Relato sobre imigração na Amazônia ocidental brasileira: haitianos em Porto
Velho1
Geraldo C. Cotinguiba2
Marília Lima Pimentel3
A partir da pesquisa de campo com os haitianos em Porto Velho, iniciada em
julho de 2011, consideramos oportuno lançarmos um olhar sobre a presença desse grupo
na cidade por meio da perspectiva antropológica. Nossa reflexão incide sobre o período
compreendido entre março de 2011, quando da chegada do primeiro grupo de
imigrantes, até julho de 2013, momento desta redação.
A primeira observação que queremos pontuar é sobre um conceito chave da
antropologia, a noção de alteridade. Sabemos que esse é um conceito que nos remete à
reflexão sobre o outro em relação a um eu e essa noção traz, em si, o compromisso de
pensar o outro não apenas como o diferente; convida-nos, por sua vez, a uma
perspectiva de tentar entendê-lo, procurar uma maneira de compreender sua visão de
mundo, suas práticas sociais não como coisas bizarras, mas como algo diferente daquilo
que fazemos. Como ressalta o antropólogo Roberto da Matta (1981) 4, “tudo é
fundamentado na alteridade em Antropologia”, ou seja, só existe o antropólogo se existe
um outro ou mesmo o familiar, transformado em diferente pelo estranhamento.
Portanto, alteridade é um conceito fundamental para esse relato.
O contraponto ou o lado oposto da alteridade é o etnocentrismo, isto é, “uma
visão do mundo na qual o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os
outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas
definições do que é a existência” (ROCHA, 1996, p.11) 5. Assim, o etnocentrismo é o
que fomenta o ódio, a aversão, o rechaço ou a abjeção dos que são diferentes; é a
xenofobia. Entendemos que a presença dos imigrantes haitianos no Brasil causou o que
podemos chamar de incômodo social, ou seja, divergências de pontos de vista da
sociedade local em diferentes lugares do Brasil e em Porto Velho isso não foi diferente.
Por outro lado, há pessoas que se orientam pela noção da alteridade. Nosso objetivo
nesse relato é expor e refletir sobre a presença haitiana na Amazônia, mais detidamente
a cidade de Porto Velho, capital do estado de Rondônia, com base no que vimos,
ouvimos e convivemos junto aos haitianos e à população local.
Porto Velho
Situada na margem direita do Rio Madeira, a capital rondoniense já assistiu a
diferentes ciclos econômicos e migratórios, o da borracha, o do ouro e diamante, o da
madeira, o dos cargos públicos e o mais recente, das hidrelétricas, que se mistura com o
1
Publicado em: Nossa América Hoy: Revista do Memorial da América Latina, São Paulo, v. 03, p. 24 26, 02 set. 2013.
2
Antropólogo, mestrando em História e Estudos Culturais pela Universidade Federal de Rondônia –
UNIR.
3
Profª. Dra. do Departamento de Línguas Vernáculas da Universidade Federal de Rondônia – UNIR.
4
DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Vozes, Petrópolis:
1981.
5
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Círculo do Livro, 1996.
da pecuária. Historicamente a cidade de Porto Velho é marcada desde a sua formação
pela característica plural do ponto de vista étnico, contando com a presença estrangeira
na sua formação, especialmente quando da construção da estrada de ferro MadeiraMamoré, que congregou a presença de dezenas de nacionalidades, juntamente com
migrantes brasileiros de vários estados.
Com uma população estimada em cerca de 410.520 habitantes de acordo com o
censo de 2010, a cidade passou por um crescimento populacional sem acompanhar o
ritmo no que tange às políticas públicas concernentes à segurança pública, saneamento
básico, saúde, trânsito, moradia, infraestrutura e políticas sociais e culturais. Enfim,
cresceu economicamente e decresceu, em muitos aspectos, do ponto de vista social, pois
o abandono político é patente, como acontece com o patrimônio histórico, saneamento
básico etc. Ademais, cabe ressaltar que o estado de Rondônia é uma área limítrofe, com
uma extensa fronteira com a Bolívia, tanto por terra como por água, com dois grandes
rios, o Madeira e o Mamoré, ou seja, uma região que apresenta um grande potencial
para o trânsito de pessoas de um país para outro, assim como mercadorias. Há uma
Rodovia Federal que corta o estado de norte a sul, a BR-364, ligando ao sul com o Mato
Grosso e ao norte com o Acre. A BR-364 é a rodovia que faz a ligação e é, em termos, a
Estrada do Pacífico, que ligará o Brasil ao Oceano Pacífico.
Os haitianos na Amazônia
Desde 2010 os estados do Acre e Amazonas se tornaram os lugares que os
primeiros haitianos conheceram o Brasil. Num primeiro momento, a fama brasileira de
um povo acolhedor foi colocada em prática. Padres, freiras e leigos das comunidades
católicas locais providenciaram alojamentos, alimentos e acolhimento. Em pouco tempo
o limite da capacidade das potencialidades das pessoas de boa vontade excedeu e foi
preciso entrar em ação o Estado. Ao procurarem as instituições estatais para pedirem
refúgio, um problema se instalou e outra face brasileira se revelou: a fragilidade dos
órgãos estatais nas fronteiras. Isso pode ser exemplificado pela demora no atendimento,
poucos funcionários, sem preparação adequada para tal situação. Dessa maneira, ao
solicitarem refúgio, os imigrantes ficavam retidos muito tempo nas cidades pequenas
cidades de fronteiras (Brasileia e Tabatinga). Inicialmente o número de haitianos era
pequeno, porém à medida que a notícia de possibilidade de entrada no Brasil se difundiu
muitos outros chegaram.
As cidades por onde os haitianos entraram fica numa área conhecida como
tríplice fronteira. No Acre (Assis Brasil), a fronteira é entre Brasil, Peru e Bolívia e no
Amazonas (Tabatinga), entre Brasil, Peru e Colômbia. Nos dois lugares a entrada foi,
em geral, por pontes que ligam os dois países. A viagem em geral acontece de avião
entre o Haiti ou República Dominicana, com ponte aérea no Panamá até o Equador, de
onde seguem para o Peru, de ônibus e, mais uma vez de ônibus, cruzam o Peru até a
fronteira com o Brasil, onde entram a pé ou em táxi boliviano ou peruano, dependendo
da rota que é feita, a um preço que pode chegar até US$ 100,00 por pessoa, em viagens
com uma média de seis passageiros por veículo.
A viagem custa em média três mil dólares americanos US$ 3.000,00. No
caminho, especialmente no Peru, muitos nos relataram que foram extorquidos por
policiais, assim também aconteceu na Bolívia. Há relatos de estupros e assassinatos
nesses países. Uma vez no Brasil, afora algumas dificuldades, os imigrantes narram que
não sofreram violência como aconteceu no trajeto realizado. Além das cidades da região
amazônica, de acordo com nossa pesquisa etnográfica realizada em Porto Velho, temos
informações sobre a presença de haitianos nas cidades de Belo Horizonte – MG,
Florianópolis, Itajaí e Navegantes – SC, Cuiabá e Rondonópolis – MT, Campo Grande
– MS, Curitiba, Londrina e Pato Branco – PR, Goiânia – GO, Porto Alegre – RS, Rio de
Janeiro – RJ, e São Paulo – SP.
Mapa da rota migratória dos haitianos para o Brasil
Fonte: http://ponto.outraspalavras.net/2012/01/20/brasil-os-desafios-da-lei-de-migracoes/
Os haitianos em Porto Velho
O primeiro grupo de haitianos que chegou a Porto Velho foi na primeira semana
de março de 2011, quando 105 desembarcaram na cidade. A chegada à cidade foi o que
podemos chamar de “acidente de percurso”, pois o plano inicial dos primeiros haitianos
era São Paulo ou Rio de Janeiro, cidades que eles imaginavam possibilitar muitos
empregos devido à realização da Copa do Mundo de Futebol. Porto Velho foi por
indicação obtida no Acre com pessoas do governo local, que lhes informou ter emprego
nos canteiros de obra das hidrelétricas em construção no Rio Madeira, Santo Antônio e
Jirau.
A migração haitiana para o Brasil não pode ser explicada por meio de um único
fator motivador. Trata-se de um acontecimento em que as respostas são múltiplas e
estão diretamente relacionadas com o processo histórico de formação da sociedade
haitiana nas perspectivas da cultura, da economia, da política interna e externa.
A sociedade haitiana foi formada a ferro e fogo numa violenta prática
escravagista praticada pela França e, no contexto da modernidade, paga um alto preço
por sua posição estratégica do ponto de vista da geopolítica. Uma certeza nós temos
aqui, a de que o momento econômico em que se encontra a cidade de Porto Velho,
impulsionado pela circulação de capital advindo do processo de construção das duas
Hidrelétricas, Santo Antônio e Jirau acenou e continua acenando como possível
empregabilidade para os imigrantes haitianos, não diretamente em seus canteiros de
obras, mas pela ampliação dos postos de trabalho na cidade, ou seja, houve um
superávit de trabalho na cidade, o que está sendo alterado no momento com a
aproximação do fim das obras ou, pelo menos, das principais fases de maior
empregabilidade.
Aos poucos, percebemos que com algumas dificuldades como a língua, a
ausência de uma política nacional e local sobre imigração, das relações trabalhistas,
dentre outros, a inserção social dos haitianos na cidade vem ocorrendo com diferentes
aspectos, menos difícil para alguns, mais difícil para outros. Os principais ramos de
trabalho são a construção civil para a maioria, a limpeza urbana, alimentação, serviços.
As mulheres encontram mais dificuldades pela limitação imposta pela língua, pois a
maioria delas só fala o crioulo haitiano, enquanto os homens, por terem vivido na
República Dominicana, falam o espanhol e isso facilita a comunicação, além de muitos
falarem o francês, além do crioulo. Isso tem favorecido em alguns aspectos, como a
comunicação no trabalho.
No momento, há cerca de dois mil haitianos em Porto Velho, majoritariamente
homens. Não se sabe o número exato e isso é um reflexo nacional, pois não há uma
triagem do governo brasileiro e de nenhum governo local, o que não é diferente em
Rondônia. Assim, o que há é uma aproximação e isso se explica pela rotatividade desse
fluxo migratório, uma vez que, a cada dia, haitianos chegam e saem das cidades. A
permanência ou a locomoção se dá em função do trabalho.
As mulheres são minoria, algo que pode ter relação por questões de tradição em
uma sociedade que o homem ainda é o provedor principal. A faixa etária média é entre
25 e 35 anos para ambos os sexos. Há cerca de 100 crianças, muitas já nascidas na
cidade e outras vindas do Haiti. Algumas fazem parte do processo de reunião familiar,
recurso de direito do imigrante que se encontra no Brasil e tem o visto de permanência.
A esfera governamental que dispensa um trabalho em relação aos haitianos é a
Secretaria Estadual de Assistência Social – SEAS, agindo como interlocutora entre os
haitianos e algumas empresas locais para contratação, assim como com empresas de
outros estados que buscam esses trabalhadores. Os serviços públicos na área de saúde e
educação são utilizados pelos haitianos por iniciativa dos necessitados – mesmo com
alguns entraves, em alguns casos –, assim como resolução de problemas advindos em
alguns contratos de trabalho, quando recorrem a advogados que se dedicam a causas
trabalhistas. Na esfera municipal não há, até o momento, projeto algum em relação a
esses imigrantes.
O trabalho humanitário tem sido realizado, principalmente, pelo Serviço Pastoral
do Migrante – SPM, da igreja católica desde a chegada do primeiro grupo, além do
empenho de algumas paróquias que atuaram junto ao grupo. Há ainda, algumas igrejas
evangélicas que realizam atividades voltadas para os haitianos, arrebanhando, assim,
mais fiéis. Os espíritas oferecem atendimento básico de saúde – indistinto de
nacionalidade – que são utilizados por alguns haitianos, além de um bazar de roupas
usadas a preços módicos.
A Universidade Federal de Rondônia – UNIR oferece um curso de português
para os haitianos, por meio de um projeto de extensão universitária, em que estudantes
de Letras, coordenados por uma linguista e um antropólogo (os autores desse relato),
têm a oportunidade de vivenciar a experiência da sala de aula como uma forma de
estágio, além da possibilidade de fazerem pesquisa e, acima de tudo, poder conviver de
perto com os imigrantes e experimentar, na prática, a alteridade. O curso tem como
objetivo oferecer, além das aulas de português, noções sobre a cultura brasileira, leis
trabalhistas, geografia, economia, além da possibilidade de ensino de francês pelos
haitianos, que até o momento foi realizado apenas um curso dessa natureza.
O projeto de extensão teve início em julho de 2011, no auditório da Paróquia
São João Bosco, onde permaneceu por um ano e em 2012, devido ao aumento dos
alunos imigrantes, foi mudado para a Escola Estadual 21 de Abril. Até o momento já
foram atendidos mais 600 haitianos com diferentes períodos de permanência, às vezes
um mês, outros dois ou três. A permanência é de acordo com o horário ou local de
trabalho. Muitos frequentam alguns dias, aprendem um pouco de português e seguem
para outras cidades. O material didático é produzido pelos professores e os estudantes,
adequado à realidade e à necessidade. Mesmo com a alta rotatividade, há um grupo que
se mantém desde o início e apresenta bom domínio da língua portuguesa. As turmas são
divididas níveis, quais sejam, iniciantes, intermediários e avançados. O público é
heterogêneo e há pessoas com pouquíssima escolarização e há os que concluíram o
ensino universitário no Haiti e isso se mostra como uma dupla faceta, uma dificuldade
por um lado, com a necessidade de nos adequarmos à demanda e, por outro,
desenvolver a habilidade de conciliar essa heterogeneidade e lograr êxito nessa
empreitada.
Turma de intermediários. Foto: Geraldo Cotinguiba 08//09/2012
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