10 anos do DA-AME-BR
Vigésimo Boletim de Física e Espiritualidade
A retomada do eu na modernidade - considerações de Erwin Schroedinger
BOLETIM 20 – FÍSICA E
ESPIRITUALIDADE
Prof. MARCUS VINÍCIUS – AMEABC
[email protected] – Maio/2013
Queridos irmãos! É com uma alegria que não
cabe mais dentro de meu peito que chegamos ao boletim
número 20. Os dezenove anteriores foram maravilhosos,
aprendemos muito com eles, mas esse é especial:
porque é uma edição preparada com carinho para nosso
reencontro na matéria, em breve. No momento em que
finalizo esse boletim, faltam duas semanas para o
MEDNESP em Maceió e será uma alegria infinita rever
todos, meus irmãos e amigos de classe, das aulas
alegres e ricas do nosso querido Dr. Bezerra de
Menezes, nosso mentor em tão importante trabalho para
a humanidade. Espero que apreciem o tema, a Física
Moderna nos convida, nas palavras do grande Erwin
Schroedinger, a retomar a participação do eu na
construção da realidade.
Que Jesus nos abençoe!
O RESGATE DO EU NA MODERNIDADE
Há muito, filósofos têm tentado compreender o
"eu" e como a subjetividade participa de nossa
percepção do mundo que nos cerca. Perguntam: "O que
é o eu"? Como minhas crenças tomam parte nesse
constructo chamado de "eu"? Kant, Hegel, Descartes,
Husserl e muitos outros buscaram desenvolver um
projeto epistemológico que desse conta dessa
problemática.
Discutimos anteriormente as contribuições de
Renè Descartes para um modelo de eu que, a nosso ver,
será muito brevemente revisitado, o dualismo mentecorpo. A neurociência tem investido grande energia na
tentativa de compreender qual a sede do pensamento (se
o corpo ou algo fora dele), a filosofia da mente tem
produzido vasto material sobre o assunto e, se o
dualismo substancial de Descartes ainda é considerado
pelos filósofos como um "projeto sem agenda". Mas não
tardará o momento em que esse projeto desabrochará e
colocará muitas questões a serem investigadas nos
séculos porvindouros: o Espírito e sua ação direta sobre
a matéria será fonte de pesquisas para físicos,
historiadores,
epistemólogos
e
outros,
que
compreenderão que a realidade, vista sobre o prisma da
matéria, tem produzido resultados grandiosos,
fornecendo ao homem a capacidade de dominar a
matéria por meio de suas leis, mas quando vista pelo
ângulo da ação do espírito sobre a matéria, se mostra
mais completa e mais grandiosa, aproximando-nos das
verdades que emanam do Criador.
Esse texto é produto de uma preleção realizada
num curso de Medicina1 e tem como objetivo central
chamar a atenção para a retomada do papel da
subjetividade na descrição da natureza, projeto
metodológico que é fundamental para o entendimento de
como o Espírito atua sobre a realidade e a molda.
1. A MECÂNICA NEWTONIANA, A
RECUSA ÀS QUALIDADES OCULTAS E
A
SOLAPÇÃO
DO
EU
NA
MODERNIDADE
Faremos aqui uma breve, muito breve mesmo,
incursão pela história da ciência e da filosofia. Isso
cumpre o objetivo de mostrar como historicamente a
escolha por uma descrição da natureza objetiva, isto é,
que busca se ater à observação das qualidades captáveis
pelos sentidos, espécie de critério seguro para
construção de um entendimento do mundo.
Alexandre Koyré, na obra Do mundo fechado ao
universo infinito, discute detalhadamente, em vários
capítulos da obra, como se deu essa passagem do
mundo escolástico (sob forte influência da doutrina
aristotélica) para o que podemos chamar de mundo
clássico. O espírito de investigação da natureza à essa
época parecia clamar por um critério mais seguro que
permitisse um entendimento mais claro dos fenômenos
da natureza.
Lembremos que Descartes já se coloca esse
problema: suas obras, Meditações Metafísicas e Discurso
do Método, são uma tentativa de construir um
entendimento claro e seguro, já que Descartes acreditava
que todo o conhecimento humano parecia se assentar
1
Essa aula foi dada numa disciplina eletiva de Medicina
e Espiritualidade, ministrada na Universidade de
Taubaté, interior de São Paulo.
sob uma base muito frágil. Foi, sem dúvida, um projeto
epistemológico notável e que deixou uma herança
conceitual e, mesmo metodológica, que alimentou a
humanidade por cerca de 4 séculos.
As verdades aristotélicas já expunham suas
fraquezas diante de certos fenômenos e era preciso
buscar um novo modelo de descrição da natureza que
pudesse responder a essas questões nascentes: isso
ocorre, como Kuhn discorre em sua obra A Estrutura das
Revoluções Científicas, com o que ele chamou de
Revolução Copernicana: Galileu, Copérnico, Kepler,
Giordano Bruno, dentre muito outros, nos legaram, pouco
a pouco, as bases para uma revolução que mudou a
forma com que olhamos o mundo. A síntese desse
movimento de efervescência intelectual, que culminará
com o Iluminismo, no século XVIII, se dá pela publicação
das bases da mecânica de Sir Isaac Newton. A
publicação de Princípios Matemáticos da Filosofia
Natural, em 1687, seria o que podemos chamar de marco
divisório na história do conhecimento humano.
Descartes dera dois caminhos com seu
dualismo: a constituição dual do ser, com sua substância
material (corpo) e mental (mente, consciência) apontam
nas duas realidades do ser. No entanto, com os sucessos
empíricos da mecânica newtoniana, instarou-se na
filosofia natural certo encantamento por um empirismo
ingênuo: deve-se buscar na natureza e nos dados
captáveis pelos sentidos os constructos básicos para o
entendimento da natureza. O recurso às qualidades
ocultas, aquelas não oriundas dos dados sensórios, deve
ser combatido fortemente, visto ter esse recurso
introduzido na filosofia natural uma vasta gama de
conceitos e teorias que careceriam de fundamentação. O
projeto metodológico e epistemológico da época impunha
tal imperativo.
Os sucessos da mecânica newtoniana nos
séculos subsequentes fortalecem a crença nessa forma
objetiva de entendimento da natureza: com a mecânica
newtoniana, um planeta foi teoricamente descoberto. A lei
da Gravitação de Newton uniu céu e terra, mostrando que
não existiam dois conjuntos de leis distintos, como o
projeto aristotélico-ptolomaico sugeria. As leis de Kepler
podiam ser integralmente deduzidas da mecânica
newtoniana, num formalismo matemático simples e
elegante.
Tudo isso conferiu aos praticantes de filosofia
natural a nítida sensação que a proposta metodológica
clássica, oriunda do projeto newtoniana de descrição do
mundo era um sucesso que garantiria um progressivo
acesso ao conhecimento da verdade, para o alto e para
cima sempre.
Pode-se, portanto, reduzir o projeto
epistemológico-metodológico da realidade a três pontos
centrais, a saber:
a) a matematização da natureza.
b) o reducionismo cartesiano.
c) primazia da substância material em detrimento da
substância mental.
O projeto newtoniano assume definitivamente a
ideia de que a matemática é a linguagem da natureza e
que sua descrição deve ser feita em tal termos.
Descrever um fenômeno em termos matemáticos confere
simplicidade, elegância e economia, três critérios muito
caros a qualquer praticante de ciência.
O reducionismo é outro ponto muito importante:
na obra Discurso do Método, Descartes propõe sua tese
do reducionismo como a melhor forma de se conhecer as
coisas: divida o todo em partes, estude detalhamento
cada uma das partes e você terá um conhecimento amplo
do todo. Nosso currículo escolar, as especialidades
médicas, entre outros, são exemplos de como o
reducionismo se entranhou como proposta metodológica
da realidade. Parece-nos extremamente sedutor a ideia
de que o todo é a soma das partes, mas isso tem se
mostrado muito problemático na modernidade.2
O terceiro ponto é central e ainda persiste muito
fortemente em nossa maneira de olhar para o mundo,
ainda que surja em todo mundo reações vigorosas a ele:
só temos acesso aos dados produzidos pelo material,
captável pelos sentidos e, portanto, a substância mental
deve ser renegada a outro plano de investigação, que
não o das ciências da natureza. A partir do século XVII,
filosofia natural e teologia fazem um pacto não declarado
de divisão de fronteiras: aos homens da ciência, fica o
reino da substância material e, para a teologia, o reino da
2
Alguns importantes filósofos têm se dedicado ao estudo
do que temos chamado de sistemas complexos, em que a
postura reducionista se mostra incompleta. Para maiores
aprofundamentos, ler Introdução ao Pensamento
Complexo, de Edgar Morin.
substância mental (ou espiritual). Esse acordo implícito
tem permeado todo o olhar da ciência nos últimos 5
séculos.
`
A experiência científica é empírica (confrontar os
modelos com os dados da experiência), racional (deve
ser submetida ao julgo da razão) e objetiva (independe
do observador, dado o caráter universal das conclusões
científicas), enquanto que a experiência religiosa ou
espiritual3 é velada, subjetiva e pessoal. Essa oposição
entre objetividade da prática científica versus a
subjetividade da experiência espiritual é que trataremos
com maior detalhe a seguir.
2.
A
CRÍTICA
DE
ERWIN
SCHROEDINGER
AO
PRINCÍPIO
CLÁSSICO DA OBJETIVAÇÃO
Um dos pontos centrais da Mecânica Quântica é
exatamente seu caráter "aparentemente" subjetivo. O
experimento da fenda dupla, discutido no boletim de
Física e Espiritualidade número 08, sobre o título "Efeito
Compton e Difração de Elétrons" trata desse experimento
em detalhes, de modo que não nos alongaremos nisso
por ora.
O que vale mencionar é que o experimento da
fenda dupla traz à tona o papel do sujeito na observação,
na medida em que a forma como o feixe de elétrons é
"observado" no experimento afeta diretamente o tipo de
padrão que ele terá, se um simples feixe, de elétrons
como matéria, ou com padrões de interferência, máximos
e mínimos, típico de ondas.
Como classicamente um elétron é entendido
como uma "bolinha de matéria", era de se esperar que
um feixe de elétron se comportasse como a figura 1
indica, porém observou-se o que vemos na figura 2.
Figura 2: Experimento da fenda dupla para difração de
um feixe de elétrons
De modo a entender por que isso ocorria, os
físicos montaram um aparato experimental para
determinar por qual fenda os elétrons passavam, de
modo a explicar como se dava a interferência elétronelétron. O fato notável é que quando colocavam o
aparato experimental numa fenda específica, os elétrons
deixavam o padrão da figura 2 e retornavam ao da 1. De
algum modo, o resultado do experimento estava
diretamente conectado com a forma com que o
observador olhava o experimento. A mecânica quântica
iniciava o retorno do papel do sujeito na participação
da realidade, sujeito esse que havia sido banido da
descrição do mundo físico com a mecânica clássica
newtoniana.
Schroedinger afirma que "a ciência tradicional
fez com que nos retirássemos [da descrição da natureza],
decaindo para um papel de observador desinteressado."
(1997, p131). Com isso, continua ele, temos duas
consequências sérias para a
modernidade:
Figura 1: Padrão gerado por experimento da fenda dupla
Figura 3: O célebre físico Erwin
Schroedinger
3
Apesar de usar espiritualidade e religiosidade como
termos alinhados, vale mencionar que os termos possuem
acepções distintas. Para compreender melhor isso, ler
"Espiritualidade, religiosidade e psicoterapia", de Peres,
J.F.P., Simão, M.J.P e Nasello, A.G.
a) Nosso mundo se torna incolor, frio e mudo.
b) Há uma busca infrutífera do local onde nossa mente
atua sobre a matéria. O mundo material é construído sob
o preço de se retirar o “ eu” (a mente). A mente não faz
parte dele e, portanto, não pode atuar sobre o material ou
sobre qualquer de suas partes.
É inegável que o solapamento do projeto
dualista cartesiano começa a ter resultados danosos em
nossa forma de ver o mundo, quando começamos a
perceber que o ser humano integral não pode ser apenas
descrito em termos das condições de sua substância
material, mas também se faz necessário o entendimento
do mundo mental e de como esses dois mundos se
comunicam. Jung diz que:
“Toda a ciência, contudo, é uma função
da alma, na qual todo o conhecimento
está enraizado. A alma é o maior de todos
os milagres cósmicos, é a conditio sine
qua non do mundo como objeto. É
extraordinariamente surpreendente que o
mundo ocidental (com raríssimas
exceções) pareça ter tão pequena
percepção que assim o seja. A torrente de
objetos externos dos conhecimento fez
com que o sujeito de todo o conhecimento
se retirasse para o segundo plano, muitas
vezes para uma aparente inexistência.”
(Jung apud Schroedinger, 1997, p. 133 )
Cinco séculos depois, surpreendemo-nos com a
afirmação jungiana - construímos um mundo frio, sem
ação do sujeito, que morto, retirou-se do mundo. Talvez
Nietzsche devesse dizer "O homem está morto",
referindo-se ao projeto epistemológico materialista da
modernidade. Somos máquinas de entendimento da
realidade, produzimos explicações da realidade, mas
simplesmente não existimos para essa mesma realidade
que buscamos entender. Frio e triste!
Schroedinger aponta uma consequência terrível
da retirada do sujeito da realidade fisica: a noção de
responsabilidade. A ciência incutiu na mente humana a
ideia de que a realidade é como é e que não temos
qualquer ação ou responsabilidade sobre ela.
Simplesmente porque não existimos. O mundo está aí, é
do jeito que é e minhas atitudes e gestos simplesmente
não denotam qualquer responsabilidade.
Se fico doente, é simplesmente porque um vírus
ou bactéria externo se infiltrou em mim, destruindo ou
lesando minha imunidade. Apenas acaso. Ah, o acaso,
essa entidade metafísica conduzida a status divino na
modernidade. Somos incapazes de crer em um Deus,
exercitando nossa fé, mas conseguimos confiar com uma
fé grandiosa no acaso das coisas que acontecem no
mundo.
O grande físico Erwin Schroedinger, um dos
mentores da desconcertante Mecânica Quântica, ciente
de suas implicações, diz amargurado:
“Nossos crânios não estão vazios. Mas o
que lá encontramos, a despeito do
ardente interesse que provoca, não é
verdadeiramente
nada
quando
comparado à vida e às emoções da alma.
Como lidar com o corpo morto de um
amigo querido?” (1997, p.138)
O eminente físico, como se vê, clama pela
reinserção do eu na compreensão da realidade. O eu
sente, vibra, ama e tudo isso foi abolido por quase 5
séculos. É, pois, chegada a hora de nos tornarmos
efetivamente responsáveis, de nos colocarmos como
uma incógnita importante da equação da vida.
E como o sujeito retomaria seu papel de ator
principal no mundo? Schroedinger nos aponta o caminho:
“Não se pode afirmar nada sobre um
objeto natural sem entrar em contato com
ele. Não é possível conhecer algo e, ao
mesmo tempo, isolá-lo.” (1997, p.139)
Essa afirmação é notável: ela simplesmente diz
que não existe algo isolado de quem o percebe. Essa é
uma crença muito forte em nós: a de que o mundo existe
lá fora independentemente de nossa presença. Nada
absurdo, já que somos espíritos reencarnando nessa
tradição há pelo menos cinco séculos.
Costumo afirmar que quando saímos de uma
sala de aula, apagamos as luzes e saímos, não temos
qualquer garantia física de que ela continua no mesmo
lugar enquanto estou na minha casa. A única garantia de
sua existência reside no pressuposto epistemológico do
mundo existente independentemente do observador.
Ocorre que a Mecânica Quântica dissolve com esse
pressuposto e, portanto, perdemos a completa garantia
do mundo existente independentemente de nós. Foi com
essa ideia que o próprio Schroedinger idealizou o
experimento do gato, conhecido como o "experimento do
gato de Schroedinger".4
Figura 4: O gato de Schroedinger
O grande filósofo de Königsberg já dissera algo
semelhante três seculos antes: Kant, em sua obra Crítica
da Razão Pura (1781), dizia que não temos acesso
epistêmico às coisas em si, mas apenas ao fenômeno,
como elas aparecem a nós. Schroedinger complementa
isso, dizendo que:
"Nunca observamos um objeto sem que
ele esteja modificado ou tingido por nossa
própria atividade ao observá-lo." (1997,
p.140)
Schroedinger nos surpreende com uma
afirmação impressionante sobre a realidade: segundo ele,
não apenas dependemos de nosso sentidos para
acessarmos à realidade, como somos mesmo capazes
de modificá-la, imprimindo a ela nossa experiência de
mundo.
“Não somente as impressões que
obtemos de nosso ambiente dependeriam
em grande parte da natureza e do estado
contingente de nosso sensório, mas,
inversamente, o próprio ambiente que
desejamos apreender é modificado por
nós, notavelmente pelos dispositivos que
estabelecemos para observá-lo.” (1997,
p.140)
Devo admitir, num momento de descontração
intelectual, que essa citação de Schroedinger causa uma
forte emoção. O grande físico, uma das maiores mentes
da humanidade fala de co-criação, na medida em que
admite que o mundo que vivemos é o que é criado pelos
dispositivos mecânicos usados para sua observação.
Esses dispositivos não são apenas os fisiológicos, sede
dos sentidos humanos, mas também toda a carga de
experiência que adquirimos ao longo da vida (dessa e de
outras), que formam nosso arcabouço cognitivo. Quanto
mais vivemos e experienciamos, mais alargamos nosso
arsenal de possibilidades de interpretação do mundo,
criando, construindo, dando vida a novas realidades.
Esses trechos analisados, tirados de originais do
grande físico, são uma evidência importante de que os
homens que viveram o nascimento da mecânica quântica
tinham um cabedal experiencial que dava suporte para
interpretações tão progressistas de realidade. Hoje, ainda
persistem nas universidades inúmeros pensadores,
físicos de postura e linguagens extremamente esotéricas,
que se recusam a romper com as barreiras epistêmicas
que os permitirão vivenciar uma nova forma de entender
a realidade. Protestam, em vão, com o uso dos
fundamentos da nova mecânica no mundo macroscópico,
argumentando que a física quântica serve apenas para a
descrição de sistemas microscópicos.
Sabemos que chegará o tempo em que esses
protestos cessarão : quando o homem aceitar sua
natureza espiritual, cujas propriedades quânticas dão o
tom de seu comportamento, aceitarão, finalmente, que a
Mecânica Quântica atua sim em sistemas macroscópicos,
mas no espírito e, como sabemos que a matéria é um
epifenômeno da consciência (ou espírito), seremos
capazes de compreender como dar o salto entre sistemas
microscópicos e os macroscópicos, principalmente, para
nós seres humanos.
3.
A
SUBJETIVIDADE
E
A
CONSTRUÇÃO DA REALIDADE - A VIDA
NO MUNDO ESPIRITUAL
Maria João de Deus, mãe de Chico Xavier, em
obra mediúnica5 psicografada pelo filho afirma que:
4
Ler boAletim de Física e Espiritualidade, número 11,
"Schroedinger e a função de onda na Mecânica Quântica.
5
Obra intitulada "Cartas de uma morta".
"na vida livre, o pensamento é quase
tudo. Não há nelas formas determinadas
como no mundo da matéria; e tudo se
subordina aos ditames de uma vontade
potente." (1995, p.27)
Se tomarmos o princípio da objetivação
mencionado como referência de mundo para tentarmos
compreender essa assertiva, fica, de fato, muito difícil,
senão impossível. Dentro do princípio mencionado, a
vontade definitivamente é um "sentimento"ou uma
potência que, definitivamente, foi banida do referencial
metodológico-epistemológico que deu fundamento ao
princípio da objetivação que tomou conta da atividade
científica e de nossa visão de mundo nos últimos quatro
séculos.
Há outras citações bastante interessantes. No
mesmo livro, Maria João de Deus, tratando da lei da
gravitação, diz:
"Não suponhas que vais te mergulhar nas
extensões aquosas dos oceanos
terrestres; o receio6 é injustificável porque
a lei da gravitação agora está
subordinada ao teu íntimo querer. Já não
estás sob as leis físico-químicas da
matéria, cujas medidas e pesos nada
mais significam para nós. Pensa no local
aonde mais desejaria retornar, idealiza-o
na mente segundo suas lembranças e a
vontade te guiará ao lugar de tuas
preferências." (1995, p.49)
A ideia de uma lei da gravidade que esteja
intimamente ligada à vontade parece fantástica. Como o
homem, em seu caminho evolutivo, acabou por eliminar
das regras do jogo da compreensão da natureza,
elemento tão poderoso como a vontade? Claro que se
trata aqui, de uma pergunta retórica, visto ser mister
compreender que todo caminho se faz dentro do percurso
que é necessário, mas que, por mais que nos
distanciemos da verdade, um dia Deus a ela nos
reconduzirá.
6
Maria João de Deus se encontrava em visita à Terra e,
ao se aproximar, tinha sensação de que cairia Terra
adentro.
Abro um parênteses aqui também para outro
ponto importante, mas que certamente não caberia ser
discutido aqui, dada a profundeza e importância do tema:
a do estatuto das leis físicas. Segundo Maria João de
Deus, portanto, a lei da gravitação está submetida a uma
lei mais fundamental da natureza, a saber, a da ação da
vontade. Isso nos remete à ideia de níveis
epistemológicos de realidade, que vamos desvelando,
pouco a pouco, em nosso caminho de busca da verdade.
Bachelar, um importante epistemólogo, chega a discutir
a questão, mas para em nível conceitual: diz que o ser
humano tem de vencer barreiras epistemológicas muito
duras no caminho de abstração de certos conceitos da
atividade científica. Diria, completando Bachelar, que
temos de vencer essas barreiras em nosso caminho
evolutivo, mas o que ele abordou, é que tais barreiras
têm um forte conteúdo moral e que nossa evolução se
processa à medida que vencemos essas barreiras, não
apenas conceituai , epistemológicas ou metodológicas,
mas também morais. "Primeiro amai-vos, depois instruivos" resume a medida das barreiras que temos de vencer
para ascender aos mundos superiores, destinados à
suprema felicidade da qual somos herdeiros.
Disso tudo, vemos que a doutrina espírita, com a
Codificação e com os muitos livros que vieram depois
com o intuito de nos esclarecer, já deixavam claro que a
princípio da objetivação, que se enfraquecera com os
resultados da Mecânica Quântica, segundo Erwin
Schroedinger, tem seus dias contados, pois a ciência já
se encontra em condições de advogar em favor de uma
ideia, ao mesmo tempo, estranha e sedutora: a de que o
eu não apenas interfere no mundo, mas acima de tudo,
ajuda a construí-lo.
No livro Pensamento e Vida, de Emmanuel, ele,
no entanto, coloca certos limites para ação desse eu que
começa a ser tomado como importante na descrição do
mundo. Segundo ele:
"Só a vontade é suficientemente forte
para sustentar a harmonia do espírito. Em
verdade, ela não consegue impedir a
reflexão mental, quando se trate da
conexão entre os semelhantes, porque a
sintonia constitui lei inderrogável, mas
pode impor o jugo da disciplina sobre os
elementos que administra, de modo a
mantê-los coesos na corrente do bem."
(2009, p.15)
Posto isso, Emmanuel indica que a vontade é
uma potência poderosa da alma, mas que não pode
violar uma lei mais fundamental, a da sintonia. Porém,
como ele aponta, a vontade, sob ação firme do eu, pode
disciplinar o ser, convidando-o à mudança de sintonia.
Não atua direta, mas indiretamente. André Luiz, em
Mecanismos da Mediunidade, fala em "cíclotron da
vontade": cíclotrons são grandes aceleradores usados na
Terra para o estudo da natureza da matéria e se
baseiam, de uma forma bem simplificada, no estudo da
estrutura íntima da matéria a partir das colisões entre
partículas. A analogia se baseia no fato de que, com a
ação da vontade, podemos "bombardear" as "partículas
oriundas de nossos pensamentos" (fótons?), eliminando o
elo que a sintonia cria. Tudo lento e com a atividade de
uma vontade firme e resoluta.
Há muitos outros trechos que poderiam ser
mencionados aqui, pois sabemos que a doutrina espírita
é rica sobre o tema. O fato importante é que, antes
mesmo que a mecânica quântica estabelecesse suas
bases no começo do século XX, a doutrina espírita, com
a Codificação, mostrou que o homem reconduziria o eu
ao centro das discussões sobre a realidade e a
percepção e construção do mundo.Isso terá, como
veremos, impactos fantásticos em várias áreas do
conhecimento e, destaco, por ora, a Medicina.
4. O RESGATE DO EU NA PRÁTICA
MÉDICA - CONSIDERAÇÕES GERAIS
São muitos os trabalhos que têm sido
publicados, mundo afora, mostrando como a ação do eu
pode ter efeito no estado de saúde e doença do ser. O
efeito placebo, amplamente estudado pela indústria
médico-farmacêutica, é um exemplo claro de se
compreender, primeiro, se essa influência existe e, se
sim, como se dá.
Há trabalhos científicos de relevância que têm
discutido a questão da influência do eu na realidade.
Recentemente, num artigo intitulado "Effects on mass
consciousness - changes in random data7",
pesquisadores mostraram que a ação mental de uma
coletividade alterava o padrão randômico de sequências
numéricas fornecidas por um computador, muito além do
que poderia se considerado meramente uma flutuação
estatística, sugerindo que há certa integração entre
sujeito e realidade que, em certo nível, pode ser
objetivamente percebida.
Isso é fantástico e indica que a ciência já tem
encontrado resultados animadores a respeito de muitas
das críticas dirigidas por Schroedinger à objetivação da
natureza. Ainda é cedo, certamente, para tomar a
questão como definitivamente resolvida em termos
científicos, mas sabemos que mais e mais pesquisas
confirmarão o que nossos amigos espirituais já nos
legaram há cerca de 150 anos com a Codificação.
Num artigo publicado em 2001, na revista Acta
Fisiátrica, intitulado "Espiritualidade baseada em
evidências", Marcelo Saad et al fazem um importante
levantamento bibliográfico das inúmeras pesquisas
realizadas sobre os efeitos da espiritualidade (e, por que
não, da ação do eu) sobre o estado de saúde. É sabido
que, desde 2001, essas pesquisas aumentaram
significativamente, de modo que as considerações postas
aqui certamente se encontram com grande suporte de
publicações posteriores. Destaco aqui, três pontos do
artigo que nos remetem ao regresso do eu e de sua
participação (ou responsabilidade) no estado de bem
estar do indivíduo.
1) "Existe uma associação entre espiritualidade e
saúde que provavelmente é válida e, possivelmente,
causal."
Fato: o resgate do eu conduzirá os indivíduos à
busca da melhora do padrão pessoal de comportamentos
e pensamentos. Isso se amplia enormemente, pois fica
mais forte a noção de responsabilidade. Passo a ser
responsável pelo que penso e faço e tudo que advém em
minha vida é resultado disso, inclusive saúde e doença.
Penso que a doutrina dos espíritos só poderia ter sido
dada à humanidade no período em que o foi, pois não
estaríamos (como ainda não o estamos) preparados para
assumirmos a plena responsabilidade de nossos atos,
entendo que toda doença, por exemplo, tem uma causa e
7
Efeitos da consciência em massa na alteração de
padrões randômicos de dados.
ela começa no sujeito com suas vivências e escolhas.
Doença é reorientação de vida, de trilha a seguir.
2) "A crença em aspectos espiritualistas é mais
importante do que a comprovação com certeza da
existência de tais conceitos."
De concreto, o fato é que não importa muito no
que cremos, mas sim a intensa atividade do crer. Quando
cremos, mobilizamos as potências do eu na intensidade
de que somos capazes e isso é um motor de construção
da realidade. Se cremos num santo, numa entidade
espírita ou em Deus, o que está em jogo é a mobilização
de nossas forças interiores, capazes de atuar no fluido,
criando a realidade que desejamos a partir de nossas
escolhas. Nesse sentido, médicos podem lidar com a
espiritualidade o tempo todo, incutindo em seus pacientes
as ideias de força e resignação, pois que são molas
atributos poderosos da vontade e atuam diretamente no
estado clínico do paciente.
3) "Curar algumas vezes, aliviar frequentemente,
confortar sempre."
Linda e sublime forma de compreender a natureza da
atividade abençoada da medicina. O confortar o que é?
Não é, de alguma forma, fazer com que o paciente
reaviva seu eu, retomando as potencialidades, muitas
vezes já adormecidas ou anestesiadas pela dor? O
conforto desperta, reaviva e faz com o que eu se torne
consciente de seu papel. Infelizmente, no estado
evolutivo que nos encontramos, precisamos disso o
tempo todo, pois o conforto é chamado vivo da alma em,
que "arregaça a manga e cumpre, na medida do possível,
o que lhe cabe no processo.
CONCLUSÃO
Queridos irmãos em Cristo, sigamos com o
trabalho. Com o avanço da razão, tornamo-nos
responsáveis e, principalmente, conscientes dessa
responsabilidade, um caminho sem volta. Lembremos
das palavras do Mestre: "A quem muito é dado, muito
será cobrado". Àqueles a quem a atual encarnação
convidou para o sublime trabalho da medicina, lembremse sempre, a cada momento, que existe um eu diante de
si e que, mais do que prescrever medicamentos ou
condutas para uma vida saudável no corpo, somos
sempre convidados a construir em nós e na mente das
pessoas a saúde da alma, verdadeira mentora dos
reflexos, bons ou ruins, a que o corpo sucumbe. Que o
Mestre Amado, mesmo diante de nossas infinitas
imperfeições, possa continuar despejando sobre nós
seus doces fluidos de amor e de confiança, para que não
esmoreçamos no importante trabalho de edificação da
evangelho de Jesus na Terra.
Prof. Marcus Vinícius Russo Loures
Bibliografia
Luiz, André. Mecanismos da Mediunidade: a vida no
mundo espiritual. 26ª edição. Rio de Janeiro: FEB, 1959.
Ferreira, Paulo Antonio. Universo dual: a estrutura da
matéria segundo os espíritos. Apostila psicografada.
Guitton, Jean. Deus e a ciência. 5a impressão. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro:
Federação Espírita Brasileira, 76a ed, 1995.
Denis, Leon. O problema do ser, do destino e da dor. Rio
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10 anos do DA-AME-BR Vigésimo Boletim de Física e Espiritualidade