O ENSINO DE PORTUGUÊS PARA HAITIANOS:
IDENTIDADES MULTIFACETADAS
Betsemens Barbosa de Souza MARCELINO9
RESUMO: A falta de perspectiva no Haiti tem motivado a emigração e muitos
haitianos têm chegado à República Dominicana, Peru, Equador, Bolívia e Brasil em
busca de melhores condições de vida. Atraídos pelas possibilidades de trabalho
oferecidas no Estado de Mato Grosso, muitos deles têm se instalado em Sorriso-MT. No
entanto, dentre as inúmeras dificuldades, desde documentação a condições financeiras
para viagem, está a barreira do idioma. Assim, a convite de uma colega professora, e
com apoio da Universidade Aberta do Brasil / Universidade Federal de Mato Grosso
(UAB / UFMT), na qual éramos tutoras de um curso de Letras, ofertamos um curso de
Língua Portuguesa (LP) para haitianos. Este texto relata o que se tem percebido, até o
momento, acercadas identidades e das necessidades dos haitianos, tanto em termos
linguístico quanto a sua própria condição de cidadãos em nosso país.
Palavras-chave: Haitianos; identidade; português para estrangeiros.
ABSTRACT: Dismal future prospects in Haiti have motivated emigration and many
Haitians have arrived in the Dominican Republic, Peru, Bolivia and Brazil in search of
better living conditions. Attracted by the possibilities of work in the State of Mato
Grosso, many of them settled in Sorriso-MT. However, among the many difficulties,
from documentation to the financial cost of the journey, there is the language barrier.
Thus, at the invitation of a fellow teacher and with the support of Open University of
Brazil / Federal University of Mato Grosso (hereby UAB / UFMT) of which we were
tutors in the course of Arts, we offered a course in Portuguese Language for the
Haitians. This paper reports what we have seen so far, about the identities and needs of
Haitians, both in linguistic terms as well as their own status as citizens in our country.
Keywords: Haitians; identity, Portuguese for foreigners.
A falta de perspectiva no Haiti tem motivado a emigração e muitos haitianos têm
chegado à República Dominicana, Peru, Equador, Bolívia e Brasil em busca de
melhores condições de vida. Atraídos pelas possibilidades de trabalho oferecidas no
Estado de Mato Grosso, muito deles têm-se instalado em Sorriso-MT. No entanto,
dentre as inúmeras dificuldades, desde documentação a condições financeiras para
viagem, está a barreira do idioma. A convite de uma colega professora, que trabalhava
em minha companhia, enquanto tutoras da Universidade Aberta do Brasil/Universidade
Federal de Mato Grosso (UAB/UFMT) no curso de Licenciatura Plena em Letras na
modalidade Educação a Distância (EAD), decidimos ofertar um curso na modalidade de
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Professora interina da Universidade do Estado de Mato Grosso em Sinop; Tutora do curso de Letras da
UAB/UFMT em Sorriso; Mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudos Linguísticos (PPGEL)
da UFMT.
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extensão voltado para o ensino de Língua Portuguesa para os haitianos que vivem em
Sorriso.
Desde então, temos recebido o apoio da UAB/UFMT instalada no Pólo de
Sorriso, que disponibiliza espaço, material, tutores e acadêmicos/estagiários para
ministrar as aulas, bem como certificação para os envolvidos. A seguir relato o que
tenho percebido até o momento acerca das identidades e das necessidades dos haitianos,
tanto em termos linguístico quanto da sua própria condição de cidadãos em nosso país.
O projeto: algumas descobertas
De modo geral, o público atendido em nosso curso apresenta uma característica
em comum: são indivíduos que vêm de outros países, já vivenciaram e estiveram em
contato com outras realidades culturais e linguísticas. Grande parte deles chega ao
Brasil por uma rota que envolve República Dominicana, Panamá, Equador, Peru,
Colômbia, Bolívia e Venezuela.
A motivação da partida de seu país de origem se resume na procura por
melhores condições de vida por meio de trabalhos e acesso a educação. Se bem que,
uma boa parcela dos que aqui chegam, possui ensino superior completo em diversas
áreas do conhecimento, como engenharia, medicina e administração. Além do mais,
aprendem em suas escolas o crioulo, o francês e, por vezes, o inglês. Um dos fatores que
acaba interferindo no processo de convalidação desses conhecimentos adquiridos é que,
geralmente, os haitianos ou perderam os documentos, ou não trouxeram consigo na
viagem. Além do mais, o processo de tradução é muito custoso e burocrático e eles
acabam desistindo, vendo-se obrigados a aceitarem trabalhos braçais bem abaixo de seu
nível de formação, principalmente nos frigoríficos ao redor da cidade.
No entanto, alguns deles, as mulheres principalmente, não foram alfabetizados
em sua língua nativa, o crioulo. Assim, se apresentava um quadro um tanto quanto
complicado, considerando que nos víamos frente à necessidade de ensinar Português
para estrangeiros, no caso pessoas adultas, e que nem mesmo possuíam um código
linguístico escrito para referência.
Ao todo foram ofertadas seis turmas com aulas de português para haitianos:
quatro de iniciantes básicos e duas para iniciantes avançados, no período correspondente
de setembro de 2013 a junho de 2015. As aulas iniciais eram ofertadas no decorrer da
semana no período noturno, mas, depois, a pedido dos próprios alunos, passaram a ser
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ofertadas aos sábados à tarde por conta da disponibilidade dos mesmos. As aulas tinham
duração média de 2 horas, tendo sido atendido um total de aproximadamente 50 alunos.
O interesse pelas aulas surgiu por parte dos próprios haitianos que perceberam a
necessidade de aprender português para melhorar a comunicação em suas relações
cotidianas, bem como de continuar seus estudos e galgar melhores posições em seus
trabalhos. Sabemos que, no contato com outra língua, o sujeito precisa trilhar seu
próprio caminho, construir um ‗eu‘ nesse novo espaço, buscando referências externas ao
convívio com aqueles em mesma condição, pois a nova língua abre espaço a novas
significações. Contudo, esses haitianos não terão modelos prontos a serem seguidos
naturalmente, como ocorre na língua-mãe.
Nesse sentido, partindo do pressuposto de que a língua é um símbolo pátrio,
elemento constitutivo da identidade, o projeto objetiva compreender a construção dessa
nova faceta da identidade haitiana a partir do ensino da Língua Portuguesa para
estrangeiros. De acordo com Rajagopalan (2003b), quando há contato com outros povos
e culturas, há também realinhamento de identidade, pois a aquisição de um novo idioma
resulta em uma redefinição das perspectivas identitárias:
Uma das maneiras pela qual as identidades acabam sofrendo o
processo de renegociação, de realinhamento, é o contato entre pessoas,
entre povos, entre culturas. (...) Pois as línguas não são meros
instrumentos de comunicação, como costumam alardear os livros
introdutórios. As línguas são a própria expressão das identidades de
quem delas se apropria. Logo quem transita entre diversos idiomas
está redefinindo sua própria identidade. Dito de outra forma, quem
aprende uma língua nova está se redefinido como uma nova pessoa
(RAJAGOPALAN, 2003b, p. 59).
Entende-se, dessa maneira, que a identidade haitiana dos imigrantes deste
estudo, dado o contexto já explicitado, configura-se como em constante reformulação.
Conforme já exposto, para vários deles, a língua portuguesa é o terceiro ou quarto
idioma com o qual entram em contato, portanto, a perspectiva identitária desses sujeitos
já se encontrava em mutação mesmo antes do contato com a língua portuguesa.
Nesse contexto, podemos mesmo pensar no que Pennycook (2010) vai
denominar de metrolinguismo, referindo-se às interações entre pessoas de distintos
backgrounds, que brincam, misturam, reafirmam e negociam identidades por meio do
uso da língua, sem necessariamente estarem filiados a específicos laços culturais,
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étnicos, geográficos ou nacionais. O que importa é o contexto imediato e emergente de
comunicação, onde a mistura é a lei.
Contudo, Rajagopalan (2003b, p. 69) alerta que não se trata de despir-se de uma
identidade prévia em benefício de outra, julgada às vezes como superior, mas de
constituir-se como cidadão global, preservando a autoestima linguística, porém sem
xenofobia ou desprezo pelo idioma local, pois, ―afinal, é na linguagem e através dela
que as nossas personalidades são constantemente submetidas a um processo de
reformulação‖.
Por ser impossível falar em cultura sem associar a linguagem, torna-se no
mínimo inquietante a situação em que se encontram os haitianos, que são recebidos
enquanto trabalhadores, mas não encontram no poder público, da cidade de Sorriso,
uma ação voltada para sua capacitação linguística. Essa situação implica em um fator de
entrave no que se refere ao pleno exercício das atividades desse sujeito, enquanto
cidadão que oferece seu serviço braçal, mas que não pode usufruir de forma plena dos
serviços disponíveis, pois a falta de conhecimento da língua age como barreira.
Conscientes dessas especificações, a princípio, ouvíamos os alunos e
preparávamos as aulas de acordo com os tópicos que eles consideravam prioridade. Essa
foi uma abordagem necessária, já que esse era nosso primeiro contato com os haitianos
e precisávamos compreender sua realidade, anseios e necessidades. Entendemos que,
além de algumas dificuldades fonológicas, eles se preocupavam muito em aprender a
utilizar corretamente os tempos verbais, sempre perguntando a forma correta de uso no
passado. Aliás, essa é uma das suas principais características, que deixavam bem claro
sua preferência em ter acesso à forma culta da língua, sempre ávidos por aprender as
regras, conceitos e utilização do padrão da língua.
Grande parte das vezes os alunos mostravam-se confusos por não encontrarem
esses modelos nas falas cotidianas. Praticamente em toda aula havia questionamentos
referentes a termos que eles ouviam diariamente em seu ambiente de trabalho e que não
condiziam com o que estava sendo ensinado. Eles sempre queriam saber por que os
brasileiros não usam a gramática corretamente, de maneira que sempre nos envolvíamos
em discussões referentes à variedade social e linguística.
Segundo Revuz (1998, p. 127), todo aprendizado de uma nova língua perturba
aquilo que já se tem registrado com as palavras de outra língua, pois ―muito antes de ser
objeto de conhecimento, a língua é o material fundador de nosso psiquismo e de nossa
vida relacional‖. Em se tratando dos haitianos, percebi claramente tal inquietação, pois a
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aquisição de língua portuguesa não só perturbava a inscrição simbólica da língua
materna, mas das outras duas ou três línguas que eles já haviam apreendido nesse
processo de transitoriedade geográfica. Tudo o que se aprendia era comparado com o
que já sabiam em espanhol, inglês, francês ou crioulo, em um movimento de
internalização. Mas, por vezes, essa comparação interferia no processo de aquisição da
LP, porque muitos deles não conseguiam se desprender dos elementos linguísticos dessa
outra língua, principalmente aqueles que sabiam espanhol, pois insistiam em manter,
principalmente, a pronúncia da língua, além de algumas regras de conjugações e grafias
de palavras.
Como estratégia para ajudar na pronunciação, foram trabalhadas músicas em
sala de aula com exercícios para completar espaços com as palavras ouvidas, pois era
também uma possibilidade de apresentar artistas brasileiros e compartilhar mais um
pouco de nossa cultura. As poesias também foram utilizadas para trabalhar compreensão
textual, a exemplo de ―Canção do Exílio‖ de Gonçalves Dias, que serviu para identificar
os sentimentos dos alunos em relação a sua situação de estarem fora de seu país através
da atividade de paródia. Assim, o diálogo era constante e aberto, no sentido de
compensar as afrontas e dificuldade vivenciadas fora de sala por conta de sua situação,
como destrato e preconceitos, que eles mesmos relatavam.
De modo geral, foram trabalhadas questões necessárias para comunicação
cotidiana, já que o objetivo era aproximar ao máximo possível o conteúdo das aulas e o
que realmente vivenciavam no dia a dia. Considerando que a maioria dos alunos
trabalhava até poucos minutos antes das aulas, havia sempre uma dinâmica com
premiações no sentindo de ajudá-los a se sentirem confortáveis e bem dispostos e de
propiciar um ambiente mais relaxado e propício à aprendizagem.
Um dos maiores desafios do curso foi enfrentar a imprevisibilidade em relação
aos participantes, pois sempre havia novos alunos, e alguns se ausentavam por algumas
aulas, mas, de repente, apareciam novamente. Apenas no último período de aulas
conseguimos separar os alunos em duas turmas de acordo com o nível de conhecimento.
O desnivelamento com relação ao conhecimento de língua portuguesa
dificultava o processo de preparo e aplicação das aulas. A falta de material específico e
mesmo a escassez de trabalhos que versam sobre o assunto também dificultavam o
trabalho, já que cada aula precisava ser literalmente produzida, desde a abordagem até
os exercícios a serem utilizados, sem nenhuma certeza do que daria certo. Assim,
compreende-se a necessidade da produção de materiais desse cunho, posto que a cada
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dia novos haitianos são inseridos como cidadãos brasileiros e ensinar-lhes a língua
portuguesa é já uma prerrogativa.
Quanto ao curso, penso que, para próximas aplicações, deva ser repensado e
trabalhado com os alunos a necessidade de assiduidade como elemento para efetivação
de aprendizagem. Em relação ao conteúdo, faz-se necessário um ótimo preparo
linguístico para ajudá-los a perceber o contexto sociolinguístico da realidade da língua,
pois os alunos haitianos se preocupam muito com a forma padrão, o que não é criticado,
mas acabam deixando de lado aspectos de variações de uso que os fariam ter mais êxito
nas relações cotidianas, ao menos quanto à compreensão daquilo que lhes é dito.
Todavia, ainda assim, acredito que, no início, um método mais tradicional funcione
melhor, pois é este o modelo de aprendizagem que trazem de sua aquisição de língua
materna, aos poucos, porém, pode-se ir adicionando atividades de cunho mais
comunicativo.
Além do mais, faz-se necessário trabalhar com diálogos e vocabulários
relacionados a ações dos dia a dia, como compras no mercado, em lojas, nomes de
pratos, enfim, questões culturais do local onde estão vivendo.
Músicas são ótimas opções para se trabalhar a oralidade, pois os mesmos não se
sentem acanhados com atividades desse tipo, na verdade, a música é uma constante na
vida desses sujeitos e tem uma carga afetiva e emotiva muito representativa para os
mesmos. Sendo, então, uma das formas de se trabalhar o incentivo a manutenção de
seus valores nacionais, referentes àquela faceta primária de suas identidades, por meio
da retomada de suas músicas culturais, bem como também demais elementos, como
comidas e costumes. Aliás, deve ser uma constante nas aulas, esses diálogos que
mostram interesse em suas realidades e seus lugares de origem, de modo a fazê-los se
sentirem valorizados, a ponto de não precisarem se vestir de uma roupagem
abrasileirada que apague as demais facetas de suas identidades.
Dessa forma, além do apoio recebido da UAB/UFMT do Pólo Sorriso,
constatou-se a necessidade de formalizar o aprendizado por meio de documentos
oficiais que conferissem aos cursistas o direito de prosseguir seus estudos. Para atender
essa necessidade, atualmente, tem-se empreendido ações via Secretaria Estadual de
Educação de Mato Grosso, que, por meio da efetivação de matrículas nos Centros de
Educação de Jovens e Adultos (CEJA), possam proporcionar aos imigrantes haitianos a
continuidade nos estudos para que os mesmos alcancem os cursos técnicos
profissionalizantes e também de nível superior, conforme muitos almejam. Portanto,
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espera-se que essas ações possam ser o primeiro passo no sentido de visar mudanças no
âmbito das políticas públicas e sociais que contemplem as necessidades educacionais
desses novos cidadãos em solo brasileiro, consolidando, assim, sua cidadania.
Figura 1: Primeira turma, atendida de setembro a dezembro de 2013.
Fonte: Acervo pessoal da autora.
Referências
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Adicional na escola. Referencial Curricular do Rio Grande do Sul, v. 1, 2009, p.
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