UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA
A SUPERAÇÃO DO DUALISMO CARTESIANO EM ANTÓNIO
DAMÁSIO E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA AS CONCEPÇÕES E
PRÁTICAS MÉDICAS OCIDENTAIS
Dissertação apresentada à Universidade Católica Portuguesa
para obtenção do grau de mestre em Filosofia
(ramo de Axiologia e Ética, especialização em Bioética)
por
Márcia de Fátima Barbosa de Sousa
Faculdade de Filosofia de Braga
Maio de 2007
Agradecimentos
Ao Professor Doutor Alfredo Dinis pelo saber transmitido, pela disponibilidade e
presença.
Ao meu pai, familiares e amigos, pelo estímulo, ajuda e confiança.
2
ÍNDICE
Páginas
INTRODUÇÃO
5
PRIMEIRA PARTE
Crítica de António Damásio ao dualismo cartesiano no que se refere à influência deste
dualismo nas concepções e práticas médicas. Concepção não-dualista de António
Damásio e suas consequências para a compreensão da doença e da prática da medicina.
Capítulo 1: O dualismo cartesiano
1.1. O dualismo cartesiano: uma reflexão descorporalizada
10
1.2. O corpo não foi esquecido
13
1.3. A medicina cartesiana
15
1.4. Em defesa de Descartes
17
Capítulo 2: Concepção não dualista de António Damásio
2.1. A superação do dualismo cartesiano por António Damásio
19
2.2. Emoção e Razão
24
2.3. A Hipótese do marcador somático e a fisiologia das emoções
27
Capítulo 3: Extensões do erro de Descartes na prática médica
3.1. Implicações do dualismo na relação terapêutica:
extensão do erro de Descartes
29
3.2. Recuperar o dualismo, recuperar a Pessoa
33
Capítulo 4: A neurobiologia da consciência
4.1. A consciência e o sentido de si - sentir é dizer estou presente
37
4.2. Os sinais valem mais do que palavras – os relatos do corpo
41
4. 3. A maquinaria das emoções e sentimentos
42
4.4. Como o corpo cria a mente
43
4.5. Um ponto de equilíbrio
46
3
Capítulo 5: A neurologia do sentir
5.1. Neurobiologia e comportamento ético
49
5.2. Emoções Sociais e o Cérebro que Sente – a Homeostasia
50
5.3. Os mecanismos como se: alucinar o corpo
53
5.4. As emoções e os sentimentos sociais: o erro de Damásio
55
5.5. Ser humano é ser relacional
57
SEGUNDA PARTE
Outras concepções não-dualistas da Pessoa: Francisco Varela, George Lakoff e Edith
Stein. O conceito de empatia em Edith Stein e António Damásio. A aplicação do
conceito de empatia à prática clínica por S. Kay Toombs.
Capítulo 1: A incorporação da mente e o papel do ambiente
1.1. Corpo duplo
63
1.2. Francisco Varela e A Mente Corpórea
64
1.3. A ansiedade do fundamento
66
1.4. Experiência humana e neurofenomenologia
68
1.5. Os contributos de George Lakoff e Marc Johnson
69
Capítulo 2: A constituição da pessoa e o conceito de empatia em Stein
2.1. Edith Stein e a constituição do indivíduo
73
2.2. A realidade pessoal do ser humano
75
2.3. O conceito de empatia em Edith Stein
76
Capítulo 3: Empatia e prática clínica
3.1. A Empatia na Prática Clínica:
o conceito de empatia em António Damásio
78
3.2. S.Kay Toombs: o conceito de empatia de Edith Stein
aplicado à prática clínica
81
Conclusão
85
Bibliografia
89
4
INTRODUÇÃO
O Homem erecto é um novo mundo em marcha. Tudo o que ele é, tudo o que ele
foi, tudo o que ele sabe dele e do resto está no córtex, por onde passa, ligeiro ou fatal, o
pensamento. Se sobreviveu à noite de suas origens, erigido sobre duas pernas, mãos
livres e mandíbulas levadas a dimensões bem mais modestas, deve isso ao impulso
espectacular do seu lobo frontal. E aqui nasce o mistério, palavra pouco valorizada nos
escritos científicos, que a ela sempre preferiram a ideia de um desconhecido acessível
por força das experiências, teorias, hipóteses validadas sobre as mesas de dissecação e
nada de religião ou espiritualidade na cabeça. O homem não tinha um deus alojado no
encéfalo nem um homúnculo a vigiar os sinais que vêm do corpo e a articular
movimentos e reacções.
A questão em suspenso é vasta como o mundo. Como explicar que o homem,
com o seu corpo material, encerra em si um mistério que o torna singular, único? Aqui
começa a viagem, viagem íntima e de descoberta. Eis Renée Descartes e seu dualismo.
Na parte quarta do Discurso do Método, o filósofo cria uma oposição prometida à
posteridade entre res extensa e res cogitans, entre corpo e alma. Ao privar a alma de
suporte físico, separa a ciência de uma perspectiva esclarecedora: a pesquisa biológica,
neurológica e fisiológica dos estados mentais. Ao tirar a alma do corpo, prepara o
terreno para um pensamento mecanicista que se obstinou em dividir o cérebro em peças
e imagens de computador, como se de um conteúdo lógico informático se tratasse. Mais
ainda, tentou-se localizar o juízo ético, um centro moral no cérebro, numa procura
incessante dos fundamentos biológicos da ética, e até da empatia.
Os neurocientistas, em geral, consideram que herdámos de Descartes uma visão
mecanicista do mundo que fez com que o corpo humano fosse conceptualizado como
um engenho cujas peças se encaixam ordenadamente e segundo um processo racional,
uma máquina prodigiosa funcionando como um relógio de acordo com as leis
matemáticas. Consideram também que o actual modelo biomédico se baseia na visão
cartesiana do mundo e que a doença consiste numa avaria temporária ou permanente do
funcionamento de um componente ou da relação entre componentes. Curar a doença
equivaleria, nesta perspectiva, à reparação da máquina.
Em O Erro de Descartes, António Damásio afirma que Descartes ajudou a
medicina ocidental a abandonar a abordagem orgânica da mente no corpo e a ter
atrasado a sua compreensão em termos biológicos. No entanto, Damásio não fica apenas
5
pela crítica e superação do dualismo cartesiano, mas vai ainda mais longe, afirmando
que este continua a prevalecer entre aqueles que consideram ser possível a investigação
da mente sem recorrer à neurobiologia, criando, assim, um novo dualismo que continua
a influenciar a cultura científica e humanística ocidental, ao centrar-se na ideia de uma
mente descorporalizada, independente do meio físico e social, ideia que tem tido uma
grande influência na prática médica.
Outra consequência do dualismo cartesiano prende-se com a subespecialização.
Um facto novo na época contemporânea é a crescente penetração do corpo pela técnica.
Pensemos na clonagem, na procriação medicamente assistida, transplantes, próteses, na
robótica e até nos já tão falados uploadings da consciência. Estes processos, que há anos
atrás tinham lugar apenas na ficção científica, estão hoje na ordem do dia provocando
uma crise profunda na nossa visão da natureza humana. Este processo iniciou com uma
certa interpretação maquínica da carne que arrancou, decisivamente, com Descartes - se
a carne é da ordem da máquina, então ela pode ser tratada tecnicamente. Até a vida
passa a ser mimetizada por uma vida artificial, com estratégias de “animação” de todo o
tipo. É natural ao homem um certo artificialismo.
Do electroencefalograma rudimentar às imagens modernas de ressonância
magnética, a técnica está pronta para apresentar um novo mundo aos olhos do homem.
A ressonância magnética funcional apresenta-se como o passe de mágica que revela as
regiões corticais. Tudo parece reduzir-se a uma questão de sangue: cérebro mais
irrigado, em acção; cérebro menos irrigado, em repouso. E o que se passa neste
repouso? Será que um dia leremos pensamentos? A neurologia conseguirá explicar a
origem das experiências subjectivas? Todo o processo de especialização das ciências
biológicas e dos meios tecnológicos que acompanharam o desenvolvimento da medicina
nestas últimas décadas, trouxe como consequência mais visível a “desumanização” do
médico, que se foi transformando cada vez mais num técnico profundo conhecedor de
exames complexos, precisos e especializados, porém, em muitos casos, ignorante
quanto aos aspectos humanos presentes no paciente que assiste, verificando-se como
consequência a perda da unidade psico-somática do paciente. A técnica parece, no
entanto, ter limites. A tomografia por emissão de positrões, dizem, transmite o que “vê”
com um segundo de atraso sem obter a velocidade com que o cérebro estabelece ou
modifica suas conexões. A ressonância magnética funcional corrige estes defeitos mas
parece que não os elimina completamente. No entanto, o uso clínico destas imagens
parece ser primordial. Uma exploração pré-operatória informa o cirurgião sobre o lugar
6
preciso onde a extracção de um tumor não fará o paciente sofrer qualquer tipo de
paralisia. Mas devemos acreditar exclusivamente naquilo que vemos?
A visão cerebral torna-se confusa, mas a exploração deve continuar. Podemos
saber se uma pessoa realiza ou não uma actividade mental, mas acesso ao conteúdo do
pensamento... aqui estamos sós. Desliguemos as câmaras, serenemos o campo
magnético. O cérebro está visto. Resta todo o desconhecido. A experiência pessoal,
subjectiva, é particular e esperemos que assim continue, é o nosso último refúgio. Até
hoje não existe uma teoria satisfatória sobre este estado particular que dá ao homem o
sentimento de sua singularidade. A viagem mal começa. O homem empoleirado no seu
cérebro, determinado a compreender porque pensa o que pensa, sente o que sente...
neurociências, biologia molecular, linguística, genética, psicologia, filosofia: tudo a
postos para a descoberta das últimas fronteiras do cérebro. A bússola é o si, ele próprio.
Contra um reducionismo neuronal em que todos os comportamentos humanos se
explicariam a partir dos neurónios com exclusão da experiência subjectiva, “hipótese
espantosa” avançada por Francis Crick, há que fazer uma ponte entre a experiência
humana e os dados das neurociências. É o que faz Francisco Varela com o conceito de
neurofenomenologia que procura desenvolver um método na primeira pessoa sem
exclusão da observação das propriedades no cérebro na terceira pessoa.
O corpo deve ser visto como base de intersubjectividade, esfera de relações. O
homem é um ser de relações, a sua natureza é ser relacional. A relação médico-paciente
surge como uma situação particular, especial, da relação com o ambiente. O modelo
biomédico actual e a tecnologia que lhe está subjacente transformam a tradicional visão
hipocrática da relação sujeito-sujeito em sujeito-objecto. Este dilema ético de relação, é
apenas uma parte, importantíssima, sem dúvida, porém não exclusiva, da questão. A
desumanização da medicina deve ser encarada não apenas do ponto de vista ético, de
relação médico-paciente, mas também do ponto de vista epistemológico. Será que nas
circunstâncias actuais as ciências humanas não têm nada a dizer no campo do
diagnóstico e prognóstico médico? Quando nos adentramos no território da clínica e das
especialidades em que poderá ajudar o conhecimento filosófico ou literário que um
médico possa ter? A quem cabe a reflexão crítica sobre as novas perspectivas da
ciência, as suas consequências éticas, sociais, culturais existenciais? Ainda que muitos
concordem em teoria, na prática poucos são os que efectivamente estão conscientes de
que a ciência e a tecnologia não podem resolver todos os problemas da humanidade.
Certamente, mesmo depois de totalmente desvendado o código genético e
7
desenvolvidas as mais sofisticadas técnicas de diagnóstico e prognóstico clínico, os
médicos continuarão a enfrentar limitações e dificuldades que exigirão mais do que o
conhecimento científico para que possam ser superadas. Por uma questão de ética e por
uma
exigência
fundamentalmente
epistemológica,
pela
própria
lógica
do
desenvolvimento do conhecimento científico, só devemos poder falar de uma verdadeira
evolução do conhecimento biológico-médico quando se procurar a integração dos
saberes que extrapolam o campo eminentemente físico-experimental. Para além dos
limites e impossibilidades médicas há que saber acompanhar o paciente e seus
familiares, ajudando-os no sofrimento e na morte. S. Kay Toombs e António Damásio
chamam a atenção para a importância da formação humanista dos médicos, como
veremos na segunda parte deste trabalho. A este propósito, também George Lakoff e
Marc Johnson consideram que a própria ciência deverá manter uma relação séria com a
filosofia, como veremos posteriormente.
A segunda parte deste trabalho vem confirmar a concepção anti-dualista do ser
humano defendida por Damásio, nos estudos de Francisco Varela, Thompson e Rosch
em A Mente Corpórea e nas teses de George Lakoff e Marc Johnson em Philosophy in
the Flesh. As abordagens orientadas para a incorporação da mente que tomam em
consideração as peculiaridades dos cérebros, corpos e ambiente, são também partilhadas
por António Damásio. Abordaremos apenas os seguintes aspectos comuns: a crítica ao
sistema cartesiano e a incorporação da mente. As teses de António Damásio serão mais
desenvolvidas, ocupando grande parte do corpo do trabalho, uma vez que não podemos
falar sobre a relação médico-paciente e a empatia sem abordar as suas teorias sobre as
emoções e sentimentos e a consciência. Como médico e investigador, Damásio situa a
questão das práticas médicas ocidentais, mas não trata desenvolvidamente a relação
médico-paciente. A relação empática na clínica será abordada com base num artigo de
S. Kay Toombs tendo como pano de fundo o conceito de empatia de Edith Stein.
A abordagem do conceito de empatia em António Damásio também merece
referência, embora esta seja explicada apenas em termos neurológicos. Podemos, então,
falar de uma biologia da empatia. Segundo Damásio, pacientes com determinadas lesões
cerebrais no córtex pré-frontal apresentavam incapacidade em compreender a
mensagem emocional no tom de voz das pessoas, embora fossem capazes de entender as
palavras. Esta incapacidade de registar sentimentos alheios constitui uma falha no que
significa ser humano. A abordagem fenomenológica do conceito de empatia em Edith
8
Stein define a empatia como uma intuição interna ao passo que a explicação neurológica
atribui essa capacidade intuitiva aos neurónios espelho.
De facto, parece mais fácil explicar o ser humano à luz da biologia, do ser corpo,
do que a partir da sua interioridade, do seu espírito corporizado. No entanto, em
situação de doença terminal, crónica ou degenerativa, em que o ser humano é lançado
para o seu interior, há uma verdadeira concentração do pensamento sobre a vivência da
enfermidade. Em O Mistério da Saúde, Hans-Georg Gadamer, diz que a doença nos
isola do mundo exterior das nossas experiências e nos encerra no que é puramente
interior. Estranho paradoxo: se nos sentimos sãos a corporeidade passa despercebida, a
nossa atenção focaliza-se no trabalho, nas nossas relações, nos nossos problemas; se nos
sentimos doentes, institui-se uma verdadeira tirania da enfermidade, sinónimo de
fechamento, solipsismo corpóreo. Até que ponto, tal como refere Damásio em O Erro
de Descartes, não seria melhor que o erro de Descartes continuasse por corrigir?
9
1. O dualismo cartesiano
1.1. O dualismo cartesiano: uma reflexão descorporalizada
“Desde Descartes que a questão orientadora na filosofia ocidental tem sido a de procurar saber se o
corpo e a mente são uma ou duas substâncias distintas [...] e qual é a relação ontológica entre elas.”1
Com Descartes inaugurou-se uma época caracterizada pela autonomia da razão
que seria posteriormente o pilar da filosofia Kantiana. A ele devemos o salto que
permitiu a entrada numa nova era do pensamento. Através de um método rigoroso,
Descartes procurou princípios inabaláveis criando um novo modelo de saber
constituindo um avanço face a todo o saber tradicional. Seguindo um caminho
meditativo de questionamento de todas as certezas tudo submeteu ao julgamento
criterioso da dúvida metódica que assumiu um cariz hiperbólico ao colocar em causa as
informações dos sentidos, as verdades matemáticas e a própria existência do mundo.
Utilizando o método da dúvida consegue chegar a uma concepção de si próprio que
exclui o corpo. A radicalidade da dúvida é totalmente manifesta quando admite a
hipótese de um Deus enganador. A dúvida tem, no entanto, uma função positiva já que
assinala o nascimento do espírito crítico, é com ela que surge o espírito científico
moderno.
Neste exercício da dúvida Descartes encontra em si mesmo a certeza inabalável,
pilar do seu sistema filosófico: existe enquanto duvida e pensa. Da dúvida à primeira
certeza, Descartes estabelece a evidência do nosso existir advogando, quase sob a forma
de lema, que o homem é uma substância pensante, nas suas palavras, “compreendi que
era uma substância, cuja essência ou natureza é apenas o pensamento, que para existir
não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de nenhuma cousa material.”2
No seu entender, a alma deveria ser "expulsa" da interpretação mecanicista do
corpo. Descartes tem consciência de nada lhe pertencer excepto de estar a pensar e a
matéria, o corpo, não determina o que é o homem. O homem é essencialmente res
cogitans e embora sujeito a uma união com o corpo, o espírito é diverso dele. Pensar
significa existir e do pensamento decorre a existência.
1
VARELA, J. Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor - A Mente Corpórea. Lisboa: Piaget,
2001, p.55.
2
DESCARTES, R. - Discurso do Método e Tratado das Paixões da Alma. Lisboa: Livraria Sá da Costa,
1943, p.40.
10
Descartes apresentou o homem como um composto de corpo e alma, res extensa
e res cogitans, duas substâncias de si completas. Nas Meditações Sobre a Filosofia
Primeira (1641), particularmente, na Meditação Segunda, considera a alma mais
perceptível do que o corpo tratando-a, não como forma substancial, mas como espírito,
entendimento e razão. 3 Lilli Alanen afirma que “o uso geral que Descartes dá aos
termos alma, mente e pensamento são sinónimos e podem ser melhor traduzidos pelo
termo geral consciência” 4 . Parece que Descartes empregou indiscriminadamente os
conceitos alma/espírito,5 pensamento e consciência, e estes não podem ser entendidos
como sinónimos, se tivermos em conta os recentes desenvolvimentos em neurociências,
bem como a sua terminologia. O mesmo se aplica às neurociências quando utilizam
conceitos do paradigma tradicional envoltos numa roupagem conceptual inadequada
quanto ao seu
sentido original. Paradigmas diferentes exigem uma nova
conceptualização.
Para Descartes, a união alma-corpo é concebida como uma união real e
substancial. Rejeitando a interpretação platónica, de que a alma está acidentalmente
unida ao corpo como o “piloto no navio”, volta-se para a interpretação aristotélicatomista. Do modelo aristotélico, retém a noção de substância individual composta de
forma e matéria. No entanto, a ideia tradicional de uma forma imaterial a trabalhar num
corpo material, é hoje, problemática, obscura e ininteligível. Descartes admite a ligação
íntima entre as duas dimensões mas não a clarifica muito bem. Alma e corpo são
entidades separáveis, a alma não é afectada por nenhuma parte do corpo excepto pela
glândula pineal situada no cérebro. Descartes escolheu a glândula pineal para a junção
da alma e do corpo, uma vez que era a única parte do cérebro que não se dividia em
duas. Assim, no centro do cérebro colocou a “sede” da alma racional cujo papel era
receber informação necessária para a compreensão do mundo e comandar o corpo. No
Tratado das Paixões da Alma (1649), pode ler-se que “a parte do corpo em que a alma
3
«Je n’admets maintenant rien qui ne soit nécessairement vrai : je ne suis donc, précisement parlant,
qu’une chose qui pense, c’est-à-dire un esprit, un entendement ou une raison, qui sont des termes dont la
signification m’était auparavant inconnue. » DESCARTES, R. - Oeuvres et Lettres. Belgique: Éditions
Gallimard, 1953, p. 277.
4
ALANEN, Lilli - “Descartes’s dualism and the philosophy of mind”. In: Revue de Metaphysique et de
Morale, 3, 1989, p. 400.
5
Existe uma certa ambiguidade relativamente ao termo “alma”: para a escolástica mens era o pensamento
puro, o que excluía a participação do corpo. Descartes utiliza o termo alma para designar as funções
locomotoras e vegetativas do corpo humano e o princípio pelo qual pensamos. Por espírito entendia ser a
parte mais importante da alma, a que possui a faculdade de pensar. Só que o espírito não pode ser
entendido como parte da alma, é a totalidade da alma que pensa. O termo mente não existe na língua
francesa daí que Descartes use o termo esprit.
11
exerce imediatamente suas funções não é de modo algum o coração, nem o cérebro
todo, mas somente a mais interior de suas partes, que é certa glândula muito pequena,
situada no meio de sua substância.”6A leitura de Anthony Kenny é a de que se deve a
esta glândula a ligação com o mundo da experiência já que “todas as sensações
consistem em movimentos no corpo, que chegam, através dos nervos, a esta glândula,
de onde enviam à mente um sinal que evoca determinada experiência.”7Descartes não
contraria esta ideia.
A ideia central do dualismo é a de que a alma pode existir sem corpo, sem
extensão. Mas será esta a tese central do argumento? Nas Meditações sobre a Filosofia
Primeira, particularmente nas Segunda e Sexta Meditações, o argumento da tese
dualista foca dois aspectos: na Segunda Meditação, Descartes duvida que haja corpos,
no entanto ele tem a certeza que existe e pensa ao afirmar "persuadi-me que não havia
absolutamente nada no mundo, nenhum céu, nenhuma terra, nenhum espírito, nenhuns
corpos. Não me persuadi também de que eu próprio não existia? Pelo contrário, eu
existia com certeza se me persuadi de alguma coisa."8 Neste momento, Descartes tem
uma percepção clara e distinta da alma como coisa pensante e sem extensão, sem
atributos corpóreos, o que é suficiente para ser substância, algo que existe per si. Na
Sexta Meditação, ele usa esta percepção para mostrar que a alma é uma substância
incorpórea realmente distinta do corpo. A alma não está unida ao corpo como o “piloto
no navio”. Este parece ser o argumento real da distinção/separação pelo que a Segunda
Meditação parece ser insuficiente.
Mas será que nos conhecemos apenas como pensamento? Se o homem é um ser
no mundo, e tem, ou deve ter, experiência dessa situação, como explicar esta separação?
Concordaria Descartes com Lilli Alanen quando afirma que “o modo de descobrir e
conhecer a nossa mente e seus conteúdos é análogo ao modo de conhecer as coisas
físicas”.9 Como pode o cognitivo e o experimental separar-se da experiência social? O
papel da experiência social será desenvolvido mais adiante com os estudos de Varela e
Thompson em A Mente Corpórea.
O cérebro, componente físico e parte do corpo é mortal, enquanto que a alma
espiritual e imortal, controla o corpo, está consciente, pensa e sente. Se o pensamento
6
DESCARTES, R. - Discurso do Método e Tratado das Paixões da Alma, p. 116-117.
KENNY, Anthony - História Concisa da Filosofia Ocidental. Lisboa: Temas e Debates, 1999, p.258.
8
DESCARTES , R. - Meditações Sobre a Filosofia Primeira. Coimbra: Livraria Almedina, 1976, p. 118119.
9
ALANEN, Lilli - “Descartes’s dualism and the philosophy of mind”, p.393.
7
12
engloba operações do intelecto, vontade, imaginação e sentidos, como é possível?
Como pode a alma imaterial interagir com algo físico? Se o dualismo substancial da
alma e do corpo se funda na distinção completa entre a res cogitans e a res extensa,
identificada a res cogitans como atributo do pensamento e a res extensa como atributo
do corpo, como explicar essa interacção?
Eis como Descartes encontra saída para esta união real e misteriosa: "E, primeiro
porque sei que todas as coisas que concebo clara e distintamente podem ser produzidas
por Deus tais como as concebo, basta que possa conceber clara e distintamente uma
coisa sem uma outra para que tenha a certeza de que uma é diversa da outra, visto que
pelo menos podem ser postas separadamente por Deus. E não importa por que poder
ocorra que eu as julgue diferentes. Por consequência, exactamente porque sei que
existo, e, entretanto, não noto absolutamente nada diferente que pertença à minha
natureza ou essência, além disto apenas, que sou uma coisa pensante, concluo
rectamente que a minha essência consiste só em ser uma coisa pensante. E embora eu
talvez (ou melhor, com certeza, como direi na sequência), possua um corpo que está
ligado a mim muito estreitamente, tenho, por um lado, uma ideia clara e distinta de
mim próprio, enquanto sou apenas uma coisa pensante, não extensa, e, por outro lado,
uma ideia distinta do corpo enquanto ele é apenas uma coisa extensa, não pensante.
Pelo que é certo que sou realmente distinto do meu corpo e que posso existir sem ele."10
Terá Descartes forjado esta explicação para ir de encontro à religiosidade da época?
Não terá sido estratégico o recurso à divindade?
1.2. O corpo não foi esquecido
"Mas que sou eu então? Uma coisa pensante. O que quer isto dizer? Quer dizer: uma coisa que duvida,
que compreende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que também imagina, e que sente".11
Da leitura desta citação depreende-se que o ser humano não é apenas
pensamento. Nesta passagem da Meditação Segunda Descartes adianta o que vai dizer
na Meditação Sexta: a imaginação e a percepção sensorial como modos do pensamento
não são essenciais para a alma, mas pertencem-lhe como consequência da sua união
com o corpo. Para Descartes cada substância tem o seu principal atributo, propriedade
10
11
DESCARTES, R.- Meditações Sobre a Filosofia Primeira, p.207.
DESCARTES, R. - Meditações Sobre a Filosofia Primeira, p.207.
13
que constitui a sua natureza ou essência. As outras propriedades são os modos da
substância e estas pressupõem o atributo: não podem existir sem ele nem podem ser
percebidos clara e distintamente sem ele. Assim, e de acordo com a Segunda Meditação,
o pensamento não é um modo do corpo mas o seu principal atributo, e a extensão é o
principal atributo do corpo. A substância só tem um principal atributo, segue-se que a
mente e o corpo podem existir um sem o outro.
No entanto, na Sexta Meditação, Descartes admite a união da alma e do corpo
como um facto de experiência. As sensações de fome, sede, sono, marcam a diferença
entre a natureza de uma mente corpórea e uma mente pura. A distinção entre alma e
corpo prova a possibilidade lógica da separação e não uma separação real. Corpo e alma
são distintos mas inseparáveis. A união alma-corpo não pode ser compreendida com
ideias claras e distintas mas também não necessita ser explicada. No entender de
Descartes tem a ver com uma certa “noção primitiva”, a noção que temos de nós
enquanto agentes conscientes e que é familiar com a nossa experiência diária.
Possuímos três géneros de ideias ou noções primitivas: a noção que temos de alma, a de
corpo, e a da união que existe entre ambos, sendo que concebendo a união que há entre
duas coisas é concebê-la como uma só. No entanto, como já foi referido, a alma está
consciente da união com o corpo sem a poder compreender. Esta união é um mistério.
Uma forma possível de resolver o problema seria considerar que a alma tem dois
atributos principais: pensamento e extensão. Mas para Descartes a substância só pode
ter um atributo principal. Alma e corpo são duas substâncias, o que existe é uma união
substancial.
A união alma-corpo não é entendida, percebida, pelo puro pensamento, pelo
intelecto apenas, mas pelos sentidos e experiência quotidiana. Pela introspecção e pela
análise fenomenológica, a união torna-se clara, é a noção que temos de nós. Pensar e ter
consciência de pensar são os substractos do existir.
Descartes ao lado dos médicos holandeses, na época empenhados em questões
da medicina, avança com uma explicação mecânica do funcionamento do corpo
humano, sem excluir o contributo da alma.
14
1.3. A medicina cartesiana
A Carta Prefácio dos Princípios da Filosofia parece servir de ponto de partida
para uma reflexão sobre a medicina cartesiana centrada na ideia de sabedoria. A
sabedoria aparece conotada não como erudição mas como “um conhecimento perfeito
de todas as coisas que o homem pode saber, tanto para a conduta da sua vida, como
para a conservação da saúde e a invenção de todas as artes.”12
Nos Princípios aparece todo o programa da filosofia cartesiana comparando-se a
filosofia a uma árvore: “Toda Filosofia é, assim, como uma árvore, cujas raízes são a
Metafísica, o tronco é a Física e os ramos que saem desse tronco são todas as outras
ciências, que se reduzem a três, a saber: a Medicina, a Mecânica e a Moral; considero
a Moral como a mais profunda e a mais perfeita, pois, pressupondo um conhecimento
integral das outras ciências, é o último grau de sabedoria.”13 Daqui se conclui que a
ciência é útil para o homem e que as diferentes áreas do saber estão unidas entre si, são
interdependentes. Assim, a metafísica permite conhecer a natureza do espírito e a moral
tem como alvo o bem da alma funcionando como complemento da medicina que tem
por objecto o composto humano, uma vez que existe uma acção recíproca entre corpo e
alma. A medicina fornece uma técnica de dominar o corpo e a moral uma técnica de
dominar as paixões. Descartes propôs-se estudar as paixões como objecto da ciência já
que estas são manifestações reais da união da alma e do corpo.
O auto-conhecimento revela-se de grande utilidade para a moral e a medicina. A
alma depende do temperamento e das disposições dos órgãos do corpo, é consciente da
sua união com o corpo, e os pensamentos são o seu atributo, não enquanto coisa
pensante, mas enquanto unida à coisa extensa. A influência da alma sobre o corpo conta
como tema da medicina.
No Discurso do Método (1637) Descartes fala sobre a tríplice finalidade da
medicina: curar as doenças, preveni-las, retardar a velhice, a “conservação da saúde que
é, sem dúvida, o primeiro bem e o fundamento de todos os outros desta vida.”14No seu
entender, se conhecêssemos os remédios com que a natureza nos dotou poderíamos
livrar-nos de muitas doenças do espírito e do corpo, do enfraquecimento e da velhice,
12
DESCARTES, R. - Princípios da Filosofia. Lisboa: Edições 70, p. 15.
Ibidem, p. 22.
14
DESCARTES, R. - Discurso do Método e Tratado das Paixões da Alma, p. 73.
13
15
podendo assim prolongar a vida. Esta é a postura de um homem que se sente capaz de
conhecer e aperfeiçoar-se a si próprio.
A proposta médica cartesiana não pode ser desligada da sua preocupação
metodológica. Os postulados da matemática e a pretensão de demonstrações infalíveis
não eram suficientes para o estudo da medicina, daí que Descartes tenha lançado mãos à
obra e tenha ele próprio dissecado vários animais dada a sua preocupação com a
anatomia, tendo este estudo conduzido a um melhor entendimento da fisiologia e da
embriologia na sua época. Fica assim claro que o que importa a Descartes é o estudo do
homem, a consideração do ser humano como ser vivo/biológico e moral.
Encontraremos em Descartes indícios de uma medicina psicossomática? Se da
união alma/corpo não há uma ideia clara e distinta, contrariando assim o seu método de
busca da verdade, e dado que não se pode raciocinar relativamente a ideias confusas e
obscuras, Descartes remete-nos para uma obediência à própria natureza que conhece
bem melhor o seu estado do que o médico que só vê o exterior. Renuncia assim a uma
“medicina científica”. Steven Shapin refere que Descartes, que estudou química e
anatomia, procurou encontrar uma medicina fundada em demonstrações infalíveis. Num
escrito datado de 1640 ele diz: “Julgo que poderíamos ter encontrado muitos preceitos
seguros (em medicina), quer para curar as doenças quer para as prevenir, e também
para atrasar o envelhecimento, se nos tivéssemos debruçado em conhecer a natureza do
corpo.”15 Para Descartes a saúde do corpo era um dos principais bens a seguir à virtude.
Procurou ser médico de si próprio, mas as suas intenções falharam: apesar da dieta e da
moderação dos exercícios faleceu ainda muito novo.
Por outro lado, a medicina consiste para Descartes num auto-conhecimento que
permite uma auto-medicação e uma auto-terapia. Parece ausente qualquer referência à
relação empírica médico-doente como parte da cura médica. Voltaremos a este ponto
mais adiante.
15
SHAPIN, Steven - « Ses Oracles l’ont Bien Trompé. » In : La Recherche, Hors Série, 12, 2003, p.18.
16
1.4. Em defesa de Descartes
Descartes defendeu uma natureza diferente para a alma e para o corpo, contudo
reconheceu que estão em estreita ligação pois “nada há que actue mais imediatamente
sob a nossa alma do que o corpo a que está junta, e por conseguinte devemos pensar
que aquilo que nela é uma paixão, é quase sempre nele uma acção.”16Descartes acaba
por concordar que a emoção é necessária para a acção, tal como para Damásio.
Descartes reconheceu a unidade psicofísica do homem e denunciou a relação
íntima entre os estados mentais e físicos ao afirmar: “considerando as diversas
alterações que o corpo sofre e que a experiência mostra, quando a alma está agitada
por diversas paixões, noto que no amor [...] o bater do pulso é compassado, e muito
maior e mais forte que de ordinário, um brando calor se sente no peito e que a digestão
dos alimentos se faz muito rapidamente no estômago: de modo que esta paixão é útil à
saúde.” 17 Parece que o dualismo nunca satisfez o próprio Descartes. Aliás, a sua
tentativa é clara ao recorrer à glândula pineal. Curiosamente, António Damásio entende
que a interligação mente, razão, sentimento, emoção, corpo “ocorre de forma intensa
não muito longe da glândula pineal.”18
Não faz mais sentido afirmar que Descartes é apologista de um puro
racionalismo. Penso que ele concordaria com Damásio quando este propõe “que a razão
pode não ser tão pura quanto a maioria de nós pensa que é ou desejaria que fosse, e
que as emoções e os sentimentos podem não ser de todo uns intrusos no bastião da
razão, podendo encontrar-se, pelo contrário, enredados nas suas teias, para o melhor e
para o pior.”19
Terá Descartes negligenciado o corpo? A visão cartesiana de homem seria a de
uma alma imaterial a trabalhar dentro de um corpo que funciona de acordo com as leis
mecânicas naturais como uma espécie de fantasma? Será o corpo humano uma máquina
manipulada pela mente racional de forma misteriosa? Tomando como pressuposto o
facto de Descartes separar a alma do corpo por uma questão metodológica, dado que
esta união não pode ser compreendida e explicada em termos de ideias claras e distintas,
isto não significa que negue a interacção de ambos. Existo porque penso, pois se deixar
16
DESCARTES, R. - Discurso do Método e Tratado das Paixões da Alma, p.92.
Ibidem, p.161.
18
DAMÁSIO, António - O Erro de Descartes. Emoção, Razão e Cérebro Humano. Lisboa: Publicações
Europa-América, 2000, p.138.
19
Ibidem, p.14.
17
17
de pensar deixo de existir, porque deixo de ter a certeza e consciência da minha
existência. Por isso, pensar e existir são, no fundo, uma só e mesma coisa. Assim sendo,
tudo leva a crer que Descartes admita esta união substancial, real. Para Damásio, o
problema parece estar não na união, mas na separação. No entanto, também Damásio
separa o mental e o biológico quando fala de padrões neurais e mentais recusando a
acusação de dualismo cérebro/mente.
Talvez haja em Descartes indícios de um novo paradigma. Na Meditação
Segunda, sentimento, volição, entendimento e imaginação, constituem modos possíveis
de pensar. O próprio sentir alia-se ao pensar que consiste em duvidar, compreender,
afirmar, negar, querer e não querer. Isto leva-nos a concluir que Descartes não colocou
sentimentos e emoções de lado. De acordo com Michel Renaud, o modo de
aproximação da interioridade do homem passa pela distinção e ligação entre o invisível,
a alma, e a aparência do visível, o corpo. Deste modo, “tudo se passa como se o sucesso
do dualismo tivesse sido tal que, hoje, fosse preciso reagir contra a sua verdade; a sua
verdade, com efeito, consiste em pensar a unidade do homem a partir de dois
princípios, de dois pólos ou de duas dimensões irredutíveis.”20Descartes não deve ser
considerado monopolista exclusivo do dualismo se considerarmos que “a unidade do
homem deve ser interpretada como unidade diferenciada.”21
Será que o corpo não pensa? Descartes coloca o problema nestes termos: “como
não concebemos que o corpo pense de nenhuma maneira, temos razão em acreditar que
todas as espécies de pensamentos que em nós existem pertencem à alma.” 22 Talvez
esteja aqui o erro que provocou o divórcio entre as neurociências e o dualismo
cartesiano: conceber o funcionamento da mente ignorando o papel relevante do corpo e
dos sistemas cerebrais que o integram, supondo ser possível uma razão alicerçada na
substância mental isenta de emoções e sentimentos. Talvez falte a Descartes a ideia de
um organismo integrado. No entanto, organismo não se identifica com o si, o eu, a
pessoa. O corpo pensa na medida em que possui uma estrutura cerebral que lhe dá a
capacidade de se deixar afectar respondendo aos estímulos do meio de forma adaptativa.
20
RENAUD, Michel – “Antropologia”. In : Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa/S.
Paulo: Editorial Verbo, 1990, vol.1, p.314.
21
Ibidem, p.317.
22
Descartes, R. – Discurso do Método e Tratado das Paixões da Alma, p. 93.
18
Capítulo 2: Concepção não dualista de António Damásio
2.1. A superação do dualismo cartesiano por António Damásio
“Cresci habituado a aceitar que os mecanismos da razão existiam numa região separada da mente onde
as emoções não eram autorizadas a penetrar, e, quando pensava no cérebro subjacente a essa mente,
assumia a existência de sistemas neurológicos diferentes para a razão e para a emoção. Esta era então
uma perspectiva largamente difundida acerca da relação entre razão e emoção, tanto em termos mentais
como em termos neurológicos.”23
À medida que mergulham no mistério da consciência humana, os investigadores
das áreas das neurociências, psicologia, filosofia da mente e ciências cognitivas estão a
criar teorias que desmontam a ideia, levada às últimas consequências pelo
cartesianismo, de que existe uma mente independente, separada do mundo, que está em
algum lugar dentro do nosso cérebro. A tendência para considerar a mente como algo
separável do corpo está impregnada no nosso modo de pensar, e apesar de culparmos
Platão, António Damásio nomeou Descartes para esta questão.
A razão não é de modo algum pura, já que esta não se pode separar do
sentimento e da emoção, da corporeidade, daí que António Damásio em O Erro de
Descartes tenha desenrolado a conversa com o seu amigo imaginário em torno de
Descartes: “comecemos, então, pelo penso logo existo. Esta afirmação, talvez a mais
famosa da história da filosofia.”24 Literalmente esta afirmação ilustra o oposto do que
Damásio acredita sobre as origens da mente e da relação desta com o corpo. Desde que
foi cunhada por Descartes, no Discurso do Método, esta máxima estabeleceu um abismo
entre corpo e mente. Ao definir o acto de pensar como uma actividade separada do
corpo, o filósofo francês privilegiou a razão em detrimento da emoção. Para António
Damásio, a máxima de Descartes carece de sentido uma vez que os estímulos sensoriais
e as emoções resultantes são factores fundamentais na estruturação do pensamento. Daí
a sua simpatia por Espinosa que considerava a emoção como motor da racionalidade.
Com base na Teoria da Evolução das Espécies de Charles Darwin, António
Damásio considera que existimos e depois pensamos, corrigindo assim a máxima
cartesiana. 25 Ao longo de milhares de gerações o homem desenvolveu estratégias
23
DAMÁSIO, António - O Erro de Descartes, p.13.
Ibidem, p. 254.
25
“já antes do aparecimento da humanidade, os seres eram seres. Num dado ponto da evolução, surge
uma consciência elementar. Com essa consciência elementar apareceu uma mente simples; com uma
maior complexidade da mente veio a possibilidade de pensar e, mais tarde ainda, de usar linguagens
para comunicar e melhor organizar os pensamentos. Para nós, portanto, no princípio foi a existência e
24
19
adaptativas para sobreviver. Quando o seu cérebro sentiu o que foi ficar em pé tornou-se
claro que da sensação decorreu o pensamento. Nas palavras de Damásio “no princípio
não houve tacto, visão ou movimento propriamente ditos, mas sim uma sensação de
corpo ao tocar, ao ver, ao ouvir ou ao mover-se.”26 O homem primitivo, para além de
usar gestos para exprimir fome, medo, sentimentos, emoções, captou a noção de que o
gesto tem a virtude de significar. A par do significado, a imaginação libertou-o da pura
animalidade. Para lá da sobrevivência, algo o levou a inquirir, a admirar-se – a
consciência. O Homem tornou-se um animal que anda por aí a fazer perguntas. Terá o
cérebro evoluído para assegurar a sobrevivência do organismo? Certamente, já que este
não ficou cristalizado no curso da evolução, ele constitui uma espécie de síntese do
passado sendo ao mesmo tempo um processo evolutivo.
O erro de Descartes foi separar o corpo da mente, a razão da emoção, foi sugerir
que a mente teria uma “substância diferente” da do tecido biológico. António Damásio
baseia as suas conclusões no estudo de diversos pacientes com lesões cerebrais
contrariando a crença de que “decisões sensatas provêm de uma cabeça fria e de que
emoções e razão se misturam tanto quanto a água e o azeite”.27 Tal certeza começou a
ruir quando Damásio se confrontou com um paciente, Elliot, que tivera uma mente
saudável até ser afectado por uma doença neurológica, um meningioma que danificou
parte do seu cérebro com predomínio no lobo frontal direito, em particular, no sector
ventromediano. De um dia para o outro, o paciente começou a apresentar uma
incapacidade total para tomar decisões e uma alteração na capacidade de sentir
emoções, embora possuísse o conhecimento, a atenção e a memória intactas, inclusivé a
memória de trabalho. A sua linguagem era impecável, conseguia executar cálculos e
lidar com a lógica de um problema abstracto. Ao analisar o paciente, Damásio
considerou pela primeira vez a hipótese de que emoção e razão estariam visceralmente
interligadas, e mais, que a emoção está na essência da capacidade de pensar e na tomada
de decisão. Com este caso, e outros semelhantes, Damásio denuncia a concepção
tradicional acerca da natureza da racionalidade: a razão não é incorpórea, sentimentos e
só mais tarde chegou o pensamento. E para nós, no presente, quando vimos ao mundo e nos
desenvolvemos, começamos ainda por existir e só mais tarde pensamos. Existimos e depois pensamos e
só pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e
operações do ser.” No entanto, se no princípio era a existência, e se é a existência que na sua própria
evolução e complexidade permite o aparecimento do pensamento, isto significa que primeiro existimos
sem pensar e mais tarde pensamos, existimos e pensamos. Não haverá aqui também um dualismo?
Ibidem, p.254.
26
Ibidem, p.239.
27
Ibidem, p.13.
20
emoções estão ligados e a ausência de emoções é incapacitadora e compromete a
racionalidade. A partir de casos clínicos (como os psicopatas que repetem os seus
crimes) equaciona exemplos “em que uma diminuição da racionalidade se faz também
acompanhar de diminuição ou ausência de sentimentos”28 e que a redução das emoções
pode conduzir a comportamentos irracionais, ou seja, socialmente inadequados e
pessoalmente desvantajosos. No caso de Elliot, este não aprendeu com os erros mesmo
quando confrontado com os resultados desastrosos dos testes e perdia-se com descrições
desnecessariamente pormenorizadas. Havia uma dissociação entre a vida real e os
testes de laboratório.29 Elliot sabia mas não sentia, relatava a tragédia da sua vida com
imparcialidade, de forma controlada, sem evidenciar traços de emoção ou sofrimento.
As emoções são “a corporização da lógica da sobrevivência”, 30 produto da
evolução, fruto de uma necessidade do organismo para regular a vida. Antes de termos
consciência de uma situação, o nosso organismo responde através de mudanças
posturais, viscerais, faciais, responde de forma antecipatória antes de “darmos conta”.
Isto acontece com todos os corpos animados, inclusive os irracionais. O instinto de
sobrevivência está relacionado com respostas vantajosas e não o contrário já que a
evolução é marcha e não retrocesso. Não é do conhecimento geral que muitas pessoas,
com deficiência/incapacidade cognitiva, cujas áreas cerebrais estão irremediavelmente
lesionadas, mesmo assim, decidem em termos vantajosos preservando a sua integridade
física? Será exagerado afirmar que o organismo pense de alguma forma mesmo na
ausência de uma consciência alargada? E nestes casos, poderemos falar de decisão no
sentido racional, deliberado? Talvez a resposta seja afirmativa, contudo o mesmo não se
aplica no que diz respeito à tomada de decisão no sentido ético.31 Neste domínio muitas
decisões parecem contrariar a lógica da sobrevivência. E é aqui que se inscrevem os
28
Ibidem, p.190.
As alterações que acompanharam a lesão cerebral de Elliot não podiam ser medidas com instrumentos
neuropsicológicos tradicionais. Daí a necessidade de novas abordagens para explicar a forma como certas
operações cognitivas e suas componentes estão relacionadas com os sistemas neurais e seus componentes.
Elliot foi sujeito aos seguintes testes com resultados normais: Escala de Inteligência para Adultos de
Wechsler; Exame de Afasia Multilinguística; Discriminação Facial para o Juízo de Orientação Linear;
cópia da figura complexa de Rey-Osterrieth; Teste de Escolha de Cartões de Wisconsin; Inventário
Multifásico de Personalidade de Minnesota, etc.
30
DAMÁSIO, António - O Sentimento de Si. O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência.
Lisboa: Publicações Europa América, 2000, p.62.
31
O trabalho que desenvolvi ao longo de sete anos como docente de apoio educativo, em particular, com
alunos portadores de défice/incapacidade cognitiva, conduziu-me à ideia de que estas pessoas decidem
em termos vantajosos no que diz respeito à integridade física mas o mesmo não acontece em termos
relacionais e sociais. O outro é por vezes suprimido, com vista ao seu próprio sucesso e satisfação
imediata de uma necessidade. Não se avaliam consequências a longo ou médio prazo. Por vezes, a atitude
face ao sofrimento do outro é de frieza e distanciamento (com excepções para os portadores de síndrome
de down).
29
21
casos patológicos mais complexos. E assim, talvez o homem não se distancie muito do
animal, embora Damásio aponte o altruísmo como uma das qualidades que definem o
ser humano, ou seja, a capacidade de ir para além dos ditames da vantagem e
desvantagem. Talvez a ética não seja um domínio exclusivamente humano. Existem
estudos de antropologia e comportamento animal centrados no argumento de que os
seres humanos não são a única espécie com cultura, certos primatas até revelam
comportamentos altruístas. Este aspecto é desenvolvido na obra Ao Encontro de
Espinosa de que falarei mais adiante.
A pessoa constrói-se com base no seu kit fisiológico e social no qual
desempenham papel fundamental a educação e a cultura, em suma, o ambiente; “as
decisões pessoais e sociais estão repletas de incertezas e têm impacto na sobrevivência
de forma directa ou indirecta. Requerem, por isso um vasto reportório de
conhecimentos sobre o mundo externo e sobre o mundo que existe dentro do
organismo.” 32 Além dos mecanismos de sobrevivência devemos acrescentar um
conjunto de estratégias de tomada de decisão socialmente aceitáveis.
Sentimentos como amor ou ódio encontram as suas bases em processos
fisiológicos, neurológicos que ocorrem no momento da interacção entre um cérebro e o
seu corpo “quererá isto dizer que não existe amor verdadeiro, amizade sincera,
compaixão genuína?”33 Claro que existe. Se os sentimentos são autênticos, verdadeiros
e marcados pela beleza da sublimidade, jamais se inscreverão no reducionismo da
neurobiologia, mesmo sabendo que existem mecanismos biológicos automáticos
subjacentes ao sentimento humano mais sublime. Um sentimento é autêntico quando há
correspondência entre o que eu faço/sinto e a minha mente. Para além desta dupla
condicionante contamos com algo exclusivamente humano: um ponto de vista moral
que transcende os interesses do grupo.
O corpo constitui quadro de referência para os processos neurais e para a
actividade da mente. Ele é o instrumento de aferição que permite dar asas à
subjectividade. Através dele experienciamos e forjamos interpretações do mundo. Os
processos e experiências corporais estabelecem os modelos do nosso raciocínio: “os
nossos mais refinados pensamentos e as nossas melhores acções, as nossas maiores
alegrias e as nossas mais profundas mágoas usam o corpo como instrumento de
32
DAMÁSIO, António - O Erro de Descartes, p.100.
33 Ibidem, p.140.
22
aferição.”34 É o nosso próprio organismo e não uma realidade externa ou absoluta que
serve de base para as interpretações do mundo que nos rodeia e para a construção
permanente do sentido de subjectividade.
Ao estabelecer uma correlação entre a emoção e a razão Damásio reafirma a
interligação destas a partir do corpo. A novidade é o papel que as emoções têm quanto à
capacidade humana de decisão já que estas afectam o agir moral. Se a emoção não
existe, deixa de haver percepção e compreensão das consequências dos actos praticados
e impedida a possibilidade de se considerar e pesar as consequências dos actos. A
emoção interfere na razão e a razão na emoção. A separação abissal não faz sentido. A
relação é a de um compromisso que não se pode romper pois “o cérebro e o corpo
encontram-se indissociavelmente integrados por circuitos bioquímicos e neurais
reciprocamente dirigidos de um para o outro.” 35 Sem a regulação biológica que os
circuitos cerebrais permitem, o corpo não se salvaria, pois seria incapaz de descodificar
os sinais do meio e encontrar o seu equilíbrio, quer seja regulando o ritmo cardíaco,
quer respirando, saciando a fome, reproduzindo-se. Quando está em perigo, envia sinais
ao cérebro desencadeando-se uma resposta bioreguladora, adaptativa. Sem a regulação
biológica a sobrevivência individual e evolutiva cessaria.
Damásio apresentou uma visão integrada da pessoa que supera todos os dualismos
tradicionais, à excepção do dualismo cérebro/mente (que será abordado mais adiante), e
embora admitindo que em certos momentos as paixões e emoções perturbem a
capacidade de raciocínio conduzindo à indecisão, teve o mérito de chamar a atenção
para o facto de a ausência de emoções conduzir a comportamentos irracionais: “sob
certas circunstâncias, as emoções perturbam o raciocínio [...] devemos experienciar as
emoções e os sentimentos apenas em quantidades adequadas. Devemos ser razoáveis,
[...] não vou negar que as emoções não controladas e mal orientadas podem constituir
uma das principais origens do comportamento irracional”36e “muito embora acredite
que é necessário um mecanismo com base no corpo para ajudar a razão “fria”,
também é verdade que alguns destes sinais com base no corpo podem prejudicar a
qualidade do raciocínio.”37
Com isto queremos dizer que as emoções também devem ser reguladas. Se não
fossem, teríamos dificuldade em superar as nossas tragédias pessoais e dificuldade em
34
Ibidem, p.18.
Ibidem, p.103.
36
Ibidem, p.71.
37
Ibidem, p.203.
35
23
criar distanciamento face às tragédias dos outros. Ora, um envolvimento emocional
forte poderá cegar a própria razão e esta é boa conselheira. Apesar de tudo, os impulsos
biológicos e o mecanismo automatizado do marcador somático são essenciais para
alguns comportamentos racionais, em especial, nos domínios pessoal e social, embora,
em determinados casos, a ausência deste mecanismo possa até constituir uma vantagem.
A tese dualista pode ser hoje em dia denunciada como um erro pela neurologia.
Damásio apresenta-se como não-dualista, ou pelo menos defende que é preciso
ultrapassar o dualismo e fundamenta a sua posição baseando-se em casos de pacientes
neurológicos. Entretanto, o antidualismo não deve ficar apenas pela negação das
asserções cartesianas, é necessário ir mais longe, como veremos a seguir.
2.2. Emoção e Razão
Contra a perspectiva tradicional, de que existe uma área cerebral separada
para a razão, Damásio irá defender a tese de que “a emoção é uma componente integral
da maquinaria da razão”, 38 e que a afectividade e a racionalidade têm um suporte
biológico, orientando a sua investigação no sentido de provar que “a razão humana está
dependente não de um único centro cerebral mas de vários sistemas cerebrais que
funcionam de forma concertada ao longo de muitos níveis de organização neuronal”39
e que “todos estes aspectos, emoção, sentimento e regulação biológica, desempenham
um papel na razão humana”40.
A obra, O Erro de Descartes, prossegue na concretização desta tese mediante a
análise de casos, de que é exemplo a transformação psicológica de Phineas Gage. Até
metade do século XIX, tinha-se a evidência de que a linguagem, a percepção e as
funções motoras estavam vinculadas ao funcionamento de áreas específicas do cérebro.
A lesão sofrida por Gage veio mostrar que além disso as convenções sociais e as regras
éticas dependiam do bom estado de regiões do cérebro que aparentemente não deveriam
interferir na tomada de decisão. O mesmo se poderá dizer em relação à capacidade de
sentir empatia. Phineas Gage que sofreu uma lesão nas regiões pré-frontais dos dois
hemisférios cerebrais não possuía nenhum sinal de afasia. As principais sequelas
38
Ibidem, p.14.
Ibidem, p.15.
40
Ibidem, p.15.
39
24
haviam marcado o seu carácter e não o seu corpo; as lesões afectaram as suas
deliberações de carácter moral e não o seu raciocínio: “a seguir ao acidente, deixou de
demonstrar qualquer respeito pelas convenções sociais; os princípios éticos eram
constantemente violados; as decisões que tomava já não tinham em consideração os
seus interesses mais genuínos.”41
Phineas Gage não conseguia harmonizar o seu conteúdo cognitivo com acções e
projecções de acções futuras. O seu sistema de valores tinha-se desligado da realidade e
as decisões que tomava prejudicavam os seus interesses. A alteração da personalidade
devia-se a uma lesão circunscrita a um local específico. No caso de Gage, a região
ventromediana do lobo pré-frontal era a sua área especializada para o envolvimento
afectivo. Gage perdeu a capacidade de planear o futuro, pois os elementos emocionais e
sentimentais indispensáveis para a tomada de decisão foram-lhe retirados. Mas a
incapacidade de Gage em experimentar emoções não afectou apenas a sua capacidade
de tomar decisões. Ela afectou igualmente a sua capacidade de estabelecer relações
empáticas com as outras pessoas, e esta foi certamente uma das causas mais profundas
da sua desumanização e impossibilidade de ser curado.
Outro caso semelhante é o de EVR, um indivíduo com uma disfunção
neuropsicológica, consequência de uma lesão no córtex pré-frontal. Em tudo semelhante
a Gage, a sua maior dificuldade estava ligada à incapacidade de tomar decisões
faltando-lhe o sentido do que é socialmente apropriado. De acordo com Damásio nos
pacientes de “tipo EVR” “a ausência do indicador somático que acompanha a
projecção de resultados futuros aumenta as possibilidades de selecção de respostas que
conduzam a consequências negativas e reduz as possibilidades de responder de modo
vantajoso.42 É espantoso como um acidente numa qualquer região cerebral pode enviarnos para um mundo desconhecido, com regras diferentes, para a incomunicabilidade
total ou transformando-nos noutra personagem. Sem pré-aviso surge como bem viu José
Cardoso Pires, “Ele, o outro. O outro de mim 43 . Esse que se comporta como um
mero”[...] figurante gratuito que o destino acrescentou à paisagem.”44
Deve-se a Damásio a revelação de que os circuitos neuronais que estão na
base da percepção das emoções e dos sentimentos não se localizam apenas nas
41
DAMÁSIO, António - O Erro de Descartes, p. 30.
DAMÁSIO, António - “Compreender os Fundamentos das Convenções Sociais e da Ética, Dados
Neuronais”. In: Fundamentos Naturais da Ética. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 120.
43
PIRES, José Cardoso - De Profundis. Valsa Lenta. Lisboa: Publicações D. Quixote, 1997, p. 24.
44
Ibidem, p. 42.
42
25
estruturas do sistema límbico, como a amígdala, mas em certas partes do córtex préfrontal, e também, o que é mais importante, nas regiões do cérebro onde se projectam e
onde estão integrados os sinais que vêm do corpo. Estes circuitos dialogam com todo o
organismo pela secreção de hormonas e pelas vias nervosas em contacto com os órgãos.
Muitas das nossas decisões têm como base o indicador somático que funciona
como um dispositivo de assistência automatizada em vez da análise racional que conduz
muitas vezes à indecisão. A tomada de decisão em termos gerais e sociais tem como
finalidade a sobrevivência do organismo. Observar convenções sociais, comportar-se
segundo princípios éticos e tomar decisões vantajosas para a própria sobrevivência
requerem o conhecimento de normas e estratégias comportamentais e a integridade de
sistemas específicos do cérebro.
Comodamente, o juízo ético passou a ser localizado. No entanto, não se pode
falar de um centro moral no cérebro ou na mente, o que não invalida que o
comportamento ético dependa dos mecanismos de alguns sistemas cerebrais. Segundo
Damásio não nos devemos surpreender com a ideia de que as neurociências e as
ciências cognitivas possam revelar as bases neuronais da razão e do comportamento
social e as das convenções sociais e da ética. Os nossos juízos práticos e morais são
orientados por estados afectivos. A razão só age em coordenação com as nossas
emoções por isso a deliberação moral não é puramente racional nem exclusivamente
emocional ou sentimental. A dependência da razão relativamente ao cérebro não a torna
inferior. As ordens de nível inferior do nosso organismo fazem parte do mesmo circuito
que assegura o nível superior da razão. A corporeidade é importante para a compreensão
da moral humana, da cognição e da experiência. Este aspecto será desenvolvido com
base nos estudos de George Lakoff, Mark Jonhson e Francisco Varela, mais adiante, nas
obras, Filosofia na Carne e A mente Corpórea.
A socialidade, o agir livre e responsável dependem, em grande parte, do bom
funcionamento das estruturas do cérebro. Trata-se de uma concepção naturalista da
pessoa que perspectiva a raiz do comportamento ético e moral. A constatação de que
todos os homens possuem um cérebro com os mesmos princípios de funcionamento e
papel relevante no domínio da ética, levou alguns autores, como Jean Pierre Changeux a
sustentarem a possibilidade de uma mesma ética para todos . De qualquer modo cada
indivíduo avalia de forma particular os estímulos do meio, de acordo com a sua
educação e aculturação, gerando um sistema cognitivo e afectivo específico. A sua
decisão será sempre pessoal e particular, mas ela tem sempre lugar num contexto social
26
de relação com os outros, directa ou indirectamente, eles estão sempre presentes. Tanto
a perspectiva dualista de Descartes como o monismo materialista das neurociências
poderão levar-nos a uma perspectiva internalista do ser humano: tudo se passa no seu
cérebro, ou na sua alma, basicamente. É uma perspectiva antropológica empobrecida,
porque deixa de fora o mais importante da realidade pessoal, a relacionalidade que
constitui o ser humano como humano. A capacidade empática é menosprezada ou
secundarizada. Que implicações poderá ter uma tal perspectiva para a relação médicodoente? Essas implicações vão certamente no sentido de levar o médico a olhar o doente
de uma forma exterior na qual não crê necessário fazer qualquer investimento afectivo.
Voltaremos a este assunto mais adiante.
2.3. A Hipótese do marcador somático e a fisiologia das emoções
Defensor de um holismo cérebro-corpo-ambiente, Damásio demonstra a
existência de uma fisiologia das emoções. O sentir de uma emoção implica um
determinado sintoma do corpo. A hipótese do marcador somático atesta isso mesmo.
Com base no caso de Phineas Gage, e em outros mais específicos, Damásio constrói a
hipótese dos marcadores somáticos, áreas específicas do cérebro onde sentimentos e
emoções registam emoções primárias (medo, raiva, tristeza, alegria, surpresa,
expressões faciais, vocais, corporais) e secundárias ou sociais (vergonha, culpa, ciúme,
orgulho)45 responsáveis pela identificação da afeição dos indivíduos pelos objectos e
situações com as quais se defronta. Trata-se de uma sensação visceral que ajuda a
reduzir drasticamente o número de opções. Sem saber aquilo que lhe agrada ou
desagrada a pessoa não pode decidir qual a atitude correcta a ser tomada. O marcador
somático vem a ser o operar da nossa cognição que constrói representações do mundo e
as manipula. Raciocinar e decidir podem ser tarefas árduas quando estão em causa a
nossa vida pessoal e o contexto social imediato. Os instrumentos da racionalidade são
frágeis e os problemas sociais e pessoais são complexos e cheios de incertezas.
A construção de imagens no cérebro segue padrões pré-estabelecidos que são
responsáveis pelo direccionamento de determinadas sensações para determinados portos
neurais. Essas sensações localizadas em determinadas áreas do cérebro marcam estados
45
As emoções primárias são adquiridas ao longo da filogénese, são genéticas, não dependem da
aprendizagem e como tal estão presentes no recém nascido. A sua função está associada à protecção da
espécie dado que auxiliam as condutas de adaptação. As emoções secundárias ou sociais são adquiridas
ao longo do desenvolvimento humano e dependem da articulação com processos cognitivos.
27
no corpo que são usados para evocação das respectivas imagens. Trata-se de sinais que
aliam a base biológica à influência cultural, social e educacional e que nos permitem
escolher, tomar decisões, em termos de avaliação das consequências de uma acção,
positivo/negativo, agradável/desagradável, garantindo a sobrevivência e equilíbrio
homeostático do organismo. Funcionam como um sistema que usa sentimentos para
avaliar os resultados futuros e os possíveis cenários de determinadas decisões. Este
“sistema interno de preferências” procura garantir a sobrevivência do organismo, mas
necessita do contributo da cultura, socialização e educação para se desenvolver
adequadamente. De forma sucinta, trata-se de “um sistema de qualificação automática
de previsões”46 e “que nos permite escolher de um modo rápido e eficaz.”47 A finalidade
do raciocínio é a decisão. Os nossos cérebros decidem bem mas para isso concorre algo
mais do que a razão pura. O processo decisório tem muito de emocional. Decidir
implica que o decisor tenha conhecimento da situação e das diferentes opções de acção
e das consequências imediatas de cada uma delas no imediato ou futuramente. Mas,
nem todos os processos biológicos que culminam na selecção de uma resposta se
inserem no âmbito do raciocínio e da decisão. Em determinadas situações a resposta tem
de ser rápida e automática (por exemplo, quando desce o nível de glicémia no sangue ou
quando me desvio de um objecto para não chocar com ele). Para isso, os nossos
cérebros têm de decidir bem em segundos ou minutos. O marcador somático permitenos escolher uma alternativa dentro de um lote mais pequeno de alternativas. A análise
custo/benefício e o raciocínio dedutivo só têm lugar depois deste processo automático
reduzir drasticamente o número de opções. Pessoas com lesões pré-frontais tomam as
decisões como se as emoções pudessem ficar de fora.
46
47
DAMÁSIO, António - O Erro de Descartes, p. 186.
Ibidem, p. 187.
28
Capítulo 3: Extensões do erro de Descartes nas práticas médicas
3.1. Implicações do dualismo na relação terapêutica: extensão do erro de Descartes
“Toda a parte do corpo deve ser uma parte da pessoa, mas nem toda a parte da pessoa pode ser uma
parte do corpo; quer dizer, a pessoa deve ter certas partes mais do que as do seu corpo.”48
O erro de Descartes teve, na perspectiva de Damásio, algumas consequências
desastrosas. Essas consequências situa-as Damásio no campo da medicina e da biologia
rotulando Descartes como “símbolo de um conjunto de ideias acerca do corpo, do
cérebro e da mente que [...] continuam a influenciar as ciências e as humanidades do
mundo ocidental.”49
Damásio revela o falhanço da medicina em ultrapassar certas dicotomias
denunciando que a mente foi excluída da terapia e da investigação médica e biológica.
No que diz respeito à interacção mente-corpo, Damásio acredita que os estados mentais
positivos/negativos influenciam o estado de saúde/doença do corpo. Os novos factos por
ele apresentados e corroborados pelas ciências cognitivas em geral, colocam-nos num
quadro que faz cair por terra as proposições do dualismo substancialista de tipo
cartesiano e do puro racionalismo, autorizando-nos a perguntar se os estados mentais
constituídos por emoções, sentimentos e pensamentos podem potenciar, beneficiar e
manter um corpo saudável, ou pelo contrário, influenciar a susceptibilidade à doença. A
alegria, a esperança, a tranquilidade, o optimismo curam? O desespero e o pessimismo
podem levar à morte? Em Ao Encontro de Espinosa, o autor refere que “os estados de
alegria traduzem uma coordenação fisiológica óptima e um fluir desimpedido das
operações da vida. Conduzem não só à sobrevida, mas à sobrevida com bem-estar”50 ao
passo que os mapas relacionados com a mágoa “estão associados a estados de
desiquilíbrio funcional [...] e a mágoa não é corrigida seguem-se a doença e a morte.”51
A tristeza pode ser eficaz para nos ajudar a enfrentar uma perda pessoal mas se
permanecer por muito tempo o resultado será sempre nocivo. Tudo isto acontece no
interior da carne, “a perda de alguém que se ama profundamente, [...] leva a uma
48
LOWE, E. Jonathan – Filosofia de la mente. Barcelona: Idea Books, 2000, p.25.
DAMÁSIO, António - O Erro de Descartes, p.253.
50
DAMÁSIO, António - Ao Encontro de Espinosa. As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir. Lisboa:
Publicações Europa América, 2003, p.159.
51
Ibidem, p.160.
49
29
depressão do sistema imunológico a ponto de os indivíduos se tornarem mais atreitos a
infecções e, em consequência directa ou indirecta, mais susceptíveis de desenvolver
determinados tipos de cancro. Pode-se morrer de desgosto na realidade, tal como na
poesia.”52
Damásio tira consequências da tese central da unidade da natureza humana,
alertando-nos simultaneamente para uma renovação das práticas médicas e para a
valorização das medicinas alternativas, denunciando os pontos fracos da medicina
ocidental que sempre secundarizou a psicossomática e que continua a negligenciar um
tratamento da pessoa na sua individualidade psíquica e física. Professando o desejo de
uma medicina que não se ocupe só do corpo, alerta os seus colegas para uma
perspectiva global da natureza humana, holística, na qual mente e corpo, razão e
emoção, sejam igualmente valorizados. Descartes é o culpado de ter divulgado a ideia
de uma mente descorporalizada. Para Damásio a negligência cartesiana da mente além
de ser responsável pela orientação predominantemente fisiológica e patológica das
investigações médicas e biológicas no ocidente tem dominado também a prática clínica.
Como consequência têm-se negligenciado as consequências psicológicas das doenças
do corpo e os efeitos dos conflitos psicológicos no corpo, “a distinção entre doenças do
cérebro e da mente, entre problemas neurológicos e psicológicos ou psiquiátricos,
constitui uma herança cultural infeliz que penetra na sociedade e na medicina. Reflecte
uma ignorância básica da relação entre o cérebro e a mente. As doenças do cérebro
são vistas como tragédias que assolam as pessoas, as quais não podem ser culpadas
pelo seu estado, enquanto as doenças da mente, especialmente aquelas que afectam a
conduta e as emoções, são vistas como inconveniências sociais nas quais os doentes
têm muitas responsabilidades.”53 Como se pode ver, a distinção cérebro/mente terá um
impacto fundamental no modo como Damásio irá perspectivar a ética na medicina:
“precisamos de compreender a natureza destes seres humanos cujas acções podem ser
destrutivas tanto para si próprios como para os outros, caso pretendamos resolver
humanamente os problemas que eles colocam.” 54
A formação dada aos clínicos no Ocidente ignora a dimensão humana, a
perspectiva do organismo como um todo. Uma das consequências mais importantes da
52
DAMÁSIO, António - O Erro de Descartes, p. 136.
Ibidem, p. 60.
54
Ibidem, p. 38.
53
30
sua teoria, é que a unificação entre mente e corpo levará a uma medicina e talvez a um
modo de vida mais humanos. Damásio acredita que o conhecimento dos mecanismos
que nos levam a sentir e a emocionarmo-nos permitirá à ciência criar novos tratamentos
clínicos para a depressão, a dor e a toxicodependência. Ao lado das intervenções
psicológicas novas terapias revolucionarão a saúde mental e os métodos actuais correrão
o risco de parecerem arcaicos.
Se tivermos em conta que a vitalidade do organismo decorre do que acontece no
cérebro (actividades mentais, emocionais, biológicas), e as interferências entre mente e
corpo, descobrimos a cumplicidade entre pensamentos, emoções e saúde. Emoções
positivas como a alegria, a felicidade, bom humor, ajudam a preservar a saúde ou a
recuperá-la. As emoções negativas como o medo, a raiva, os estados depressivos,
tendem a comprometê-la. A angústia é dos casos em que a somatização provoca mais
doenças reais, físicas.
Os médicos, em geral, reconhecem que a atitude optimista de um doente face ao
seu quadro clínico resulta numa maior receptividade às propostas terapêuticas e na
evolução no sentido da cura. Uma atitude de pessimismo pode despoletar a fragilidade
do corpo. O pensamento com a sua carga emocional é um poderoso elemento de
equilíbrio ou desiquilíbrio do organismo. Existe, de facto, uma relação directa entre os
estados mentais e a saúde, “quando a emoção não se liberta, vai agarrar-se aos órgãos,
perturbando o seu funcionamento”.55
A medicina psicossomática defende que certos transtornos físicos são precipitados,
agravados ou prolongados por factores de ordem psicológica. Trata-se de casos em que
as perturbações ditas mentais encontram no corpo a linguagem electiva da sua
expressão. Muitas das perturbações de natureza psicológica aparecem objectivadas em
queixas corporais. O corpo funciona como uma espécie de mediador da mente. A
linguagem mental é uma linguagem corporizada. Muitas vezes fala-se do estado de
saúde como silêncio do corpo, dos órgãos, quando ele “grita” é porque não está bem,
“toda a dor tem o seu grito, só a saúde é muda.”56
É necessário saber, aprender a escutar e olhar o corpo, “quantas vezes a expressão
do rosto, um gesto, uma lágrima são mais eloquentes que mil palavras.”57 A tarefa do
médico deve consistir em descortinar o significado das metáforas que os doentes
55
SILVA, Marco Aurélio Dias - Quem ama não adoece. Cascais: Editora Pergaminho, 2000, p. 73.
ANTUNES, João Lobo - Um Modo de Ser. Braga: Círculo de Leitores, 2000, p. 90.
57
Ibidem, p. 85.
56
31
utilizam. O trabalho terapêutico é um trabalho de interpretação, uma verdadeira
hermenêutica que leva em linha de conta os dados neurológicos, emocionais e a
personalidade do paciente. Em Um Modo de Ser, João Lobo Antunes fala-nos do
fenómeno da dor humana nestes termos: “a dor-sofrimento é, para o médico, incómoda,
inoportuna, maçadora. Esta é também a manifestação de doença em que a
ambivalência da relação médico-doente mais se faz sentir. [...] Acresce ainda que a
queixa dolorosa está contida num espartilho semântico de que só dificilmente se solta.
Recorre assim o doente a uma paleta verbal que o espírito científico, objectivo, preciso,
teima em recusar: é a dor punhalada, como um fogo, ou um relâmpago. Como seria
mais fácil falar da dor grau III ou grau IV! E, contudo, as metáforas usadas para
descrever o sofrimento são de precioso valor semiológico para quem as saiba
interpretar”.58
O doente é muito mais do que um simples paciente, é uma pessoa com uma
história de vida. O médico deve “devolver” ao doente a capacidade de lutar pela vida. A
pessoa doente quer que o médico se preocupe com ela como pessoa e não como doente.
A relação terapêutica deve ser fonte de terapia. Há que passar de uma visão mecanicista
para outra de tipo personalista onde o próprio profissional de saúde se interpela sobre a
qualidade da sua relação com os doentes. Damásio parece ignorar a própria relação
interpessoal entre o médico e o doente. Embora ele manifeste empatia na relação com
os seus doentes, e que descreve nas suas obras, nada refere sobre a relação empática na
clínica. O conceito de empatia e suas implicações na clínica serão desenvolvidos no
capítulo final.
58
Ibidem, p.84.
32
3.2. Recuperar o dualismo, recuperar a Pessoa
“Quando um paciente ultrapassa o limiar do meu gabinete é uma pessoa que entra; quando sai é um
mistério.”
Marie Balmary
Para muitos pensadores das neurociências a influência do pensamento cartesiano
imprimiu à medicina uma tendência para priorizar a investigação do corpo e suas
funções. Com o avanço do espírito científico, a sistematização do conhecimento médico
recorreu a métodos cada vez mais rigorosos, mensuráveis e objectivos. Nesta vaga
materialista, a única dimensão significativa do homem, o papel do médico seria
semelhante ao de um mecânico que conserta uma máquina. Esta percepção restringe o
pensamento e a mente à actividade neuronal do cérebro, ainda, portanto, dentro da
matéria. Muitos médicos actuam com base nesta visão única, linear e unidimensional do
ser humano, limitando a sua acção ao campo puramente material. Utilizam recursos
capazes de promover uma maior longevidade do corpo ou do órgão doente, e nada mais.
Uma vez extinto o corpo, ou seus órgãos e funções, extingue-se o ser humano.
Há um axioma que continua a influenciar as práticas médicas: a crença de que o
corpo é composto de matéria, a doença é causada por alguma forma de matéria (genes,
bactérias, vírus), e a melhor opção de tratamento baseia-se na aplicação de matéria
(medicamentos) ou remoção de matéria (tumores, órgãos), com excepção para a prática
psicanalítica que privilegia a palavra. O corpo é compreendido em temos mecanicistas,
como um sistema de órgãos e partes, alguns dos quais podem ser consertados,
removidos ou suplantados. Posso ver-me livre de um apêndice inflamado, posso ser
objecto de transplante ou ver acrescentada uma prótese. Em suma, ataca-se matéria com
matéria. Os efeitos secundários são muitas vezes ignorados. Este reducionismo
materialista intensifica-se mais com o projecto do genoma humano que reflecte a crença
de que a estrutura do ADN nos diz a predisposição para as doenças, esquecendo que há
doenças multifactoriais com origem provável no estilo de vida e nos factores
ambientais. Uma coisa é estudar uma molécula in vitro, outra é introduzi-la no
organismo. O materialismo mostra-se inadequado para compreender o ser humano,
apenas poderá fornecer explicações sobre o seu funcionamento.
Torna-se necessária a adopção de uma abordagem psicossomática das doenças,
onde tanto a imagem do corpo como a das funções fisiológicas e a do mundo subjectivo,
sejam consideradas como aspectos complementares da mesma realidade, organizando-
33
se num todo ou continuum psicofísico, inteiramente indissociável das experiências e
vivências do paciente. Manifestações de tipo ansioso e depressivo constituem muitas
vezes quadros clínicos autónomos e, outras vezes, o pano de fundo de toda uma outra
sintomatologia. Considerar as doenças sem um envolvimento psicológico seria reforçar
o dualismo corpo-mente, que alguma medicina tenta ultrapassar.
A imagem do ser humano tem sido profundamente alterada pelos progressos da
medicina. Esta “metamorfose do corpo”, esta “expulsão da alma”, mostra-se nos
avanços biotecnológicos. No exercício da medicina os médicos enfatizam a doença (a
parte) em detrimento do paciente (o todo), e para ela direccionam diagnósticos e
terapêuticas. Enquanto procuram conhecer a doença em seus mais íntimos mecanismos
e detalhes, não se dão conta de que, por detrás do órgão doente, existe um ser de
altíssima complexidade, possuidor de emoções, sentimentos e uma mente, a qual está
em sintonia constante com o meio, por ser parte do mesmo. Em suma, os médicos
tornaram-se técnicos que cuidam do ser humano, mas não se detêm no ser em si, ou
fazem-no de modo insuficiente, não levando em conta que a doença representa apenas
uma manifestação exteriorizada de problemas interiores do ser. Ênfase na parte,
negligência no todo.
Acresce ainda a “ideologia das especialidades” que tornam problemática a
adopção de um estilo na relação médico-paciente que permita uma aliança terapêutica
entre os dois sujeitos presentes na consulta, “a qualidade do diálogo que se estabelece
entre o médico e o doente não é somente uma das condições da optimização da terapia,
é também um lugar, entre outros, em que se joga o nosso acesso à humanidade plena e
inteira.” 59 No universo das especialidades, dificilmente a relação médico-paciente,
essência da prática médica, encontra espaço. Caminha-se fatalmente para uma
despersonalização da medicina e do doente. A eficácia terapêutica aumenta, mas pagase um alto imposto em detrimento da unidade do paciente. Queiramos ou não, o
paciente é uma unidade real, alguém que está doente e se sente todo enfermo e não
apenas uma parte. Há que dosear a especialização conservando a visão de conjunto
contra uma mentalidade especializada, de perspectiva estreita, sem raciocínio clínico,
que exclui a pessoa do paciente da própria patologia que se pretende tratar. Não
esquecer que, identificado o mal, permanece o doente que não se confunde com a sua
doença.
59
LAGRÉE, Jacqueline – O Médico, o Doente e o Filósofo. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2002, p. 76.
34
A gestão da relação médico-paciente, que se inscreve tanto no campo da
subjectividade quanto no campo da objectividade científica, não é fácil. Actualmente a
medicina parece muito mais preocupada em vencer a doença do que cuidar de um ser
humano. É o que acontece com pacientes em fase terminal provocada por doenças
oncológicas ou neurodegenerativas.
Então, como exercer adequadamente a medicina humana se não se conhece a
pessoa na sua totalidade? Dizem que os médicos modernos estão mais preparados para
ouvir, sentir e perceber melhor os órgãos; ao contrário, os médicos antigos percebiam
melhor as pessoas. A tecnologia moderna investiga a doença, mas é fria, impessoal,
insensível e incapaz de adentrar na alma do paciente. O paciente não aguarda apenas o
último avanço tecnológico na condução do seu caso, mas espera encontrar um técnico
competente que seja também capaz de ouvir. Do técnico espera soluções, ao ouvinte
revela seus problemas íntimos, e dele espera solidariedade e compreensão. A máquina
nunca substituirá o médico nesta função que é essencialmente humana. O médico
“prescreve-se” a si próprio pela segurança que transmite e pela empatia que cria com o
paciente. Mas há que salvaguardar distâncias, “em matéria de empatia e de respeito da
alteridade, a experiência clínica sugere que é bom saber quando é preciso guardar
distâncias, casos há em que pode ser inconveniente personalizar os dilemas do juízo
moral: o que se ganha em experiência vivida, perde-se em objectividade e isenção.”60
Podemos dizer que um médico que aceite a dimensão bidimensional do ser
humano como corpo e alma, está, em geral, mais atento aos conflitos de ordem psíquica,
à abordagem psicossomática da doença. Há que exigir uma visão holista do ser humano
que sirva de base a uma nova racionalidade, que considere o homem em sua íntima
conexão com o seu exterior e interior, enfatizando o físico, mas intimamente
relacionado com a dimensão espiritual.
A doença é fruto de vários factores que podem actuar como causa directa ou
modificadores da mesma. Assim, a personalidade do paciente, o âmbito familiar, a
cultura, o meio social levam a que a mesma doença se exprima de modo diferente em
cada paciente. Não existem doenças, existem doentes. A doença acontece sempre em
alguém, num indivíduo concreto, e por isso reveste-se de individualidade, das
peculiaridades desse ser humano, com suas características próprias de personalidade,
60
MARQUES, Manuel Silvério – O espelho declinado. Natureza e Legitimação do Acto Médico. Lisboa:
Edições Colibri, 1999, p.193.
35
familiares e sociais. A boa prática médica exige que se entenda o paciente para explicar
a doença.
O ser humano não é um sujeito cerebral, neuronal, abstraído do próprio corpo e
do ambiente físico, sócio-cultural, histórico. Alguns autores das ciências cognitivas
tratam-no como se o fosse, transformando antigas substâncias em circuitos neuronais.
Tratam o paciente apenas como ser biológico, desviam o olhar da pessoa doente que
está à sua frente para os exames complementares de diagnóstico, tratam o corpo em
termos de funções e localizações, esquecendo a sua dimensão relacional, e mesmo a
dimensão espiritual e religiosa. Esta visão cada vez mais difusa nas neurociências e nas
práticas médicas acarreta consequências reducionistas para a compreensão do ser
humano.
O paciente é alguém que tem um nome, uma história, uma vivência singular da
doença. A doença prolongada, põe em causa a relação consigo próprio, com as pessoas
que lhe são próximas e com o mundo. Onde está, afinal, o sucesso da tecnologia? Se
todo o excesso coloca a questão dos limites, qual o sentido actual do sofrimento, da vida
e da morte? O que é que o anti-dualismo nos oferece?
O progresso técnico,
extraordinária conquista científica, não acompanha o progresso psicológico, o
sofrimento humano continua a existir. António Damásio considera que a incapacidade
da medicina em considerar o ser humano como um todo aumentará à medida em que se
aprofunda a crise espiritual da sociedade ocidental e alerta para o desconhecimento dos
efeitos biológicos das drogas a longo prazo. A medicina não curará sozinha uma cultura
doente. Actualmente pede-se muito à medicina. Pede-se-lhe que resolva problemas que
não são da sua competência: problemas existenciais, afectivos, relacionais, problemas
que derivam mais da arte de viver do que da medicina propriamente dita. A consulta
médica transforma-se muitas vezes em espaço de aconselhamento. Pede-se ao médico
que resolva tudo, que seja um profissional das perturbações resultantes de um mal-estar
na vida. Medicaliza-se a tristeza, a angústia e a solidão, a falta de vontade, em suma,
qualquer tipo de desconforto. O abandono, por parte dos seres humanos, da dimensão
religiosa e espiritual, em detrimento do sucesso material, tem aumentado o sofrimento
humano. O sofrimento é próprio do ser humano, é cortical, mas há que distinguir entre o
sofrimento que nos escolhe e o que se procura.
Afinal, onde está o mistério do homem? Em que perigos podemos incorrer se
descartamos o dualismo? Segundo a concepção mais tradicional, a pessoa define-se
como uma substância, um ser que subsiste por si. Ser substância não lhe confere
36
nenhuma dignidade, mas o homem não é uma substância qualquer, é uma substância
racional, dotada de alma imortal, o que confere à pessoa humana o seu carácter quase
sagrado. Deve-se então considerar a pessoa não como entidade fixa, mas como uma
construção a partir de uma rede de relações humanas e sociais. O próprio corpo não é
somente uma materialidade, é carne sentida a partir do interior e que ninguém
percepciona nem conhece como o próprio. O médico pode conhecer bem o corpo que
examina mas não conhece a carne. O corpo, aquele que resiste ou falha na fadiga e na
doença, é aquilo a partir do qual se explora e organiza o mundo.
Capítulo 4: A neurobiologia da Consciência
4.1. A consciência e o sentido de si - sentir é dizer estou presente
“A consciência, é com efeito, a chave para uma vida examinada, para o melhor e para o pior; é a
certidão que nos permite tudo conhecer sobre a fome, a sede, o sexo, as lágrimas, o riso, os murros e os
pontapés, o fluxo de imagens a que chamamos pensamento, os sentimentos, as palavras, as histórias, as
crenças, a música e a poesia, a felicidade e o êxtase. A consciência, no seu plano mais simples e básico,
permite-nos reconhecer o impulso irresistível para conservar a vida e desenvolver um interesse por si
mesmo. A consciência, no seu plano mais complexo e elaborado, ajuda-nos a desenvolver um interesse
por outros si mesmos e a cultivar a arte de viver”.61
A consciência é um fenómeno biológico que surge nos seres vivos com um certo
grau de complexidade. Em O Sentimento de Si, Damásio apresenta um desenvolvimento
pormenorizado desta ideia. As suas especulações são eminentemente científicas,
estando ancoradas em dados experimentais, susceptíveis de serem empiricamente
testadas. Para Damásio, “tal como a emoção, a consciência se destina à
sobrevivência.” 62 A consciência nasce da necessidade de optimizar o processo de
regulação interna face ao meio ambiente, que é inconstante, possibilitando a criação de
respostas originais, não automatizadas e não previstas no projecto básico do organismo.
O tema da mente, e da consciência em particular, permitem ao ser humano
compreender e maravilhar-se com a sua natureza. Como é que conhecemos que
conhecemos? Como é que temos acesso a estados pessoais, sentimentos, emoções, dor?
São interrogações como estas que levam Damásio a embater no si, pois só o sentido do
si poderá fazer com que o sentimento da emoção se torne conhecido pelo organismo que
a experimenta. A importância que Damásio atribui a este “obstáculo” permite-lhe
61
62
DAMÁSIO, António - O Sentimento de Si, p. 24.
Ibidem, p.58.
37
compreender os alicerces neurais do si e da consciência em geral. As emoções não
podem ser conhecidas pelo indivíduo que as possui antes de haver consciência.
Sabemos que temos uma emoção quando se cria nas nossas mentes o sentido de um si
que sente: “para que um organismo saiba que tem um sentimento, é necessário
acrescentar o processo da consciência aos processos da emoção e do sentimento.”63
Como compreender o ser humano apenas em termos de automatismos? É
interessante pensar a base do si e da consciência na sua relação com o corpo. No
entanto, o verdadeiro problema da consciência não fica apenas confinado ao si mas ao
modo como formamos o filme-no-cérebro, ao modo como o cérebro constrói padrões
neurais e os transforma em padrões mentais ou imagens, o nível mais elevado do
fenómeno biológico e o mais intangível. Consiste em compreender como em paralelo
com a produção de padrões mentais, o cérebro produz o sentido do si no acto de
conhecer. Estes dois problemas estão intimamente relacionados já que o aparecimento
do espectador do filme ocorre dentro do próprio filme. Não existe um espectador
externo. Separá-los é a maneira de investigar a consciência.
Para sermos capazes de conhecer, de sentir que existimos, que estamos vivos e
temos uma mente, sabendo que essa mente é nossa, é necessário fazer uma
representação do organismo, através da representação do corpo no cérebro. É o que
acontece ao meu sistema visual quando estou a ler um livro e me volto para falar com
alguém que me chamou, ou seja, numa sucessão rápida as mesmas regiões do cérebro
construíram mapas diferentes de acordo com as disposições motoras do organismo e as
informações sensoriais. Se por um lado partes do cérebro podem vaguear pelo mundo,
por outro têm de representar, cartografar o próprio estado do organismo, não têm
liberdade para transpor a fronteira. A individualidade singular de cada ser depende da
fronteira e da manutenção dos estados internos dentro dessa mesma fronteira. A
fronteira separa mas também une o que está dentro e o que está fora. Só assim se
consegue a manutenção da vida.
A dualidade cartesiana entre corpo e mente deixa de fazer sentido se pensarmos
no processo racional como justaposição de mapas de estados do corpo que se organizam
coerentemente. A explicação cartesiana é insuficiente na medida em que não explica de
forma satisfatória o processo do conhecimento. Não pode haver conhecimento sem o
63
Ibidem, p.104.
38
sentido de um si que sente e esta interligação verifica-se a nível biológico utilizando
sinais químicos e eléctricos. A máxima cartesiana “penso, logo existo” olvidou a
biologia. É aqui que o drama cartesiano se intensifica.
Só sabemos que sentimos uma emoção quando esta é representada como estando
a acontecer no nosso organismo o que consiste em ter imagens provenientes de padrões
neurais que representam as modificações do estado do corpo e do cérebro e cuja
finalidade é manter o organismo em posição de sobrevida e bem-estar. Os padrões
neurais são o alicerce das imagens ou padrões mentais, “dispositivos sinalizadores
localizados em todas as estruturas do nosso corpo - na pele, nos músculos, na retina
[...] que cartografam a interacção do organismo com o objecto.” 64 Estes padrões
resultam de convenções do cérebro e baseiam-se na selecção momentânea dos
neurónios e circuitos utilizados na interacção organismo-objecto. Estas representações
são acessíveis apenas na perspectiva da terceira pessoa graças aos actuais métodos de
neuroimagem. 65 Não sentimos os padrões neurais assim como não sentimos outros
orgãos do corpo.
O sentido de acontecer no organismo, provém da representação do proto-si,
padrões neurais de primeira ordem, e das suas modificações nas estruturas de segunda
ordem necessárias à consciência nuclear. O proto-si é a base biológica do si, é o
"conjunto coerente de padrões neurais que cartografa, a cada instante, o estado da
estrutura física do organismo nas suas numerosas dimensões".66 É o precursor nãoconsciente dos níveis do si que surgem na nossa mente como os protagonistas da
consciência: o si nuclear e o si autobiográfico. É a partir destas informações que a
consciência surge, uma consciência remota, que funciona como uma espécie de radar
que dá conta das transformações do corpo em contacto com o exterior – a consciência
nuclear.
A consciência não é monolítica já que coexistem no nosso aparelho construtor
do si e do mundo diversificados tipos de consciência e seus sis e têm precedentes
biológicos identificáveis. Há duas formas de consciência. A mais simples é a
consciência nuclear que fornece ao organismo um sentido do si num momento e num
lugar mas não interpreta nada, “o conhecimento de nós próprios é uma oferta generosa.
64
Ibidem, p.365.
Os métodos de neuroimagem mais comuns são a (TAC) tomografia axial computorizada, a (RMN)
ressonância magnética nuclear/funcional e a (PET) tomografia por emissão de positrões. Actualmente,
com observação instrumental apropriada podemos saber se uma pessoa realiza ou não uma imagem
mental, mas nunca teremos acesso ao conteúdo subjectivo do seu pensamento. Futuramente será possível?
66
DAMÁSIO, António - O Sentimento de Si, p. 184.
65
39
É de graça.”67 A consciência nuclear “constitui ela própria o conhecimento, directo e
sem qualquer verniz inferencial, do nosso organismo individual no acto de
conhecer”,68é o sentimento fugaz da relação causal entre um objecto e a modificação do
organismo por esse objecto. 69 A consciência alargada é mais complexa e fornece ao
organismo um elaborado sentido do si estando intimamente ligada ao si autobiográfico.
O si nuclear emerge da consciência nuclear e é uma entidade transitória recriada
incessantemente, é profundamente biológico. O si autobiográfico “baseia-se em
arquivos permanentes mas disposicionais das experiências do si nuclear”, 70 não é
transitório uma vez que o memorial autobiográfico contém o substracto da identidade e
da pessoalidade.
O nosso sentido do si, é um estado do organismo, mas é também
uma
construção, dado que actualiza a memória autobiográfica e regista as interacções do
organismo com o meio. O si autobiográfico actualiza os arquivos necessários
contribuindo para a montagem do filme da nossa vida sem o qual não existiria a
continuidade histórica de cada pessoa. Em Ao Encontro de Espinosa esta ideia é
confirmada.
Evidentemente, o ser humano não se reduz apenas à biologia. Há uma
combinação natureza-ambiente. A mente humana está muito longe de ser um
mecanismo de relógio. O nosso genoma pode estabelecer todas as ligações corpocérebro indispensáveis, construir todos os circuitos neurais, mas o ambiente tem um
papel regulador no desenvolvimento e maturação da parte biológica. A consciência
também não é tudo. É um ingrediente indispensável da mente humana, mas não
constitui a globalidade da mente humana, “a consciência é o nascer do sol, não é o sol
do meio-dia, e muito menos o pôr-do-sol.” 71 Solucionar o mistério neuronal da
consciência não explica os mistérios da mente.
A mente humana é a mais bem sucedida estratégia de sobrevivência forjada pela
67
Ibidem, p. 224.
Ibidem, p.152.
69
Há um diferimento temporal que separa a realidade da primeira representação correspondente que
emerge na consciência nuclear. Damásio explica: "Os neurónios são activados e disparam em apenas
alguns milionésimos de segundo, enquanto que os acontecimentos de que temos consciência na nossa
mente ocorrem na ordem de dezenas, centenas e milhares de milésimos de segundo.” Esse atraso é
verificado na antecâmara: "Na altura em que a consciência nos é entregue para um determinado objecto,
os respectivos mecanismos do nosso cérebro têm estado a trabalhar há uma eternidade na perspectiva
temporal de uma molécula - se as moléculas pensassem, claro. Estamos sempre atrasados para a
consciência, mas como todos nós sofremos do mesmo atraso, ninguém repara." A consciência parece
viver no passado. DAMÁSIO, António - O Sentimento de Si, p. 154.
70
Ibidem, p. 207.
71
Ibidem, p. 48.
68
40
natureza. No entanto, o ser humano aspira a algo mais do que a sobrevivência pura. E
neste ponto, a abordagem de Damásio merece uma crítica por ser demasiado
biologizante, embora considere que ser humano é possuir a “faculdade de se elevar
acima dos ditames da vantagem e desvantagem impostos pela necessidade de
sobreviver.” Segundo Agostinho Ribeiro “as pessoas têm, hoje, de lutar
simultaneamente por múltiplas sobrevivências” 72 e não apenas pela sobrevivência
biológica porque “uma característica distintiva do ser humano [...] precisamente a
capacidade que ele tem [...] de projectar o desejo para além da necessidade.73 Este
desejo, não tem como finalidade preencher uma necessidade ou uma falta com vista à
reposição do equilíbrio interno, mas é um desejo que nos projecta para o outro, para a
(con)vivência.
4.2. Os sinais valem mais do que palavras – os relatos do corpo
A consciência surge quando conhecemos e só podemos conhecer quando um
objecto modifica o estado do corpo usando um vocabulário não verbal – os sinais do
corpo. O cérebro é um exemplar contador de histórias, constrói mapas não linguísticos e
a sua escrita é não visível. A consciência inicia-se com o contar de uma história sem
palavras que tem como título: os sinais do corpo, e como principais actores, o
organismo e o objecto. As operações comunicacionais desenrolam-se a vários níveis:
organismo/objecto/proto-si (relato de primeira ordem); si nuclear/imagens do protosi/objecto (relato de segunda ordem); filme-no-cérebro, que pressupõe o si alargado ou
autobiográfico, e dados da consciência nuclear. Na rede de relatos com que concebe o
diálogo dentro dos vários níveis da consciência e seus sis, ou seja, da antecâmara que
designa por proto-si à consciência nuclear e desta ao topo da consciência alargada,
Damásio conclui que “contar histórias precede a linguagem, uma vez que é afinal, uma
condição para a linguagem e que pode ocorrer não apenas no córtex cerebral, mas
noutros locais do cérebro, quer no hemisfério direito, quer no esquerdo.”74
A linguagem dos linguistas constitui um relato de terceira ordem e não é
necessária para definir os níveis da consciência. Já os relatos de segunda ordem marcam
o despontar da consciência nuclear. Este é um relato não verbal que reflecte o
72
RIBEIRO, Agostinho – O Corpo Que Somos. Aparência, sensualidade, comunicação. Lisboa: Editorial
Notícias, 2003, p.172.
73
Ibidem, p.195.
74
DAMÁSIO, António - O Sentimento de Si, p. 221.
41
“organismo surpreendido no acto de representar”75 e inclui as modificações do proto-si
sendo gerado por diversas estruturas cerebrais. Os relatos de terceira ordem têm
capacidade de natureza verbal e os relatos de segunda ordem podem ser convertidos
pelos humanos em linguagem. Segundo Damásio toda a tradição baseada na filosofia da
consciência e que sublinha o importante papel da intencionalidade, não passa de uma
consequência desta verificação simples, a tendência natural do cérebro para contar
histórias que ocorre sempre da forma mais espontânea possível.
4. 3. A maquinaria das emoções e sentimentos
Em O Erro de Descartes, Damásio investiga o papel regulador da emoção na
racionalidade e na tomada de decisão. Em O Sentimento de Si, aborda o problema da
consciência e da construção do self – outra função das emoções e sentimentos. Ao
explicar a intrincada unidade entre mente e corpo afirma: “parece que a natureza criou
o instrumento da racionalidade não apenas por cima do instrumento da regularização
biológica, mas também a partir dele e com ele.”76 Para explicar esta ligação íntima,
redefine os conceitos de emoção e sentimento ressaltando relações fundamentais, sendo
a emoção definida como um conjunto de reacções corporais ligadas de maneira inata ou
aprendida a certas percepções e reacções do sistema nervoso central, e sentimento
definido como a maneira que o cérebro dispõe de gerar “emoções artificiais”, isto é,
mesmo na ausência dos estímulos normalmente associados a elas. Os sentimentos são o
espelho das modificações da paisagem corporal, a pedra angular da nossa vida mental
pois ligam a mente ao mundo – sentir o corpo permite sentir o mundo. Mais, os
sentimentos permitem-nos resolver problemas cuja solução não está ao alcance das
emoções.
É através dos sentimentos que são privados do organismo em cujo cérebro
ocorrem, escondidos dos outros menos daqueles que os sentem, que as emoções,
públicas, visíveis para terceiros, iniciam o seu impacto na mente. Mas, para que os
sentimentos se tornem conhecidos daquele que os experimenta, é necessária a
consciência e o advento do sentido de si para que os sinais que constituem o sentimento
de uma emoção se tornem conhecidos pelo organismo que experimenta a emoção: “a
75
76
Ibidem, p. 202.
DAMÁSIO, António - O Erro de Descartes, p. 143.
42
consciência tem de estar presente para que os sentimentos possam influenciar o sujeito
que os tem, para além do aqui e agora imediato.”77
Os sentimentos são as raízes da consciência, são imagens somatossensoriais que
assinalam predominantemente aspectos do estado do corpo. Em O Erro de Descartes,
Damásio tinha conseguido compreender como as diversas emoções eram induzidas no
cérebro e desempenhadas no teatro do corpo. Tinha conseguido imaginar que tanto a
indução das emoções, como as consequentes modificações corporais que formam um
estado emocional, eram assinaladas em diversas estruturas cerebrais constituindo, deste
modo, o substracto do sentir de uma emoção. As diversas emoções (primárias ou
universais, secundárias ou sociais e emoções de fundo) são produzidas por diferentes
sistemas cerebrais e têm uma função biológica, “fazem parte dos dispositivos bioreguladores com os quais nascemos preparados para sobreviver.” 78 Uma vez que
temos capacidade para reflectir e planear, temos de regular a emoção através da razão.
4.4. Como o corpo cria a mente
“Nada é mais familiar do que a mente, mas o peregrino em busca das fontes e dos mecanismos por trás
79
dela embarca numa viagem por uma terra estranha e exótica .”
O corpo tal como é representado no cérebro constitui o quadro de referência
indispensável para os processos neurais que experienciamos como sendo a mente. A
mente existe dentro de um organismo integrado e para ele, não é segregada pelos
neurónios. Os fenómenos mentais só podem ser cabalmente compreendidos no contexto
de um organismo em interacção com o ambiente que o rodeia e o facto de o ambiente
ser em parte produto da actividade do organismo, coloca mais em destaque as
interacções que devemos ter em conta.
Os fenómenos mentais são aparentemente muito diferentes dos fenómenos físicos,
químicos, biológicos. O chamado problema mente-corpo procura precisamente resolver
a questão de saber qual é exactamente a relação entre estes dois tipos de fenómenos. Por
exemplo, no caso da dor física, o aspecto mental dessa dor é o facto de ser algo que eu
sinto. Os fenómenos físicos, químicos, neurológicos, que ocorrem no cérebro são
77
DAMÁSIO, António - O Sentimento de Si, p. 57.
Ibidem, p.74.
79
DAMÁSIO, António – “Como o Cérebro Cria a Mente”. In: Scientific American, nº4 (Ed. Esp. Brasil),
2004, p.6.
78
43
susceptíveis de serem observados com instrumentos apropriados, na perspectiva da
terceira pessoa. A experiência consciente, subjectiva, tem base neural, mas a dor é algo
que só eu posso realmente sentir, é um estado subjectivo.
O problema da filosofia da mente é compreender como os padrões neurais se
tornam em imagens. Só temos acesso aos padrões mentais ou imagens na perspectiva da
primeira pessoa (desde que sejam conscientes) e aos padrões neurais na perspectiva da
terceira pessoa, “a consciência é um fenómeno inteiramente privado e na primeira
pessoa que ocorre no interior de um outro processo privado e na primeira pessoa, a
que chamamos mente. Porém, a consciência e a mente estão intimamente relacionadas
com comportamentos externos que podem ser observados por terceiras pessoas.”80 Se a
perspectiva da primeira pessoa parece ser intrínseca aos fenómenos mentais, a
perspectiva da terceira pessoa parece ser insuficiente para os compreender.
Para Damásio “elucidar a base neurológica da mente consciente – versão do
clássico problema corpo e alma – tornou-se quase um desafio residual.” 81 Os que
buscam as bases biológicas para a mente consciente confrontam-se com o problema de
saber qual a perspectiva a ser adoptada. É que, corpo e cérebro são públicos e
objectivos, ao passo que a mente é oculta e subjectiva. A mente só é observada pelo seu
proprietário e o corpo e o cérebro podem ser observados por terceiros. Este conflito
entre observador-observado resulta do facto da investigação usar o próprio instrumento
que está a ser investigado.
O surgimento do abismo entre estados mentais e fenómenos físico-biológicos
resulta da disparidade entre a compreensão da mente conquistada após séculos de
introspecção e a explicação das neurociências. O sentido de eu é criado no acto de
conhecer e isso forma a base da perspectiva da primeira pessoa. O sentido de eu surge
dentro do filme sendo a auto-percepção uma parte do filme. Surge como um tipo
especial de sentimento – o sentimento do que acontece num organismo apanhado no
acto de interagir com um objecto. Do ponto de vista da neurobiologia a resolução deste
problema consiste em saber como o cérebro constrói padrões neurais nos seus circuitos
de células nervosas e consegue transformá-los em padrões mentais explícitos. Apesar do
optimismo de Damásio, e de toda a investigação realizada, o cérebro continua a manter
oculta a mente mas, qualquer que seja a resposta, “a mente sobreviverá à explicação,
80
81
Ibidem, p.32.
Ibidem, p. 6.
44
assim como o perfume da rosa, apesar de deduzida sua estrutura molecular, continua a
ter um doce aroma.”82
A separação mente/cérebro, mental/neural, é mantida por Damásio por uma
questão de “higiene mental”, não querendo isto dizer que haja duas substâncias
separadas, uma mental e outra biológica. Os mapas, padrões relacionados com os
objectos, constituem um produto do design interno do cérebro, são construções, “o
objecto é real, as interacções são reais e as imagens também o são”, 83 mas a mente não
é o espelho da natureza. Construímos uma imagem da realidade e não a imagem. As
imagens criadas não são cópia da realidade que em termos absolutos nunca chegaremos
a conhecer.
Em O Homem Neuronal, Jean Pierre Changeux explica a formação de imagens
mentais, a sua materialidade e o modo como se correlacionam para criar mapas. 84
Damásio procura desvendar como o cérebro cria a mente, e apesar de não haver
certezas, confessa que “o moral das tropas é elevado”. Não há uma resposta única para
este enigma cérebro/mente, mas várias. Há uma variável que escapa aos limites da
neurobiologia – o contexto social e cultural, o ambiente. Outra questão prende-se com a
forma como as imagens emergem dos padrões neurais, resposta que a neurobiologia
ainda não deu. No entanto, Damásio mostra-se muito optimista e, em simultâneo,
considera que a própria ciência contempla um espaço para o mistério: “talvez a
complexidade da mente humana seja tal que a solução para o problema nunca possa
vir a ser conhecida devido às nossas limitações intrínsecas. Talvez nem sequer
devêssemos considerar que existe um problema e devêssemos, em vez disso, falar de
mistério, estabelecendo uma distinção entre as questões que podem ser adequadamente
abordadas pela ciência, e as questões que provavelmente nos iludirão sempre.”85 No
entanto, por oposição aos “misterianos,” Damásio acredita que é uma questão de tempo.
82
Ibidem, p.11.
Damásio, António - O Sentimento de Si, p. 366.
84
Como as imagens mentais também se movimentam, nascem-nos “filmezinhos” na cabeça. Talvez o
cinema seja a arte que nos dá uma ideia de como o cérebro humano trata a realidade apreendida pelos
sentidos. As imagens, fugazes, feitas de sombras e luz, mas suficientemente nítidas para terem formas,
volume, cores, movimento, mesmo que impressas em películas e, por isso, com um suporte físico, são
intangíveis. Vivem apenas na percepção visual. As imagens filmicas parecem assemelhar-se às mentais,
só que estas são não perceptivas. Talvez a sétima arte encerre num artefacto a mais íntima intimidade do
nosso funcionamento neural.
85
DAMÁSIO, António - O Erro de Descartes, p. 20.
83
45
4.5. Um ponto de equilíbrio...
“Que, apesar dos quatro séculos cientificamente brilhantes que nos separam de Descartes, tudo isto
esteja, hoje em dia, longe de ser uma questão decidida só mostra que, no “erro” de Descartes, há um
problema que continua ainda a ser para nós profundamente enigmático. Tal é a verdade do erro de
86
Descartes.”
Tradicionais hábitos paradigmáticos de origem cartesiana continuam a dominar
o panorama geral da corporeidade. Há um modo usual de pensar, uma tendência para
tratar a mente como proprietária do corpo, “piloto do navio”. Esta herança cartesiana
tem ultrapassado o pensamento académico para se fixar no quotidiano. Quantas vezes
proferimos ou ouvimos dizer: “Os atletas estão preparados física e psicologicamente”,
ou “Não há nada de mal com o teu corpo, está tudo na tua cabeça”, sentença muitas
vezes aplicada aos hipocondríacos, bulímicos, anorécticos ou pessoas com estados
depressivos.
Relativamente ao dualismo, devemos assumir como ponto de partida para uma
reflexão sobre Descartes e Damásio a ideia de que não há uma dualidade instaurada. Em
simultâneo, devemos procurar saber como funciona o ser humano integrado. Descartes
não sente o pensamento como existência. Sente-se como pensamento e daí é que deduz
a existência. Assim, o pensar pode ser alargado ao próprio sentir. Este sentir pensável
pode identificar-se com o que Damásio designa de sentimento de fundo. Talvez a ideia
de intencionalidade ajude a que a solidão do cogito seja superada, para que se abra ao
mundo e se converta em alteridade.
A experiência do sentimento, revela em Descartes, que a alma embora
essencialmente distinta do corpo, está estreitamente confundida e misturada com ele,
por mais incompreensível que se torne ao entendimento “a alma está verdadeiramente
unida a todo o corpo, e que em rigor não se pode dizer que exista numa das suas
partes, com exclusão das outras, pois o corpo é uno e de certo modo indivisível, em
virtude da disposição dos órgãos, de tal modo relacionados uns com os outros.”87 A
alma como não tem extensão não enforma qualquer parte do corpo em particular, pode
ser considerada “corporal” enquanto está unida ao corpo, embora seja de outra natureza.
Ela possui extensão sem ser uma substância extensa.
86
87
ALVES, Pedro M. S. - “Que Verdade no Erro de Descartes?” In: Philosophica, 7, 1996, p. 178.
DESCARTES, R. - Discurso do Método e Tratado das Paixões da Alma, p. 115.
46
Nas Meditações insistiu na separação das substâncias deixando na sombra a
união no homem de duas substâncias separadas, uma substância psicofísica. Esta união
incompreensível tenta mostrar como conheço por intermédio do indivisível o que ocorre
no divisível. Daí a existência daquilo que Descartes chama as paixões, que são
“percepções, ou sentimentos ou emoções da alma,” 88 acrescentando que “o melhor
caminho para chegar ao conhecimento das nossas paixões, é examinar a diferença que
existe entre a alma e o corpo.”89 No Tratado das Paixões da Alma, Descartes admite
ainda que as paixões são úteis e que assumem um papel chave na preservação do corpo,
“a utilidade de todas as paixões consiste apenas em fortalecerem e fazerem durar na
alma pensamentos.”90 As paixões não devem ser vencidas ou banidas mas controladas e
só existem na relação com o corpo. Esta posição é partilhada por Damásio e Descartes.
Descartes não olha com desconfiança para as emoções. O Tratado das Paixões da Alma
parece ser parte da obra cartesiana que Damásio negligenciou, propositadamente, ou
não.
A originalidade da concepção de Damásio consiste na fundamentação científica,
experimental, de uma intuição filosófica que já estava presente nos escritos de
Descartes. De certa forma, Descartes inaugurou a psicofisiologia e Damásio apresentou
os princípios de uma neurobiologia da racionalidade.
Damásio mostra nas suas obras que não é um cientista embrenhado num
discurso hermético e distante, mas próximo dos seus pacientes, aspecto que será
desenvolvido mais adiante. As suas obras são ilustradas com casos clínicos de pacientes
seus, o que as tornam cativantes, falando de localizações cerebrais, circuitos neurais e
mapas numa linguagem relativamente acessível ao grande público. No entanto, face ao
primeiro título publicado, seria de esperar que ao filósofo francês fosse dado um papel
de maior relevo, o que não acontece. Exceptuando-se breves referências de passagem, o
autor é parcialmente abordado no capítulo onze, por sinal, o mais pequeno de todos.
Quando afirma, no início da obra, que esta se desenvolverá “sob o signo de Descartes,
visto não existir forma de tratar tais temas sem evocar a figura emblemática que
moldou a abordagem mais difundida respeitante à relação mente-corpo,” 91 cria no
leitor grande expectativa e curiosidade, pelo facto de referenciar um filósofo bastante
conhecido. A obrigatoriedade da referência dá-se pela negativa, uma vez que sinaliza
88
Ibidem, p. 113.
Ibidem, p. 92.
90
Ibidem, p. 145.
91
Damásio, António - O Erro de Descartes, p. 20.
89
47
um caminho a evitar, se olharmos para as modernas abordagens neurológicas. O título
vendeu bem.
Depois,
quando
coloca
a
hipótese
do
marcador
somático
valoriza
excessivamente o biológico como se fosse a única leitura do real e não apenas uma
aproximação. Também Damásio, tal como Descartes, procurou reduzir o complexo ao
simples, por exemplo, quando separa emoções e sentimentos, no entanto, “seria
absurdo pensar que percebemos o que são emoções e sentimentos quando apenas
conhecemos o mecanismo dos centros cerebrais que eles activam”. 92
Damásio mostra a sua preocupação com o “penso, logo existo” cartesiano
deixando de lado erros que considera “bem mais espectaculares”, como os dos
“espíritos animais”, mas que não desenvolve porque hoje ninguém duvida da sua
falsidade. Mas, se a complexidade dos processos neurológicos passa ao lado do
pensamento de Descartes, e se olharmos retrospectivamente para a época em que viveu,
“o que é verdadeiramente decisivo é que, contra as teses aristotélicas que associavam
as funções vegetativa e sensitiva a uma “alma” imaterial, essas mesmas funções serão
doravante descritas exclusivamente a partir de processos físicos e corporais.” 93
Podemos ainda referir que o facto de Descartes admitir que a primeira verdade que se
lhe impõe é a do seu pensamento, não nos permite concluir a anterioridade do
pensamento em relação à matéria.
Outro problema, prende-se com a abordagem neurológica no que diz respeito à
subjectividade. Nos limites da investigação neurológica “a maneira como surge a
subjectividade em semelhante processo continuaria a ser um mistério.”94Mas Damásio
é tão optimista que considera que nada nos poderá impedir de tratar cientificamente os
fenómenos subjectivos.
92
FERREIRA, Maria Luísa Ribeiro - “Erro de Descartes” ou Erro de um Título?” In: Philosophica, 7,
1996, p.167.
93
ALVES, Pedro M. S. - “Que Verdade no Erro de Descartes?” In: Philosophica, 7, 1996, p. 173.
94
DAMÁSIO, António - O Erro de Descartes, p. 247.
48
Capítulo 5: A neurologia do sentir
5.1. Neurobiologia e comportamento ético
“De certo modo, retirar a presença do corpo é como que retirar o chão em que a mente caminha.”95
Em Ao Encontro de Espinosa, Damásio confirma os temas abordados nas obras
anteriores contando com novos dados empíricos. A novidade desta obra diz respeito à
sua teoria das emoções e sentimentos sociais, criticável, é certo, já que o autor parece
acreditar em alguma modalidade de determinação do social pelo biológico, embora
afirme em O Erro de Descartes que não é essa a sua intenção.
Nesta obra Damásio reforça a tese de que só podemos compreender a mente,
bem como as emoções e os sentimentos, no quadro de uma compreensão dos
mecanismos de regulação biológica que servem para manter um organismo vivo, ideia
já longamente exposta em O Sentimento de Si. É esta abordagem global que torna
acessível o estudo científico da mente e da consciência, da emoção e do sentimento. A
emoção foi negligenciada pelas neurociências em detrimento da atenção, percepção,
memória e linguagem dada a dificuldade em definir a sua natureza: “ao longo da maior
parte do século XX, a emoção não foi digna de crédito nos laboratórios. Era demasiado
subjectiva, dizia-se. Era demasiado fugidia e vaga [...] a emoção não era racional e
estudá-la também não era.”96
Damásio chama a atenção para a máquina homeostática explicando como e
porquê a sobrevivência é o valor central para um organismo, como no cerne das
estratégias de sobrevivência está o valor da estabilidade face às mudanças ambientais, e
de como o cérebro serve esse valor pelo seu papel regulador. Para Damásio “a tentativa
contínua de conseguir um estado de vida equilibrado é um aspecto profundo e definidor
da nossa existência.”97Esta tese encontra-se desenvolvida em O Erro de Descartes a
propósito dos marcadores somáticos, mas falta saber agora a que tipo de existência se
refere Damásio, se exclusivamente biológica, ou se é algo mais. Se a essência da
existência se reduz à biologia a dimensão relacional do ser humano não passa de uma
extensão da animalidade.
95
DAMÁSIO, António - Ao Encontro de Espinosa, p. 216.
DAMÁSIO, António - O Sentimento de Si, p. 59.
97
DAMÁSIO, António - Ao Encontro de Espinosa, p. 52.
96
49
Damásio encontra em Espinosa a confirmação de algumas das suas intuições.
Espinosa distinguiu com clareza “o processo do sentir do processo de ter uma ideia
sobre um objecto que pode causar uma emoção”98 e considerou o corpo e a mente como
atributos paralelos da mesma substância, “a mente humana é a ideia de corpo
humano.”99 A ideia de distinguir emoções e sentimentos constitui uma das chaves da
sua estratégia de investigação. Emoções e sentimentos são estudados como objectos de
investigação distintos, e embora estejam intimamente unidos à semelhança do que
acontece com todos os gémeos, há sempre um que nasce primeiro, neste caso, a emoção.
Curiosamente, alguns dos seus pacientes eram incapazes de ter certos sentimentos mas
capazes de exprimir as emoções correspondentes, por exemplo, exibir uma expressão de
medo e não sentir medo.
As emoções de carácter mais automático estão ligadas à sobrevivência, no
entanto, nem todas a promovem. De forma directa ou indirecta, o medo, a felicidade, a
tristeza podem fazê-lo. A tristeza pode ajudar-nos a enfrentar uma perda significativa
mas não deve prolongar-se ao longo do tempo sob pena de comprometer a homeostase.
Damásio toma ainda a decisão metodológica de não ignorar o ponto de vista da
experiência interior, subjectiva, no estudo da mente e da consciência: “Acima de tudo,
não devemos cair na armadilha de tentar estudar a consciência exclusivamente do
ponto de vista externo, receosos de que o ponto de vista interno esteja
irremediavelmente viciado.” 100 A rigidez desta distinção vai acabar por denunciar
alguns pontos menos consistentes no seu sistema. Para Damásio, “a grande importância
dos sentimentos [...] pode levar à falsa ideia de que os sentimentos ocorrem primeiro e,
subsequentemente, se exprimem em emoções. Este ponto de vista é incorrecto e é uma
das causas do atraso no estudo neurobiológico dos sentimentos.”101 É nesta paisagem
que se inserem as novidades do último livro de Damásio.
5.2. Emoções Sociais e o Cérebro que Sente – a Homeostasia
Para Damásio as emoções sociais experimentadas num determinado contexto
relacional, entre humanos ou animais, está enraizada no cérebro e será activada de
acordo com os estímulos do meio em que experimenta tais relações: “a disposição que
98
Ibidem, p. 26.
Ibidem, p. 27.
100
DAMÁSIO, António - O Sentimento de Si, p. 105.
101
DAMÁSIO, António - Ao Encontro de Espinosa, p. 45.
99
50
permite uma emoção social está profundamente gravada no cérebro destes organismos,
pronta para ser utilizada quando chega a altura própria. Não há qualquer dúvida de
que o arranjo cerebral que permite tais comportamentos sofisticados na ausência de
linguagem ou instrumentos de cultura, é um notável dom do genoma de certas espécies.
É um dom que faz parte dos dispositivos da regulação automática da vida.”102 Aqui
reside
a
explicação
para
o
inatismo/automatismo
da
maioria
dos
comportamentos/emoções sociais em que apenas uma minoria é aprendida. Mais, as
emoções que são inteligentes e providas de beleza, constituem um “dom do genoma”,
quer em animais, quer em humanos: “para alguém que esteja convencido que os
comportamentos sociais são exclusivamente resultado da educação, é sempre difícil de
aceitar que espécies animais extremamente simples possam exibir comportamentos
sociais inteligentes.”103 Damásio sustenta que o carácter inteligente das emoções resulta
do facto de elas nos ajudarem a resolver muitos problemas. Torna-se necessário
esclarecer o conceito de inteligência que aqui está subjacente. Se as emoções são
automáticas, na sua maioria, poderemos dizer que são inteligentes no sentido de
racionais, deliberadas, conscientes? Sabemos que a maior parte dos seres vivos
responde emotivamente a um estímulo externo de forma impensada, automática,
instintiva, não possuindo uma arquitectura neural que lhes permita representar mapas do
estado do corpo no decorrer de uma emoção como nos seres humanos, por isso, não
sentem nem pensam como nós, os sentimentos estão-lhes vedados. O que Damásio diz é
que podemos controlar voluntariamente o que era automático através dos sentimentos.
Tal como desejava Espinosa, conseguimos o controlo da nossa vida tentando fugir à
tirania das emoções negativas e procurando as positivas, e as emoções devem ser
guiadas pela razão, não uma razão pura, mas devem ser conseguidas através do
raciocínio e esforço intelectual. Por sua vez Damásio reforça: “Podemos dessa feita
libertar-nos da automaticidade tirânica e impensada da maquinaria emocional.” 104
Esta tese vem contrariar a ideia do inatismo e automatismo da máquina homeostática.
Damásio exemplifica as emoções pelas reacções de um organismo simples,
unicelular, descerebrado como a paramécia que contém “a essência do processo da
emoção presente nos seres humanos - a detecção de objectos ou situações que
recomendam circunspecção ou evasão ou, por outro lado, bom acolhimento e
102
Ibidem, p. 64.
Ibidem, p. 64-65.
104
Ibidem, p.69.
103
51
aproximação. A capacidade de reagir desta forma não foi ensinada.”105 O autor acaba
por contrariar o que diz sobre o automatismo: “uma das finalidades principais da nossa
educação é interpor uma etapa de avaliação não-automática entre os objectos que
podem causar emoções e as respostas emocionais” 106 acrescentando que “algumas
reacções podem ser modificadas, especialmente quando controlamos os estímulos que
as provocam.”107 Por outro lado, o património evolutivo também sofre mudanças: “o
facto de que certas emoções acabam por ser pouco ou nada adaptativas, em certas
circunstâncias humanas actuais, não nega de forma alguma o papel adaptativo que
essas funções desempenharam na regulação da vida em fases bem diferentes da
evolução.”108 Damásio usa a expressão “princípio do encaixamento” para explicar que
há sempre partes das reacções mais simples incorporadas como componentes das
reacções mais elaboradas e isso destina-se a garantir que os objectivos reguladores de
preservação da integridade do organismo permanecem nos níveis superiores da
maquinaria. No entanto, a maior ambiguidade do chamado “princípio do encaixamento”
diz respeito à teoria dos sentimentos sociais: “Os sentimentos abrem a porta a uma
nova possibilidade: o controlo voluntário daquilo que até então era automático.”109 O
autor considera que os comportamentos/emoções sociais não são apanágio do ser
humano em exclusivo, ou seja, os animais também possuem a disposição para exibir
tais emoções.
A co-avaliação levada a cabo pelo cérebro e pela mente é feita de forma
consciente e pode interferir no automatismo da resposta provocada pela simples
avaliação cerebral. Segundo Damásio “deixar de fora a fase de avaliação correria o
risco de trivializar as emoções e transformá-las em acontecimentos sem significado.
Seria mais difícil vislumbrar a beleza e a espantosa inteligência representadas pelas
emoções, bem como a forma poderosa como as emoções resolvem tantos dos nossos
problemas.”110 Segundo o autor, o conceito de avaliação não deve ser entendido num
sentido literal e consciente já que responder a uma situação/estímulo é um êxito notável
da biologia. Damásio não explica muito bem o conceito de avaliação e coloca em pé de
igualdade a actividade consciente e inconsciente somando mais um ponto fraco no seu
sistema.
105
Ibidem, p. 58.
Ibidem, p. 71.
107
Ibidem, p. 69.
108
Ibidem, p. 56.
109
Ibidem, p. 96.
110
Ibidem, p. 71.
106
52
Nas suas teses Damásio procura com subtileza mostrar que existe de facto uma
continuidade entre o animal e o humano. Essa compreensão é, na sua perspectiva,
essencial para evitarmos equívocos acerca de nós próprios. Trata-se de uma tentativa de
compreender o humano à luz da biologia, numa continuidade aperfeiçoada, de modo a
que não fique reduzido à animalidade. E aqui entram os sentimentos em cena.
Os sentimentos são o pano de fundo da mente e têm as emoções como alicerce.
Para Damásio “um sentimento é uma percepção [um pensamento] de um certo estado
do corpo, acompanhado pela percepção de pensamentos com certos temas e pela
percepção de um certo modo de pensar.”111 O sentimento de uma emoção é “a ideia do
corpo a funcionar de uma certa maneira,” o conteúdo do sentimento é a representação
de um estado particular do corpo, mas estes podem resultar de qualquer conjunto de
reacções homeostáticas e não apenas das reacções a que chamamos emoções. Sem esta
passagem pelo corpo os sentimentos não se distinguiriam de outros pensamentos, não
faria sentido dizer “sinto-me feliz”, deveríamos dizer apenas “penso-me feliz”.
5.3. Os mecanismos como se: alucinar o corpo
Na sua última obra, Damásio diferencia a sua proposta da de William James pelo
facto de aceitar que os sentimentos não têm origem necessariamente no estado real do
corpo mas no estado real dos mapas cerebrais que as regiões somatossensitivas
constroem em cada momento. Na sua óptica, estes podem não representar de forma
fidedigna o estado do corpo num dado momento na medida em que o mapa pode ser
modificado por outros componentes do sistema nervoso central e não pelos sinais
directamente provenientes do corpo. Para James os sentimentos são percepções do
estado do corpo-propriamente-dito quando ele é modificado pela emoção. Para Damásio
a percepção directa dos estados do corpo implicaria um consumo exagerado de tempo
porque sentir leva o seu tempo. Damásio diz que podemos imaginar correspondências
entre pontos do corpo e regiões somatossensitivas no cérebro mas as coisas complicamse quando outras regiões cerebrais interferem, quer com a transmissão de sinais do
corpo às regiões somatossensitivas, quer com a própria actividade dessas regiões,
podendo ser criados mapas “falsos”. Aquilo que sentimos em certos momentos “baseiase numa construção falsa e não no verdadeiro estado do corpo.”112 Esta capacidade do
111
112
Ibidem, p.104.
Ibidem, p.138.
53
cérebro para “simular” estados corporais pode ser altamente vantajosa para o
organismo: por exemplo, posso fugir mais eficazmente se não sentir todas as dores que
resultam da própria forma como fujo o que mostra o esforço de adaptação do organismo
ao meio, podendo até falar de uma analgesia natural. É mais rápido criar no cérebro uma
modificação do mapa do estado corporal do que comandar a correspondente
modificação efectiva do estado corporal. Sendo os sentimentos processos biológicos em
que a nossa imagem corporal é captada num certo padrão, convém referir que esse
padrão pode, no entanto, ser modificado por drogas, meditação, pensamentos.
A ideia de que o cérebro pode criar “alucinações” vem das obras anteriores. Em
O Erro de Descartes fala dos mecanismos como se mencionando o facto de que, por
vezes, “o cérebro aprende a forjar uma imagem simulada de um estado “emocional”
do corpo sem ter de a reconstituir no corpo propriamente dito”. É como se
estivéssemos a ter uma emoção no corpo, embora se trate de “um sentimento apenas
dentro do cérebro”. 113 O próprio cérebro pode simular certos estados emocionais do
corpo internamente. É o que acontece quando a emoção de simpatia se transforma em
empatia. Damásio considera que este mecanismo deve pressupor uma anterior passagem
pelo corpo. Em O Sentimento de Si refere que as representações cerebrais das
modificações do estado do corpo tanto podem ter por base o (body-loop) “circuitoatravés-do-corpo” que utiliza sinais humorais e neurais como o (as-if-body-loop)
“circuito-como-se-fosse-atavés-do-corpo”. Este reduz o consumo de tempo e de energia
porque ultrapassa o corpo propriamente dito, o que pode ser útil em certas
circunstâncias. De acordo com este mecanismo a representação das modificações
relacionadas com o corpo é directamente criada em mapas sensoriais do corpo sob
controlo de outras regiões como os córtices pré-frontais, por exemplo. É como se o
corpo estivesse a ser modificado sem o ser. De qualquer modo a existência dos
mecanismos como se, dos falsos mapas, parece introduzir alguma complexidade na
estratégia de investigação de Damásio: a anterioridade das emoções em relação aos
sentimentos. É que os mecanismos como se mostram que o corpo (da única maneira que
o cérebro pode saber dele, através das representações cerebrais do estado do corpo)
pode não vir primeiro porque outras estruturas cerebrais podem perturbar a
representação do corpo e pensamentos, imagens, ideias, drogas, meditação, hipnose,
placebo, podem interferir ignorando o corpo, e até substituir-se ao próprio corpo na
113
Ibidem, p. 137.
54
representação desse mesmo corpo. Poderemos considerar alucinações determinadas
imagens captadas em determinados estados corporais? Experiências feitas por Damásio
mostraram através da tomografia por emissões de positrões que é possível detectar uma
emoção antes desta ser sentida pelo indivíduo que a experiencia. Isto parece provar que
o mental vem antes do emocional.
5.4. As emoções e os sentimentos sociais: o erro de Damásio
A novidade da última obra de Damásio diz respeito às emoções sociais, aquelas
cujos objectos emocionalmente competentes são eventos de significado social. Essa
leitura é reforçada pelos exemplos que o autor fornece de comportamentos reveladores
de emoções sociais em espécies não humanas: as deambulações orgulhosas de um
macaco dominante, a compaixão de um elefante por outro que está ferido, “é importante
notar que as emoções sociais não se confinam, de forma alguma, aos seres
humanos.”114
Referindo-se à presença desse mecanismo nos animais, diz que “fazem parte da
lista dos dispositivos inatos da regulação automática da vida”, embora as emoções não
sejam necessariamente inatas. Damásio, pretendendo mostrar que “espécies animais
extremamente simples podem exibir comportamentos sociais inteligentes”, dá exemplos
de conceitos sociais nos animais (segurança através da cooperação, altruísmo), refere a
intensa vida social das abelhas e afirma ser “muito provável que a existência de
emoções sociais tenha tido um papel no desenvolvimento dos mecanismos culturais da
regulação social.” 115 Retomando temas de obras anteriores, Damásio lembra que os
sentimentos desempenham um papel decisivo no comportamento social; que lesões de
certas estruturas cerebrais específicas afectam certas emoções e sentimentos, com
prejuízo de toda uma vasta gama de comportamentos de vida em sociedade; que as
tentativas para explicar esses casos com base em perturbações cognitivas
(aprendizagem, memória, raciocínio) se mostraram inadequadas; que a explicação tem
de passar pelo papel das emoções. Retoma, assim, a hipótese dos marcadores somáticos,
enunciada em O Erro de Descartes. Damásio assinala que a emoção não substitui o
raciocínio, apenas lhe dá indicações que restringem o volume de informação a tratar e
114
115
Ibidem, p.63.
Ibidem, p.65.
55
disponibilizam elementos da experiência passada. Agora, acrescenta que esta é a chave
para compreender o comportamento ético.
Um traço marcante do comportamento civilizado é o uso que nele fazemos do
futuro: prescindimos da satisfação imediata em troca de melhor futuro, construímos
relações sociais que não se poderiam explicar por comportamentos imediatistas, tais
como, a cooperação e o altruísmo. O que certas lesões cerebrais provocam é uma
“miopia do futuro”, uma incapacidade para lançar o olhar mais longe. E essa miopia do
futuro tem tudo a ver com certas insuficiências da capacidade de relacionamento em
sociedade. A capacidade para agir de forma social é compatível com uma perspectiva de
futuro e com emoções sociais (simpatia, apegamento), sem as quais não teriam existido
as bases para um comportamento ético. Diz o autor, que “na ausência de emoções e
sentimentos normais, especialmente na ausência de emoções sociais, a emergência de
comportamentos éticos seria improvável.”116Daí a negociação para encontrar soluções
para os problemas de grupo, convenções, punições e recompensas, sistemas
sociopolíticos, sistemas de justiça, capacidade dos indivíduos para seguirem as regras
desses sistemas, etc. No entanto Damásio ressalva: “não quero de forma alguma dizer
que as emoções e os sentimentos sejam a causa única da emergência desses
instrumentos culturais [...] uma explicação neurobiológica simples da emergência da
ética, da religião, das leis e da justiça não é de todo viável.”117 Mas também diz que “a
essência do comportamento ético não parece ter começado com os seres humanos [..]
espécies não humanas parecem comportar-se, aos nossos olhos sofisticados, de uma
forma ética”, 118 exibindo simpatia, apegamento, orgulho, submissão. É claro que o
comportamento ético humano é muito mais elaborado e complexo já que as regras da
ética são criação humana e só os humanos têm a capacidade de se obrigar a tais regras.
Mas qual será a essência do comportamento ético? Será apenas um conjunto de
manifestações exteriores, de comportamentos formalmente comparáveis aos da
paramécia? Os exemplos fornecidos por Damásio parecem indicar esta leitura. O facto
de certos mecanismos biológicos contribuírem para o comportamento ético não
significa que sejam necessariamente determinantes desse comportamento. O que falta é
uma tentativa para compreender se existe e qual é, a especificidade humana no domínio
da ética e da sociabilidade, para tentar traçar os contornos de uma fronteira – por mais
116
Ibidem, p.183.
Ibidem, p.184.
118
Ibidem, p.185.
117
56
ténue que seja – entre o humano e o não humano. O autor acredita que a ética começou
como parte de um programa de regulação biológica o que não significa que se reduza a
ele em exclusivo.
Damásio insiste em que a preservação da vida, além de ser aquilo de que se
ocupam os dispositivos naturais automáticos da homeostase, é também o fim último das
instituições sociais (convenções, regras, instituições) que governam de forma não
automática as sociedades humanas: o seu fim é evitar a morte, aumentar o bem-estar,
reduzir o sofrimento. Esse nível não automático é necessário dada a complexidade do
nosso ambiente físico e social. É a ideia da homeostasia social. “A natureza tem
disposto de milhões de anos para aperfeiçoar os dispositivos automáticos da
homeostasia, enquanto os dispositivos não-automáticos dispõem de uns escassos
milhares de anos.” Damásio reforça a sua ideia com Espinosa: “Os contratos sociais e
políticos são extensões do mandato biológico pessoal.”119 As convenções sociais e as
regras éticas são vistas como extensões da homeostasia ao nível da sociedade e da
cultura cujo objectivo é promover a sobrevivência e o bem-estar.
Uma explicação evolutiva da origem dos sentimentos não equivale a explicar a
natureza dos sentimentos. A confusão é grande. Dizer que “os sentimentos emergiram,
com toda a probabilidade, como um produto lateral do facto de que o cérebro está
empenhado na governação da vida”120, parece e pode passar por ser uma explicação da
natureza dos sentimentos, mas não é. Todos os organismos vivos estão empenhados em
viver mas só os seres humanos têm sentimentos. O erro de Damásio foi o de confundir a
presença de mecanismos biológicos em qualquer grupo de organismos vivos com a
tentação de explicar os mecanismos sociais pela base biológica.
5.5. Ser humano é ser relacional
Com Descartes surgiu um dualismo antropológico e metafísico que determinou
toda a filosofia posterior. A teoria do conhecimento assenta agora na primazia do sujeito
e na reflexão deste acerca de si próprio, a experiência da descoberta da consciência de
si. Talvez este homem do século XVII não se distancie muito de Damásio, dependendo,
é claro, do ponto de vista que se pretende demonstrar.
E, quem sabe, talvez a
aproximação não seja tão forçosa quanto possa parecer à primeira vista.
119
120
Só que
Ibidem, p.198.
Ibidem, p.202.
57
Descartes não “abriu” o seu sistema, ficou isolado na perspectiva da primeira pessoa. O
autor não contraria a ideia de que a mente tem acesso aos seus próprios estados, pode
dobrar-se sobre si mesma, e que o seu conteúdo é percebido directamente de modo
privado, não acessível a outros, tem uma “natureza oculta”. Nesta ordem de ideias,
Descartes olvidou o carácter relacional do ser humano e o papel determinante do
ambiente, embora em Damásio a relação pessoal não seja abordada da forma mais
adequada, e podemos mesmo considerá-la insuficiente devido ao seu carácter biológico.
Em Ao Encontro de Espinoza Damásio fala das emoções sociais e dos ambientes de
relação entre humanos ou animais, em termos de homeostasia, defendendo uma
continuidade essencial entre o biológico e o social. Os conceitos de subjectividade e
intersubjectividade também não fazem parte das teses cartesianas, acusando a limitação
de um sistema que se assumiu como uma filosofia do cogito desencarnado, de cariz
solipsista, no sentido oposto ao de Damásio que afirma uma relação cérebro-ambiente e
que prevê o estudo, ainda que científico, dos fenómenos subjectivos, emoções,
sentimentos e consciência. No sistema cartesiano o indivíduo fica isolado, fora da
sociedade, do mundo. Por isso o indivíduo não é corpo, ele tem um corpo que é distinto
e irredutível a ele. A vantagem que daí advém é que a “autonomia” do corpo converteuo num centro de curiosidade científica.
A união mente/corpo é o que constitui a natureza humana e a confusão e
obscuridade dos pensamentos produzidos por esta união marcam a diferença entre a
natureza do ser humano e dos seres puramente racionais, ou a diferença entre uma
mente encorpada e uma mente pura. Os pensamentos da mente corpórea, mesmo os que
dependem do puro intelecto, têm correlatos fisiológicos. Esta tese converge com o
pensamento de George Lakoff e Francisco Varela, como veremos adiante.
Tendo em conta os recentes desenvolvimentos das ciências cognitivas, e a nossa
experiência pessoal do mundo, não podemos concluir a partir do facto de que somos
seres pensantes que a nossa natureza seja simplesmente pensar. O dualismo cartesiano,
reconhecido e problematizado pelo próprio, mais do que uma tese metafísica apresentase como um postulado metodológico. Existe uma certa ambiguidade na antropologia
cartesiana, pois a alma é apresentada, ora como uma res cogitans completamente oposta
ao corpo, ora como uma cogitatio que engloba a imaginação e a sensação que não
podem existir sem corpo. O mesmo acontece com Damásio, o que está em consonância
com a falta de rigor terminológico das ciências cognitivas, quando usam conceitos do
paradigma tradicional. Estas não ficaram alheias a uma certa ambiguidade
58
terminológica devedora de mudanças vertiginosas nem sempre claras a nível
conceptual. Segundo Alfredo Dinis, isto denuncia “não só uma grande imprecisão
terminológica como também um referencial tendencialmente neurofisiológico,
indicador de um reducionismo naturalista.” 121 Daí a necessidade de uma afinação
conceptual. No que diz respeito à alma e ao espírito, Damásio diz: “a alma e o espírito,
em toda a sua dignidade e dimensão humana, são os estados complexos e únicos de um
organismo.”122 No entanto, ele não clarifica bem esta ideia.
O erro de Descartes é, fundamentalmente, sobre a relação mente-corpo, e
Descartes não poderia vir mais a propósito, uma vez que a solução para a primeira
questão filosófica permanece a mais popular, nos dias que correm, quase três séculos
após a sua formulação. A maioria das pessoas crê que os seres humanos são uma
combinação de qualquer coisa – sem expressão física – a que chamam mente ou alma, e
de um corpo, com expressão material óbvia. Descartes erra porque não responde, como
se relacionam o corpo e a mente. Mas também pode entender-se que Descartes erra
porque o dualismo não existe. O que há é um unicismo: corpo e mente são um só.
A mente está encorpada em todo o organismo que por sua vez está situado no
seu ambiente. Descartes ficou apenas pela representação consciente das imagens
mentais baseadas nas sensações. Damásio, cujos trabalhos são originais, sem dúvida,
desenvolve a perspectiva da terceira pessoa com base nos avanços das tecnologias de
neuroimagem durante os anos 80 e 90. Graças aos novos aparelhos de digitalização:
tomografia axial computorizada, ressonância magnética nuclear e tomografia por
emissão de positrões, puderam desvendar-se, não só as modificações estruturais do
cérebro de muitos doentes, mas também a forma como elas afectam a sua função
neuronal.
Uma pessoa nunca poderá experimentar a consciência de outra se esta for
entendida exclusivamente como fenómeno biológico. Ela não pode ser transferida,
precisa de tecido vivo para se expressar. Os próprios médicos não têm uma “relação
pessoal” com os cérebros dos pacientes. Importa abrir aqui uma porta para
a
intersubjectividade, a relação. Para além de uma subjectividade pessoal há uma
subjectividade intersubjectiva, ambas explicáveis em termos de estruturas neurológicas.
Daí a importância da intencionalidade da consciência, pois só através dela podemos
121
DINIS, Alfredo - “Implicações antropológicas de desenvolvimentos recentes em biologia e ciências
cognitivas.” In: Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, 54, 1998, p. 561.
122
DAMÁSIO, António - O Erro de Descartes, p. 257.
59
“mudar-nos” para dentro do outro. Nesta linha de pensamento, Paulo Dantas, em A
Intencionalidade do Corpo Próprio, sustenta que “a consciência é intencional, não é
meramente fisiológica, tem um carácter relacional.”123 Fica aqui em aberto o caminho
para a perspectiva da segunda pessoa?
Nós, seres humanos, somos mais culturais do que biológicos, e Damásio
conseguiu ver isso muito bem. Apesar de nos encontrarmos na era genómica, Damásio
considera que os genes produzem o design básico do cérebro, interagem com o meio
ambiente, mas não controlam a mente. A mente não é uma substância física. Damásio
não é tão reducionista como Francis Crick, quando afirma em A Hipótese Espantosa
que talvez “você, as suas alegrias e as suas tristezas, as suas memórias e as suas
ambições, o seu sentido de identidade pessoal e livre arbítrio, não sejam de facto mais
do que o comportamento de um vasto conjunto de células nervosas e das suas
moléculas associadas [...] você não passa de um embrulho de neurónios”.124 António
Damásio considera que a mente humana deve ser abordada “com respeito pela sua
dignidade e estrutura” e “quando deixamos que uma parte da nossa mente observe o
resto da nossa mente, de forma inocente e natural, sem a influência dos conhecimentos
científicos que hoje temos, as observações parecem revelar, por um lado, a matéria
física que constitui células, tecidos e órgãos do nosso corpo e, por outro lado, o tipo de
coisas em que não podemos tocar, os sentimentos e as impressões visuais e auditivas
que constituem os pensamentos da nossa mente e que nós presumimos, sem qualquer
evidência que apoie tal presunção, que são feitos de uma outra espécie de substância,
uma substância não física.” 125 No entanto, não podemos cair no erro de identificar
mente com espírito ou alma.
Damásio é cauteloso nas suas afirmações ao considerar que o homem não se
define exclusivamente pela interacção dos neurónios. O ambiente tem uma palavra a
dizer. Damásio não passa de um extremo ao outro; o homem não é só corpo biológico.
Os factores ambientais, sociais e culturais moldam cada pessoa de uma forma única,
inteiramente particular. A natureza do homem alia a história biológica da evolução
transmitida pelos genes e a história da nossa trajectória pessoal em ambientes físicos,
sociais e culturais específicos. A nossa personalidade é poligénica e ambiental.
123
DANTAS, Paulo - A Intencionalidade do Corpo Próprio. Lisboa: Piaget, 2001, p. 28.
CRICK, Francis - A Hipótese Espantosa. A Busca Científica da Alma. Lisboa: Instituto Piaget, 1998,
p. 15.
125
DAMÁSIO, António - Ao Encontro de Espinosa, p. 211.
124
60
Sabemos que o século XX foi praticamente dominado pelo paradigma cartesiano
do primado da razão e da crítica da emoção. Somos todos filhos de Descartes. Com ele
aprendemos o que era a ciência, a objectividade, o método científico. Aprendemos a
pensar com a cabeça e não com o coração. E desumanizámos a ciência.
A educação das emoções, o pensar as emoções, o afecto, a relação não eram
assim tão importantes. O mundo ficou muito bem arrumado em cómodas de duas
gavetas, de forma dualista: razão/emoção; racional/irracional. E assim continuamos a
pensar, ainda, por vezes, hoje. Continuamos filhos de Descartes, porque dividimos o
conhecimento a preto e branco, objectivo/subjectivo. E porque não falar de uma
objectividade intersubjectiva? Emociono-me e sinto, logo existo, é um risco que
Damásio assume, felizmente para nós.
A objectividade do sujeito que investiga estava tão distante do objecto
investigado que não dialogavam, não habitavam o mesmo mundo. É uma situação
verificável muitas vezes na prática clínica. O objecto de estudo, a pessoa, é muda. O
modelo é unidireccional, o médico explica o seu objecto de estudo apenas de fora, sem
dialogar com ele, sem interagir com ele. A história pessoal do doente, a sua vida, os
seus anseios, medos, produtos de uma cultura, não conseguem rasgar a opacidade dos
clínicos que se preocupam apenas em tratar órgãos e compensar funções. O doente
enquanto pessoa foi excluído da clínica.
Perceber o ser humano como ser de relações é importante para a compreensão de
si e do seu lugar no mundo. Como compreender o ser humano como um ser relacional
sem procurar desenvolver nesse humano a capacidade de perceber relações? Que ser
humano poderá ser capaz de conhecer-se desconhecendo uma capacidade fundamental
que lhe atribui significado enquanto ser?
O homem ideal deve ser capaz de razão e afecto. Damásio traz interessantes
insigths sobre o mistério da natureza humana. Não negando a força da predisposição
genética e das condições biológicas da nossa vida, é preciso (re)descobrir as ironias da
condição humana.
Segundo Francisco Varela, é necessário proceder a uma articulação da
experiência humana, de acordo com a tradição fenomenológica, com a neurociência
cognitiva moderna, e quem sabe, avançar mesmo para uma neurofenomenologia. A
articulação entre o cérebro e a consciência só será garantida pela estrutura da
experiência humana, condição indispensável para o estudo científico do cérebro e das
experiências sociais, e para Damásio “nada nos impede de tratar cientificamente os
61
fenómenos subjectivos [...] todos os conteúdos mentais são subjectivos e a força da
ciência provém da capacidade de verificar a consistência de muitas subjectividades
sociais.”126 É o conceito de experiência humana que falta às ciências cognitivas. Este
será abordado na segunda parte deste trabalho.
O núcleo de novidade do último livro de Damásio encontra-se nas suas teses
sobre as emoções e os sentimentos sociais. Infelizmente, é aí que se encontra o que nos
parece menos apropriado e menos fundamentado de tudo o que Damásio nos tem
apresentado. A estratégia materialista de investigar a mente parece apropriada assim
como a procura dos mecanismos da consciência no cérebro. Mas o materialismo não
tem de ser reducionista. O projecto de reduzir o social ao biológico não deve assentar na
hipótese materialista.
As neurociências parecem ter abolido definitivamente a virtuosa fronteira entre
corpo e espírito (ou mente), demonstrando que o pensamento é um acontecimento
produzido pelo próprio corpo. O diálogo espírito/corpo, mente/corpo, ocupa hoje um
lugar essencial na compreensão do homem. Os próprios médicos começam a acreditar
que o facto do espírito agir sobre o corpo é uma pista terapêutica. A tendência é para a
medicina e a psicologia deixarem de se olhar de lado, o que poderá ajudar a ultrapassar
sofrimentos humanos e certos preconceitos. As fronteiras do psiquismo e da fisiologia
são cada vez mais ténues, artificiais. O pensamento age sobre a plasticidade física do
cérebro; os estados de consciência influenciam funções metabólicas; o psiquismo
influencia o sistema imunitário.
À medida que se progride no conhecimento das relações corpo/espírito há uma
nova imagem do humano que se desenha. Aparece agora como uma entidade global,
integrada. O ser humano não pode ser desligado da experiência, do ambiente. Em
seguida, avançaremos com outras concepções não dualistas da pessoa humana que
corroboram as teses de António Damásio relativas à incorporação da mente e o papel da
experiência e do ambiente na construção da pessoa.
126
DAMÁSIO, António - O Sentimento de Si, p. 106.
62
PARTE 2
Capítulo 1: Concepção não dualista de Varela e Lakoff. A incorporação da mente
1.1. Corpo duplo
“De modo análogo a Merleau Ponty, partilhamos a opinião de que a cultura ocidental requer que
tomemos os nossos corpos simultaneamente como estruturas físicas e como estruturas experienciais
vividas – em suma, tanto como “externos” como “internos”, biológicos e fenomenológicos.”127
Regressemos a Descartes. Segundo Damásio, a separação da mente e do corpo
enunciada por Descartes, permanece ainda hoje no modo de pensar de alguns
neurocientistas que acreditam que a mente pode ser explicada em termos de fenómenos
cerebrais pondo de lado o resto do organismo e o meio ambiente. Damásio condena esta
visão restritiva da mente.
Avancemos, pois, com uma exigência: a de que não devemos falar da natureza
humana embaraçada num falso dualismo, rejeitando de igual modo a tentativa de
objectivação do corpo humano que opõe ao homem desencarnado da filosofia da
consciência, o homem desenraizado e mecanicista. Para isso, há que procurar o humano
na sua relação com a vida, com a experiência vivida. A vida não é um simples objecto
da consciência, “a consciência prevaleceu na evolução porque conhecer os sentimentos
causados pelas emoções se tornou um ingrediente indispensável na arte da vida e
porque a arte da vida tem tido um enorme sucesso na história da natureza [...] A
consciência fez-se para conhecer a vida.”128O homem com o seu nível de consciência
alargada vive e reconstrói essa vivência. Porque mergulhado no fluxo da vida, é que a
pode visar no plano da consciência. Na vida não há um dentro e um fora. A vida não
pode ser compreendida a partir de uma consciência exterior que a pense, mas a partir de
um corpo que a sinta. A separação corpo/consciência reforça o seu próprio
relacionamento. O corpo não deve ser exclusivamente entendido como entidade
objectivada, mas como esfera de inter-relações e base de intersubjectividade. O corpo
exibe simultaneamente uma pertença a mim mesmo e ao mundo, mas tem também a sua
fronteira com outros corpos. Quando olho para o outro não nos relacionamos como duas
vidas mentais desencarnadas.
127
128
VARELA, J. Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor - A Mente Corpórea, p.16.
DAMÁSIO, António - O Sentimento de Si, p. 51.
63
Há uma natureza dupla no corpo humano. O ser humano não tem uma dupla
natureza mental e corpórea, mas vivencia uma corporeidade de duas faces: interior e
exterior. Estes dois aspectos da corporalidade não são antagónicos. Segundo Varela,
Thompson e Rosch, este duplo sentido da corporalidade que tem estado ausente da
ciência cognitiva, da discussão filosófica e da investigação prática, é fundamental para
fazer a ponte entre a ciência cognitiva e a experiência humana.
É com este corpo duplo que compreendemos essa vocação de abertura ao
mundo, a existência de uma consciência intencional, presença a mim e ao mundo, aos
outros. A consciência enquanto fenómeno do corpo tem uma dupla vertente pública e
privada, “uma das chaves para a compreensão dos seres vivos [...] é a definição das
suas fronteiras, a separação entre o que está dentro e o que está fora. A estrutura do
organismo está dentro da fronteira e a vida do organismo define-se pela manutenção de
estados internos dentro de uma fronteira.”129Se aproximarmos a noção de fronteira e a
de corpo duplo, vemos que ambas pressupõem uma concepção de corpo como estrutura
ou totalidade organizada, sendo o milieu interno o responsável, juntamente com a
fronteira, que separa e também relaciona, pela manutenção da vida e pelo surgimento da
consciência.
A teoria de Damásio faz algum sentido. A fenomenologia vai encontrar em
Damásio o seu correlato científico.
1.2. Francisco Varela e A Mente Corpórea
A reflexão sobre o corpo permite compreender a sua natureza evolutiva. Ao
reflectir encontrámo-nos num círculo que abriu um espaço eu-mundo, interior-exterior,
onde não há divisória mas continuidade. Trata-se de uma necessidade epistemológica. A
experiência medeia esta relação. Na linha da fenomenologia, Varela considera a
cognição inseparável do organismo e do meio e a mente como propriedade emergente
desse contacto. Partindo do princípio que não há oposição entre ciência e experiência,
propõe o estudo científico da experiência humana, partindo do corpo como estrutura
física e experiencial. Para o autor, tanto a experiência humana como a ciência cognitiva
têm a beneficiar com o alargamento do seu horizonte de investigação. Como veremos a
seguir, a cognição mais não é do que acção corporalizada.
129
Ibidem, p. 164.
64
Em A Mente Corpórea (1991), Varela, Thompson e Rosch sustentam, a
propósito das origens da cognição, que as nossas mentes despertam num mundo e na
medida em que crescemos e vivemos, reflectimos sobre ele, já que “é a nossa própria
estrutura que nos permite reflectir sobre este mundo.” 130 Os autores partem do
pressuposto, de acordo com a tradição fenomenológica, de que o mundo não está
separado de nós: o sujeito é um projecto do mundo e o mundo é projectado pelo sujeito.
Não podemos separar a mente do mundo nem imaginar um observador
descorporalizado, “um agente cognitivo lançado de paraquedas num mundo
preestabelecido”. O organismo não é predeterminado, assim como não representa o
mundo, negando-se, assim, o dualismo organismo/objecto.
Os autores negam ainda a visão representacionista da cognição pressupondo um
organismo que actua no seu meio. A “actuação” de um mundo e de uma mente excluem
a representação de um mundo predefinido (realismo ingénuo) elaborado por uma mente
predefinida, “descobrimo-nos a nós próprios executando o acto de reflexão a partir de
um dado meio ambiente [...] de crenças e práticas biológicas, sociais e culturais”131 e
“qualquer descrição científica, seja de fenómenos biológicos ou mentais, deve ser um
produto da estrutura do nosso próprio sistema cognitivo.” 132 Devemos substituir a
consciência representativa pelo próprio corpo.
Ainda na obra citada, os autores criticam Husserl dado que este negou a
corporalização da experiência. Husserl estudou a estrutura da experiência sem qualquer
referência ao mundo empírico, factual, pondo entre parêntesis (epoqué) os juízos sobre
esta relação e utilizando como método a introspecção filosófica abstracta. Estudou os
conteúdos intencionais da mente, a estrutura mental, de modo puramente interno sem os
relacionar com o mundo, deixando por explicar o mundo intersubjectivo da experiência
humana e o seu aspecto corporalizado. Adivinha-se aqui um parentesco com Descartes
que, ao considerar a reflexão como distintamente mental, levantou o problema de como
poderia estar ligada à vida corpórea. Também este parece ter ignorado as relações do
corpo e da mente na experiência real, concreta, e o próprio desenvolvimento dessas
relações, considerando a experiência isolada dos outros e do mundo.
Os introspeccionistas tentaram estudar a mente como um objecto interno, mas a
nossa cognição está orientada para o mundo experiencial vivido. O mundo é inseparável
130
VARELA, J. Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor - A Mente Corpórea, p. 25.
Ibidem, p. 35.
132
Ibidem, p. 34.
131
65
dos nossos corpos, da nossa linguagem e história social. A reflexão corporalizada
implica corpo e mente juntos. A reflexão não se exerce só sobre a experiência, mas é ela
própria uma forma de experiência. A reflexão não é parcial, pelo que tenho que me
incluir nela. É este vazio que Varela procura preencher.
1.3. A ansiedade do fundamento
“Não falhámos em encontrar o corpo físico [...] Nem falhámos igualmente na localização dos nossos
sentimentos e sensações, tendo encontrado igualmente as nossas várias percepções. Encontrámos
disposições, volições, motivações – em resumo, todas essas coisas que constituem a nossa personalidade
e sentido emocional do eu. Encontrámos igualmente todas as várias formas com que podemos estar
conscientes – consciencialização de ver e ouvir, de cheirar, saborear, tocar, mesmo a consciência dos
nossos próprios processos de pensamento. Deste modo, a única coisa que não encontrámos foi um self ou
ego verdadeiramente existentes. Mas note-se que encontrámos a experiência. Na realidade, entrámos no
próprio núcleo da tempestade da experiência, simplesmente não fomos capazes de distinguir aí nenhum
self, nenhum “Eu”.133
Coloca-se agora o problema de saber se pensamos no nosso corpo como sendo o
nosso self, marcado pela transitoriedade da experiência e da mente, ou se pensamos um
self fixo e imutável. Damásio propõe, para além do si transitório, nuclear, o si alargado
que pressupõe uma construção “actuante” com o meio. Neste aspecto, a teoria de Varela
e Damásio apresentam pontos em comum. Varela afirma que “embora a mente possa
divagar, dormir ou sonhar acordada, contamos sempre com o regresso ao mesmo
corpo.”134
Varela alarga o horizonte de investigação abarcando as tradições não-ocidentais
de reflexão sobre a experiência. A meditação de atenção 135 pode, na sua opinião,
fornecer a ponte entre as ciências cognitivas e a experiência humana: “a meditação de
atenção significa que a mente está presente na experiência corporalizada de todos os
dias; as técnicas da meditação de atenção são feitas para fazerem recuar a mente das
suas teorias e preocupações, da sua atitude abstracta, para a situação da própria
experiência de cada um.”136 Segundo o autor este é o método correcto para o estudo da
mente, aquele que dá ênfase ao contexto pragmático e corporalizado da experiência
humana.
133
Ibidem, p. 116.
Ibidem, p. 99.
135
Consiste em acalmar a mente para ser capaz de estar consigo própria o tempo suficiente para adquirir
uma visão da sua própria natureza e funcionamento.
136
VARELA, J. Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor - A Mente Corpórea, p. 48.
134
66
Sabemos que o corpo pode estar em repouso, que as nossas experiências não são
permanentes e que a mente é constantemente invadida por pensamentos, ideias,
emoções, sentimentos... raramente corpo e mente estão coordenados. Sabemos também
que as nossas experiências não são permanentes No entanto, é possível desenvolver
hábitos em que corpo e mente estejam coordenados, como por exemplo, o músico que
toca o seu instrumento. É preciso focar a atenção no próprio processo da mente. O
“penso, logo existo” cartesiano deixou intocada a natureza do eu que pensa. O eu era
uma coisa fundamentalmente pensante, o “eu existo” tinha como única certeza ser
pensamento. Descartes preocupou-se apenas com a busca de um fundamento fixo e
estável, uma base absoluta para o conhecimento. Para Varela este apego a um
fundamento, interno ou externo, constitui a origem da ansiedade cartesiana, da
frustração.
Segundo Varela devemos afastar-nos da ideia de um mundo cuja estrutura é
imposta aos seres vivos, um mundo independente e extrínseco, e caminhar em direcção
a um mundo inseparável da estrutura. A visão cartesiana representacionista postula um
mundo preestabelecido, onde a nossa cognição representa as suas características
actuando com base nas representações. Não deve existir oposição sujeito/objecto, mas
uma actuação ou acoplamento estrutural inseparável da estrutura corporalizada, “o
mundo é mais como um pano de fundo – um cenário e um campo para toda a nossa
experiência, mas que não pode ser encontrado isolado
da nossa estrutura,
comportamento e cognição. Por este motivo, aquilo que dizemos sobre o mundo diz-nos
tanto sobre nós próprios como sobre o mundo.”137
Para Varela, a ausência de fundamento é a própria condição para o mundo da
experiência humana e é encontrada na experiência do dia-a-dia. As nossas actividades
dependem de um pano de fundo sem sentido de solidez e finalidade última. O mundo é
continuamente moldado pelos tipos de acções em que nos comprometemos. O
conhecimento depende de nos encontrarmos num mundo que é inseparável dos nossos
corpos, da nossa linguagem e da nossa história social – da nossa corporalidade. A
cognição é entendimento corporalizado. A experiência humana é culturalmente
corporalizada. Existe entre sujeito e objecto uma co-originação dependente.
137
Ibidem, p.190.
67
1.4. Experiência humana e neurofenomenologia
Francisco Varela partilha a visão anti-dualista de António Damásio, uma vez que
não pensa a mente por oposição ao corpo nem em contraposição ao domínio afectivo. O
papel do meio ambiente é igualmente valorizado. A ideia de incorporação presente em
Damásio e Varela, e também em George Lakoff, como veremos adiante, assenta no
seguinte pressuposto: a cognição depende do tipo de experiência decorrente de se ter um
corpo com determinadas capacidades sensório-motoras e estas capacidades estão ligadas
a um contexto biológico e cultural.
Na obra, A Mente Corpórea, Varela estabeleceu os pilares da ciência cognitiva
destinada a superar os dilemas no modo como o mundo ocidental vê o fenómeno da
mente. A partir daí orientou os seus estudos na consciência num novo campo que
definiu como neurofenomenologia que mais não é do que uma tendência de
naturalização da fenomenologia. Para Varela, a experiência é vital e deve ser
considerada nos estudos científicos, não negando que o estudo da mente seja um
empreendimento científico de valor. O problema mente/corpo não é apenas uma
especulação teórica, mas é desde o início uma experiência vivida. O método
fenomenológico deve pôr entre parêntesis o que sei, voltar a olhar para o fenómeno,
escutá-lo, uma vez que os pensamentos habituais têm um condicionamento cultural. Há
que criticar, aprender, descobrir.
A experiência intersubjectiva ultrapassa sempre o laboratório. Daí que Varela
considere que não é possível investigar a cognição a partir da observação das
propriedades do cérebro – perspectiva da terceira pessoa. Só é possível associar as bases
biológicas com a cognição através do comportamento. O comportamento é cognitivo,
porque o cérebro sofre interacções num meio. A cada forma de comportamento
correspondem estruturas cerebrais específicas e as alterações na estrutura cerebral
manifestam-se por alterações comportamentais e experienciais, na primeira pessoa. A
fenomenologia é importante para a investigação da experiência, numa dimensão
pragmática, com vista ao desenvolvimento de um método na primeira pessoa.
A neurofenomenologia é o método para estudar a consciência, um modo de
aproximar a ciência cognitiva da experiência humana na linha da tradição filosófica
europeia da fenomenologia. “Neuro” deve ser entendido como todo o correlato
científico relevante em ciência cognitiva. Este programa científico prevê um confronto
permanente entre os níveis de experiência em primeira pessoa, sob redução
68
fenomenológica,
e os estudos em neurociências, ou seja, em terceira pessoa,
procurando-se assim a base biológica da subjectividade e da experiência consciente.
Esta preocupação quanto à investigação da experiência e a obtenção de dados na
primeira pessoa é complementada pelos resultados das descobertas em neurociências
que utiliza métodos na terceira pessoa. As novas técnicas da captação de imagens
surgidas nos últimos anos permitem apreender a actividade cerebral em situações
específicas e momentâneas. Este avanço deveu-se ao carácter não invasivo dessas
técnicas e à possibilidade de mapear a dinâmica cerebral no momento em que o sujeito
realiza determinadas tarefas ou experimenta determinada sensação. Assim, articulam-se
os dados da terceira pessoa – imagens do funcionamento cerebral, com os dados da
primeira pessoa – relatos do sujeito de experiência. A neurofenomenologia consiste na
articulação destas duas perspectivas representando um esforço para se instituir uma
contribuição circular, ou seja, de ambas as partes. A preocupação de Varela é garantir o
devido estatuto à experiência humana em toda a sua riqueza e complexidade.
Seguidamente, veremos com Lakoff e Johnson, que a mente é estruturada
através das experiências corporais e que toda a acção é corporalizada.
1.5. O contributo de George Lakoff e Marc Johnson
“A nossa corporalidade [corporeality] é parte da corporalidade do mundo [...] A mente não é apenas
corporal mas também apaixonante, desejante e social. Tem uma cultura e não existe sem cultura. Tem
uma história, desenvolve e cresce [...], tem um aspecto inconsciente, escondido da nossa visão directa e
138
apreensível apenas indirectamente.”
“O ambiente não é “um outro” para nós. Não é uma compilação de coisas que encontramos. [...] uma
parte do nosso ser. É o locus da nossa existência e identidade. Não podemos existir e não existimos
139
separados dele.”
George Lakoff e Marc Johnson enfrentam na obra Philosophy in the Flesh o
desafio de questionar os alicerces da filosofia ocidental através do que vêm como
resultados de investigações empíricas provenientes das ciências cognitivas. Somos
muito diferentes daquilo que a nossa tradição filosófica nos tem dito. Apesar de tudo, os
autores consideram que a filosofia e as ciências cognitivas podem enriquecer-se
mutuamente, podem ajudar-nos a dar sentido às nossas vidas, a saber quem somos e o
que significa ser humano,“a sofisticação filosófica é necessária se queremos manter a
138
LAKOFF, George; MARK, Johnson - Philosophy in the Flesh: the embodied mind and its challenge to
western thought. New York: Basic Books, 1999, p. 565.
139
LAKOFF, George; MARK, Johnson - Philosophy in the Flesh, p. 566.
69
ciência honesta. A ciência não pode manter uma posição autocrítica sem uma
familiaridade séria com a filosofia e com filosofias alternativas.”140
Nós pensamos com o corpo. É esta simples constatação que pode revolucionar
toda a filosofia ocidental até agora. Segundo George Lakoff, linguista, e Marc Johnson,
filósofo, o sujeito cartesiano, com uma mente separada do corpo, não existe
empiricamente.141 O mesmo se pode dizer relativamente ao sujeito kantiano capaz de
agir moralmente de acordo com as regras de uma razão universal, transcendente, com
uma razão e vontade puras: vontade e moralidade são encorpadas. Muito menos, o
sujeito descrito pela fenomenologia, que compreende a sua mente através da
introspecção.142
Com este duro golpe, a ciência cognitiva derruba as principais crenças sobre a
racionalidade: que a razão é independente do corpo, acessível pela consciência e uma
característica exclusivamente humana, que nos define. Esta mudança radical na
compreensão da razão representa uma mudança radical na compreensão de nós mesmos.
Assim, a mente é encarnada, estruturada através das nossas experiências corporais e não
uma entidade de natureza metafísica e independente do corpo. Da mesma forma, a razão
também não transcende o nosso corpo, pois origina-se na natureza do nosso cérebro, nas
peculiaridades do nosso corpo e das experiências vividas no mundo externo. Os
mecanismos neurais e cognitivos que permitem a percepção e o movimento também
criam os nossos sistemas conceptuais e modos de raciocinar. Assim, não é possível
compreender a razão sem compreender o sistema visual, o sistema motor e os
mecanismos intrincados das ligações neurais. Os processos sensoriomotores, percepção
e acção, são inseparáveis da cognição vivida.
O mundo que percebemos é constituído por padrões complexos de actividade
sensoriomotora. Falar de acção corporalizada é falar do corpo com as suas várias
capacidades sensoriomotoras, “o nosso corpo está intimamente ligado àquilo sobre o
qual andamos, nos sentamos, ao que tocamos, provamos, cheiramos, vemos,
respiramos, e ao espaço onde nos movemos.”143 Estas capacidades encontram-se num
140
LAKOFF, George; MARK Johnson - Philosophy in the Flesh, p. 552.
Descartes acreditava que a mente podia conhecer as suas ideias com absoluta certeza; que todo o
pensamento é consciente; que a estrutura da mente é acessível a si próprio; que a mente é
descorporalizada; que a imaginação e emoção não fazem parte da essência da natureza humana; que as
ideias inatas são independentes do corpo e que o pensamento é formal como a matemática.
142
Os autores consideram a reflexão fenomenológica valiosa por revelar a estrutura da experiência mas
esta deve ser completada através da pesquisa empírica sobre o inconsciente cognitivo .
143
LAKOFF, George; MARK, Johnson - Philosophy in the Flesh, p. 565.
141
70
contexto biológico, psicológico e cultural abrangente. Por exemplo, a cor não está lá
fora independente das nossas capacidades perceptivas e cognitivas. Também não é
independente do mundo biológico e cultural que nos rodeia, não existe no mundo
externo. Dado o mundo, corpos e cérebros envolvem-se para criar a cor. É notável o
exemplo do doente com acromatopsia cerebral relatado por Oliver Sacks e Robert
Wasserman e citado por Varela em A Mente Corpórea. Eis como ficou o artista plástico
após um acidente de viação: “Devido à ausência de cor, o carácter global da sua
experiência mudou dramaticamente [...] deixou de poder imaginar visualmente as cores
e deixou de ser capaz de sonhar a cores. A sua apreciação da música passou também a
ser prejudicada, dado que deixou de ser capaz de experienciar os tons musicais
transformando-os sinestesicamente em jogos de cor [...] os seus hábitos,
comportamentos e acções modificaram-se à medida em que se ia tornando
progressivamente uma pessoa noctívaga.”144
A razão não é desencarnada nem tampouco transcendente ou universal ao
contrário do que se tornou consensual; ela não é consciente, mas sim inconsciente; não é
literal, mas metafórica e imaginativa, já que as metáforas entram largamente sempre que
queremos explicar o que significa pensar, perceber, acreditar, imaginar; não é neutra,
mas cheia de emoção. Razão e emoção fazem parte da mesma acção de conhecer e o
corpo é aquilo que a evolução permitiu que ele fosse. O corpo é um processo constante,
permanente e transitório, de acomodamento e trocas com o meio em que vive. O nosso
relacionamento com os outros e com o mundo é sempre um processo encarnado. O
aspecto evolucionista da razão muda por completo a nossa relação com os outros
animais e ao mesmo tempo a nossa concepção enquanto seres humanos especificamente
racionais. A razão não constitui a nossa essência e coloca-nos em continuidade com os
animais não racionais, “a razão humana é uma forma de razão animal, uma razão
inextrincavelmente ligada aos nossos corpos e às particularidades dos nosso
cérebros.”145
A actividade mental não pode ser separada da anatomia e fisiologia do cérebro,
que é, em grande parte, inconsciente. Os autores afirmam ser todo o pensamento
inconsciente, uma vez que não temos acesso aos mecanismos que nos permitem
entender um simples enunciado, como por exemplo, identificar um segmento de
144
145
VARELA, J. Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor - A Mente Corpórea, p. 215.
LAKOFF, George; MARK, Johnson - Philosophy in the Flesh, p. 17.
71
fonemas, o fazer sentido semântico e pragmático do enunciado, em suma, os
mecanismos envolvidos no processo de compreensão e produção linguística. Também
não é possível conhecer a mente introspectivamente, por auto-análise, para ter acesso à
maior parte do nossso pensamento, é necessária investigação empírica.
Não somos totalmente livres nem autónomos. Uma vez aprendido um sistema
conceptual, este é registado nos nossos cérebros e por isso não somos livres de
pensarmos o que quisermos. Os nossos sistemas conceptuais emergem, em grande parte,
da totalidade dos nossos corpos e dos ambientes em que vivemos, onde há relatividade e
contingência. A fundamentação dos nossos sistemas conceptuais cria um eu centrado,
mas não um eu monolítico. Não existe um fundamento subjectivo ou objectivo da
natureza humana, mas um corpo que faz trocas com o meio, “a natureza humana é
conceptualizada mais em termos de variação, mudança, e evolução, não em termos
meramente de uma lista fixa de características principais. Faz parte da nossa natureza
variar e mudar.”146
Os nossos conceitos são formados a partir do corpo e juntamente com a razão
derivam do nosso sistema motor e fazem uso dele. Conceitos básicos como mente,
tempo, causalidade, moralidade, não passam de abstracções que criamos para viver. Os
conceitos abstractos são, em sua maioria, metafóricos, como por exemplo, os conceitos
morais. A metáfora não é um aparato cognitivo que nos faz falar, ver e agir. As
metáforas abordadas nesta obra, além de não serem transcendentais ou racionais,
surgiram das nossas experiências corporais com o meio em que vivemos. A propósito
das origens da mente também António Damásio fala das metáforas que os nossos
sistemas cognitivos têm criado para descrever o mundo que nos rodeia. Estas baseiamse em experiências típicas do corpo humano, “ as noções de felicidade, saúde, vida e
benignidade são geralmente associadas com a noção de “para cima”, tanto em
palavras como em gestos. A tristeza, a doença, a morte e a maldade estão claramente
associadas com a direcção inversa, “para baixo”. O futuro está associado com a noção
de “para a frente”.147
A verdade não resulta simplesmente de um correcto ajustamento entre palavras e
o mundo, porque há um corpo que se interpõe nessa relação. Os conceitos são
encarnados e não imaterialidades produzidas pela actividade do raciocínio. Os mesmos
mecanismos neuronais e cognitivos, que nos permitem perceber o que está em nosso
146
147
LAKOFF, George; MARK, Johnson - Philosophy in the Flesh, p. 557.
DAMÁSIO, António - Ao Encontro de Espinosa, p. 230.
72
redor, criam em nós conceitos e raciocínios. Para entender como e porque raciocinamos,
precisamos saber do papel que desempenham nesse processo o nosso sistema
sensóriomotor. A verdade é mediada por um entendimento e uma imaginação
encarnadas.
A explicação estritamente biológica de Lakoff e Johnson, apresenta o ser
humano limitado ao próprio corpo e à sua relação com o meio. A relação intersubjectiva
fica, assim, situada exclusivamente no domínio biológico. O ser humano não deve ficar
reduzido à matéria corporal, animal. A experiência humana ao dar-nos a conhecer o
mundo, dá-nos também o conhecimento da pessoa que pela empatia com os outros
consegue aceder a outras dimensões de si mesmo.
Capítulo 2: Concepção não dualista de Edith Stein e o conceito de empatia
2.1. Edith Stein e a constituição do indivíduo
No segundo capítulo da sua tese de doutoramento, publicada com o título Sobre
o Problema da Empatia (1916), [no original, Zum Problem der Einfuhlung] Edith Stein
dedica-se à análise da empatia e suas implicações na constituição do indivíduo. Na sua
reflexão começa por colocar em separado o psíquico e o físico, alma e corpo vivo,
separação artificial, já que a alma é sempre e necessariamente alma num corpo vivo. A
alma como unidade substancial que se manifesta nas vivências psíquicas singulares
constitui com o corpo vivo o indivíduo psicofísico.
A análise steiniana, seguindo o método fenomenológico de Edmund Husserl,
procura resposta à ontologia da humanidade (quem é o homem?) e começa por
considerar a dimensão biológica do homem. Salta à vista o corpo humano que anuncia
algo interior que não o deixa ficar reduzido à matéria corporal-animal. Diz Stein em A
Estrutura da Pessoa Humana: “Se queremos saber o que é o homem, temos que nos
colocar do modo mais vivo possível na situação em que experimentamos a existência
humana, ou seja, o que dela experimentamos em nós mesmos e nos encontros com os
outros homens.” 148 É um facto que, na constituição do homem, estão presentes os
mecanismos biológicos e instintivos que caracterizam os animais, mas não só: “os
148
STEIN, Edith - La Estructura de la Persona Humana. Madrid: B.A.C., 1998, p. 49.
73
homens são pessoas de um modo de ser próprio e individual. A concepção que têm uns
dos outros não é meramente intelectual, mas na maior parte dos casos dá-se uma
relação interna mais ou menos profunda, ou pelo menos há algo disso em todo o
encontro vivo.”149 O homem experimenta a existência dos outros homens, das coisas e
do mundo e, ainda que de modo diverso, a sua própria condição humana porque em
tudo o que experimenta e experiencia, a si mesmo se experimenta e experiencia: “A
experiência que tem de si mesmo é completamente diferente da que tem de tudo o
resto”,150 porque a existência humana contempla uma abertura para fora de si mesmo,
para os outros homens, para as coisas, para o mundo e uma abertura para dentro de si
mesmo, para o seu interior, para a sua própria existência íntima.
Não se tratando de uma análise psicológica, o estudo da psicologia parecia-lhe
algo demasiado rígido e muito ligado aos mecanismos humanos, à parte de toda a
dimensão espiritual, remete para a consciência pura. Aí se distinguem dois tipos de
experiência cruciais para se entender a descrição da empatia – a experiência primordial,
referência ao próprio sujeito, e não primordial, referência a outro ser consciente
enquanto tal. Em sua pureza, o acto de empatia é primordial enquanto sou eu que
intencionalmente experimento o outro, mas não primordial quanto ao seu conteúdo,
dado que a consciência do outro não é minha. Assim, a experiência empática articula-se
do seguinte modo: primeiro, o outro apresenta-se como objecto da minha consciência
(vejo a tristeza no seu rosto); segundo, surge uma atracção pelo outro e tomo a sua
condição como própria (assumo a sua tristeza como minha); terceiro, o outro apresentase como objecto de experiência, mas agora posso entender a experiência do outro.
Como se constitui o corpo vivo na minha consciência? Para Stein, o corpo vivo é
constituído por sensações, que são as componentes reais da
consciência, e os
sentimentos que a elas estão ligadas e que emanam do eu. O corpo vivo constitui-se de
uma dupla maneira: o corpo vivo que sente – as sensações dão-se no corpo vivo - e o
corpo físico percebido externamente. O corpo físico é-nos dado nos actos de percepção
externa: vejo objectos, toco-lhes, aproximo-me e distancio-me deles. É o que está “fora
de mim”, ao passo que o corpo vivo está sempre aqui, “com uma insistência
inamovível”. 151 Mesmo que fechemos os olhos e não toquemos em nada, não nos
149
Ibidem, pp . 53-54.
Ibidem, p. 53.
151
STEIN, Edith – Sobre el Problema de la Empatia. Madrid: Editorial Trotta, 2004, p. 60.
150
74
conseguimos desembaraçar dele, a ligação é indissolúvel: ele está aí em plena
corporalidade própria e esta ligação não se podia constituir em percepção externa. Esta
definição de corpo vivo em Stein, aproxima-se do que Damásio designa de sentimento
de fundo, algo que não tem origem nas emoções, mas em estados corporais de fundo - o
sentimento da própria vida, a sensação de existir. Foi este sentimento de fundo, esta
sensação de existir, o responsável pela máxima cartesiana “Penso, logo existo”.
Todo o psíquico é consciência corporalmente ligada. O eu é o corpo vivo como
um todo. Esta ligação tem, no entanto, algumas liberdades, ”em “pensamentos” posso
levantar-me do meu escritório, ir a um canto da minha casa e observá-lo dali [...] assim
se desdobrou o meu eu, e se o eu real não se desprende do corpo vivo, então está
claramente mostrada a possibilidade de “poder viajar fora da nossa pele”, pelo menos
na fantasia.”152 Também Damásio afirma que, se por um lado, partes do cérebro podem
vaguear pelo mundo, por outro, têm de cartografar o próprio estado do organismo, não
podem transpor a fronteira. Evidentemente, a leitura de Damásio situa-se no plano
neurobiológico e é actual, ao passo que a obra de Stein referenciada insere-se no
domínio espiritual, situa-se num paradigma diverso do de Damásio, mas podemos tentar
algumas leituras. Podemos aproximar o “eu real” a que Stein se refere ao sentido de si
de Damásio, o si que é uma presença, nem sempre inamovível, se tivermos em conta os
pacientes com doenças neurodegenerativas, mas que se esforça por estar presente
mesmo nestas situações mais adversas, pois perder o si é perder-se a si próprio. O
“desdobramento do eu” poderá ser entendido como a forma de se manter o equilíbrio
entre o que está dentro e o que está fora, e revela a capacidade da mente poder
“divagar”, mas com “bilhete de regresso” ao mesmo corpo.
2.2. A realidade pessoal do ser humano
A fenomenologia permitiu a Stein superar dualismos antropológicos, integrar
experiência e reflexão, assumir a pessoa como ser corporal, animado, espiritual, através
das suas vivências. A experiência é o acesso para conhecer o mundo e a pessoa. Nesta
perspectiva, o solipsismo não constitui um problema uma vez que se parte do ser
concreto no mundo (Stein não aceita sem crítica a epoché de Husserl), e com os outros
(solicitude).
152
Ibidem, p. 65.
75
Diferentemente dos outros seres, o homem diz eu e, se com eles tem em comum
um corpo material e uma alma anímica, destes se distingue ao dizer eu, na experiência
da sua própria intimidade. O eu não é uma célula do cérebro: não posso determinar um
ponto do meu corpo onde o eu tenha um lugar próprio. O animal não é capaz de fazer o
caminho para lá dos sentidos, não lhe é permitido sair de si e aceder a outras dimensões
de si mesmo. O animal encontra-se fechado em si próprio. Apenas o homem pode
relacionar-se com os outros, pois é um ser capaz de relação.
Após afirmar o ser pessoal como a realidade que, em definitivo, distingue o ser
humano dos outros seres, Stein procura o especificamente humano, a pessoa autêntica, e
considera a liberdade como seu primeiro pilar. O homem é livre, porque pode, porque o
mundo e as coisas diante dele não se lhe impõem sem mais, sem alternativa. O mundo
das coisas se lhe insinua, convida-o, mas o homem pode não responder aos instintos e
estímulos que incitam ao domínio e à posse, e dar o salto a uma profundidade e
interiorização no verdadeiro encontro com o que está fora de si. Por ser livre, ao poder,
o que o homem faz no mundo depende da sua liberdade. O homem é responsável por si
mesmo, porque é dele mesmo que depende quem ele é.
Encontramos em Edith Stein a fundamentação fenomenológica para uma ética
da responsabilidade enquanto relação recíproca, diálogo e cuidado intersubjectivo. Com
a empatia Edith Stein oferece-nos o conceito chave para descrever a constituição do
outro como pessoa. Pela empatia podemos entrar no sentido da responsabilidade moral
enquanto resposta integrante de ser pessoa no seu coexistir de ser com/para o outro.
2.3. O conceito de empatia em Edith Stein
“A apreensão de vivências alheias - sejam sensações, sentimentos, o que for – é uma modificação da
consciência unitária, típica (ainda que diferenciada de várias maneiras) e requer um nome unitário;
para ela escolhemos o termo empatia.”153
“Um amigo veio até mim e conta-me que perdeu seu irmão, e eu noto a sua dor. O que é este notar? Em
que se baseia, de onde concluo a sua dor? [...] se calhar a sua cara está pálida e assustada, sua voz
afónica e comprimida, se calhar da expressão da sua dor com palavras. Todos estes são, supostamente,
temas de investigação, mas isso não me importa aqui. O que quero saber é isto, o que o notar mesmo é,
154
não pelo que caminho chego a ele.”
Edith Stein distingue entre empatia e percepção sensorial. Na experiência
sensorial o sujeito está consciente do objecto enquanto que na empatia apreende (grasp)
153
154
Ibidem, p.79.
Ibidem, p.22.
76
a experiência do outro como se fosse sua. Na empatia temos consciência directa do
outro como um indivíduo encarnado como eu, como corpo vivo, em contraste com o
corpo físico. A empatia surge como fundamento da experiência intersubjectiva e
condição de possibilidade do conhecimento do mundo externo existente.
Empatia é “sentir dentro”, é a capacidade de apreender a experiência subjectiva
do outro, o vivenciar do outro. É diferente de simpatia que pode sentir-se por uma
pessoa sem no entanto se compartilhar aquilo que essa pessoa sente. A empatia exige
calma e receptividade suficientes para que os subtis sinais dos sentimentos do outro
possam ser recebidos. A empatia confirma a identidade pessoal e a alteridade do outro e
é motivada pela vontade. A empatia não é percepção ou uma posição neutral, mas um
acto único que me permite experimentar parte da experiência do outro. Trata-se,
segundo Stein, de uma intuição interna. É um acto de perceber sui generis, é a
experiência de uma consciência alheia em geral. É desta forma que compreendemos a
vida psíquica dos nossos semelhantes. A empatia é acto originário como vivência
presente, mas não originário no seu conteúdo, este conteúdo é uma vivência. Quando
está frente a mim como objecto, quando vejo a tristeza no rosto do outro, ela já não é
objecto em sentido próprio, senão que me transferi para dentro de si. Husserl entendia-a
como experiência da consciência alheia em geral e de suas vivências, diferenciando-a da
experiência que a própria consciência faz de si mesma. Stein estabelece uma distinção
qualitativa das consciências subjectivas baseando-se no conteúdo particular das suas
vivências. Não obstante, tão importante como o estudo da empatia, é o da estrutura do
sujeito empatizado e do que empatiza.
O indivíduo concreto/real é encarnado. Reconhecemos que o sujeito psicofísico
só se apercebe do seu corpo vivente (leib) enquanto corpo físico (korper) semelhante a
outros corpos. O ser-para-o-outro fundamenta a empatia e esta esclarece
fenomenologicamente o vínculo. A experiência originária do outro recusa toda a
imposição objectivista, toda a assimilação do outro a nível do objecto. Na experiência
do outro está envolvido o reconhecimento de outra perspectiva distinta da minha, mas
necessária. Necessito do outro para desenvolvimento do meu ser concreto, já que existe
em cada um de nós uma insuficiência de ser, uma incompletude. Se não se reconhece a
experiência do outro como alteridade e mesmidade, como outro que eu e o mesmo que
eu, se se tematiza como objecto constituído e não um co-constituinte, então o coisifico.
Pessoa é co-pessoa.
77
As ciências cognitivas avançam com uma explicação neurobiológica para a
empatia. Cada ser humano tem a capacidade de intuitivamente entender e sentir a acção
do outro, e tal não acontece por transmissão verbal de informação mas através da
observação da expressão facial, gesto, postura do corpo. Esta capacidade de simular,
está, segundo alguns neurocientistas, relacionada com os neurónios espelho,155 células
nervosas que “espelham” o ambiente no cérebro de um ser humano e activam em nós o
que inicialmente eram unicamente as emoções e sentimentos do outro.
No capítulo seguinte abordaremos o conceito de empatia em António Damásio,
apresentando a título de exemplo, alguns casos clínicos de pacientes seus.
Capítulo 3: A Empatia na prática clínica
3.1. O conceito de empatia em António Damásio
“O drama das situações em que a lesão do cérebro provoca coma ou estado vegetativo, as situações em
que a consciência fica mais radicalmente alterada são acontecimentos que, se me tivesse sido permitir
escolher, teria preferido não observar. Poucas coisas são tão difíceis de testemunhar como o
desaparecimento súbito e forçado da mente consciente numa pessoa que se mantém viva e poucas coisas
são tão dolorosas de explicar a uma família com esse desaparecimento. Como é possível explicar a
alguém que o companheiro de toda uma vida, que parece estar a dormir tranquilamente, não está a
dormir; que nada há de benigno ou reparador neste modo de descansar; que a consciência perdida
poderá nunca mais ser recuperada?”156
Nas obras de António Damásio são apresentados alguns casos clínicos, de
pacientes seus, que devido a lesões cerebrais, algumas localizadas em áreas específicas
como a região pré-frontal, ficaram com incapacidade de sentir empatia. Naturalmente,
sendo Damásio um neurocientista, não podemos esperar outro tipo de explicação para o
que é a empatia que não esteja ancorada na neurobiologia, ou seja, no corpo
propriamente dito. Também não podemos abordar o tema da empatia em Damásio sem
levar em conta as suas teorias relativas às emoções e sentimentos com atenção especial
para os sentimentos de fundo.
155
Para um aprofundamento deste assunto consultar: Rizzolatti G., Fogassi L., Gallese V., - “Mirrors in
the mind”. In: Scientific American, 295, (5), 2006. Dados recentes mostram que estes neurónios podem
ser úteis a doentes vítimas de acidente vascular cerebral. Parece que a observação de movimentos a
serem reaprendidos acelera o processo de fisioterapia e plasticidade cerebral.
156
DAMÁSIO, António - O Sentimento de Si, p. 26.
78
Damásio identifica a empatia com a capacidade do cérebro em simular estados
do corpo internamente. A “simpatia” é uma emoção que se transforma no sentimento de
“empatia”. Já em O Erro de Descartes tinha descrito o mecanismo necessário para a
produção deste sentimento, o mecanismo como-se-fosse-o-corpo (as if body loop). Em
Ao Encontro de Espinosa diz que este mecanismo consiste numa modificação rápida do
mapeamento do corpo, “esta simulação ocorre quando certas regiões cerebrais, tais
como os córtices pré-frontais/pré-motores enviam sinais directos para as regiões
somatossensitivas” produzindo uma “antecipação de movimentos que podem vir a ser
necessários para a comunicação com o indivíduo cujos movimentos estão a ser
“espelhados”.157 Em termos concretos, na presença de um acidente, o nosso sentimento
será mais ou menos intenso dependendo da dimensão do acontecimento e da relação que
tivermos com os acidentados, podemos até sentir e representar na nossa mente a
possível dor das pessoas em questão. Também pode acontecer que ao vermos uma
fotografia os músculos do nosso rosto executem, sem darmos conta, as expressões
visionadas como se de um espelho se tratasse. Estes “neurónios espelho presentes no
córtex frontal de macacos e humanos podem levar o cérebro a simular internamente o
movimento que outros organismos realizam no seu campo de visão.
Damásio, na descrição que faz dos doentes que acompanha, também demonstra
o quanto se envolve emocionalmente e empaticamente. Eis alguns casos:
“Elliot era capaz de relatar a tragédia da sua vida com uma imparcialidade que
não se ajustava à dimensão dos acontecimentos. Agia sempre de forma controlada,
descrevendo as cenas como um espectador impassível e desligado [...] Em si mesmo,
isto não era propriamente um problema: restrições deste tipo são bem-vindas, do ponto
de vista de um médico-ouvinte, dado que reduzem os custos emocionais do observador.
[...] Apercebi-me então de que sofria mais quando ouvia as histórias de Elliot do que
ele próprio parecia sofrer. Para ser exacto, senti que, apenas pelo facto de pensar
naquelas histórias, eu sofria mais do que ele.”158
“O meu amigo David acaba de chegar. Cumprimento-o com um abraço e um
sorriso e ele devolve-me o cumprimento. Estou encantado de o ver e ele está encantado
de me ver. É tudo tão natural que nem me consigo lembrar de quem sorriu primeiro ou
157
158
DAMÁSIO, António - Ao Encontro de Espinosa, p. 138.
DAMÁSIO, António - O Erro de Descartes, p. 64.
79
de quem primeiro falou. Não é importante. Tanto David como eu estamos contentes por
estar aqui.”159
“Tenho assistido a esta desintegração em muitos doentes de Alzheimer, mas
nunca de forma tão dolorosa como aconteceu com um amigo querido que foi também
um dos mais notáveis filósofos da sua geração [...] “No meio da tristeza desta ocasião,
consolou-me a ideia de que ele já não podia conhecer.”160
“O coma é uma situação trágica e a tarefa de descrever os seus terríveis efeitos
é dolorosa. Mas é bem pior lidar com um doente em locked-in, olhar nos olhos alguém
que tem uma mente consciente mas que está limitado a exprimir-se através de um
código tão elementar [...] o único consolo que podemos encontrar no confronto com a
triste realidade dos doentes locked-in é que a profunda deficiência do controlo motor
reduz a sua actividade emocional e parece produzir uma certa calma interior.”161
“Surpreendi-me um dia quando verifiquei que eu próprio ficava mais triste ou
mais embaraçado quando ouvia algumas das histórias pessoais destes doentes do que
eles pareciam estar, à medida que as contavam.”162
A exposição destes casos confirmam que a empatia é um sentimento e que a
nossa vida deve ser regulada não só pelos nossos desejos e sentimentos, mas também
pela nossa preocupação com os desejos e sentimentos dos outros, “os seres humanos
não só demonstram compaixão pelo sofrimento de um outro ser, coisa que várias
espécies não humanas podem também demonstrar, como sabem que sentem essa
compaixão.”163Neste sentido, o conceito de empatia de Edith Stein ganha um reforço
biológico necessário para a sua compreensão no paradigma científico actual. A empatia
deixa de ser uma intuição simplesmente interna e passa a apresentar-se como um
sentimento com base neurológica.
159
Trata-se de um doente profundamente amnésico. A proximidade da relação baseia-se no facto de
David ser paciente de Damásio há muitos anos. DAMÁSIO, António - O Sentimento de Si, p. 144.
160
Ibidem, pp. 129-130.
161
Ibidem, p. 280.
162
DAMÁSIO, António – Ao Encontro de Espinosa, p. 167.
163
Ibidem, p.192.
80
3.2. S. Kay Toombs: o conceito de empatia de Edith Stein aplicado à prática clínica
Neste capítulo será abordado o artigo de S. Kay Toombs “O papel da empatia na
prática clínica”, [no original, “The role of empathy in clinical practice”]onde a autora
analisa o conceito de empatia em Edith Stein e a sua aplicação no campo da prática
clínica, em particular, no encontro médico-paciente.
O interesse de S. Kay Toombs na fenomenologia e na intersubjectividade
humana desperta com a sua própria vivência, a sua experiência como paciente de
esclerose múltipla e a barreira sentida na comunicação com os médicos. Para Toombs,
médicos e doentes vêem a doença sob perspectivas diferentes: o médico interessa-se
pela patofisiologia da doença e o seu impacto no corpo físico; o doente preocupa-se com
o impacto existencial da doença, num corpo particular e num contexto particular.
Toombs considera que a empatia ajuda os médicos a captarem conteúdos na
primeira pessoa e a compreenderem o sentido da doença vivida, por isso, considera que
a educação médica deve desenvolver nos estudantes de medicina a capacidade de
compreensão empática. Damásio partilha igualmente esta ideia que é compatível com a
atitude face aos doentes que acompanha, “a medicina tem demorado a aperceber-se de
que aquilo que as pessoas sentem em relação ao seu estado físico é um factor principal
no resultado do tratamento.”164
Podemos no entanto questionar como elaborar de forma rigorosa a perspectiva
do doente, como captar as suas vivências, e como fazer a ponte entre a ciência e a
experiência humana no contexto da relação médico-paciente. A estas questões se tentará
dar resposta com base na análise fenomenológica considerando a distinção entre corpo
vivido (lived body) e corpo objectivo, fisiológico (objective body), sabendo que corpo
vivido é o que experienciamos imediatamente de modo pré-reflexivo e o corpo
objectivo é visto como objecto que pode ser cientificamente estudado.
Normalmente não estamos conscientes do corpo como objecto entre outros no
mundo nem como puro organismo biológico. A atenção é dirigida para o que está à
nossa volta e o corpo é dado como garantido. Em situação de doença,
incapacidade/limitação ou cansaço, a atenção que é habitualmente dirigida para o
mundo volta-se para nós próprios. A doença não constitui apenas uma alteração no
corpo biológico, mas um “rompimento” do corpo vivido.
164
DAMÁSIO, António – O Erro de Descartes, p. 260.
81
As mudanças no corpo a nível da função, sensação ou aparência, perturbam a
intencionalidade corporal. Em circunstâncias normais, o mundo e os objectos são
experienciados como “convites” ao corpo, acções possíveis de acordo com os nossos
objectivos e projectos. A acção de agarrar a caneta revela a intenção de a usar para
algum propósito, é determinada por objectivos pessoais. Na doença, esta interacção com
o mundo tida como garantida, torna-se problemática. Objectos que usávamos sem
pensar apresentam-se agora como um problema para o corpo. Para o meu amigo com o
problema no braço, a chávena de café representa uma dificuldade concreta – como levála aos lábios sem a entornar? Assim como para uma pessoa com angina de peito as
escadas são um obstáculo a evitar.
Edith Stein diz que é possível apreender sentimentos empaticamente. Através do
andar do outro, postura, movimentos, conseguimos entender como ele se sente. Nesta
conexão, o comportamento corporal não expressa apenas sentimentos, mas identifica o
corpo vivo como pertencendo a um indivíduo particular: diferentes gestos corporais,
modo de andar, expressão facial, tom de voz, expressam um estilo corporal único. É
também através destes comportamentos que Damásio explica como o diagnóstico das
emoções de fundo, “depende de manifestações subtis tais como o perfil dos movimentos
dos membros ou do corpo inteiro [...] bem como de expressões faciais [...] aquilo que
mais conta para as emoções de fundo não são as palavras propriamente ditas nem o
seu significado, mas sim a música da voz, as cadências do discurso, a prosódia.”165
Mudanças no estilo corporal, alterações nos padrões de movimentos engendram uma
perda de identidade corporal alienada no corpo vivo. Eis o que diz Tommbs na primeira
pessoa: “Ao vislumbrar a minha imagem num espelho, a minha maneira cada vez mais
peculiar de me movimentar provoca-me um sentimento de perplexidade. Apanho-me a
pensar “Aquela pessoa no espelho sou mesmo EU? Ao mesmo tempo, quando vejo
filmes que me mostram a andar, acho difícil lembrar-me de como é mover-me daquela
maneira, ou até ser aquela pessoa. As pessoas que me conhecem bem partilham comigo
este sentimento de perplexidade. Ao ver uma velha fotografia que me mostra de pé, o
meu marido comentou num tom de admiração, “Tu não eras alta?”166
O corpo vivo é também expressão da experiência afectiva. Ao observar a
expressão facial do outro, empaticamente, apreendo a experiência de alegria, raiva,
165
Ibidem, p.164.
TOOMBS, S. Kay - “The Role of Empathy in Clinical Practice.” In: Journal of Consciousness Studies,
8, 5-7, 2001, p. 252.
166
82
desespero: “As emoções não estão simplesmente “na nossa cabeça”, estão
concretamente corporizadas. A cor vermelha na cara não é a penas uma expressão da
ira, É a ira.”167
Como desenvolver a compreensão empática? A análise de Edith Stein indica que
a empatia é um dom, um modo de cognição no qual apreendemos as vivências dos
outros e a falta de conhecimento empático no encontro clínico, constitui uma falha neste
modo de cognição. A tradição médica tem visto a doença apenas como patofisiologia
excluindo o conhecimento intuitivo resultando numa medicina menos humana. Quando
o médico se defronta com os sintomas do paciente, desenvolve um reflexo em que a
consciência da possível doença é mais imediata do que a do paciente que está à sua
frente. Por vezes a presença do paciente pode até tornar-se um elemento perturbador:
“não consigo ouvir-te enquanto estou a escutar” explodiu o médico irritado, enquanto
a paciente sob o estetoscópio continuava a falar”.168
Para Toombs, a compreensão empática desempenha duas importantes tarefas no
contexto clínico: ajuda o médico a apreender o que o paciente experiencia em termos de
desordem corporal, o significado do corpo vivo irrompe no contexto desta situação
particular, e leva a que se aprenda ou reaprenda acerca da normalidade corporal pondo
ênfase no conhecimento intuitivo que já possuímos em virtude da nossa humanidade. A
escuta empática requer que se dê atenção à história do outro. No encontro clínico este
acto de atenção inclui uma observação do paciente na sua presença (gestos, expressões
faciais, tom de voz...) mas requer igualmente que o médico foque directamente a
história da doença contada pelo paciente. A narrativa clínica deve distinguir-se do
historial médico. O historial médico detalha o impacto da doença no corpo, e a narrativa
clínica o impacto da doença na pessoa. No contexto da educação médica a capacidade
de escuta deve ser desenvolvida e a narrativa clínica deve ter o mesmo status do
historial médico. Há que cultivar a escuta empática e colocar os estudantes desde cedo a
escutarem as narrativas dos pacientes, de modo a que não fiquem relegadas a uma nota
de rodapé.
Para Toombs, a imaginação é importante para entender a doença como vivida.
Além da escuta, é necessário tentar ver o mundo através dos olhos dos outros. Um
importante objectivo da educação médica é, no seu entender, a tarefa de desenvolver
nos estudantes o cultivo da imaginação o que significa dar ênfase às artes criativas como
167
168
Ibidem, p. 252.
Ibidem, p. 254.
83
componente crucial do treino dos profissionais de saúde. Em consonância Damásio
considera que a cultura ocidental revela algo de paradoxal no que diz respeito à
conceptualização da medicina e relativamente aos seus profissionais, “há muitos
médicos que se interessam pelas humanidades, das artes à literatura e à filosofia [...]
houve vários que reflectiram com profundidade sobre a condição humana [...] no
entanto, as escolas de medicina de onde eles provêm ignoram, na sua maior parte,
essas dimensões humanas, concentrando-se na fisiologia e na patologia do corpo
propriamente dito.”169
Esta compreensão é necessária para uma medicina mais humana, não apenas nos
aspectos biomédicos da doença, mas com o doente na sua experiência de doença vivida.
169
DAMÁSIO, António – O Erro de Descartes, p. 259.
84
CONCLUSÃO
A medicina, hoje, ébria das suas conquistas, mas perdida numa amálgama de
interesses contrários e inundada pelas últimas novidades tecnológicas e pela indústria
farmacêutica, está desnorteada, sem bússola. A desunidade irreversível das ciências
ocidentais surge tanto com o dualismo cartesiano como com a visão materialista do
corpo, considerado único ponto de interesse do ser humano, por ser objectivável,
quantificável. A compreensão do ser humano como um todo dá lugar ao paradigma
explicativo. A “árvore cartesiana” vê amputado um ramo, para Descartes, o mais
importante - a moral, que funcionando como complemento da medicina, tem como
objecto o corpo humano. A ideia de que a moral fornecia a técnica de dominar as
paixões, não anda muito longe das teses de Damásio e de outros neurocientistas que
afirmam que as emoções devem ser reguladas, controladas.
No Discurso do Método, Descartes aponta a conservação da saúde como um
bem fundamental e considera que o auto-conhecimento é útil para a moral e a medicina.
Tal como António Damásio que nos alerta para o efeito do consumo das drogas a longo
prazo, uma vez que não conhecemos de momento os seus efeitos a nível biológico,
também Descartes alertou para o efeito do consumo dos químicos remetendo-nos para o
conhecimento da natureza do corpo. Ser médico, como Hipócrates ensinou, é cuidar do
corpo e da alma mas, a “expulsão da alma” tudo permitiu na exploração do corpo. A
separação dos saberes acarretou consigo a especialização extrema que trouxe como
consequência um aumento da assimetria na relação médico-paciente. Tratam-se órgãos
e compensam-se funções sem cuidar do corpo. O corpo médico é, hoje, corpo-matéria.
Só uma concepção adequada do corpo/alma poderá precaver-nos contra estes desvios.
Aceitar a dimensão bidimensional do ser humano como corpo e alma é estar mais atento
aos conflitos de ordem psíquica e à abordagem psicossomática da doença. É preciso
fazer a ponte entre o exterior e o interior.
António Damásio não poupou Descartes a críticas, não só ao dualismo
substancialista mas, também, por ter influenciado alguns neurobiologistas a estudarem a
mente sem recorrer ao corpo criando, assim, um novo dualismo. Este erro de tipo
cartesiano conduziu a uma ideia ainda muito enraizada na medicina ocidental e até no
senso comum, a ideia de separar as doenças físicas das doenças psicológicas, como se
nas doenças físicas não houvesse envolvimento afectivo e nas psicológicas não
houvesse envolvimento físico. Por isso, a distinção cérebro/mente tem impacto no modo
85
como Damásio vai perspectivar a ética na medicina, pois há que distinguir bem entre as
doenças da mente e as doenças do cérebro para se poder intervir correctamente. A
medicina psicossomática tem vindo a ganhar força, mas ainda há quem olhe para ela
com desconfiança.
Não podemos, no entanto, culpabilizar Descartes pelo modo como a medicina
ocidental olha hoje para o homem. Quando muito podemos falar de interpretações de
tipo cartesiano, o que não é exactamente a mesma coisa. Não podemos pôr de lado a
época em que Descartes viveu e a importância que tiveram as suas investigações nessa
altura, e que, se de alguma forma ainda hoje atormentam alguns, é porque há nelas
alguma verdade, algo que nos faz pensar. O erro de Descartes é, de certa forma, a
verdade de todos nós. O “penso, logo existo” significa a impossibilidade de não
acreditar na existência. Sentir a existência é sentir a realidade, todos pensamos,
desejamos, sentimos, agimos, sofremos na primeira pessoa.
Que pensaria Descartes se lesse as obras de Damásio? Certamente, encontraria
explicações para algumas das suas intuições iniciais. Descartes viu o homem-máquina
que funcionava de acordo com as leis naturais, de modo preciso. Damásio, por sua vez,
reduz o social ao biológico, tudo explicando em termos de homeostasia, apresentando
uma visão reducionista do ser humano, não muito diferente de Descartes.
Subrepticiamente, Damásio vai rondando o espírito, uma ou outra vez, caindo na
tentação da explicação neurobiológica ligando as experiências espirituais à
neurobiologia dos sentimentos, integrando a sublimidade do espiritual na sublimidade
da biologia na tentativa de encontrar os processos fisiológicos que estão por detrás do
espiritual e a busca para o mistério da vida. A referência ao mistério da vida faz de
Damásio, talvez, o menos reducionista dos neurocientistas actuais, embora a sua
tendência seja claramente a de tudo reduzir a uma base neurobiológica, inclusivé os
fenómenos subjectivos. Penso que a sua formação humanista e cultural, 170 o gosto pelas
artes nas mais diversas expressões, em particular a música, a pintura, a literatura e
também a filosofia, revelam um interesse pelo humano noutras dimensões para além da
biologia.
170
Damásio trabalha no centro hospitalar de Iowa City há mais de 20 anos. Na sua primeira visita ao
hospital mandou fazer inscrições em braille nos botões dos elevadores. No hospital cada unidade médica
funciona como espaço autónomo e deve consagrar 1% do seu orçamento à aquisição de obras de arte
realizadas por artistas vivos. Uma tela anuncia as conferências do dia, exposições e concertos. O ambiente
é alegre e acolhedor. É caso para dizer que a doença não é tudo na vida.
86
Damásio refere-se às concepções e práticas terapêuticas ocidentais, mas nada diz
sobre a situação particular do encontro médico-paciente. Fala nas medicinas
“alternativas” não ocidentais que, por não ignorarem a pessoa como um todo, vão
ganhando cada vez mais adeptos, embora considere que estas ainda não resolvem
muitos problemas. Assiste-se cada vez mais a infidelidades dos pacientes para com os
seus médicos, ao procurarem nas medicinas “alternativas” respostas para as suas
doenças e um novo modelo de relação clínica. É necessária uma abordagem
psicossomática das doenças, onde as funções fisiológicas do corpo e o mundo
subjectivo sejam considerados como aspectos complementares da mesma realidade,
indissociável das experiências e vivências do paciente. O corpo não deve ser visto
apenas como uma materialidade, é carne sentida a partir do interior e que ninguém
conhece como eu.
O monismo materialista das neurociências leva a que o médico se preocupe
apenas com o corpo doente provocando-lhe uma cegueira afectiva e relacional, incapaz
de sentir empatia. Do do ponto de vista biológico, Damásio reuniu os elementos
necessários para se sentir empatia: a consciência, graças à qual desenvolvemos o
interesse pelos outros, a integridade das estruturas cerebrais necessárias, as emoções e
os sentimentos. Deixa o aspecto relacional por desenvolver e reduz a empatia a um
sentimento com base neurológica.
A empatia é, de certa forma, uma “introspecção indirecta”. Aos neurocientistas
Giacomo Rizzolatti, Leonardo Fogassi e Vittorio Gallese, deve-se a descoberta de um
conjunto de células nervosas que designaram de neurónios espelho, e que estão na
origem da empatia. A empatia é uma resposta afectiva desencadeada pelo estado
emocional do outro. É uma simulação mental consciente da subjectividade do outro,
fundamento da intersubjectividade. Esta definição aproxima-se da de Edith Stein, à
parte a base biológica.
Como nas outras relações intersubjectivas, numa consulta médica, há dimensões
menos consideradas, exteriores ao resultado técnico da acção, a saber, relações
emocionais, cognitivas, empáticas. Que resposta tem o clínico para as perturbações e
doenças que resultam primariamente de problemas familiares, sociais, colectivos?
Como enfrentar a anomia, a incomunicabilidade, a indiferença? Como preservar os
princípios tradicionais da medicina hipocrática, não maleficência, beneficência,
autonomia, justiça?
87
Em suma, o que é que o antidualismo nos oferece? Em que medida poderá
contribuir para um melhoramento da prática médica? A visão holista do ser humano
proposta por Damásio não parece trazer mudanças significativas em relação à postura
dos médicos e à sua relação com os pacientes. Mas também não podemos culpar
Descartes pelo alheamento dos médicos face aos seus doentes. A educação em geral, e a
educação médica, em particular, é que parece falhar. Uma sociedade espiritualmente
doente, sem valores sólidos e isenta de responsabilidade séria, minada pelo excesso de
valores estéticos e hedonistas, e pelo individualismo, dificilmente poderá gerar seres
humanos exemplares, atentos aos outros, responsáveis e comprometidos. O mesmo se
passa nas escolas de medicina. Nos consultórios e nas enfermarias os “novos” médicos
imaginam algoritmos óptimos para interpretar sintomas e sinais, anseiam cada vez mais
por dispositivos frios e descomprometidos. A ideia de medicina como modo de
interrogação do humano não pode existir neste espaço.
Recuperar a unidade do corpo e respeitar a integridade da pessoa, não é
necessariamente regressar à época arcaica da medicina. Exigir uma inteligibilidade mais
clara da subjectividade não obriga ao retorno do dualismo. O que não é admissível é que
se possa exercer clínica insensível à corporalidade e fechado à alteridade. Daqui deriva
a tomada de consciência da necessidade de uma teoria não redutora do corpo.
88
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