10 anos do DA-AME-BR Vigésimo Boletim de Física e Espiritualidade A retomada do eu na modernidade - considerações de Erwin Schroedinger BOLETIM 20 – FÍSICA E ESPIRITUALIDADE Prof. MARCUS VINÍCIUS – AMEABC [email protected] – Maio/2013 Queridos irmãos! É com uma alegria que não cabe mais dentro de meu peito que chegamos ao boletim número 20. Os dezenove anteriores foram maravilhosos, aprendemos muito com eles, mas esse é especial: porque é uma edição preparada com carinho para nosso reencontro na matéria, em breve. No momento em que finalizo esse boletim, faltam duas semanas para o MEDNESP em Maceió e será uma alegria infinita rever todos, meus irmãos e amigos de classe, das aulas alegres e ricas do nosso querido Dr. Bezerra de Menezes, nosso mentor em tão importante trabalho para a humanidade. Espero que apreciem o tema, a Física Moderna nos convida, nas palavras do grande Erwin Schroedinger, a retomar a participação do eu na construção da realidade. Que Jesus nos abençoe! O RESGATE DO EU NA MODERNIDADE Há muito, filósofos têm tentado compreender o "eu" e como a subjetividade participa de nossa percepção do mundo que nos cerca. Perguntam: "O que é o eu"? Como minhas crenças tomam parte nesse constructo chamado de "eu"? Kant, Hegel, Descartes, Husserl e muitos outros buscaram desenvolver um projeto epistemológico que desse conta dessa problemática. Discutimos anteriormente as contribuições de Renè Descartes para um modelo de eu que, a nosso ver, será muito brevemente revisitado, o dualismo mentecorpo. A neurociência tem investido grande energia na tentativa de compreender qual a sede do pensamento (se o corpo ou algo fora dele), a filosofia da mente tem produzido vasto material sobre o assunto e, se o dualismo substancial de Descartes ainda é considerado pelos filósofos como um "projeto sem agenda". Mas não tardará o momento em que esse projeto desabrochará e colocará muitas questões a serem investigadas nos séculos porvindouros: o Espírito e sua ação direta sobre a matéria será fonte de pesquisas para físicos, historiadores, epistemólogos e outros, que compreenderão que a realidade, vista sobre o prisma da matéria, tem produzido resultados grandiosos, fornecendo ao homem a capacidade de dominar a matéria por meio de suas leis, mas quando vista pelo ângulo da ação do espírito sobre a matéria, se mostra mais completa e mais grandiosa, aproximando-nos das verdades que emanam do Criador. Esse texto é produto de uma preleção realizada num curso de Medicina1 e tem como objetivo central chamar a atenção para a retomada do papel da subjetividade na descrição da natureza, projeto metodológico que é fundamental para o entendimento de como o Espírito atua sobre a realidade e a molda. 1. A MECÂNICA NEWTONIANA, A RECUSA ÀS QUALIDADES OCULTAS E A SOLAPÇÃO DO EU NA MODERNIDADE Faremos aqui uma breve, muito breve mesmo, incursão pela história da ciência e da filosofia. Isso cumpre o objetivo de mostrar como historicamente a escolha por uma descrição da natureza objetiva, isto é, que busca se ater à observação das qualidades captáveis pelos sentidos, espécie de critério seguro para construção de um entendimento do mundo. Alexandre Koyré, na obra Do mundo fechado ao universo infinito, discute detalhadamente, em vários capítulos da obra, como se deu essa passagem do mundo escolástico (sob forte influência da doutrina aristotélica) para o que podemos chamar de mundo clássico. O espírito de investigação da natureza à essa época parecia clamar por um critério mais seguro que permitisse um entendimento mais claro dos fenômenos da natureza. Lembremos que Descartes já se coloca esse problema: suas obras, Meditações Metafísicas e Discurso do Método, são uma tentativa de construir um entendimento claro e seguro, já que Descartes acreditava que todo o conhecimento humano parecia se assentar 1 Essa aula foi dada numa disciplina eletiva de Medicina e Espiritualidade, ministrada na Universidade de Taubaté, interior de São Paulo. sob uma base muito frágil. Foi, sem dúvida, um projeto epistemológico notável e que deixou uma herança conceitual e, mesmo metodológica, que alimentou a humanidade por cerca de 4 séculos. As verdades aristotélicas já expunham suas fraquezas diante de certos fenômenos e era preciso buscar um novo modelo de descrição da natureza que pudesse responder a essas questões nascentes: isso ocorre, como Kuhn discorre em sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas, com o que ele chamou de Revolução Copernicana: Galileu, Copérnico, Kepler, Giordano Bruno, dentre muito outros, nos legaram, pouco a pouco, as bases para uma revolução que mudou a forma com que olhamos o mundo. A síntese desse movimento de efervescência intelectual, que culminará com o Iluminismo, no século XVIII, se dá pela publicação das bases da mecânica de Sir Isaac Newton. A publicação de Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, em 1687, seria o que podemos chamar de marco divisório na história do conhecimento humano. Descartes dera dois caminhos com seu dualismo: a constituição dual do ser, com sua substância material (corpo) e mental (mente, consciência) apontam nas duas realidades do ser. No entanto, com os sucessos empíricos da mecânica newtoniana, instarou-se na filosofia natural certo encantamento por um empirismo ingênuo: deve-se buscar na natureza e nos dados captáveis pelos sentidos os constructos básicos para o entendimento da natureza. O recurso às qualidades ocultas, aquelas não oriundas dos dados sensórios, deve ser combatido fortemente, visto ter esse recurso introduzido na filosofia natural uma vasta gama de conceitos e teorias que careceriam de fundamentação. O projeto metodológico e epistemológico da época impunha tal imperativo. Os sucessos da mecânica newtoniana nos séculos subsequentes fortalecem a crença nessa forma objetiva de entendimento da natureza: com a mecânica newtoniana, um planeta foi teoricamente descoberto. A lei da Gravitação de Newton uniu céu e terra, mostrando que não existiam dois conjuntos de leis distintos, como o projeto aristotélico-ptolomaico sugeria. As leis de Kepler podiam ser integralmente deduzidas da mecânica newtoniana, num formalismo matemático simples e elegante. Tudo isso conferiu aos praticantes de filosofia natural a nítida sensação que a proposta metodológica clássica, oriunda do projeto newtoniana de descrição do mundo era um sucesso que garantiria um progressivo acesso ao conhecimento da verdade, para o alto e para cima sempre. Pode-se, portanto, reduzir o projeto epistemológico-metodológico da realidade a três pontos centrais, a saber: a) a matematização da natureza. b) o reducionismo cartesiano. c) primazia da substância material em detrimento da substância mental. O projeto newtoniano assume definitivamente a ideia de que a matemática é a linguagem da natureza e que sua descrição deve ser feita em tal termos. Descrever um fenômeno em termos matemáticos confere simplicidade, elegância e economia, três critérios muito caros a qualquer praticante de ciência. O reducionismo é outro ponto muito importante: na obra Discurso do Método, Descartes propõe sua tese do reducionismo como a melhor forma de se conhecer as coisas: divida o todo em partes, estude detalhamento cada uma das partes e você terá um conhecimento amplo do todo. Nosso currículo escolar, as especialidades médicas, entre outros, são exemplos de como o reducionismo se entranhou como proposta metodológica da realidade. Parece-nos extremamente sedutor a ideia de que o todo é a soma das partes, mas isso tem se mostrado muito problemático na modernidade.2 O terceiro ponto é central e ainda persiste muito fortemente em nossa maneira de olhar para o mundo, ainda que surja em todo mundo reações vigorosas a ele: só temos acesso aos dados produzidos pelo material, captável pelos sentidos e, portanto, a substância mental deve ser renegada a outro plano de investigação, que não o das ciências da natureza. A partir do século XVII, filosofia natural e teologia fazem um pacto não declarado de divisão de fronteiras: aos homens da ciência, fica o reino da substância material e, para a teologia, o reino da 2 Alguns importantes filósofos têm se dedicado ao estudo do que temos chamado de sistemas complexos, em que a postura reducionista se mostra incompleta. Para maiores aprofundamentos, ler Introdução ao Pensamento Complexo, de Edgar Morin. substância mental (ou espiritual). Esse acordo implícito tem permeado todo o olhar da ciência nos últimos 5 séculos. ` A experiência científica é empírica (confrontar os modelos com os dados da experiência), racional (deve ser submetida ao julgo da razão) e objetiva (independe do observador, dado o caráter universal das conclusões científicas), enquanto que a experiência religiosa ou espiritual3 é velada, subjetiva e pessoal. Essa oposição entre objetividade da prática científica versus a subjetividade da experiência espiritual é que trataremos com maior detalhe a seguir. 2. A CRÍTICA DE ERWIN SCHROEDINGER AO PRINCÍPIO CLÁSSICO DA OBJETIVAÇÃO Um dos pontos centrais da Mecânica Quântica é exatamente seu caráter "aparentemente" subjetivo. O experimento da fenda dupla, discutido no boletim de Física e Espiritualidade número 08, sobre o título "Efeito Compton e Difração de Elétrons" trata desse experimento em detalhes, de modo que não nos alongaremos nisso por ora. O que vale mencionar é que o experimento da fenda dupla traz à tona o papel do sujeito na observação, na medida em que a forma como o feixe de elétrons é "observado" no experimento afeta diretamente o tipo de padrão que ele terá, se um simples feixe, de elétrons como matéria, ou com padrões de interferência, máximos e mínimos, típico de ondas. Como classicamente um elétron é entendido como uma "bolinha de matéria", era de se esperar que um feixe de elétron se comportasse como a figura 1 indica, porém observou-se o que vemos na figura 2. Figura 2: Experimento da fenda dupla para difração de um feixe de elétrons De modo a entender por que isso ocorria, os físicos montaram um aparato experimental para determinar por qual fenda os elétrons passavam, de modo a explicar como se dava a interferência elétronelétron. O fato notável é que quando colocavam o aparato experimental numa fenda específica, os elétrons deixavam o padrão da figura 2 e retornavam ao da 1. De algum modo, o resultado do experimento estava diretamente conectado com a forma com que o observador olhava o experimento. A mecânica quântica iniciava o retorno do papel do sujeito na participação da realidade, sujeito esse que havia sido banido da descrição do mundo físico com a mecânica clássica newtoniana. Schroedinger afirma que "a ciência tradicional fez com que nos retirássemos [da descrição da natureza], decaindo para um papel de observador desinteressado." (1997, p131). Com isso, continua ele, temos duas consequências sérias para a modernidade: Figura 1: Padrão gerado por experimento da fenda dupla Figura 3: O célebre físico Erwin Schroedinger 3 Apesar de usar espiritualidade e religiosidade como termos alinhados, vale mencionar que os termos possuem acepções distintas. Para compreender melhor isso, ler "Espiritualidade, religiosidade e psicoterapia", de Peres, J.F.P., Simão, M.J.P e Nasello, A.G. a) Nosso mundo se torna incolor, frio e mudo. b) Há uma busca infrutífera do local onde nossa mente atua sobre a matéria. O mundo material é construído sob o preço de se retirar o “ eu” (a mente). A mente não faz parte dele e, portanto, não pode atuar sobre o material ou sobre qualquer de suas partes. É inegável que o solapamento do projeto dualista cartesiano começa a ter resultados danosos em nossa forma de ver o mundo, quando começamos a perceber que o ser humano integral não pode ser apenas descrito em termos das condições de sua substância material, mas também se faz necessário o entendimento do mundo mental e de como esses dois mundos se comunicam. Jung diz que: “Toda a ciência, contudo, é uma função da alma, na qual todo o conhecimento está enraizado. A alma é o maior de todos os milagres cósmicos, é a conditio sine qua non do mundo como objeto. É extraordinariamente surpreendente que o mundo ocidental (com raríssimas exceções) pareça ter tão pequena percepção que assim o seja. A torrente de objetos externos dos conhecimento fez com que o sujeito de todo o conhecimento se retirasse para o segundo plano, muitas vezes para uma aparente inexistência.” (Jung apud Schroedinger, 1997, p. 133 ) Cinco séculos depois, surpreendemo-nos com a afirmação jungiana - construímos um mundo frio, sem ação do sujeito, que morto, retirou-se do mundo. Talvez Nietzsche devesse dizer "O homem está morto", referindo-se ao projeto epistemológico materialista da modernidade. Somos máquinas de entendimento da realidade, produzimos explicações da realidade, mas simplesmente não existimos para essa mesma realidade que buscamos entender. Frio e triste! Schroedinger aponta uma consequência terrível da retirada do sujeito da realidade fisica: a noção de responsabilidade. A ciência incutiu na mente humana a ideia de que a realidade é como é e que não temos qualquer ação ou responsabilidade sobre ela. Simplesmente porque não existimos. O mundo está aí, é do jeito que é e minhas atitudes e gestos simplesmente não denotam qualquer responsabilidade. Se fico doente, é simplesmente porque um vírus ou bactéria externo se infiltrou em mim, destruindo ou lesando minha imunidade. Apenas acaso. Ah, o acaso, essa entidade metafísica conduzida a status divino na modernidade. Somos incapazes de crer em um Deus, exercitando nossa fé, mas conseguimos confiar com uma fé grandiosa no acaso das coisas que acontecem no mundo. O grande físico Erwin Schroedinger, um dos mentores da desconcertante Mecânica Quântica, ciente de suas implicações, diz amargurado: “Nossos crânios não estão vazios. Mas o que lá encontramos, a despeito do ardente interesse que provoca, não é verdadeiramente nada quando comparado à vida e às emoções da alma. Como lidar com o corpo morto de um amigo querido?” (1997, p.138) O eminente físico, como se vê, clama pela reinserção do eu na compreensão da realidade. O eu sente, vibra, ama e tudo isso foi abolido por quase 5 séculos. É, pois, chegada a hora de nos tornarmos efetivamente responsáveis, de nos colocarmos como uma incógnita importante da equação da vida. E como o sujeito retomaria seu papel de ator principal no mundo? Schroedinger nos aponta o caminho: “Não se pode afirmar nada sobre um objeto natural sem entrar em contato com ele. Não é possível conhecer algo e, ao mesmo tempo, isolá-lo.” (1997, p.139) Essa afirmação é notável: ela simplesmente diz que não existe algo isolado de quem o percebe. Essa é uma crença muito forte em nós: a de que o mundo existe lá fora independentemente de nossa presença. Nada absurdo, já que somos espíritos reencarnando nessa tradição há pelo menos cinco séculos. Costumo afirmar que quando saímos de uma sala de aula, apagamos as luzes e saímos, não temos qualquer garantia física de que ela continua no mesmo lugar enquanto estou na minha casa. A única garantia de sua existência reside no pressuposto epistemológico do mundo existente independentemente do observador. Ocorre que a Mecânica Quântica dissolve com esse pressuposto e, portanto, perdemos a completa garantia do mundo existente independentemente de nós. Foi com essa ideia que o próprio Schroedinger idealizou o experimento do gato, conhecido como o "experimento do gato de Schroedinger".4 Figura 4: O gato de Schroedinger O grande filósofo de Königsberg já dissera algo semelhante três seculos antes: Kant, em sua obra Crítica da Razão Pura (1781), dizia que não temos acesso epistêmico às coisas em si, mas apenas ao fenômeno, como elas aparecem a nós. Schroedinger complementa isso, dizendo que: "Nunca observamos um objeto sem que ele esteja modificado ou tingido por nossa própria atividade ao observá-lo." (1997, p.140) Schroedinger nos surpreende com uma afirmação impressionante sobre a realidade: segundo ele, não apenas dependemos de nosso sentidos para acessarmos à realidade, como somos mesmo capazes de modificá-la, imprimindo a ela nossa experiência de mundo. “Não somente as impressões que obtemos de nosso ambiente dependeriam em grande parte da natureza e do estado contingente de nosso sensório, mas, inversamente, o próprio ambiente que desejamos apreender é modificado por nós, notavelmente pelos dispositivos que estabelecemos para observá-lo.” (1997, p.140) Devo admitir, num momento de descontração intelectual, que essa citação de Schroedinger causa uma forte emoção. O grande físico, uma das maiores mentes da humanidade fala de co-criação, na medida em que admite que o mundo que vivemos é o que é criado pelos dispositivos mecânicos usados para sua observação. Esses dispositivos não são apenas os fisiológicos, sede dos sentidos humanos, mas também toda a carga de experiência que adquirimos ao longo da vida (dessa e de outras), que formam nosso arcabouço cognitivo. Quanto mais vivemos e experienciamos, mais alargamos nosso arsenal de possibilidades de interpretação do mundo, criando, construindo, dando vida a novas realidades. Esses trechos analisados, tirados de originais do grande físico, são uma evidência importante de que os homens que viveram o nascimento da mecânica quântica tinham um cabedal experiencial que dava suporte para interpretações tão progressistas de realidade. Hoje, ainda persistem nas universidades inúmeros pensadores, físicos de postura e linguagens extremamente esotéricas, que se recusam a romper com as barreiras epistêmicas que os permitirão vivenciar uma nova forma de entender a realidade. Protestam, em vão, com o uso dos fundamentos da nova mecânica no mundo macroscópico, argumentando que a física quântica serve apenas para a descrição de sistemas microscópicos. Sabemos que chegará o tempo em que esses protestos cessarão : quando o homem aceitar sua natureza espiritual, cujas propriedades quânticas dão o tom de seu comportamento, aceitarão, finalmente, que a Mecânica Quântica atua sim em sistemas macroscópicos, mas no espírito e, como sabemos que a matéria é um epifenômeno da consciência (ou espírito), seremos capazes de compreender como dar o salto entre sistemas microscópicos e os macroscópicos, principalmente, para nós seres humanos. 3. A SUBJETIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE - A VIDA NO MUNDO ESPIRITUAL Maria João de Deus, mãe de Chico Xavier, em obra mediúnica5 psicografada pelo filho afirma que: 4 Ler boAletim de Física e Espiritualidade, número 11, "Schroedinger e a função de onda na Mecânica Quântica. 5 Obra intitulada "Cartas de uma morta". "na vida livre, o pensamento é quase tudo. Não há nelas formas determinadas como no mundo da matéria; e tudo se subordina aos ditames de uma vontade potente." (1995, p.27) Se tomarmos o princípio da objetivação mencionado como referência de mundo para tentarmos compreender essa assertiva, fica, de fato, muito difícil, senão impossível. Dentro do princípio mencionado, a vontade definitivamente é um "sentimento"ou uma potência que, definitivamente, foi banida do referencial metodológico-epistemológico que deu fundamento ao princípio da objetivação que tomou conta da atividade científica e de nossa visão de mundo nos últimos quatro séculos. Há outras citações bastante interessantes. No mesmo livro, Maria João de Deus, tratando da lei da gravitação, diz: "Não suponhas que vais te mergulhar nas extensões aquosas dos oceanos terrestres; o receio6 é injustificável porque a lei da gravitação agora está subordinada ao teu íntimo querer. Já não estás sob as leis físico-químicas da matéria, cujas medidas e pesos nada mais significam para nós. Pensa no local aonde mais desejaria retornar, idealiza-o na mente segundo suas lembranças e a vontade te guiará ao lugar de tuas preferências." (1995, p.49) A ideia de uma lei da gravidade que esteja intimamente ligada à vontade parece fantástica. Como o homem, em seu caminho evolutivo, acabou por eliminar das regras do jogo da compreensão da natureza, elemento tão poderoso como a vontade? Claro que se trata aqui, de uma pergunta retórica, visto ser mister compreender que todo caminho se faz dentro do percurso que é necessário, mas que, por mais que nos distanciemos da verdade, um dia Deus a ela nos reconduzirá. 6 Maria João de Deus se encontrava em visita à Terra e, ao se aproximar, tinha sensação de que cairia Terra adentro. Abro um parênteses aqui também para outro ponto importante, mas que certamente não caberia ser discutido aqui, dada a profundeza e importância do tema: a do estatuto das leis físicas. Segundo Maria João de Deus, portanto, a lei da gravitação está submetida a uma lei mais fundamental da natureza, a saber, a da ação da vontade. Isso nos remete à ideia de níveis epistemológicos de realidade, que vamos desvelando, pouco a pouco, em nosso caminho de busca da verdade. Bachelar, um importante epistemólogo, chega a discutir a questão, mas para em nível conceitual: diz que o ser humano tem de vencer barreiras epistemológicas muito duras no caminho de abstração de certos conceitos da atividade científica. Diria, completando Bachelar, que temos de vencer essas barreiras em nosso caminho evolutivo, mas o que ele abordou, é que tais barreiras têm um forte conteúdo moral e que nossa evolução se processa à medida que vencemos essas barreiras, não apenas conceituai , epistemológicas ou metodológicas, mas também morais. "Primeiro amai-vos, depois instruivos" resume a medida das barreiras que temos de vencer para ascender aos mundos superiores, destinados à suprema felicidade da qual somos herdeiros. Disso tudo, vemos que a doutrina espírita, com a Codificação e com os muitos livros que vieram depois com o intuito de nos esclarecer, já deixavam claro que a princípio da objetivação, que se enfraquecera com os resultados da Mecânica Quântica, segundo Erwin Schroedinger, tem seus dias contados, pois a ciência já se encontra em condições de advogar em favor de uma ideia, ao mesmo tempo, estranha e sedutora: a de que o eu não apenas interfere no mundo, mas acima de tudo, ajuda a construí-lo. No livro Pensamento e Vida, de Emmanuel, ele, no entanto, coloca certos limites para ação desse eu que começa a ser tomado como importante na descrição do mundo. Segundo ele: "Só a vontade é suficientemente forte para sustentar a harmonia do espírito. Em verdade, ela não consegue impedir a reflexão mental, quando se trate da conexão entre os semelhantes, porque a sintonia constitui lei inderrogável, mas pode impor o jugo da disciplina sobre os elementos que administra, de modo a mantê-los coesos na corrente do bem." (2009, p.15) Posto isso, Emmanuel indica que a vontade é uma potência poderosa da alma, mas que não pode violar uma lei mais fundamental, a da sintonia. Porém, como ele aponta, a vontade, sob ação firme do eu, pode disciplinar o ser, convidando-o à mudança de sintonia. Não atua direta, mas indiretamente. André Luiz, em Mecanismos da Mediunidade, fala em "cíclotron da vontade": cíclotrons são grandes aceleradores usados na Terra para o estudo da natureza da matéria e se baseiam, de uma forma bem simplificada, no estudo da estrutura íntima da matéria a partir das colisões entre partículas. A analogia se baseia no fato de que, com a ação da vontade, podemos "bombardear" as "partículas oriundas de nossos pensamentos" (fótons?), eliminando o elo que a sintonia cria. Tudo lento e com a atividade de uma vontade firme e resoluta. Há muitos outros trechos que poderiam ser mencionados aqui, pois sabemos que a doutrina espírita é rica sobre o tema. O fato importante é que, antes mesmo que a mecânica quântica estabelecesse suas bases no começo do século XX, a doutrina espírita, com a Codificação, mostrou que o homem reconduziria o eu ao centro das discussões sobre a realidade e a percepção e construção do mundo.Isso terá, como veremos, impactos fantásticos em várias áreas do conhecimento e, destaco, por ora, a Medicina. 4. O RESGATE DO EU NA PRÁTICA MÉDICA - CONSIDERAÇÕES GERAIS São muitos os trabalhos que têm sido publicados, mundo afora, mostrando como a ação do eu pode ter efeito no estado de saúde e doença do ser. O efeito placebo, amplamente estudado pela indústria médico-farmacêutica, é um exemplo claro de se compreender, primeiro, se essa influência existe e, se sim, como se dá. Há trabalhos científicos de relevância que têm discutido a questão da influência do eu na realidade. Recentemente, num artigo intitulado "Effects on mass consciousness - changes in random data7", pesquisadores mostraram que a ação mental de uma coletividade alterava o padrão randômico de sequências numéricas fornecidas por um computador, muito além do que poderia se considerado meramente uma flutuação estatística, sugerindo que há certa integração entre sujeito e realidade que, em certo nível, pode ser objetivamente percebida. Isso é fantástico e indica que a ciência já tem encontrado resultados animadores a respeito de muitas das críticas dirigidas por Schroedinger à objetivação da natureza. Ainda é cedo, certamente, para tomar a questão como definitivamente resolvida em termos científicos, mas sabemos que mais e mais pesquisas confirmarão o que nossos amigos espirituais já nos legaram há cerca de 150 anos com a Codificação. Num artigo publicado em 2001, na revista Acta Fisiátrica, intitulado "Espiritualidade baseada em evidências", Marcelo Saad et al fazem um importante levantamento bibliográfico das inúmeras pesquisas realizadas sobre os efeitos da espiritualidade (e, por que não, da ação do eu) sobre o estado de saúde. É sabido que, desde 2001, essas pesquisas aumentaram significativamente, de modo que as considerações postas aqui certamente se encontram com grande suporte de publicações posteriores. Destaco aqui, três pontos do artigo que nos remetem ao regresso do eu e de sua participação (ou responsabilidade) no estado de bem estar do indivíduo. 1) "Existe uma associação entre espiritualidade e saúde que provavelmente é válida e, possivelmente, causal." Fato: o resgate do eu conduzirá os indivíduos à busca da melhora do padrão pessoal de comportamentos e pensamentos. Isso se amplia enormemente, pois fica mais forte a noção de responsabilidade. Passo a ser responsável pelo que penso e faço e tudo que advém em minha vida é resultado disso, inclusive saúde e doença. Penso que a doutrina dos espíritos só poderia ter sido dada à humanidade no período em que o foi, pois não estaríamos (como ainda não o estamos) preparados para assumirmos a plena responsabilidade de nossos atos, entendo que toda doença, por exemplo, tem uma causa e 7 Efeitos da consciência em massa na alteração de padrões randômicos de dados. ela começa no sujeito com suas vivências e escolhas. Doença é reorientação de vida, de trilha a seguir. 2) "A crença em aspectos espiritualistas é mais importante do que a comprovação com certeza da existência de tais conceitos." De concreto, o fato é que não importa muito no que cremos, mas sim a intensa atividade do crer. Quando cremos, mobilizamos as potências do eu na intensidade de que somos capazes e isso é um motor de construção da realidade. Se cremos num santo, numa entidade espírita ou em Deus, o que está em jogo é a mobilização de nossas forças interiores, capazes de atuar no fluido, criando a realidade que desejamos a partir de nossas escolhas. Nesse sentido, médicos podem lidar com a espiritualidade o tempo todo, incutindo em seus pacientes as ideias de força e resignação, pois que são molas atributos poderosos da vontade e atuam diretamente no estado clínico do paciente. 3) "Curar algumas vezes, aliviar frequentemente, confortar sempre." Linda e sublime forma de compreender a natureza da atividade abençoada da medicina. O confortar o que é? Não é, de alguma forma, fazer com que o paciente reaviva seu eu, retomando as potencialidades, muitas vezes já adormecidas ou anestesiadas pela dor? O conforto desperta, reaviva e faz com o que eu se torne consciente de seu papel. Infelizmente, no estado evolutivo que nos encontramos, precisamos disso o tempo todo, pois o conforto é chamado vivo da alma em, que "arregaça a manga e cumpre, na medida do possível, o que lhe cabe no processo. CONCLUSÃO Queridos irmãos em Cristo, sigamos com o trabalho. Com o avanço da razão, tornamo-nos responsáveis e, principalmente, conscientes dessa responsabilidade, um caminho sem volta. Lembremos das palavras do Mestre: "A quem muito é dado, muito será cobrado". Àqueles a quem a atual encarnação convidou para o sublime trabalho da medicina, lembremse sempre, a cada momento, que existe um eu diante de si e que, mais do que prescrever medicamentos ou condutas para uma vida saudável no corpo, somos sempre convidados a construir em nós e na mente das pessoas a saúde da alma, verdadeira mentora dos reflexos, bons ou ruins, a que o corpo sucumbe. Que o Mestre Amado, mesmo diante de nossas infinitas imperfeições, possa continuar despejando sobre nós seus doces fluidos de amor e de confiança, para que não esmoreçamos no importante trabalho de edificação da evangelho de Jesus na Terra. Prof. Marcus Vinícius Russo Loures Bibliografia Luiz, André. Mecanismos da Mediunidade: a vida no mundo espiritual. 26ª edição. Rio de Janeiro: FEB, 1959. Ferreira, Paulo Antonio. Universo dual: a estrutura da matéria segundo os espíritos. Apostila psicografada. Guitton, Jean. Deus e a ciência. 5a impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 76a ed, 1995. Denis, Leon. O problema do ser, do destino e da dor. Rio de Janeiro: FEB, 2010. Saad, M. et al. Espiritualidade baseada em evidências. Acta Fisiátrica, n.8, p. 107-112. 2001. Xavier, Chico. Cartas de uma Morta. São Paulo: Lake, 1995. _______. Pensamento e Vida. 18a edição. Rio de janeiro: FEB, 2009. Schroedinger, Erwin. O que é vida: o aspecto da célula viva. São Paulo: UNESP, 1997.