crónica José Luis Peixoto Aquele espírito pertence a este corpo O planeta Terra faz o seu caminho. O Sol está presente em todos os instantes do nosso tempo, mesmo quando está lá no outro lado, nos antípodas daquilo que somos capazes de imaginar. Acreditamos que podemos enganar as horas, mas o jet lag mostra-nos que não. São cinco da manhã, não há trânsito na paisagem da minha janela, há luzes espalhadas na distância, candeeiros que estiveram sempre ali. Não consigo dormir. Cheguei ontem de Banguecoque, onde, neste momento, é meio-dia. Na paisagem da janela do quarto de hotel onde acordei há dois dias, neste preciso instante, há uma estrada infinita, cheia de carros nas duas direções, motas que encontram caminho entre esses retângulos coloridos e, arrastando o grito de um motor, há muitos tuk-tuk, claro. Agora, aqui, rodeado pelo silêncio de gente a dormir, de uma cidade inteira adormecida, não me é difícil recordar o cheiro de gasolina queimada que se mistura com o calor espesso de Banguecoque. Rodeado por sono e madrugada, não me custa saber que, neste preciso instante, há milhões de pessoas a avançarem pelos passeios de Banguecoque, levam tudo na pele, levam o ar de Banguecoque, que é feito desse tal calor grosso que faz transpirar, desse tal cheiro a gasolina queimada pelo motor de tantos tuk-tuk, mas que também é feito pelas vozes nasaladas que se lançam de vários pontos, cruzando-se e colando-se ao ar, ou pelo cheiro das espetadas de frango em paus de bambu, assadas em fogareiros que estão acesos a qualquer hora do dia ou da noite. 162 Há pouco mais de um ano, num lugar onde, neste momento, é uma da manhã, onde se começou a dormir há pouco tempo ou onde, para alguns, ainda não se adormeceu, na Amazónia brasileira, no estado da Rondónia, falei com o cacique de uma aldeia indígena. Traduzido para português por um jovem, explicou-me que não gostava de viajar de avião. O problema, dizia ele, é que quando se viaja de avião, o corpo chega antes do espírito. O avião é tão rápido que consegue transportar o corpo, levá-lo de um ponto a outro que, com frequência, fica a milhares de quilómetros de distância; mas o espírito, que não faz check-in, demora muito mais tempo a fazer essa mesma distância, a compreendê-la. Viajar permite este tipo de vantagens: colecionar lições vindas de fontes remotas, como as palavras de um índio numa aldeia da Amazónia, num fim de tarde à beira-rio, com a luz a cair devagar sobre as águas. Mas, ao mesmo tempo, viajar também produz momentos como este em que estou: a solidão absoluta, a sensação viva de que carrego algo impartilhável. Nem os rostos que deixei em Banguecoque e que, agora, estão ocupados com mil coisas que posso imaginar, me conseguem entender. Nem os rostos que dormem do outro lado destas paredes me conseguem entender. Porque o meu corpo está aqui, sozinho, a adormecer no sofá quando menos se espera, o queixo a cair sobre o peito, e a acordar a meio da madrugada, sem necessidade de luz, já completamente desperto, impossível voltar a fechar os olhos, as pálpebras a arderem. Porque o meu espírito está lá, também sozinho, a procurar-me nas ruas de Banguecoque, como uma sombra sem corpo, ainda debaixo daquele ar, a responder àquelas vozes, certo por aqueles horários.