário se não terem crescido
conservam-se estacionadas ou são consideradas como povoações de
indivíduos de outras castas [...]7
Com base no documento acima, observa-se os diferentes papeis sociais que os
índios poderiam exercer na medida em que foram inseridos na sociedade não indígena,
como por exemplo, no serviço da marinha, corte de madeiras e principalmente para o
exercício de correios de terra, os nativos poderiam exercer esta atividade com bastante
facilidade uma vez, que conheciam muito bem as terras por onde andavam. Dessa
forma, conclui-se que o trabalho dos ameríndios foi fundamental para os
empreendimentos dos colonizadores, foram e continuam sendo indivíduos atuantes nos
mais diversos momentos da história do Brasil. Frei Ludovico de Liorne é visto como
modelo para requalificar as aldeias da Bahia, devido o seu sucesso como missionário
nas aldeias por onde passou.
“Para a Aldeia de São Pedro de Alcântara por volta de aproximadamente 1819,
foram deslocadas treze famílias de índios Green do aldeamento de Nossa Senhora da
Conceição do Almada, além de mais cento e vinte famílias do grupo Camacã, estes
foram catequizados e tornaram a população deste local” (ANDRADE, 2003, p.52).
Podemos destacar como os principais motivos do deslocamento desses índios: a
abertura da estrada de Ilhéus à Vila Imperial da Conquista8, o que possibilitaria a
ligação da província da Bahia com a de Minas Gerais, esse empreendimento era
essencial para o desenvolvimento socioeconômico da região em apreço e
6
Seção de Microfilmagem. PINHEIRO, de Vasconcelos. Instrução Publica, Culto Religioso e Catequese.
Jornal “Falla Bahia”, 2.Fev. 1844 p.16(Arquivo público do Estado da Bahia).
7
Atual cidade de Vitória da Conquista.
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consequentemente os colonos não mediram esforços para que tal obra fosse realizada e
para isso retirava do caminho quem nele estivesse.
Segundo Maria Hilda Baqueiro Paraíso, o aldeamento da Barra do Salgado
nunca chegou a alcançar o desenvolvimento e a importância de outros aldeamentos
como o de São Pedro de Alcântara das Ferradas. Tal constatação fica evidente nas
seguintes palavras da referida autora:
Acreditamos que este aldeamento deve ter tido uma vida
administrativa muito curta. Uma das razões prováveis para o insucesso
foi o fato de este aldeamento estar situado numa região caracterizada
por ser de transição do clima AM e AF, que não a tornava totalmente
adequado ao plantio de cacau. Em área marginal à expansão o
aldeamento não mereceu os cuidados e investimentos do Governo
Provincial; consequentemente, os índios tiveram que adotar como
forma de sobrevivência a de se tornarem assalariados e sob tais
circunstâncias sofrendo um rápido processo de transfiguração étnica.
Outra possibilidade, que nos parece também provável, por ser comum
na região, é a de os índios terem migrado para outros aldeamentos
mais prósperos e, portanto, capazes de atrair e justificar os
investimentos governamentais. (PARAÍSO, 1982, p.213-214).
É interessante salientar que o número de índios que constituíam o aldeamento do
Salgado era bastante inferior ao de São Pedro de Alcântara, uma vez que este pode ser
considerado como o centro missionário e os demais como segmentos. Todos eram
administrados no mesmo instante pelos mesmos religiosos, quando estes faziam algum
pedido ao presidente da Província referiam-se a São Pedro de Alcântara. Os índios que
constituíam a Aldeia de São Pedro de Alcântara estavam posicionados nas regiões sul e
sudoeste da Província da Bahia, entre as Bacias dos rios Pardos, Colônia/ Cachoeira e
das Contas. Ocupavam extensa área, desde o litoral até as regiões limítrofes dos atuais
estados do Espírito Santo e Minas Gerais. “Esses índios estavam subdivididos em três
grandes grupos: os Aimoré, os Pataxó e os Camacã”. (ANDRADE, 2003, p.54-55).
Para uma maior compreensão é necessário explicitar quem eram os Aimorés, e o
que os diferenciava dos demais grupos indígenas que habitavam a região. Os Aimorés
também foram denominados de Botocudo, ocupavam um vasto território, abrangendo
imensa parte da área que corresponde o interior do extremo sul e sudoeste da Bahia,
estendendo-se até os territórios dos atuais estados do Espírito Santo e Minas Gerais.
Enquanto que os Pataxós estavam subdivididos nos povos: maxacali, macumi, capoxó.
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Esses estavam inseridos nas áreas mais importantes da região entre o rio Mucuri e o
Colônia/Cachoeira. Segundo Silva Campos, os Kamakã-Mongoió habitavam entre o rio
Pardo e de Contas. Ainda segundo Campos, os Kamakã “eram indivíduos robustos e de
tórax largos e musculosos, cor de cobre e altura acima da média. A fisionomia era
semelhante a dos demais silvícolas que habitavam a região.” (CAMPOS, 2006, p.319 –
320).
Além dos estudiosos Wied Neuwied, Von Spix e Von Martius terem visitado a
região Sul da Bahia em diferentes momentos, mas que deixaram relatos interessantes
dos grupos indígenas que por aqui encontraram, outro cientista que por aqui passou foi
o francês H. Perret, que conseguiu valorosas informações sobre as características dos
índios Camacã. Em consequência dessa visita produziu vários artigos publicados no
jornal O Crepúsculo de Salvador. No jornal O Crepúsculo de 1846, os Camacã são
descritos como:
Os Camacans d` Aldeia do Bom Padre [sic] achão-se, por ora,
bastante atrazados sobre certos pontos: elles ignorão ainda o que seja
ambição,orgulho,inveja... nenhum procura enriquecer-se à custa do
seu semelhante; a vista de um visinho feliz não o faz emmagrecer – il
ne maigrit pas de l ´embonpoint d´autrui – nem tão pouco se regosija
da sua desgraça; todos vivem como irmãos, e n´uma perfeita
igualdade. Quando se trata de executar trabalhos penosos, de roçar,
plantar, colher, todos trabalhão para cada um, e cada um para todos.
Os Camacans sendo de índole mansa fazem o bem, evitão o mal, por
instintcto. A fraca luz da sua razão, he a sua única guia; com tudo
seguem o impulso da natureza, nem aquém ficão, nem além passão
dos seus limites. Não tem Idea alguma de premios, nem tão pouco de
castigos eternos; e segundo está parecendo, muito tempo há de se
passar, antes que se possa travar com elles discussões theologicas. Os
Camacans costumavão sepultar os mortos nas suas próprias cabanas, e
o Padre Ludovico teve bastante difficuldade para conseguir delles que
os depositassem no cemiterio da Aldeia9.
“As etapas dos trabalhos realizados pelos missionários capuchinhos no século
XIX, no que diz respeito à instalação dos aldeamentos se dão basicamente onde há
confronto entre índios e colonos” (PARAÍSO, 2008, p.22). Segundo Manuela Carneiro
da Cunha:
9
Seção de Microfilmagem - UFBA: PERRET. H. Índios Camacans. Jornal “O Crepusculo”, Salvador,
25 jan.1846, v1. n 12.p 191 (Universidade Federal da Bahia).
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“No período imperial os aldeamentos de índios obedeciam a várias
conveniências: não só se os tirava ou confinava em parcelas de regiões
disputadas por frentes pastoris ou agrícolas, mas também para onde se
achava seriam úteis. Os aldeamentos serviam de infraestrutura, fonte
de abastecimento e reserva de mão de obra.” (CUNHA, 1992.p.144).
Tudo indica que a localização do aldeamento da Barra do Rio Salgado seguiu os
padrões tradicionais vigentes no período. Segundo Paraíso, um dos pontos positivos do
aldeamento em questão foi a garantia da paz nas estradas uma vez que os índios
Kamakã-Mongoió aldeados eram usados como combatentes, para impedir os constantes
ataques empreendidos pelos Pataxó na região. Os Pataxó eram acusados de assaltarem
constantemente os tropeiros que utilizavam a estrada de Ilhéus para a região de Minas
Gerais. “Além disso, utilizava-se a mão de obra indígena encontrada na aldeia para a
abertura de estradas e sua conservação, além disso, abasteciam os viajantes que por ali
transitavam”. (PARAÍSO, 1982).
Observa-se que os ameríndios foram essenciais para o desenvolvimento dos
empreendimentos implantados pelos colonos, levando-nos a refletir sobre alguns
preconceitos e estereótipos ainda comuns na sociedade local, como por exemplo, a ideia
de que o índio é “ladrão”, “traiçoeiro” e “preguiçoso”. É interessante destacar que os
pataxó a todo o momento, entravam em confronto com as demais etnias que habitavam
a região e o trabalho dos missionários na área foi fundamental para o apaziguamento
destes grupos em especial o trabalho do capuchinho Ludovico de Livorno.
Frei Ludovico de Livorno10, mesmo diante das adversidades encontradas em seu
processo evangelizador nas duas aldeias, nunca desistiu de sua missão. Isso fica
evidente no fato de que em 1829, Ferradas possuía uma média de 90 índios e
administrava ainda mais uns 50 do aldeamento criado pelo referido frei nas margens do
rio Salgado, distante quatro léguas acima do aldeamento de São Pedro de Alcântara.
Em documento encontrado no Arquivo Público do Estado da Bahia, datado de
1835, no qual descreve que frei Ludovico pede colaboração à Presidência da Província
10
Frei Ludovico de Livorno religioso italiano, membro da Ordem dos Capuchinhos, proveniente da
cidade de Livorno, que chegou a Salvador, Província da Bahia, por volta de 1815. Livorno e, 1848
ausentou-se da aldeia das Ferradas por motivos de saúde e fixou-se residência em Salvador, no velho
Hospício, aonde veio a falecer aos setenta e seis anos de idade, sendo que dedicou cinquenta e cinco anos
à vida religiosa e ao exercício missionário . Faleceu em 27 de dezembro de 1849. (ANDRADE, 2003,
p.48).
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
solicitando ajuda e utensílios para que o aldeamento das Ferradas continuasse em
constante desenvolvimento,
A`V.Exª recorre com respeito Fr. Ludovico de Liorne, Missionário
Barbadinho, e Capellão da Aldêa dos Indios de S. Pedro d´Alcantara,
pelo Supe. Convertidos, e Cathequisados, que para, não só, poder
fornecel-os de alguns utensílios, e instrumentos de lavoira, como para
continuar na cathequese de outros, necessita que V. Exª lhe consigne
alguma quantia, que julgar mais ou menos sufficiente para o indicado
fim, dignando-se de attender. V. Exª, outros sim, que uma tal
consigam. Fora já propsto em Sessão do extinto Conselho da
Prov.cias, e engloba no Orçamento remetido pelo governo a
Assembléia Provavelmente Legislativa. P. a V. Exª, que attentantas
das razões expostas, e sendo possível, hoje de deferir, e sendo
possível, hoje de deferir ao Supe. E receberá Mercê11.
Se Wied-Neuwied tivesse passado no ano de 1820 pelas aldeias de Ferradas e
Barra do Salgado, iria ficar pasmo pelo desenvolvimento que esses locais obtiveram.
Em 1835, Frei Ludovico encaminha informações à Presidência da Província relatando o
crescimento populacional e econômico de São Pedro de Alcântara:
O suplicante Fr. Ludovico de Liorne em obediência ao Respeitavel
Despacho de V. Exª declara e jurará, sendo ordinário, que a Povoação
de São Pedro de Alcantara na Comarca dos Ilheus consta actualmente
de cento e doze indivíduos, todos Indios, repartidos em trinta famílias
pequenas; dos quais estão já baptizados, e civilizados e parte
cathecumenos: a sua ordinária occupação consiste em estender, e
cultivar as suas roças e principalmente na plantação de caffé e
algodão; trabalhão também de machado, e fazem boas canôas. E
receberá mercê12.
Em seu trabalho missionário Ludovico além de pregar os princípios do
cristianismo, criou algumas benfeitorias nos espaços onde estavam localizados os índios
aldeados, como por exemplo, capelas, represas, estradas, cemitérios. Aos moradores
desses lugares, ensinou-os a trabalhar com artesanato, olaria e em lavouras para a
própria subsistência. Tais ações faziam parte do processo objetivado pelos religiosos
que era o de fazer com que os índios se fixassem em determinado espaço e deixassem
de ter uma vida errante, nômade. “Outra atribuição que os religiosos tinham ao se inserir
no convívio com os povos indígenas aldeados era a construção de casas para os índios,
11
LIVORNO, Freio Ludovico de. Oficio enviado ao presidente da Provincial, 10/06/1834, Bahia, APB,
Secção Colonial e Provincial, Fundo Presidência da Província. Diretoria Geral de índios. Maço 230.
12
LIVORNO, Frei Ludovico de. Correspondência enviada à Presidência da província, 3/10/1835, Bahia,
APB, Secção Colonial e Provincial; Fundo Presidência da Província / Índios. Maço 4613.
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
elemento fundamental para o reordenamento social”. (PARAÍSO, 2008, p.23). No
interior dos aldeamentos, os ameríndios recebiam educação e catequese. Com isso o
colonizador
afirmava
estar
colaborando
para
a
civilização
dos
gentis,
e
consequentemente se preocupando com a salvação dos mesmos.
A POLÍTICA INDIGENISTA NO IMPÉRIO: E SEUS REFLEXOS NAS
ALDEIAS DA BARRA DO SALGADO E SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
Não há como abordar a questão indígena no período do Brasil Império sem
discutir “O Regulamento acerca das Missões de Catequese e Civilização dos Índios”
ficando conhecido simplesmente como Regulamento das Missões, cujo objetivo seria
regulamentar a situação dos índios no Brasil. Para uma maior compreensão vejamos o
que diz Manuela Carneiro da Cunha :
O Regulamento das Missões, promulgado em 1845, é o único
documento indigenista geral do Império. Detalhado ao extremo é mais
um documento administrativo do que um plano político. Prolonga o
sistema de aldeamentos e explicitamente o entende como uma
transição para a assimilação completa dos índios. (CUNHA, 1992,
p.139).
É interessante destacar que “a legislação do século XIX, sobretudo até 1845 é
flutuante, pontual e, como era de se esperar em larga medida subsidiaria de uma política
de terras.” (CUNHA, 1992, P.138). Patrícia de Melo Sampaio, enfatiza:
A nova legislação criou uma estrutura de aldeamentos indígenas,
distribuídos por todo o território, sob a gestão de um diretor-geral de
Índios, nomeado pelo imperador para cada província. Cada
aldeamento seria dirigido por um diretor de aldeia, indicado pelo
diretor-geral, além de um pequeno corpo de funcionários. Cabia aos
missionários a tarefa relativa à catequese e à educação dos índios.
(SAMPAIO, 2009, p.178).
Outra lei que trouxe consequências enormes aos indígenas, principalmente para
os da Bahia, foi a Lei nº 601, chamada Lei de Terras. Promulgada em 18 de setembro de
1850, cinco anos após a promulgação do Regulamento das Missões, na qual o governo
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
imperial considerou devolutas todas as terras, portanto vagas para o processo de
colonização.
Na verdade a Lei de Terras inaugura uma política agressiva em
relação às terras das aldeias. Um mês após a sua promulgação, uma
decisão do Império manda incorporar aos Próprios Nacionais as terras
de aldeias de índios que vivem “dispersos e confundidos da massa da
população civilizada”. Ou seja, após ter durante um século favorecido
o estabelecimento de estranhos junto ou mesmo dentro das terras das
aldeias, o governo usa o duplo critério da existência de população não
indígena e de uma aparente assimilação para despojar as aldeias de
suas terras. (CUNHA, 1992, p.145).
As terras indígenas sofreram grande diminuição com a aplicação da Lei de
Terras de 1850, é interessante destacar que tal fato ocorreu em todo o Brasil e não
meramente em pontos específicos do território brasileiro. As terras dos aldeamentos da
Barra do Salgado e de São Pedro de Alcântara, assim como os demais tiveram suas
terras usurpadas constantemente por particulares, esses indivíduos requeriam as terras
para o plantio de cacau, entre outros produtos e para a criação de gado. É preciso
enfatizar que o próprio Estado pretendia ficar com as terras antes pertencentes aos
aldeamentos.
Quais benefícios reais e direitos os aldeamentos trouxeram aos índios a ponto de
explicar sua permanência nesse espaço que se construía? Para tal análise recorremos a
Maria Regina Celestino de Almeida, que salienta:
Muitos grupos indígenas buscavam os aldeamentos como opção pelo
mal menor diante de situações ameaçadoras e desfavoráveis. Estudos
recentes revelam que, apesar dos imensos prejuízos e da posição
subalterna na qual se inseriam nas aldeias, eles se interessaram por
elas, participaram de sua construção e foram sujeitos ativos dos
processos de ressocialização e catequese nelas vivenciadas.
(ALMEIDA, 2010, p.72).
Seguindo essa análise, e com base nos documentos encontrados até o presente
momento, percebe-se que o Aldeamento de São Pedro de Alcântara seguiu tal propósito,
isto é, os índios aldeados souberam usar a posição que se encontravam para reivindicar,
pedir proteção dos religiosos e autoridades e muitos desses indígenas, ingressaram nos
redutos missionários fugindo dos ataques dos índios hostis. Como pode se constatar no
documento abaixo datado de dezembro de 1840, no qual o Juiz Municipal de Ilhéus,
Jerônimo dos Santos Quaresma pede proteção e o envio de armas de fogo,pólvoras e
munição à Presidência da Província para o aldeamento de São Pedro, é interessante
salientar que esses pedidos eram feitos constantemente pelos próprios índios aldeados,e
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muitas vezes ameaçavam fugi daquele reduto missionário, o que denota o protagonismo
indígena:
Levo a presença de V. Ex o Oficio incluso que me dirigio Fr.
Ludovico de Liorne Vigário da Freguezia de S.Pedro d’Alcântara, no
qual faz aceitada reflexões a respeito dos ataques que tem sofrido do
Gentio
Barbaro;
os
habitantes
daquella
ditta povoação, havendo já cometido um assassinato no Indio José
Victorio, estando este trabalhando em sua róça,alem de outras
tentativas de mal fazer athé o ponto de entrarem na Povoação
nocellencio da noite, e com violência tentarem a rombar as paredes
das casas,e não com cequirão seo intento pelo alvoroço em que ficou
toda Povoação, refugiando-se todo povo da Igreja,e desparando seimenços tiros de espingardas,de cujo acontecimento,com muito
detrimento deo parte o mesmo Padre ao Juis de Paiz desta Villa
pedindo-lhe socorro, de algumas pessoas,e armas de fogo,pólvora e
chumbo,o que o dito juis previsoriamente deu as províncias que
estiverão en seo alcanse,e deo parte ao Exmo. Senr. Ex-Presidente
desta Província, que se dguinou aprovar, e ordenar um destacamento
de oito praças para a mencionada povoação13.
Em suma, o que pode-se perceber com relação a formação e dinâmica dos
aldeamentos, é que as alianças entre os colonizadores e alguns povos indígenas e índios
aldeados, tiveram uma importância significativa para o sucesso da conquista e
colonização do Sul da Bahia do que se tem apresentado pela historiografia até então.
Na visão dos ameríndios que se encontravam nos aldeamentos, os índios
arredios não teriam tanta facilidade para atacá-los, entretanto, isso não foi o suficiente
para impedir os constantes ataques que havia entre os diversos grupos indígenas que
habitavam a região. Um dado interessante que Almeida trás e que se encaixa muito bem
para os referidos aldeamentos citados é que “os colonos, por sua vez, viam as aldeias
como redutos de mão de obra, onde eles poderiam conseguir a força de trabalho
necessária para desenvolver diferentes atividades” (ALMEIDA, 2003). É preciso
enfatizar que os aldeamentos em estudo não eram espaços definitivos dos índios,
funcionavam de acordo as necessidades momentâneas de cada grupo, sempre havia a
perspectiva de se retirarem daquela localidade a depender das situações.
Os aldeamentos não foram simples espaços europeus e cristãos; possibilitaram
também a reconstrução da identidade e da resistência indígena. “As aldeias coloniais
13
QUARESMA,Jerônimo dos Santos. Juiz Municipal da Comarca de Ilhéus. Ofício enviado ao Presidente
da Província da Bahia. 12/12/1840, Bahia, APB, Secção Colonial e Provincial, Fundo Capitania da
Bahia,Série. Diversas, Cartas ao Governador. Maço 2395-1
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foram também um espaço indígena, onde os índios encontraram possibilidades de
adaptar-se à colônia, recriando suas tradições e identidades.” (ALMEIDA, 2003, p. 90).
Os aldeamentos foram muito mais do que simples espaços de dominação e
exploração dos índios pelos colonizadores. Ao ingressar num aldeamento, muitas etnias
do Brasil misturavam-se num espaço único de administração lusa e, na condição de
aldeados, os índios passavam a compartilhar uma experiência nova e comum, que os
colocava em condição ímpar em relação aos demais segmentos sociais.
Com base em toda essa discussão teórica levantada pela autora, nota-se que estar
aldeado não significava que os povos indígenas seguiam por completo tudo aquilo que
era imposto pelos religiosos dominantes, por isso é preciso desconstruir a ideia de que a
partir do momento que as populações indígenas ingressavam nesse espaço criado pelos
brancos, deixasse de lado sua indianidade, identidade étnica. Ou como alguns leigos e
até mesmo estudiosos da área insistem em afirmar que esses indivíduos passavam por
um processo de “aculturação”, todavia vejo que tal termo não seja o mais coerente a se
utilizar.
FIM DOS ALDEAMENTOS
Podemos destacar como os principais fatores para a extinção dos aldeamentos a
fuga dos índios e nela a transformação do aldeamento em colônia ou em povoado. Mais
qual o destino das terras e dos moradores desses locais? “As Câmaras Municipais
assumem a administração do antigo aldeamento e aplicam os recursos na melhoria da
estrutura urbana, aforamento, arrendamentos e venda das terras, eventual reserva de
lotes de terras para as famílias indígenas que permanecessem no local”. (PARAÍSO,
1982, p.214). A necessidade de terras para ser transformado em roças principalmente de
cacau, produto esse que estava começando a se desenvolver no sul da Bahia, provocou a
extinção dos aldeamentos da região de Ilhéus com o objetivo de deixar essas terras para
os colonos.
Baseando-se no argumento de que seus moradores estavam “confundidos com a
população nacional”, que eram descendentes ou, ainda, que se faziam passar por índios,
que já haviam passado por um processo de assimilação, adquirido todos os costumes
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dos não indígenas e que por isso não poderiam ser considerados índios. Por isso, as
autoridades relegavam os aldeamentos ao abandono e não investiam mais nesses locais,
permitindo que suas terras fossem ocupadas pelos nacionais. “A partir da segunda
metade da década de 1870 não mais foram indicados diretores/missionários para esses
aldeamentos e as terras foram comercializadas livremente pelas Câmaras Municipais”.
(SOUZA, 2007, p.187-188).
O aldeamento da Barra do Salgado foi extinto legalmente pelo Decreto
Provincial do ano de 1875, assim como o de São Pedro de Alcântara das Ferradas ,
juntamente com os demais do Município de Ilhéus tendo ficado a Câmara autorizada a
alienar as terras. Suponho que estas terras já deviam estar ocupadas por indivíduos não
índios, pois esses migraram para locais onde houvesse investimentos governamentais e
assistência de diretores/missionários.
Como foram abordados, os grupos indígenas que constituíam a Aldeia da Barra
do Salgado eram os Kamakã-Mongoió / Green e da fusão desses com mais seis etnias:
Pataxó, Hã Hã Hãe, Baenã, Tupinambá, Kariri- Sapuya e Gueren, originaram-se os
Pataxó hã hã hãe que até hoje habitam as terras demarcadas e conflituosas dos
municípios de Pau Brasil, Itajú do Colônia e Camacan. Entretanto, existem pessoas na
região que afirmam não existir mais índios e sim “caboclos”, ou indivíduos que se
identificam como indígenas e que por isso não tem o direito a terra, isso se deve
basicamente aos constantes conflitos de terras que tem ocorrido no sul da Bahia
envolvendo tais personagens. O que culminou, para a contribuição dos preconceitos e
estereótipos que há tempos os povos originários veem enfrentando. Assim, OLIVEIRA,
ratifica:
No ano de 1892, José B. de Sá Oliveira em visita a região do Rio
Pardo, encontrou os povos indígenas dos antigos aldeamentos da
Barra do Catolé, Barra do Salgado, São Pedro de Alcântara, Santo
Antônio da Cruz, Cachimbo e Salto do Rio Pardo, perambulando entre
as regiões de Conquista e Ilhéus. Conclui-se que esta triste realidade é
consequência da extinção dos aldeamentos e do efetivo processo de
ocupação das terras do sul da Bahia, com o aumento do número de
fazendas e produção da lavoura. (SÁ OLIVEIRA, 1892, p.47).
Segundo Paraíso, as terras do antigo aldeamento de São Pedro de Alcântara:
Transformou-se num núcleo de produtores de cacau que sofreu o
processo comum, na área, de concentração de propriedade na qual os
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antigos colonos foram transformados em trabalhadores assalariados
rurais e os povos indígenas se incorporaram de uma forma marginal
como prestadores de pequenos serviços e nem sempre sendo
remunerados. A partir de 1926, os poucos remanescentes indígenas
que mantiveram sua identidade étnica foram recolhido à Reserva
Indígena Caramuru – Paraguaçu, criada pelo governo do Estado e
administrada pelo SPI- Serviço de proteção aos Índios, interessado em
afastá-los da área ocupada pelos cacauicultores, para os quais não
mais apresentavam interesse como mão de obra. (PARAÍSO, 1982,
p.212-213).
Observa-se, portanto, que com o fim dos aldeamentos as populações indígenas
sofreram bastante, nem a terra que historicamente lhes pertenciam tiveram direito de
usufruir, foram largados a própria sorte, mas uma vez passaram a fazer parte da
“categoria” dos esquecidos da nação. Aqueles que mantiveram sua identidade étnica
foram jogados como simples objetos à Reserva Indígena Caramuru e Catarina
Paraguaçu, tendo o Serviço de Proteção aos Índios, como administrador. Esse órgão foi
criado em 1910, cujo objetivo seria “a proteção aos índios”, mas como se pode constatar
tal proposta não foi colocada em prática.
A terra indígena Caramuru e Catarina Paraguaçu abrangem três municípios,
divididos em três aldeias tidas como principais: em Pau Brasil encontra-se a aldeia
Caramuru. Em Camacan a leste, está a aldeia Panelão e no município de Itajú do
Colônia ao norte se encontra a Aldeia Bahetã.
FONTES PRIMÁRIAS
MANUSCRITAS
Arquivo Público do Estado da Bahia (APB)
LISBOA, Baltazar da Silva, Desembargador e Ouvidor da Comarca de Ilhéus. Ofício
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Seção Colonial e Provincial; Correspondência à Presidência da Província, BA, 16 de
setembro de 1835. Maço 4613.
Seção Colonial e Provincial. Correspondência à Presidência da Província, BA, 3º de
outubro de 1835. Maço 4613.
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HISTÓRIA E PODER
Ano IV
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IMPRESSAS:
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12.p 191 (Universidade Federal da Bahia)
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Recebido em: 18 de abril de 2013
Aceito em: 15 de maio de 2013
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BLANNING, T.C.W. Aristocratas versus Burgueses? A Revolução Francesa.
São Paulo : Editora Ática. 1991. 93 p.
Flávia Bruna Ribeiro da Silva Braga1
Publicado em 1987, Aristocratas versus Burgueses? A Revolução Francesa de
T.C.W. Blanning, introduz as diferentes concepções da historiografia acerca da
Revolução Francesa. Contrapõe os argumentos da Teoria Clássica, ou marxista com as
recentes pesquisas da Teoria Revisionista, justificando, assim, o título em forma de
pergunta. Esta resenha tem por objetivo pontuar os principais argumentos levantados
pelo autor ao longo do livro.
Na primeira parte do livro o autor introduz o pensamento da aula inaugural de
Alfred Cobban na University College de Londres em 1954 onde afirma que a discussão
sobre as origens, natureza e conseqüências da Revolução Francesa não demonstram
qualquer sinal de enfraquecimento. As linhas de pesquisa, tanto a clássica quando a
revisionista, enfrentam-se num debate incansavelmente. Assim afirma que “a
controvérsia tem sido um diálogo de surdos” (p.6).
Afirma que Revolução não partiu de entidades sociais isoladas, mas inseridos
numa totalidade sem costura. As partes fazem parte de uma revolução uma, com um
objetivo comum: a eliminação do feudalismo. Nessa busca, os burgueses continuamente
frustram as aspirações das massas de igualitarismo e democracia. No entanto,
mascarada as intenções da classe burguesa através do calor da revolução, havia dois
momentos de strip-tease ideológico: O golpe de Termidor em 1794 e a entrada de
Napoleão em 1799. Somente em 1830 há uma supremacia burguesa.
Os pontos revisionistas que são destacados pelo texto seria a natureza da
transformação social/econômica da revolução. As pesquisas têm demonstrado que
muitos empresários da época eram progressistas nobres e que a burguesia era
positivamente tímida, assumia baixos riscos e assim garantiam baixos retornos. O que
demonstra uma força do status nobre de viver. Nos tempos que precedem a Revolução a
nobreza francesa teria aumentado. As classes burguesa e nobre seriam, dessa forma,
heterogêneas. A chamada reação aristocrática seria, então, um mito. As elites entre as
duas classes, os chamados “notáveis” seriam os mais fortes personagens da Revolução.
1
Graduanda do curso de História da Universidade Federal de Pernambuco. Estágio em história pelo
Tribunal de Justiça de Pernambuco. E-mail: [email protected].
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Ao contrário da tese clássica, de luta entre as classes, haveria, portanto, uma luta pelo
poder, como diz o autor “em suma, seria uma França criada pelos notáveis e para os
notáveis” (p.11).
A pergunta que surge a partir da conclusão que as elites não estariam se
enfrentando mas se unindo, e a possível harmonia entre as classes, por que a Revolução
teria ocorrido? Afirma então que a França passava por duas crises distintas: uma
política, pela bancarrota promovida pela Guerra de Independência Americana e uma
econômica pelo fracasso geral da colheita em 1788, acarretando uma depressão
demográfica e um período de recessão.
Levanta algumas explicações para explicar o fracasso burguês a curto prazo da
Revolução: a divisão artificial entre nobre e plebeu; a intervenção imprevista e
indesejada das massas (bodes expiatórios); a incapacidade de superar a retórica na busca
dos seus próprios interesses; as dificuldades econômicas persistentes e a recusa do rei
em desempenhar seu papel atribuído pelos notáveis. Conclui que as mudanças
promovidas pela Revolução teriam sido mais retrógradas que progressistas.
As duas concepções, clássica e revisionista, seriam tão distintas que é difícil
encontrar terreno comum.
O relativo crescimento econômico francês no século XVIII pode ser atribuído as
melhores estradas, como a veia arterial entre Paris e Lyon, ao desmantelamento das
guildas e expansão da indústria agrícola. A França estava se especializando numa
indústria para o luxo. O crescimento, porém, era de caráter quantitativo e não
qualitativo.
O comércio ultramarino francês ganhou destaque com a expansão do comércio
colonial, possuía costas marítimas próprias e mercados locais autárquicos. No entanto
alguns obstáculos se mantinham contra o crescimento industrial francês. Um deles é
atribuído a natureza primitiva das instituições financeiras e a aversão aos bancos. O
segundo é o retrógrado setor manufatureiro que acarretava num atraso qualitativo da
produção . Terceiro está no atraso da agricultura, que demonstra um crescimento na área
plantada mas não na produtividade da terra.
A economia francesa do século XVIII ainda é marcada pela servidão coletiva,
pela inoperância das comunicações. A França era “um agregado de muitas economias
diferentes” (p.18), predominando o tradicionalismo. Toda a análise se complica quando
se analisa as reais aspirações burguesas, quando se vê uma forma de riqueza ainda
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patrimonialista (formas não-capitalistas de riqueza): Terra, propriedade urbana, cargos
venais e ações do governo. Por outro lado vemos uma quantidade surpreendente de
nobres capitalistas empreendedores e inovadores e, afirma o autor, os aspectos mais
modernizantes da economia estavam mais na mão de nobres que de burgueses. Diz
Blenning que “longe de serem relíquias feudais acorrentadas a formas tradicionais de
riqueza, eram eles que estavam estabelecendo a marcha da promoção da mudança
econômica.” (p.19-20).
Como já havia afirmado, a heterogeneidade entre a classe burguesa e a nobre,
sendo nobres agindo como burgueses, burgueses comprando o título de nobre, o que era
próprio de uma classe? O que os definia?
O autor trás então a afirmação de Robert Forster de abandonar a categoria da
nobreza, rejeitando-a para que assim se possa prosseguir nos estudos. Igualmente a ser
rejeitada seria a idéia da “reação aristocrática” contra a burguesia. Afirma que, se havia
uma tendência na época, era a preferência aos nobres de origem recente.
As diferenças internas da nobreza faziam com que a nobreza inferior se sentisse
ressentida em relação aos magnatas da corte. A burguesia, por sua vez, não tinha uma
característica definitiva, era geralmente associado a uma pessoa de recursos
independentes. Albert Soboul afirma ser a fortuna o caráter essencial da classe
burguesa.
As abordagens sobre o tema social foi analisado sobre o prisma da luta de
classes, na teoria clássica por Albert Soboul e também sobre o prisma da
entremesclagem de Régine Robin.
Louis Althusser afirma que a burguesia mercantil francesa utilizava seu dinheiro
para viver com um status nobre. O autor, então, argumenta que não havia um conflito de
classes no período pré-revolucionário, mas um conflito entre o Regime e as massas.
Fica claro que antes de ser um período de luta entre as classes, havia uma fusão delas,
com burgueses comprando títulos de nobreza. Afirma que no século XVIII 6700 família
teriam se enobrecido. O revisionista Chaussinand-Nogaret também afirma que havia um
emburguesamento da nobreza. Diz o revisionista que a partir de 1760 há uma introdução
do conceito de mérito, reconhecido oficialmente como um critério de nobreza. A
meritocracia é uma característica própria da classe média.
O autor passa então a analisar a participação conjunta dessas partes no
movimento cultural progressista do século XVIII, o iluminismo.
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Pergunta-se o autor se, diante dessa fusão de classes, o iluminismo pode ser
considerado um movimento burguês. Expõe a tese marxista de que o iluminismo é um
estágio importante do pensamento burguês. As características da sociedade baseada na
troca podem ser encontrados no pensamento iluminista: o individualismo, o contrato, a
igualdade, a universalidade, a tolerância, a liberdade e a propriedade. As argumentações
acerca do caráter burguês do iluminismo, diz o autor, chegou a um ponto que não há
mais progressão, mas tornou-se questão de fé. No entanto, destaca alguns pontos a
serem ressaltados.
O primeiro ponto a ser considerado é o antecedente dos filósofos. A
historiografia demonstra que muitos deles são de origem nobre, tais como Montesquieu,
Condorcet, Quesnay e Helvétius, mas não formam uma massa homogênea. Nem o
fazem os consumidores dos textos iluministas. A diversidade era tamanha que afirma
Peter Gay “os consumidores do Iluminismo estavam distribuídos de ponta a ponta na
sociedade letrada, de maneira desigual, mas muito ampla”.
Também os centros institucionais da atividade iluminista era diversa. Dos
principais centros, 20% eram de clérigos, 37% nobres e 43% burgueses. As galerias de
arte da Capital exibiam o reconhecimento do mérito como critério primordial de valor
social. Promovia-se a idéia de que a educação deveria ser ministrada de acordo com a
riqueza, e não mais pelo nascimento, surgindo uma elite cultural mesclada.
Então, pergunta-se o autor, como caracterizar a essência do Iluminismo?
Os filósofos, de maneira geral, desejavam uma ordem social e política que seria
secular, racional, humana, pacífica, aberta e livre. A igualdade, entretanto não é
ressaltada como critério, pois eles não a desejavam, mas buscavam uma sociedade
baseada na meritocracia. Seria, então, o Iluminismo hostil aos interesses da nobreza ou
hostil ao Antigo Regime? Os fisiocratas, por exemplo, pregavam o regime da terra, em
consonância com o status nobre. Os filósofos estavam, a seu ver, como hostis aos
abusos do Antigo Regime.
Os filósofos do século XVIII não seriam alienados, mas, em termos sociais de
assimilação e integração. Afirma que “O Iluminismo francês foi um movimento das
elites letradas para as elites letradas” (p.32).
Passa então a analisar o Iluminismo sob a perspectiva das massas. Diz que
camponeses e artesãos poderiam travar conhecimento com um iluminismo vulgar, do
tipo planfetário ou de cartazes. O conteúdo desse material provocava as pessoas contra
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as ordens privilegiadas, numa barragem de obscenidades anti-social. A família real e os
nobres eram depreciados e demonstrados como depravados, em atos libidinosos
repreensíveis na época. Sempre associando a libertinagem e a depravação à condição
nobre.
Para os filósofos profissionais o maior problema era a censura. Afirma que “por
mais que os filósofos fossem assimilados à alta sociedade, permaneciam
necessariamente alienados ao governo.” (p.36). Os filósofos partilhavam, assim, uma
aversão comum ao despotismo. Com o absolutismo despótico ausente na França, os
filósofos passaram a buscar conceitos abstratos diversos como sociedade, o Estado, a
pátria ou a nação. A monarquia francesa sofria, nesse sentido com o “colapso
catastrófico de poder e prestígio” (p.41), havia um sentido geral de decadência e
desmoralização que a rondava. Termina essa parte afirmando que “foi a incapacidade de
adaptação do Antigo Regime que fez do Iluminismo francês uma força
desestabilizadora” (p.43).
A França passa por uma situação financeira crítica na década de 80. De acordo
com a interpretação tradicional a monarquia precisava de reformas e a nobreza queria
manter seus privilégios. A Guerra de Independência Americana só viria a agravar ainda
mais a situação. Três ressalvas foram feitas pelo autor.
Primeiramente, não havia nenhum confronto simples entre monarquia
modernizante e os privilegiados. Um exemplo é a Assembléia dos Notáveis em 1787,
em que a maioria foi a favor do fim dos privilégios fiscais, apesar de divergirem no
método. Diz que o número de nobres na vanguarda da agitação liberal radical é
surpreendente. Em segundo lugar fala sobre a natureza das aspirações nobres,
demonstrando que há uma coincidência entre as concepções da nobreza e do Terceiro
Estado sobre como a França deveria ser reformada. Demonstrando a teoria da fusão de
classes, diz que os nobres eram mais liberais e que ambos, os nobres e burgueses,
desejavam uma transformação moderada e pacífica rumo a uma monarquia
constitucional. Para isso o autor demonstra uma tabela (p.48) que mostra, de acordo
com o cahiers de doléances, as porcentagens de aceitação de ambas as casas em
diversos aspectos do liberalismo. Por exemplo, demonstra que 88% dos nobres
desejavam uma equidade fiscal.
O papel da nobreza na decadência do Antigo Regime é destacado pelo papel
crucial do exército, formando em grande parte por nobres, e por um corpo de oficiais
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completamente alienado na década de 80. Muitos nobres liberais também eram oficiais
do exército. Argumenta, então, que a Revolução Francesa foi, em parte, um golpe
militar. Já que, quando mais necessitou o Rei na deflagração da Revolução, o exército
não o apoiou.
A Revolução tem um caráter explosivo, de acordo com o autor, devido a
convocação dos Estados Gerais em 1789 nos moldes de sua ultima reunião em 1614, o
que eliminaria muitos anoblis da casa dos nobres e fossem rebaixados ao Terceiro
Estado. O atraso das reformas liberais necessárias ao crescimento econômico da Franca
está associado a súbita adesão das massas á cena nacional. O padrão de vida da
população em geral estava se deteriorando. Em 1775 acontece a Guerra da Farinha, em
1778 o vinho sofre um colapso nos preços, fora alguns problemas específicos tais como
o Tratado de Eden de 1786 que expôs os mercados franceses à competição inglesa, a
disputa comercial com a Espanha e a guerra entre a Rússia e a Suécia no Báltico.
Expande-se também a guerra marítima, reduzindo drasticamente as embarcações
francesas e, por ultimo, a contínua subida dos preços dos alimentos, que, corria no
imaginário popular, era causado por um pacte de famine, uma conspiração do governo e
dos comerciantes para fazerem fortunas à custa da fome do povo.
Afirma Blenning que a ideologia revolucionária, como se vê, não estava presente
em momentos anteriores a Revolução, mas foi forjada nela. Algumas mudanças no
período foram feitas, como a divisão do eleitorado em três de acordo com uma escala
fluida de riqueza. Destaque da burguesia através de lideranças nas comunidades além de
uma Assembléia Nacional favorável aos seus interesses, tais como “A abolição das
barreiras alfandegárias internas, a abolição de monopólios comerciais privilegiados, a
introdução de um sistema uniforme de pesos e medidas, o método adotado para a venda
de biens nationaux, a lei Allarde [...] tudo isso promovia os interesses burgueses” (p.5657). Essas medidas serviam, em grande parte, para elevar o status social da burguesia.
Também a Revolução serviu aos nobres empreendedores através do continuísmo no
exército e na Assembléia Constituinte, além da Convenção Nacional. Afirma ser
surpreendente o número de nobres que apoiaram a Revolução.
Quando se examinam os beneficiários da Revolução, surgem dúvidas sobre a
natureza burguesa da Revolução. De âmbito material, ela favoreceu aos compradores de
biens nationaux e aos que participavam do exército. A valorização da terra cresceu pela
abolição do cargo venal e a maior disponibilidade de terra.
Historien – Revista de História [8] Petrolina, dez 2012 – maio 2013
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Historien
HISTÓRIA E PODER
Ano IV
A Revolução, entretanto, pecou na política monetária adotada. A produção têxtil
caiu além do desastroso comércio marítimo, danificado com a entrada da Grã-Bretanha.
A França passa por um processo de desindustrialização, desurbanização e declínio
populacional. Afirma, entretanto, que os revolucionários não sabiam que enfrentariam
tamanha guerra, afetando demasiadamente o setor burguês.
O ultimo capítulo inicia-se com a expressão de Georges Lefebvre acerca do
período pós-revolucionário: um paradoxo gigantesco. Em termos gerais, a maior
revolução de todos os tempos continuava a ter uma economia penosa. Os efeitos
negativos da “catástrofe nacional” foram duradouros. A agricultura permanecia em sua
essência de subsistência.
Trás a argumentação de Anatoly Ado, em que afirma ser de crucial importância
o movimento camponês, verdadeiro motor da Revolução. Ado, inclusive, afirma que a
Revolução Francesa poderia ser chamada de “Revolução campônio-burguesa” ou, até
mesmo, “revolução camponesa” que havia imposto uma revolução burguesa no campo
abrindo caminho para o capitalismo.
Para os marxistas, de acordo com Blenning, não importa que no século XVIII
existisse ou não feudalismo na França, mas em como os camponeses atribuíam sua
existência no momento da Revolução. Os estudos regionais acerca do período
demonstram que os insurgentes não eram apenas contra o sistema senhorial, mas contra
sua exploração comercial. Defendiam um sistema econômico pré-capitalista de pequena
propriedade camponesa. Buscavam unicamente a auto-subsistência a evitar os riscos da
agricultura comercial.
As mudanças que acabariam com o Antigo Regime surgiriam mais com a
revolução dos transportes e das comunicações no século XIX do que com a Revolução.
Esta apenas melhorou o status legal, mas não a vida prática. Afirma, ainda, que a única
mudança de Napoleão foi o incremento do número e do status do funcionário público.
Termina seu livro afirmando que a Revolução Francesa foi mais “uma revolução
no espírito que uma revolução da realidade” (p.71)
Por último comenta a bibliografia tanto das teorias marxistas (clássica) quanto
da teoria revisionista.
Recebida em 16 de janeiro de 2013
Aprovada em 29 de abril de 2013
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