UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MARIA DA CONCEIÇÃO MARINHO OKI A HISTÓRIA DA QUÍMICA POSSIBILITANDO O CONHECIMENTO DA NATUREZA DA CIÊNCIA E UMA ABORDAGEM CONTEXTUALIZADA DE CONCEITOS QUÍMICOS: UM ESTUDO DE CASO NUMA DISCIPLINA DO CURSO DE QUÍMICA DA UFBA Salvador 2 00 6 MARIA DA CONCEIÇÃO MARINHO OKI A HISTÓRIA DA QUÍMICA POSSIBILITANDO O CONHECIMENTO DA NATUREZA DA CIÊNCIA E UMA ABORDAGEM CONTEXTUALIZADA DE CONCEITOS QUÍMICOS: UM ESTUDO DE CASO NUMA DISCIPLINA DO CURSO DE QUÍMICA DA UFBA Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de Doutora em Educação. ORIENTADORES: Prof. Dr. Olival Freire Júnior Prof. Luis Felippe P. Serpa (In Memoriam) Salvador 2006 Biblioteca Anísio Teixeira – Faculdade de Educação/ UFBA O41 Oki, Maria da Conceição Marinho. A história da química possibilitando o conhecimento da natureza da ciência e uma abordagem contextualizada de conceitos químicos : um estudo de caso numa disciplina do curso de química da UFBA. – 2006. 430 f. Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação, 2006. Orientador: Prof. Dr. Olival Freire Júnior e Prof. Luis Felippe P. Serpa (In Memoriam). 1. Química – Estudo e ensino – Universidade Federal da Bahia. 2. Ciência – Estudo e ensino. 3. Química – História. 4. Ciência – Filosofia. 5. Livros didáticos. I. Freire Júnior, Olival. II. Serpa, Luis Felippe P. III. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. IV. Título. CDD 540.7 – 22.ed. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO TITULO DA TESE: A História da Química possibilitando o conhecimento da natureza da ciência e uma abordagem contextualizada de conceitos químicos: um estudo de caso numa disciplina do curso de Química da UFBA. Autora: Maria da Conceição Marinho Oki Tese apresentada para obtenção do grau de doutor, defendida e aprovada em 26/06/2006, pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores: Dr. Olival Freire Júnior – Instituto de Física da UFBA (orientador) Dra. Rejane Maria Novais Barbosa – Universidade Federal Rural de Pernambuco Dra. Nídia Franca Roque – Instituto de Química da UFBA Dra. Maria Helena S. Bonilla – Faculdade de Educação da UFBA Dr. Nelson Rui Ribas Bejarano – Instituto de Química da UFBA Dra. Maria Luiza dos S. Correa – Instituto de Química da UFBA (suplente) AGRADECIMENTOS Várias pessoas nos apoiaram, incentivaram e ajudaram durante o nosso trajeto. Gostaria de agradecer a todos, em especial : aos professores Luis Felippe Serpa (In Memoriam) e Olival Freire Júnior da UFBA, meus orientadores, por terem acreditado ser possível; ao colega do DQGI Edilson Fortuna de Moradillo, pela proveitosa parceria intelectual dos últimos quinze anos e pela decisiva colaboração; aos colegas do IQ José Luis de P. B. Silva; Maria Bernadette de Melo Cunha e José Petroníllio Cedraz pela importante colaboração; aos colegas do grupo de ensino, Soraia Lobo e Abraão Félix da Penha pelo incentivo e torcida; ao professor Pedro Sarno, pelo exemplo de vida; aos funcionários do IQ Antônio Reis Cerqueira e Antônio Luis Machado pelo apoio e cooperação e a Lígia Teixiera pela ajuda distante. Um agradecimento muito especial aos nossos alunos da disciplina História da Química, dos semestres 2004.1 e 2005,1; aos ingressos no Curso de Química de 2004, que responderam ao nosso questionário e aos seis graduados que aceitaram ser entrevistados e participar da nossa pesquisa. A minha família, em especial meus pais e filhos e ao grande companheiro Norio Oki, pela torcida e por tudo o que fizeram tornando possível a concretização deste desafio. RESUMO Nesta tese relatamos um estudo de caso que teve como objetivo explorar as potencialidades de uma aproximação entre a História e Filosofia da Ciência da educação científica através da utilização do ensino de História da Química. Visávamos auxiliar os alunos na compreensão da natureza da ciência e no aprendizado de conceitos químicos. O estudo envolveu a nossa intervenção como professora/investigadora na disciplina História da Química (QUI 040), lotada no Departamento de Química Geral e Inorgânica da UFBA e teve um caráter exploratório utilizando uma abordagem de pesquisa qualitativa. A investigação didática foi realizada em duas partes: inicialmente identificamos concepções prévias sobre aspectos da natureza da ciência dos alunos e avaliamos variações em tais concepções, influenciadas por uma abordagem explícita de conteúdos de História e Filosofia da Ciência; na segunda parte, trabalhamos com a contextualização histórica dos conceitos químicos para ajudar na compreensão desses conceitos. Este estudo envolveu, também, a análise da apresentação de alguns conteúdos e conceitos científicos nos livros didáticos, tendo como principal referencial teórico a História e Filosofia da Ciência. Os resultados obtidos demonstraram que a disciplina História da Química foi um espaço importante para os alunos conhecerem melhor a natureza da ciência e aprenderem de forma significativa conceitos químicos. Os alunos conseguiram adquirir concepções menos ingênuas e simplistas sobre a natureza da ciência e manifestaram uma maior compreensão de conceitos como a quantidade de matéria e mol. Concluímos que o referencial histórico-epistemológico contribuiu para que os estudantes de Química envolvidos neste trabalho adquirissem uma imagem de ciência mais contextualizada, possibilitando uma melhor formação inicial. Palavras-chave: História e Filosofia da Ciência; Ensino de Química; Natureza da Ciência; Aprendizagem de conceitos químicos; Livros didáticos ABSTRACT This dissertation intended to explore the potentialities of a rapproachement between history and philosophy of science, and science education through the teaching of a History of Chemistry course (QUI 040) for Chemistry students. We aimed to help students understand the nature of science and learn chemical concepts. The study involved our practice as teacher and researcher in the above mentioned discipline at the Department of General and Inorganic Chemistry of the UFBA. This exploratory work is reported as an observation study which is a typical category of qualitative research. The classroom investigation was performed in two parts: we first identified student’s previous conceptions about the nature of science and evaluated possible changes in these conceptions influenced by an explicit approach of the contents based on elements of history and philosophy of science; in the second part we worked on a contextual approach of the chemical concepts to help students understand them. This study also involved the analysis of the presentation of some chemical contents and scientific concepts in chemistry textbooks, taking the History and Philosophy of Science as a framework to assess them. The results showed that the History of Chemistry course was important for the students improve their knowledge about the nature of science, as well as get meaningful knowledge of some chemical concepts. The students could get less naive and simplistic conceptions about the nature of science and showed better understanding of concepts like the amount of substance and mole. Thus a conclusion of this study is that the historical-epistemological approach contributed for a student more contextualized image of science, and enable them to have a better initial formation. Keywords: History and Philosophy of Science; Chemistry teaching; Nature of science; Chemistry textbooks; Learning of chemical concepts. LISTA DE ABREVIATURAS AAAS - American Association for the Advancement Science BNCC - British National Curriculum Council BSQ – Biblioteca Setorial de Química CNC – Concepções sobre a natureza da ciência DCN – Diretrizes Curriculares Nacionais DQGI – Departamento de Química Geral e Inorgânica FACED – Faculdade de Educação da Ufba INMETRO – Instituto de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial IQ – Instituto de Química ISO - Organização Internacional de Padronização ISTE - Introductory Science Teacher Education IUPAC – União Internacional de Química Pura e Aplicada IUPAP – União Internacional de Física Pura e Aplicada LOS - Language of Science MEC – Ministério da Educação NOSS - Nature of Science Scale NOST - Nature of Science Test NRC - National Research Council PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais RMN - Ressonância Magnética Nuclear SCC - Science Council of Canada SI - Sistema Internacional de Unidades TOUS - Test on Understanding Science UEFS - Universidade Estadual de Feira da Santana UFBA – Universidade Federal da Bahia VNOS-C - Views of Nature of Science LISTA DE ANEXOS ANEXO A - A quantidade de matéria e o mol: senso comum, história e aprendizagem ANEXO B – Termo de compromisso ANEXO C – Ficha de identificação do aluno ANEXO D – Questionário para levantamento de concepções sobre a natureza da ciência (alunos ingressos) ANEXO E – Lista de Livros de Química analisados ANEXO F – Lista de livros de Química analisados e disponibilidade na Biblioteca Setorial de Química (BSQ) ANEXO G – Protocolo de entrevistas ANEXO H - Questionários para levantamento prévio de conceitos químicos ANEXO I - Problemas LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Aspectos da natureza da ciência considerados consensuais 113 Quadro 2 – Instrumentos para levantamento de concepções sobre a natureza da ciência (CNC) 124 Quadro 3 - Resumo do planejamento semestral de aulas 258 Quadro 4 – Primeira categoria epistemológica 280 Quadro 5 – Segunda categoria epistemológica 292 Quadro 6 – Terceira categoria epistemológica 314 Quadro 7 – Relações de proporcionalidade da quantidade de matéria (n) 340 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Resultado da análise de livros didáticos fundamentada na história do atomismo no século XIX 243 Tabela 2 – Perfis dos egressos do Curso de Química entrevistados 261 Tabela 3 - Concepção de Ciência (alunos ingressos) 262 Tabela 4 - Etapas do método científico 267 Tabela 5 - Imagem do cientista (alunos ingressos) 270 Tabela 6 - Diferença entre lei e teoria científica (alunos ingressos) 272 Tabela 7 - Significado de modelo científico (alunos ingressos) 277 Tabela 8 - A origem do conhecimento científico 281 Tabela 9 - Concepção de ciência (alunos de QUI 040) 284 Tabela 10 - Alquimia como ciência 289 Tabela 11 - O método científico e as etapas deste método 293 Tabela 12 - O conceito de experimento 298 Tabela 13 - Diferença entre lei e teoria científica (alunos de QUI 040) 304 Tabela 14 - O contexto da descoberta científica 311 Tabela 15 - A concepção de modelo científico (alunos de QUI 040) 317 Tabela 16 - O uso de modelos científicos na ciência 322 Tabela 17 – Avaliação de livros didáticos em relação à apresentação dos conceitos de quantidade de matéria e mol 345 Tabela 18 - Definições de mol nos livros didáticos 347 Tabela 19 - Definições de quantidade de matéria nos livros didáticos 347 Tabela 20 - Significado atribuído à grandeza quantidade de matéria 354 Tabela 21 - Citações dos alunos para o significado de massa 354 Tabela 22 - Citações dos alunos para o significado de número de entidades elementares 354 Tabela 23 - Significado atribuído ao mol 355 Tabela 24 - Significado atribuído ao número de mols 355 Tabela 25 - Significado atribuído a constante de Avogadro 357 Tabela 26 - Conceitos que foram relacionados à quantidade de matéria 358 Tabela 27 - Cálculo da quantidade de matéria 359 Tabela 28 - Conceitos identificadas no segundo momento 363 Tabela 29 - Resultados das respostas a questão 01 367 Tabela 30 - Resultados das respostas a questão 02 368 SUMÁRIO CAPÍTULO 1 1 INTRODUÇÃO 15 16 CAPÍTULO 2 26 2 HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA: ENSINO E APRENDIZAGEM 27 2.1 História e Filosofia da Ciência na educação científica: alcances e limitações 39 2.2 Problemas envolvidos na reconstrução histórica 44 2.3 Buscando contribuições da historiografia contemporânea para o ensino “sobre” as ciências 46 2.4 Aprendizagem significativa: conceitos básicos e modelo de ensino decorrente 49 CAPÍTULO 3 3 A FILOSOFIA DA CIÊNCIA E A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS 3.1 A Filosofia da Ciência: uma breve retrospectiva histórica 3. 1.1 A tradição racionalista 3.1.2 A tradição empirista 3.1.3 Positivismo e Positivismo Lógico 3.1.4 O Empirismo Lógico 3.1.5 A filosofia Popperiana 3. 2 Novos rumos da Filosofia da Ciência no século XX: teorias globalistas sobre a ciência 3.2.1 Filósofos da ciência que destacamos como críticos a tradição positivista 3. 3 Questões epistemológicas e a educação científica 3.3.1 A concepção de Ciência 3.3.2 A relação entre observação e interpretação 3.3.3 A realidade do mundo e a possibilidade do homem conhecê-la 3.3.4 A questão do progresso científico 3.3.5 A Filosofia da Química e a construção de modelos 3.3.6 Modelos e modelagem na Educação Química 3.4 Implicações das “novas” Filosofias da Ciência para os currículos das ciências 54 55 58 59 60 64 69 72 74 76 82 84 87 89 93 95 97 99 CAPÍTULO 4 103 4 CONCEPÇÕES SOBRE A NATUREZA DA CIÊNCIA (CNC) 104 4.1 Concepções sobre a natureza da ciência: o difícil consenso dos significados 109 4.2 Concepções sobre a natureza da ciência: uma retrospectiva histórica 114 4.3 A compreensão da natureza da ciência possibilitando a alfabetização científica118 4.4 As pesquisas sobre concepções sobre a natureza da ciência 120 4.4.1 Concepções sobre a natureza da ciência dos estudantes 126 4.4.2 A influência de abordagens de ensino explícitas nas concepções sobre a natureza da ciência 130 4.4.3 Algumas pesquisas sobre CNC publicadas no Brasil entre 1995-2004 136 CAPÍTULO 5 5 DELINEAMENTOS METODOLÓGICOS 5.1 Algumas informações metodológicas sobre a pesquisa histórica 5.2 A metodologia da investigação didática 5.2.1 Tipo de abordagem de pesquisa, o contexto e os sujeitos 5.2.2 O levantamento de dados: questões prévias 5.2.3 Procedimentos para coleta de dados, técnicas e instrumentos 5.2.4 Análise de dados 144 145 145 146 147 151 154 157 CAPÍTULO 6 6 CONTROVÉRSIAS SOBRE O ATOMISMO NO SÉCULO XIX 6.1 A relevância do tema escolhido 6.2 A visão corpuscular da matéria: uma concepção gestada na antigüidade 6.3 As visões continuistas e descontinuistas: do século XIV ao XVII 6.4 A filosofia mecânica 6.5 A possível origem do atomismo daltoniano 6.6 O atomismo daltoniano: iniciando um longo debate 6.7 A hipótese de Avogadro: possibilitando a relação entre o atomismo daltoniano e a lei de Gay-Lussac 6.8 O atomismo na Física e na Química: pontos de vista diferentes no século XIX 6.9 A Física francesa no século XIX: questões epistemológicas subjacentes 6.10 Atomismo e equivalentismo: convergências e divergências 6.11 O Congresso de Karlsruhe e a procura de entendimento 6.12 O programa atomista fomentando discussões epistemológicas 6.13 Alternativas ao atomismo na Física 6.14 O energeticismo 6.15 A emergência da Físico Química 6.16 Energeticistas x Atomistas: debatendo sobre o atomismo 6.17 A constante de Avogadro 6.18 O trabalho de Jean Perrin e a aceitação da realidade atômica 6.19 Conclusão 160 161 161 164 167 168 176 180 CAPÍTULO 7 7 A HISTÓRIA DA CIÊNCIA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE QUÍMICA: O ATOMISMO NO SÉCULO XIX 7.1 Algumas informações preliminares 7.2 Definição de critérios e categorias de análise 7.3 Os resultados obtidos 7.4 Analisando e discutindo os resultados 237 186 190 195 197 202 208 210 212 219 222 225 226 231 238 238 239 242 244 CAPÍTULO 8 8 INVESTIGAÇÃO DAS CONCEPÇÕES SOBRE A NATUREZA DA CIÊNCIA DOS ALUNOS DE QUÍMICA 8.1 Antecedentes da pesquisa didática na disciplina História da Química 8.2 O resultado da primeira parte da pesquisa didática na disciplina História da Química 8.2.1 Primeira categoria epistemológica: ciência e conhecimento científico 8.2.2 Segunda categoria epistemológica: a dinâmica da ciência e seus produtos 8.2.3 Terceira categoria epistemológica: a ciência e a representação da realidade 8.3 Reflexões finais da primeira parte da investigação didática 255 256 260 279 280 292 313 325 CAPÍTULO 9 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DE CONCEITOS CIENTÍFICOS E 9 APRENDIZAGEM 328 9.1 Os conceitos científicos de quantidade de matéria e mol 330 9.2 A gênese do mol como quantidade macroscópica de matéria 332 9.3 A constante de Avogadro possibilitando a mediação do macroscópico e do microscópico 335 9.4 A redefinição do mol e suas implicações 337 9.5 O conceito de quantidade de matéria nos livros didáticos de Química Geral 343 9.6 A aprendizagem dos conceitos de quantidade de matéria e mol 349 9.7 As idéias prévias dos nossos alunos sobre os conceitos de quantidade de matéria e mol 352 9.8 O trabalho didático realizado na disciplina História da Química 360 9.9 Avaliando os resultados da segunda parte da pesquisa didática na disciplina História da Química 362 9.10 Reflexões finais da segunda parte da investigação didática 369 CAPÍTULO 10 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS 373 374 REFERÊNCIAS 381 ANEXOS 403 CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO 16 1 INTRODUÇÃO A escolha do tema desta pesquisa teve uma forte motivação pessoal. Nos últimos dez anos da nossa vida profissional, como professora de Química, conhecemos e nos envolvemos prazerosamente com a História da Química. Este envolvimento foi motivado pela necessidade de professores para ministrar a disciplina Evolução da Química (QUI 104) no Departamento de Química Geral e Inorgânica da UFBA, do qual fazemos parte do corpo docente. Esta disciplina, que atualmente passou a ser denominada História da Química (QUI 040), tem como conteúdo programático a própria história da construção dos conhecimentos químicos. Após alguns anos do nosso ingresso na Universidade Federal da Bahia e, em função da necessidade criada, dispusémo-nos a estudar os conteúdos necessários e nos apaixonamos pela História da Ciência. Esta não foi uma tarefa fácil pois, como engenheira química e mestre em Química Inorgânica, não havíamos tido nenhuma formação nesta área. Aceitamos o desafio estimulados pela possibilidade de estabelecer uma importante parceria com um colega de Departamento, o professor Edilson Fortuna de Moradillo, que também aceitou ministrar a disciplina. Desde o início contamos com todo o apoio do professor Pedro Sarno, que ministrava esta disciplina desde a década de setenta e estava se aposentando. Ele foi um grande incentivador, tendo nos ajudado muito no início da nossa caminhada, inclusive nos fornecendo livros e artigos sobre o assunto. A nossa aproximação com a História da Química, por outro lado, fez nascer um profundo desejo de continuar a trajetória de qualificação nesta direção. Reconhecíamos, no entanto, a dificuldade para a concretização deste desejo. Ainda 17 não existia um curso de doutorado nesta área aqui na Bahia e não poderíamos nos deslocar de Salvador para continuar a nossa formação em Universidade de outros estados. Algum tempo depois, começamos a vislumbrar a possibilidade de tentar a seleção para o curso de doutorado na Faculdade de Educação da UFBA (FACED). Imaginávamos que poderíamos realizar este curso desenvolvendo um projeto de pesquisa que articulasse a História, a Filosofia e o Ensino de Química. Contando com o incentivo de uma colega de Departamento, a professora Soraia Lobo, que já havia ingressado no Doutorado na FACED e com o grande apoio do inesquecível professor Felippe Serpa, fomos selecionados para o Doutorado da Faculdade de Educação da UFBA. Iniciamos o curso em 2002, graças ao estabelecimento de uma importante parceria entre o professor Felippe e o nosso atual orientador, professor Olival Freire Júnior. O interesse pelo tema também foi motivado por nossa percepção, durante os mais de vinte anos como docente, que a imagem de ciência que parecia predominar entre os alunos que ingressavam nas Universidades se fundamentava em visões simplistas de ciência, que enfatizam os resultados e produtos e não o processo de construção e legitimação do conhecimento científico. Esta situação se evidenciava nas discussões travadas na disciplina História da Química, que tem como foco principal a construção do conhecimento químico. Por outro lado, as concepções sobre a natureza da ciência pareciam não se modificar substancialmente no decorrer da formação universitária, o que nos estimulou a investigar esta questão. Os problemas detectados no ensino tradicional das ciências tem sido um assunto amplamente discutido nos meios acadêmicos. A abordagem de ‘ensino tradicional’ 18 fundamenta-se na epistemologia “empirista-indutivista”. Considera-se que o conhecimento científico é comprovado empiricamente, devendo ser aceito como correto e inquestionável. A principal idéia é que estes conhecimentos vão se acumulando e se tornando cada vez melhores, mais aprimorados, justificando o atual desenvolvimento científico. O grande avanço da ciência é atribuído ao trabalho individual e neutro de cada cientista e os discursos científicos costumam aparecer como verdades absolutas. Neste tipo de ensino prioriza-se os conteúdos científicos e a aquisição máxima de informações, negligenciando-se os aspectos da natureza da ciência e da dinâmica da atividade científica. Nesta perspectiva, considera-se que o trabalho de professor é muito simples pois deve se pautar na transmissão do máximo de informações para o estudante, existindo a crença em que, para ser professor basta conhecer bem os conteúdos científicos específicos. O reconhecimento de que o ensino tradicional não está satisfazendo, é um grande desafio a ser enfrentado através da inserção nos currículos tanto dos produtos científicos quanto do processo que caracteriza a ciência, enfatizando-se a forma como o produto e o processo estão relacionados com a própria estrutura e dinâmica da ciência. Consideramos que qualquer caminho possível para se modificar esta situação passa pela implementação de mudanças no sistema de formação dos docentes, visando a superação de lacunas de caráter epistemológico e pedagógico detectadas nesta formação. Na literatura especializada existe o reconhecimento de que os professores de ciências têm enfrentado dificuldades na sua atividade docente relacionadas ao ensino e aprendizagem de conceitos científicos. A superação de uma aprendizagem mecânica requer uma mediação pedagógica direcionada, para que aconteça uma aprendizagem 19 significativa dos conteúdos. Nesta situação, consideramos que, o processo de ensino de conceitos científicos deve incluir informações sobre a construção destes conceitos. A História da Ciência pode possibilitar o conhecimento do contexto em que surge um determinado conceito, além da sua interação com outros conceitos, ajudando na mediação adequada dos significados que devem ser adquiridos pelo estudante. A preocupação com a formação docente é uma realidade em vários países. No Brasil tem sido impulsionada por modificações na política educacional do governo para os vários níveis de ensino: fundamental, médio e superior. As novas orientações contidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e as Novas Diretrizes Curriculares para os cursos de graduação, apontam a necessidade de uma formação do professor de ciências com um maior conteúdo humanístico, com a inclusão de conhecimentos básicos de História, Filosofia, Sociologia, Economia, História da Ciência e dos Movimentos Educacionais, além de uma maior ênfase na prática de ensino. A implementação de propostas concretas para atender a estas orientações são ainda incipientes na área das ciências e da Química em particular. A formação de um novo profissional docente requer uma maior preocupação com a identificação de concepções epistemológicas e pedagógicas que se fazem presentes nos currículos. O ensino e a aprendizagem parecem estar alicerçados nas concepções compartilhadas durante a formação. A investigação destas concepções necessita de conhecimentos relativos às Filosofia, História e Sociologia da Ciência que poderão fornecer subsídios para que aconteçam as análises, discussões e reflexões. Este é um processo longo e difícil, implicando num maior compromisso dos envolvidos: o professor/formador e os seus alunos. 20 Algumas reformas curriculares foram realizadas na última década com o objetivo de superar os problemas detectados, no entanto, elas não produziram ainda resultados significativos, uma vez que, não conseguiram atingir de modo eficaz, os alunos e professores. Em artigo publicado na Revista Química Nova, Mortimer; Machado e Romanelli (2000) apresentam as idéias básicas que nortearam a elaboração do novo currículo de Química para o Ensino Médio no Estado de Minas Gerais. Nas considerações finais deste trabalho fica explícito a grande dificuldade que os Professores de Química de Minas Gerais enfrentaram e continuam enfrentando para implementar qualquer mudança na sua prática pedagógica, considerando a complexa realidade da Educação Brasileira. Desde 1998, teve início no Instituto de Química da UFBA, de forma não oficial, a discussão da reconstrução dos currículos para as três habilitações do Curso de Química (PENHA et al., 2002, 2003a, 2003b). Em uma reunião que aconteceu em 02/09/2000 foi constituída a primeira comissão para deslanchar o processo. A primeira reunião que voltou a discutir o assunto só aconteceu em 24/09/2002. Entre essa data e a aprovação da nova proposta em 26/10/2005, ocorreram dezoito reuniões que tiveram como um dos pontos de pauta este assunto. A nossa expectativa é que a proposta já aprovada seja efetivada no segundo semestre de 2006, refletindo as dificuldades para a concretização de qualquer mudança curricular, o que decorre da complexidade inerente ao próprio processo. O atual modelo de formação docente ainda tem acontecido, predominantemente, através do ensino tradicional, centrado na autoridade do professor e na imagem de ciência empirista e positivista. Grande parte dos resultados das pesquisas que propõe a 21 modificação desta situação ainda se mantêm nos ambientes das academias ou nas publicações em revistas especializadas, não se refletindo em mudanças significativas. Consideramos que o conhecimento da ciência a partir de uma visão históricofilosófica pode ajudar na compreensão do processo de construção tanto da ciência quanto dos conceitos científicos e no uso deste conhecimento para entender o mundo contemporâneo, atingindo o objetivo maior da educação que é a de formação de indivíduos críticos e socialmente atuantes. Estas questões tornam-se cada vez mais importantes porque a “racionalidade técnico-científica” tem influenciado muitas decisões da vida moderna. A prioridade do ensino de ciências ainda é a transmissão de resultados da atividade científica aceitos no âmbito acadêmico, o que tem proporcionado uma visão reducionista da ciência. Reconhecendo a situação anteriormente apresentada, consideramos que seria desejável ter a História e Filosofia da Ciência como conhecimentos estruturantes para a formação inicial, tanto do bacharel quanto do futuro professor, ampliando e enriquecendo este processo e possibilitando a construção de novos valores. A utilização da História e Filosofia da Ciência na formação do bacharel é ainda uma questão controversa; no entanto, já existe um amplo reconhecimento da importância destes temas para a formação inicial e continuada do professor de ciências. Por outro lado, as pesquisas sobre o levantamento de concepções sobre a natureza da ciência de professores ou alunos, não apresenta resultados totalmente conclusivos, mesmo considerando que esta linha de pesquisa já vem sendo desenvolvida a mais de cinco décadas, em diferentes países. Esta é uma questão que será aprofundada no Capítulo 4 desta tese. 22 No Brasil, na área da Química, as investigações com esta temática têm acontecido em pequena quantidade. Consideramos que os resultados de pesquisas neste tema poderão ajudar na compreensão da epistemologia implícita e explícita dos professores e alunos e na sua relação com concepções didático/pedagógicas. Esses estudos poderão fornecer subsídios para mudanças curriculares, bem como apontar caminhos para a formação continuada de professores. Este estudo, portanto, se insere na busca de alternativas para uma formação inicial do professor de química, que contemplem em maior extensão, a dimensão epistemológica nesta formação. Para realizar este trabalho, estruturamos de forma diferente a disciplina em que atuamos, História da Química – QUI 040, buscando interferir nas concepções sobre a natureza da ciência dos nossos alunos para ajudá-los na compreensão do processo de construção do conhecimento científico. Imaginamos que a História e a Filosofia da Ciência podem ser importantes alternativas para implementar esta compreensão podendo contribuir, também, para a aprendizagem significativa de conceitos científicos. Esta pesquisa se constituiu num estudo de caso realizado no primeiro semestre letivo de 2004 e no primeiro semestre letivo de 2005, envolvendo a nossa intervenção como professora-investigadora na disciplina História da Química (QUI 040), lotada no Departamento de Química Geral e Inorgânica, do Instituto de Química da UFBA e teve uma função exploratória. O problema inicial da pesquisa era, até que ponto uma disciplina específica de História da Química poderia contribuir para que o aluno adquirisse concepções ‘adequadas’ sobre a natureza da ciência. O termo ‘adequado’ aqui utilizado toma como referência as discussões e reflexões produzidas por filósofos da ciência pós-positivistas 23 como Bachelard, Popper, Hanson, Feyerabend, Kuhn, Laudan, entre outros, que apresentaram idéias inovadoras sobre a ciência e o seu processo de construção (Capítulo 3). Estas filosofias das ciências que se constituíram no século XX, têm se destacado pela valorização tanto do contexto de produção da ciência, quanto da sua justificação, incluindo modelos históricos e sociológicos para a construção do conhecimento científico e possibilitando ‘imagens de ciência’ que têm influenciado na educação científica. As considerações anteriormente colocadas desdobraram-se numa problemática que foi investigada envolvendo as seguintes questões: 1. o referencial histórico-epistemológico contribui para o estudante adquirir uma imagem de ciência mais contextualizada, promovendo uma melhor formação inicial? 2. o conhecimento da História da Ciência e de controvérsias científicas pode ajudar o aluno na compreensão da natureza da ciência e de conteúdos de natureza epistemológica? 3. a compreensão de um conceito químico através da sua contextualização histórica, pode contribuir para uma aprendizagem mais significativa deste conceito? 4. a abordagem que os livros de Química Geral utilizam para a apresentar a Teoria Atômica de Dalton, sua origem e consolidação, tem considerado de forma adequada os registros históricos? 5. os livros didáticos de Química Geral têm apresentado os conceitos de quantidade de matéria e mol de acordo com as novas orientações da União Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC) para o ensino destes conceitos? 24 Estas são as perguntas mais gerais que deverão ser respondidas a partir desse trabalho de tese, que incluiu a construção de uma nova proposta de ensino aplicada em uma disciplina do curso de Química da Universidade Federal da Bahia. Esta pesquisa incluiu, também, o uso de materiais didáticos com conteúdos em História e Filosofia da Ciência, elaborados pela pesquisadora, cujo tema central contemplou as controvérsias relativas à aceitação do atomismo no século XIX. A história do atomismo e suas controvérsias foi um fio condutor que perpassou a investigação realizada. Uma parte dos materiais didáticos foi elaborada após a pesquisa histórica sobre o “tema gerador” selecionado. Como conseqüência desta pesquisa produzimos um texto sobre a história dos conceitos de quantidade de matéria e mol, usado como material didático na segunda parte da pesquisa didática (ANEXO A). Esta tese foi dividida em dez capítulos, sendo que os capítulos 2, 3 e 4 tiveram um caráter de revisão teórica, necessária ao seu desenvolvimento e os capítulos subseqüentes 5, 6, 7, 8, 9 e 10 constituem, efetivamente, os produtos da nossa pesquisa. Inicialmente, apresentamos esta introdução; no segundo capítulo dissertamos sobre a articulação entre a História e Filosofia da Ciência e o ensino e a aprendizagem das ciências; no terceiro capítulo elaboramos uma retrospectiva histórica da Filosofia da Ciência e da sua importância na educação. O quarto capítulo apresenta uma revisão de trabalhos envolvendo concepções sobre a natureza da ciência (CNC); o quinto capítulo refere-se ao delineamento metodológico da investigação didática e da pesquisa histórica; o sexto capítulo apresenta o resultado da pesquisa histórica do tema selecionado: “Controvérsias sobre o atomismo no século XIX” e que foi transformado em parte do material didático utilizado na disciplina. No sétimo capítulo apresentamos a 25 análise de livros didáticos de Química Geral tomando como base a história do atomismo no século XIX. No oitavo e nono capítulos analisamos e discutimos os resultados das duas etapas da investigação didática: no oitavo capítulo as concepções sobre a natureza da ciência e no nono capítulo a aprendizagem de conceitos químicos. No décimo e último capítulo tecemos algumas considerações que pretendem sistematizar os principais pontos discutidos na nossa pesquisa e possíveis conclusões obtidas no decorrer do processo. Antes de passarmos ao segundo capítulo, gostaríamos de explicitar duas opções de ordem organizacional adotadas nesta tese. A primeira delas envolveu a retomada de algumas informações históricas e de natureza metodológica no capítulos 8 (aprendizagem de conceitos químicos), em função do desdobramento desta parte da nossa pesquisa e das suas especificidades. Como o nosso trabalho utilizou uma abordagem qualitativa, fizemos uso da maior liberdade de imersão no referencial teórico, na medida da sua necessidade, para ajudar na interpretação e justificação dos resultados. A segunda opção se refere a não inclusão dos livros didáticos de Química Geral nas referências citadas a partir da página 381, optamos por colocar separadamente, no Anexo E, a relação de todos os livros de Química Geral analisados. CAPÍTULO 2 HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA: ENSINO E APRENDIZAGEM 27 2 HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA: ENSINO E APRENDIZAGEM Embora argumentos favoráveis ao uso de abordagens históricas no ensino de ciências possam ser encontrados desde o século XIX, não existe até a atualidade uma posição consensual sobre a relação existente entre este tipo de abordagem e um melhor rendimento dos alunos nas disciplinas científicas. Nas últimas décadas, muitas pesquisas realizadas em diferentes países têm reconhecido a importância da História e da Filosofia da Ciência para a Educação em Ciências, no entanto, ainda é pequeno o número de iniciativas para a utilização deste tipo de abordagem no ensino tradicional, o que justifica as dúvidas que ainda são detectadas sobre a importância da sua utilização (MATTHEWS,1994; RODRÍGUEZ; NIAZ, 2002; SEQUEIRA; LEITE, 1988). A aproximação entre a História e Filosofia da Ciência e a educação científica tem sido possibilitada por ações oficiais e não oficiais fomentadas em diferentes países. Como conseqüência tem havido uma maior valorização da História da Ciência em currículos que têm emergido de reestruturações curriculares mais recentes. Alguns exemplos que concretizam essa tendência são: os relatórios do Projeto 2061 da American Association for the Advancement Science (AAAS/U.S.A.); The Liberal Art of Science do British National Curriculum Council (BNCC/Inglaterra); Science Council of Canada (SCC/Canadá); Danish Science and Technology Curriculum (Dinamarca); PLON Curriculum Materials (Holanda); Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio/PCNs e Novas Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação (MEC/Brasil). Muitos trabalhos realizados para a inclusão da História e Filosofia no ensino das ciências são bastante teóricos e não apresentam dados referentes à aplicação prática. 28 Nesse contexto, as dificuldades dos alunos não são detectadas e as alternativas oferecidas não trazem inovações efetivas, não chegando a ser testadas. Outra importante questão é a insuficiência de materiais didáticos com este enfoque, que poderiam possibilitar a mediação didática das reflexões e estudos históricos teóricos para situações concretas de ensino. A abordagem da educação em ciência informada pela História e Filosofia da Ciência é conhecida por abordagem contextual ou liberal (MATTHEWS, 1994, p.1). Ela faz parte de uma tradição de educação em ciência que tem sido em certos períodos marginalizada e em outros muito valorizada. Entre os possíveis precursores deste tipo de abordagem estão alguns cientistas e/ou filósofos como Ernst Mach, Wilhelm Ostwald, Pierre Duhem, Paul Langevin, John Dewey, James Conant, Joseph Schwab, Gerald Holton, entre outros, incluídos nessa tradição (FREIRE JUNIOR, 2002; MATTHEWS, 1994; RODRÍGUEZ; NIAZ, 2002). As críticas a educação científica tradicional, predominantemente ortodoxa e não contextual tem justificado a necessidade de um novo enfoque para a educação científica. Esta situação reflete alguns dados preocupantes citados por Matthews (1994) e que merecem ser divulgados: • grande parte da população escolarizada não sabe o significado de conceitos científicos básicos (esta é uma situação identificada na maior parte dos países); • visões anti-científicas e “pensamento ilógico” são muito comuns entre a população; 29 • cerca de setenta por cento dos estudantes norte-americanos não incluem Ciência no seu programa escolar. No Brasil, num estudo de revisão que incluiu o levantamento sobre inovações e tendências do currículo de Física, Carvalho e Vannucchi (1996) analisaram propostas e trabalhos apresentados em encontros científicos sobre ensino de Física realizados nos quatro primeiros anos da década de 90. Estes pesquisadores constataram a prioridade de propostas que defendiam a inclusão de História e Filosofia nos currículos escolares, no entanto, esta tendência não se refletiu em inovações curriculares e não se concretizou em novas propostas didáticas. Os resultados obtidos levaram os autores deste artigo a sugerir a realização de novas pesquisas para investigar as razões que têm dificultado a concretização dessa abordagem na realidade educacional brasileira, nos seus diferentes níveis de ensino. Um dos mais importantes pesquisadores que tem defendido a relevância da História e da Filosofia no ensino das ciências é Michael Matthews. Em artigos e livros escritos sobre esse assunto, ele defende a importância destes conteúdos no ensino sobre as ciências, tão importante quanto o ensino de ciências. O ensinar sobre as ciências inclui tanto a discussão da dinâmica da atividade científica, da sua complexidade manifestada no processo de produção de hipóteses, leis, teorias, conceitos etc., quanto da justificação, validação, divulgação e aceitação do conhecimento científico produzido. Não é ensino dos resultados da ciência mas, envolve alguma compreensão da dinâmica inerente à produção do conhecimento científico. As preocupações com aproximação da História e Filosofia do ensino das Ciências têm refletido uma tendência mundial de humanização da ciência. Embora 30 tentativas de utilização deste tipo de abordagem no ensino tenham acontecido desde as primeiras décadas do século XX, somente ao final da década de 40, as experiências realizadas começaram a ter uma maior repercussão. Naquele período, o químico e educador americano James B. Connant introduziu na educação em ciências o estudo de certos episódios da Historia da Ciência, que ficaram conhecidos como: History of Science Cases. A sua idéia era que o estudo de como a ciência se desenvolveu poderia ajudar na compreensão da sua natureza (WANG; MARSH, 2002). A abordagem contextual ganhou importância nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, influenciada pelo trabalho realizado por Connant e seus materiais didáticos inovadores com conteúdos em História e Filosofia da Ciência. Um outro precursor deste tipo de abordagem foi Gerald Holton, que apresentou uma nova metodologia para o ensino de Física, a abordagem conectiva1, valorizando as relações entre conteúdos específicos da Física e os diferentes campos como Astronomia, Biologia, Química, Economia, Filosofia, Matemática, Engenharia, História, Literatura, Psicologia, etc. (HOLTON, 1963). Defendendo a reaproximação entre historiadores e educadores em ciência, Holton (2003) sugere cinco possíveis caminhos para promover uma ponte entre as ciências e as humanidades. O primeiro seria a promoção de atividades de cooperação entre historiadores da ciência e educadores que apoiam a aproximação da História e Filosofia da Ciência da Educação em Ciências. 1 O termo abordagem conectiva é similar ao termo abordagem contextual ou liberal utilizado por Matthews. 31 A segunda possibilidade seria o apoio a pessoas que tenham se distinguido em um dos dois campos e, ao mesmo tempo, tenham interesse no outro, o que poderia ter um forte efeito multiplicador. Uma terceira forma de incentivar uma maior cooperação seria possibilitando o aumento no número de publicações com este enfoque e a participação conjunta de profissionais dos dois campos em encontros científicos envolvendo as duas áreas. O quarto caminho incluiria a elaboração e implementação de projetos para utilização da História e Filosofia no Ensino de Ciências e, finalmente, o estímulo à produção de materiais curriculares como livros, textos, publicações suplementares, filmes e “websites” que ajudem na aproximação entre as duas culturas. Nesse artigo, três personalidades foram destacadas como eficientes articuladores da História e Filosofia da Ciência com a educação científica: George Sarton, Jammes Bryant Conant e Isidor Isaac Rabi. O primeiro deles, George Sarton, foi matemático e se tornou um dos principais divulgadores da inclusão da História da Ciência no Ensino de Ciências. Em 1913 fundou o jornal Isis, um dos mais importantes periódicos da área de História da Ciência. O segundo exemplo citado foi James B. Conant que teve uma intrigante e complexa motivação ideológica para as suas atitudes. Ele considerava essencial para uma “alfabetização científica” o conhecimento da História, tanto quanto da Ciência. Estes conhecimentos possibilitariam o entendimento das “táticas e estratégias da ciência”, necessárias à preservação da civilização e ao pleno exercício da cidadania. Um entendimento da ciência no seu contexto histórico, ajudaria a melhorar práticas democráticas, facilitando nas decisões relacionadas à ciência e à tecnologia, por parte de cada indivíduo. O último exemplo citado foi Isidor Isaac Rabi, físico da Universidade de Columbia, que se destacou por apresentar a ciência e os seus métodos ao lado da 32 sua História. Rabi ganhou Prêmio Nobel de Física em 1944, pelo trabalho com Ressonância Magnética Nuclear (RMN) e, como era fascinado pela História defendia a articulação das duas tradições: a Ciência e as Humanidades. Dois anos antes de Snow (1995) ter reconhecido a lacuna existente entre estes dois campos e a necessidade de aproximação, ele já defendia que um bom ensino de ciência devia adotar uma abordagem mais ampla com a incorporação da História da Ciência. A humanização da educação científica tem sido um tema recorrente. Wang e Marsh (2002) identificaram três períodos históricos relacionados às tentativas de humanização da educação em ciências nos Estados Unidos, nas quatro últimas décadas do século XX: ¾ a idade áurea da educação em ciência deflagrada pela reação chamada de “pós- sputinik”; esta fase resultou em grandes mudanças visando formar cientistas mais competitivos e superiores àqueles formados na União Soviética. Muitos projetos foram formulados, alguns deles relativamente bem sucedidos. Entre os projetos que visavam apresentar os conteúdos científicos numa abordagem histórico-filosófica, destaca-se o “Projeto Harvard” elaborado por Gerald Holton, Fletcher G. Watson e F. James Rutherford, a partir de 1962. Este projeto teve uma boa aceitação naquela época e incluiu a elaboração de seis volumes contendo textos que apresentavam os diferentes conteúdos científicos nesta nova abordagem. ¾ A educação em ciência para a cidadania caracterizou as décadas de 70 e 80; considerada como o segundo período de humanização da educação científica americana. Os reformadores defendiam um currículo que fosse relevante e atraente para todos os estudantes. Esta abordagem teve alguns reflexos positivos relacionados à compreensão da ciência e ao desenvolvimento de habilidades de investigação dos 33 estudantes; no entanto, este movimento declinou com o surgimento de iniciativas para reformas mais abrangentes. ¾ O terceiro período teve início ainda na década de 80, a partir da análise de relatórios que denunciavam o fraco desempenho de estudantes americanos comparado com de outros países, em relação a testes de entendimento sobre a ciência. Para a superação desta situação foram propostas estratégias e projetos envolvendo diferentes setores da sociedade e do governo. Entre estes projetos destacou-se o “Projeto 2061”, formulado pela “Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAC)” e que resultou na elaboração de importantes documentos e no estabelecimento de metas arrojadas que incluíam recomendações que consideravam a formação científica num sentido ‘alargado’. Esta é ainda hoje uma preocupação dos americanos que precisam motivar seus alunos para estudar ciências, cujo ensino não é obrigatório no nível médio. A proposta apresentada no relatório final do “Projeto 2061”, corresponde à primeira fase de sua concretização, tendo originado o livro Ciências para Todos (AAAS - Ciência para Todos/Projeto 2061, 1995). Neste documento retoma-se uma abordagem humanística para a educação em ciência; o prazo apresentado para que as mudanças aconteçam é suficientemente amplo para que possa ser viável. A História da Ciência é considerada como um conhecimento indispensável para a humanização da ciência e para o enriquecimento cultural, passando a assumir o elo capaz de conectar a ciência e a sociedade. Uma das importantes recomendações desse projeto consiste em: ensinar menos para ensinar melhor. É deixado aos curriculistas a importante tarefa de promover reestruturações visando muito mais eliminar conteúdos de ensino do que os acrescentar. 34 Não é necessário exigir das escolas que ensinem conteúdos cada vez mais alargados, mas sim que ensinem menos para ensinarem melhor. Concentrando-se em menos temas, os professores podem introduzir as idéias gradualmente, numa variedade de contextos, aprofundando-as e alargando-as à medida que os estudantes amadurecem. Os estudantes acabarão por adquirir conhecimentos mais ricos e uma compreensão mais profunda do que poderiam esperar adquirir a partir de uma exposição superficial de mais assuntos do que aqueles que seriam capazes de assimilar. O problema, para quem escreve os currículos, é, portanto, muito menos o que acrescentar do que o que eliminar (AAAS, CIÊNCIA PARA TODOS, 1995, p.21). (Grifo nosso) Um problema da utilização didática da abordagem contextual tem sido os sucessos e insucessos das iniciativas e as descontinuidades detectadas. O Projeto Harvard de ensino de Física fez uso desta abordagem na década de 60 apresentando um currículo escolar de ciências fundamentado em princípios históricos e preocupado com as dimensões cultural e filosófica da ciência. Esse projeto foi o mais amplamente utilizado com este enfoque, tendo atingido 15% dos alunos de primeiro e segundo graus nos Estados Unidos. Os principais êxitos alcançados foram: diminuição da evasão escolar, aumento do interesse das mulheres pelos cursos de ciências, desenvolvimento do raciocínio crítico e melhor rendimento nas avaliações (FREIRE JUNIOR, 2002; MATTHEWS, 1994). Apesar dos pontos positivos, o Projeto Harvard não teve a continuidade desejada, principalmente devido às dificuldades enfrentadas pelos professores para a sua concretização. No entanto, ele tem sido mencionado na literatura como um exemplo bem sucedido de utilização no ensino da História da Ciência. No que pese o projeto, o distanciamento entre a História, a Filosofia da Ciência e o ensino se manteve nas décadas de 70 e 80, refletindo tanto a influência da psicologia behaviorista na educação, quanto o predomínio da tendência “teorética-especialista”, que foram 35 algumas das alternativas norteadoras das reformas educacionais acontecidas nos Estados Unidos naquele período (FREIRE JUNIOR, 2002; MATTHEWS, 1994). Nas últimas décadas, trabalhos publicados na área da Didática das Ciências têm reconhecido a importância da História e da Filosofia da Ciência (GAGLIARD, 1988; JUSTI; GILBERT, 1999, 2000; LEITE, 2002; MATTHEWS, 1990; NIAZ, 2001; PAIXÃO; CACHAPUZ, 2003; SOLBES; TRAVERS, 1996; WORTMANN, 1996). A valorização desses assuntos para a formação do professor de Ciência tem crescido na comunidade científica; apesar disto, a inclusão destes temas nos currículos ainda segue um modelo tradicional, onde geralmente disciplinas específicas abordam estas questões e a articulação com a didática é extremamente frágil ou inexistente. Wortmann (1996) considera que uma das possibilidades de intensificação da aproximação entre a Didática, a Filosofia e a História das Ciências pode acontecer através da revisão do conteúdo conceitual das diferentes áreas do conhecimento visando o seu redimensionamento. Uma importante linha de articulação entre a Epistemologia, a História da Ciência e a Didática tem sido a associação da História da Ciência e a Psicogênese do conhecimento. As investigações desenvolvidas com este enfoque tomam como referência o estudo desenvolvido por Piaget e Garcia (1991), que procurou associar os níveis da psicogênese à construção histórica dos conceitos, para compreender de que maneira o desenvolvimento cognitivo individual e o processo de desenvolvimento conceitual histórico podem estar relacionados. Estes educadores, no entanto, reconhecem que os paralelismos entre a construção do conhecimento científico na História e na mente do estudante devem ser vistos com muito cuidado, em função das especificidades das duas situações. 36 Estudos que relacionam a evolução das idéias ao longo da história e o desenvolvimento cognitivo individual, tiveram alguma repercussão no ensino, dentro da modalidade de estudos sobre mudança conceitual. Bizzo (1992) defende que os estudos sobre “misconceptions”(concepções alternativas ou concepções errôneas), se aproximaram da História da Ciência com objetivos de interpretar o discurso dos estudantes, utilizando-se, muitas vezes, de interpretações “whig”2 que são muito criticadas. Este autor lembra que “paralelos muito fortes entre o discurso dos estudantes e o dos cientistas do passado devem ser vistos com muito cuidado” (BIZZO, 1992, p. 34). Consideramos que, tanto o estudo do desenvolvimento cognitivo individual, quanto da evolução das idéias ao longo da História, são campos de grande importância para o ensino de ciências, não cabendo no entanto, o estabelecimento de correspondências indevidas entre estes dois campos que poderia levar à ultrapassagem dos limites de cada um. A evolução das idéias e as modificações teóricas ao longo da história podem ser úteis na compreensão dos mecanismos de explicação da ciência, na compreensão da articulação entre os diferentes conceitos e as redes conceituais, bem como na identificação de conceitos ainda empregados pelos estudantes e já modificados no âmbito da ciência. O principal objetivo a ser alcançado deve ser a promoção de uma atitude dialógica entre a construção do conhecimento na ciência e a construção do conhecimento pelo aluno. Na discussão sobre a importância da História da Ciência para o ensino de Ciências encontra-se implícita a discussão sobre os objetivos da educação científica nos seus diferentes níveis, necessitando que se faça distinção do nível de ensino a ser 2 Abordagem historiografica que seleciona elementos do passado capaz de justificar o conhecimento presente. 37 focalizado. A utilização da História da Ciência pelo historiador ou para fins pedagógicos deve ser avaliada através de critérios diferentes porque as duas atividades têm objetivos distintos. Anteriormente, discutindo sobre essa questão, Abrantes (1988) defendia que o ensino de História da Ciência não deveria ser misturado com o ensino de Ciências, porque poderia reduzir o potencial crítico que essa História teria para a formação do cientista. No entanto, em trabalho mais recente, Abrantes (2002) reconheceu a relevância desses conteúdos para a formação dos professores de ciências, o que teria como conseqüência a influência na formação dos estudantes. Para Abrantes (2002), a principal função da História da Ciência no ensino, qualquer que seja o nível considerado, é desenvolver um senso crítico relacionado às imagens de ciência e de natureza que prevaleceram nos diferentes momentos históricos e, freqüentemente, veiculadas de modo distorcido. Uma outra contribuição é localizar a atividade científica na sociedade, contextualizando-a historicamente e estabelecendo relacões com outros elementos culturais. Este mesmo autor considera que a investigação histórica de episódios da ciência pode revelar a articulação existente entre imagens de natureza e imagens de ciência e o condicionamento recíproco existente entre estas imagens. O termo imagem de natureza é utilizado para os pressupostos ontológicos de um programa de pesquisa, enquanto que a imagem de ciência se refere aos pressupostos epistemológicos e metodológicos da atividade científica. O uso do termo imagem, em ambos os casos, visa reforçar a interdependência sugerida e o tratamento global para as diferentes categorias de imagens (ABRANTES, 1998). Consideramos que a abordagem contextual é uma poderosa ferramenta para promover o entendimento geral da ciência contribuindo para a alfabetização científica 38 através da compreensão da natureza da ciência, da inter-relação entre a ciência e as humanidades, da ética e do trabalho do cientista, das relações entre ciência, tecnologia e sociedade, entre outros. Klopfer e Cooley (1963) consideram que uma abordagem da educação científica informada pela História e Filosofia da Ciência, prepara o indivíduo para desenvolver o entendimento dos aspectos conceituais, procedimentais e contextuais da ciência. A operacionalização de propostas curriculares que incluam estes conteúdos requer uma melhor qualificação dos professores, novos materiais e até mesmo novos critérios de avaliação. Para Kauffman (1989), a formação profissional do químico sem a inclusão da História permanece insatisfatória e incompleta. Este pesquisador considera que os químicos em geral, têm pouco interesse na sua história, predominando na educação química um caráter anti-histórico. Os principais objetivos da Educação Química nas Universidades tem sido: o treinamento de profissionais químicos ou de outras áreas, a utilização majoritária de uma visão dogmática, linear e acumulativa do conhecimento e o interesse na Química pelo seu valor prático e inúmeras aplicações tecnológicas. Alguns educadores defendem a inclusão da História no currículo de Química inclusive no nível médio (CHASSOT, 1993; 2000; KAUFFMAN, 1989). A integração da História da Ciência no ensino de ciências tem acontecido através da utilização de diferentes abordagens, a exemplo de: trabalhos interdisciplinares, uso de tópicos geradores, como biografias, descobertas importantes, aniversários de cientistas, utilização de experiências antigas e abandonadas, estudo de casos ou episódios históricos. Nesses trabalhos são usados diversos materiais didáticos como 39 livros raros, fontes primárias com artigos originais, artigos de revistas obtidos através da Internet, livros paradidáticos, etc. Algumas experiências que utilizam abordagens contextuais realizadas em países como Inglaterra e Estados Unidos, encontraram dificuldades para sua consolidação decorrentes da inadequada formação dos professores para sua implementação. Uma melhor formação do professor nos parece ser o caminho possível para que essa abordagem seja retomada e concretizada. Os defensores da abordagem contextual consideram que o ensino sobre ciências deve incluir o modo de produção e validação do conhecimento científico, além da sua dimensão cultural, possibilitando a compreensão de uma visão crítica do processo. A inclusão destas dimensões ajudaria a evitar a dogmatização do conhecimento científico, fundamentado no rigor do método científico, na exatidão dos resultados obtidos e na crença de uma verdade absoluta (IZQUIERDO, 1996;MATTHEWS, 1994). 2.1 História e Filosofia da Ciência na educação científica: alcances e limitações Algumas vantagens são apresentadas na literatura para o uso da história no ensino: (BRUSH, 1974; KAUFFMAN, 1989; LOMBARDI, 1997; MATTHEWS, 1994; SÀNCHEZ-RON, 1988) melhoria da motivação e a possibilidade de trabalhar o conteúdo de modo mais criativo e integrado; humanização da visão de ciência; mudança na visão de ciência como processo e não como um produto; 40 percepção do caráter dinâmico do conhecimento científico; compreensão da articulação de eventos em determinados períodos da História e contextualização das descobertas; conhecimento de problemas internos à comunidade científica e a valorização de debates científicos; compreensão da gênese de conceitos e teorias. Muitos educadores reconhecem que a História da Ciência não deve se deter meramente em apresentar conclusões obtidas por cientistas mas, mostrar como estas conclusões foram alcançadas e quais as alternativas existentes nos diferentes períodos. A compreensão da dinâmica da investigação científica pode acontecer através da sua história, incluindo tanto caminhos indutivos quanto dedutivos que são intercambiáveis (BRUSH, 1974; SCWAB, 1962 apud RODRÍGUEZ; NIAZ, 2002). O conhecimento dos sucessos e insucessos das teorias, as grandes controvérsias científicas e as modificações nas imagens de natureza podem ajudar a esclarecer a provisoriedade dos resultados considerados como verdades absolutas. O papel da comunidade científica envolvida no processo e na validação dos resultados poderão ser evidenciados. O estudo de controvérsias na História da Ciência é defendido por Freitas (1988), Madras (1955) e Silverman (1992) que consideram este tipo de estudo como capaz de ajudar o estudante a entender a Ciência através das circunstâncias sobre as quais problemas foram reconhecidos, dados acumulados, leis formuladas e teorias propostas. De acordo com Madras, as circunstâncias que determinaram o envolvimento dos cientistas em controvérsias estão intimamente relacionadas com os aspectos experimentais e interpretativos da ciência em um dado ambiente intelectual. 41 Algumas desvantagens para o maior uso da História no ensino das ciências são também apresentadas na literatura (BRUSH, 1974; LOMBARDI, 1997; SÀNCHEZ-RON, 1988): o não reconhecimento dos diferentes pontos de vista e interesses do cientista e do historiador ; a visão distorcida do passado e da História; a decepção com o comportamento e posturas de alguns cientistas quando se conhece mais profundamente sobre sua história; a complexidade de alguns episódios da História cuja simplificação pode ser muito prejudicial; o uso de preconceitos e uma visão “presentista” para julgar fatos e narrativas históricas; a questão da interpretação envolvendo a subjetividade do historiador no processo de reconstrução. Muitos argumentos contra o emprego da História da Ciência no ensino questionam a necessidade de simplificação da própria história para fins didáticos, o que é indesejável por distorcer a própria História e diminuir a qualidade do seu conteúdo (BRUSH, 1974; WANDERSEE, 1992; WHITAKER, 1979). Wandersee (1992), aprofunda a sua crítica introduzindo o conceito de quasehistória ou seja, uma história simplificada, reescrita para fins didáticos e sujeita a distorções que podem influenciar nas concepções das ciências de cada professor. Analisando alguns trabalhos sobre a utilização da história no ensino, Whitaker (1979) concluiu que muitos relatos históricos são elaborados ou com fins pedagógicos ou com objetivo de apoiar a concepção epistemológica do seu autor. 42 As críticas apresentam em comum dois pontos básicos: a questão da simplificação da história e a interpretação dos fatos históricos ou da sua reconstrução. Em ambas as situações, a subjetividade do autor é um fator determinante, podendo comprometer a qualidade da narrativa. Embora se reconheça que a escolha do tema a ser discutido pode levar a um inevitável reducionismo, em função das condições reais para se trabalhar com o assunto na dinâmica da sala de aula e no pouco tempo disponível, estas dificuldades podem ser minimizadas se os materiais didáticos utilizados apresentarem “uma história simplificada, que lance uma luz sobre os conteúdos discutidos e que não seja uma mera caricatura do processo histórico” (MATTHEWS, 1995, p.164). Este autor reconhece que a simplificação deve considerar a faixa etária dos alunos e as especificidades do currículo de cada situação. Neste processo estão em questão também a visão de mundo do professor e as suas concepções de ciência, de ensino, etc. Argumentando sobre a importância da utilização pedagógica da História da Ciência, Matthews (1995) apresentou o seguinte comentário: [...] O problema hermenêutico de interpretação na história, longe de dificultar ou impedir o uso da história, pode tornar-se uma boa ocasião para que os alunos sejam apresentados a importantes questões de como lemos textos e interpretamos os fatos, isto é, ao complexo problema do significado: a partir de seu dia a dia, os alunos sabem que pessoas vêem as coisas de forma diferente; portanto, a história da ciência constituise num veículo natural para se demonstrar como esta subjetividade afeta a própria ciência (MATTHEWS, 1994, p. 177). Pesquisando sobre o uso da dimensão histórica, epistemológica e sociológica na educação em ciência em quarenta países, Wang e Schmidt (2001) concluíram que a inclusão destas dimensões no ensino não resultaram necessariamente num melhor rendimento relativo à aprendizagem dos conteúdos específicos. Estes pesquisadores 43 consideram que um maior conteúdo de História, Filosofia e Sociologia das Ciências na preparação e aperfeiçoamento do professor das ciências pode ser o meio para realçar a alfabetização científica dos alunos. Este estudo também revelou que as abordagens para a inclusão destas dimensões podem ser diferentes, não existindo um único meio de melhorar a qualidade da educação científica, considerando-se inclusive as diferenças culturais existentes em cada país. A contribuição da História da Física para a Educação em Física também foi investigada por Seroglou e Koumaras (2001) ao longo do século XX. Estes pesquisadores constataram um gradual deslocamento no foco de interesse das pesquisas da dimensão cognitiva para a metacognitiva a partir de 1965. Este fato foi relacionado com uma maior valorização da natureza da ciência e do relacionamento entre a ciência e a sociedade através da inclusão de estudos da História da Física no ensino. Estes estudos contribuíram para o desenvolvimento de habilidades metacognitivas nos estudantes. Segundo Wandersee (1992), além da inadequada formação profissional, em alguns trabalhos tem sido apontada uma dificuldade técnica para inclusão de um maior conteúdo de História, Filosofia e Sociologia da Ciência no ensino: o maior tempo necessário para uma abordagem neste contexto. Muitos professores reconhecem a importância de ajudar o aluno a compreender os mecanismos de produção e funcionamento da ciência, embora encontrem dificuldades em conciliar estas dimensões com o grande conteúdo a ser ensinado e a pouca atenção dispensada a estes conteúdos nos livros didáticos. Algumas alternativas podem ser viabilizadas para superar essas dificuldades. Uma possibilidade envolve o processo de seleção cultural do conhecimento escolar 44 através de investigações que articulem a Didática, a História e a Filosofia da Ciência. Neste caso, deve-se buscar o necessário redimensionamento dos temas que são incluídos de modo acrítico nos currículos (ASTOLFI; DEVELAY, 1995; WORTMANN, 1996). Outra opção pode acontecer com o desenvolvimento de materiais didáticos apropriados que estabeleçam uma rede de relações conceituais, indispensável à compreensão de conceitos científicos estruturantes. As análises históricas e filosóficas podem possibilitar a identificação de “conceitos estruturantes” que “permitiram e impulsionaram a transformação de uma ciência, a elaboração de novas teorias, a utilização de novos métodos e novos instrumentos conceituais” (GAGLIARDI 1988, p.291). 2. 2 Problemas envolvidos na reconstrução histórica A relação entre o passado e o presente tem se revelado um assunto complexo no âmbito da historiografia da ciência, embora nem sempre esta complexidade seja percebida nos registros produzidos. Abrantes (2002), considera que as historiografias que visam a compreensão e a explicação do passado das ciências são mais adequadas para promover a função crítica, que cabe à História da Ciência. Estes gêneros historiográficos visam uma melhor compreensão do presente, buscando manter fidelidade com o contexto histórico do passado que possa ter influenciado aspectos do conhecimento científico contemporâneo. Esse autor defende uma História da Ciência filosoficamente orientada e sensível às imagens de natureza e de ciência que condicionaram a prática dos cientistas nos diferentes contextos (ABRANTES, 1998). 45 Algumas abordagens historiográficas da ciência se caracterizaram por selecionar alguns elementos do passado capazes de justificar o conhecimento atualmente validado, uma reconstrução distorcida e utilitária do passado. Este tipo de abordagem foi muito utilizada no século XIX, estando relacionada com a tese de continuidade e acumulação do conhecimento e com o caráter linear adotado para o desenvolvimento desta historiografia, conhecida como “whig” ou “whiggismo” (BUTTERFIELD, 1949, p.v apud MATTHEWS, 1994; CABRAL, 1996). Esta abordagem teve como objetivo estudar o passado para compreender o presente, julgando o passado à luz do presente e com referência ao conhecimento atual. Trabalhos e personagens que tivessem contribuído para as idéias científicas aceitas hoje eram valorizados; outras propostas já ultrapassadas e abandonadas eram menosprezadas. A historiografia ‘whig’ tem sido objeto de muitas críticas. Os principais aspectos criticados são a sua linearidade, o anacronismo e a capacidade de apresentar uma visão distorcida dos fatos, restringindo-se a uma “história dos sucessos”. Kuhn (1996) considera que esta historiografia anacrônica teve como resultado uma história teleológica das ciências. Os críticos deste tipo de historiografia questionam a interpretação do passado a partir do conhecimento presente. Considera- se que os êxitos e fracassos só podem ser julgados em relação ao contexto de cada época, no entanto, a dificuldade de se despir do próprio contexto, coloca em questão a impossibilidade de um enfoque diacrônico restrito nessa reconstrução. A possibilidade dos distintos enfoques historiográficos tem sido debatida no âmbito da Filosofia da Ciência. Algumas escolas filosóficas, a exemplo dos “globalistas” 46 têm enfatizado a História da Ciência em suas análises. As teorias globalistas da ciência e as “novas filosofias das ciências” que tiveram origem no último século, questionaram a distância entre a prática científica concreta e o ideal lógico da ciência (PESSOA JÚNIOR, 1993; 2004). 2. 3 Buscando contribuições da historiografia contemporânea para o ensino “sobre” as ciências A historiografia do século XX tem sofrido mudanças importantes que deverão se refletir cada vez mais no ensino sobre ciências. Os avanços tecnológicos no campo da informática têm facilitado a pesquisa histórica, permitindo o acesso às informações e às fontes de pesquisa, possibilitando a comunicação à distância e uma maior interação entre os pesquisadores. A aproximação da História da Ciência do ensino tem sido uma das importantes questões discutidas pelos educadores da área de ciências. Esta nova demanda é ocasionada pelo desejo de muitos professores das ciências de possibilitarem uma visão mais humanizante da ciência, ajudando seus alunos a aprenderem de forma diferenciada os conteúdos científicos. Este novo público tem solicitado uma abordagem que trate de aspectos sociais, filosóficos, metodológicos e conceituais. Entretanto, Martins (2000) considera que este novo enfoque não interessa aos historiadores sociais da ciência que não o desejam e nem estão preparados para desenvolvê-lo. Freire Júnior (2002) reconhece a importância das ponderações apresentadas por Martins para a aplicação da História da Ciências na educação científica, embora considere que toda a reflexão sobre a ciência, seja ela mais histórica, filosófica ou 47 sociológica pode contribuir para um aprendizado sobre a ciência. A diversidade de temas e abordagens que caracterizam a historiografia contemporânea, portanto, é desejável para concretizar a alfabetização científica. Aprofundando essa questão Greca e Freire Júnior (2004) apresentam argumentos que justificam a importância das contribuições da História Social da Ciência e da Sociologia da Ciência para tornar mais inteligível o fenômeno da ciência e de sua produção e difusão nas sociedades contemporâneas. Esses pesquisadores consideram que a investigação em educação em ciências se tornará mais fecunda se incorporar esses temas no ensino e na pesquisa, independente de alguns problemas identificados nos pressupostos desses campos. Alguns episódios da História Social da Ciência são discutidos e usados como exemplos para justificar a importância de se incorporar essas contribuições para ajudar na compreensão da ciência e do seu processo histórico bem como, na formação de cidadãos críticos e responsáveis. Em alguns países, a incorporação da História e Filosofia da ciência no ensino médio (secundário) já encontra-se explicitada em documentos que orientam reestruturações curriculares mais recentes. No Brasil, as novas políticas educacionais têm estimulado esta tendência que esperamos um crescimento ainda maior. Martins (2000) defende que a demanda crescente por esta inclusão poderá ter como conseqüência uma cisão dos estudos em História da Ciência em duas linhas de investigação: a abordagem da história social e a abordagem conceitual, metodológica e filosófica, que ele considera mais relevante para a educação científica. O nosso ponto de vista é que a História e a Filosofia da Ciência não deve ser apenas um conteúdo a mais no processo de ensino e aprendizagem, mas deve possibilitar a introdução de elementos relevantes para o debate, estimulando a reflexão, 48 o diálogo e uma visão crítica do conhecimento. A opção didática pela História da Ciência deve acontecer de modo articulado com a Filosofia da Ciência que poderá ajudar na análise e compreensão dos assuntos abordados, tendo em vista a necessidade de transposição didática dos conteúdos (CHEVALARD, 1997). Entendemos que qualquer tipo de reflexão sobre a ciência, seja histórica, filosófica ou didática ajudará numa formação crítica e mais humanista do educador. A superação de um modelo de racionalidade técnica na formação de sujeitos/alunos e futuros educadores exige a proposição de ações que não se limitem apenas a questões técnicas e burocráticas relativas às mudanças curriculares ou à construção de novas metodologias de ensino e aprendizagem. O debate epistemológico relativo à natureza do conhecimento científico e a sua construção, o levantamento das concepções epistemológicas e pedagógicas dos estudantes e futuros professores, devem passar a ser uma realidade no ‘currículo na ação’ (SÁCRISTÁN, 1998, p.201); subsidiando permanentemente a formação docente, de modo a permitir o seu redirecionamento e possíveis intervenções curriculares. Sácristán (1998) lembra que qualquer proposta de mudança para a prática educativa só pode ser comprovada em sua concretização nas situações reais. O uso de uma abordagem contextual de ensino das ciências pode ser uma alternativa e precisa efetivamente acontecer para que mostre a sua eficácia na melhoria da formação inicial. No processo para concretização de propostas que contemplem esta abordagem, poderão ser identificadas possíveis dificuldades a serem superadas, para que aconteça sua ampla inserção na prática educativa em nosso país. Consideramos, também, que a história das ciências pode se constituir numa alternativa capaz de explicitar os significados de conceitos científicos, esclarecendo 49 sobre sua construção histórica e mutabilidade do conhecimento científico. Como conseqüência, acreditamos que a abordagem histórica dos conceitos científicos pode ser uma alternativa didático-pedagógica capaz de ajudar na aprendizagem significativa destes conceitos. 2. 4 Aprendizagem significativa: conceitos básicos e o modelo de ensino decorrente Nas últimas décadas vários modelos foram propostos para o ensino e a aprendizagem da ciência; no entanto, os resultados obtidos em relação à eficiência da aprendizagem não foram os esperados, levando a questionamentos e críticas às suas bases epistemológicas e psicológicas representadas pelo empirismo e behaviorismo. A partir da década de oitenta, surgiram novas propostas de ensino utilizando como orientação, idéias racionalistas para a produção do conhecimento fundamentadas nos avanços no campo da psicologia cognitiva. Estas novas idéias originaram modelos construtivistas e interacionistas, que fundamentaram novos projetos pedagógicos e muitas pesquisas educacionais (MALDANER, 1996). O paradigma que fundamenta a concepção construtivista de ensino admite uma relação mais complexa entre o ensino e a aprendizagem. Segundo esta concepção, a aprendizagem só ocorre a medida que o “sujeito/aluno” age sobre os conteúdos específicos, pressupondo-se que já existe no educando, um conjunto organizado de conhecimentos e estruturas teóricas prévias que irão orientar as observações e a interação entre o novo conhecimento e aquele já existente. Este processo poderá levar a uma aprendizagem significativa ou não para o aprendiz. 50 Na literatura existem divergências relacionadas à validade da substituição de idéias prévias dos estudantes, ou do seu abandono, por concepções científicas, durante o processo de ensino. Concordamos com os teóricos que argumentam que a aprendizagem de ciências deve ajudar o estudante a distinguir os conceitos apropriados para cada contexto específico, em vez de conduzir a uma simples mudança dos conceitos prévios (MOREIRA; GRECA, 2003; MORTIMER, 1995, 1996). Uma das maiores preocupações do professor é apresentar alternativas que ajudem na aprendizagem de seus alunos, tornando-a mais significativa e eficiente. Uma aprendizagem é significativa quando a nova informação consegue interagir com a estrutura cognitiva do sujeito/aluno de forma substantiva ou seja, o seu conteúdo vai ser relacionado com significados pré-existentes, aquilo que o aluno já sabe, o seu conhecimento prévio (AUSUBEL, 2003; MOREIRA, 2000). A aprendizagem significativa é caracterizada por uma modificação ou evolução da estrutura cognitiva do indivíduo. A teoria da aprendizagem significativa considera que o enriquecimento da estrutura cognitiva do aluno pode ocorrer sem abandono de concepções antigas, idéias que muitas vezes são úteis em outras situações e contextos diferentes daqueles que constituem a matéria de ensino (MOREIRA, 2000). O conceito de aprendizagem significativa originou-se dos trabalhos de David Ausubel (AUSUBEL, 2003). A publicação destas idéias, em 1963, motivou a interpretação dos resultados de pesquisa de Joseph Novak e colaboradores que a incorporaram em seus estudos, possibilitando a sua ampliação. No Brasil, o principal estudioso e divulgador desta teoria é o professor Marco Antônio Moreira que a tem utilizado amplamente em suas pesquisas sobre o ensino de ciências. Moreira (1999) considera que se pode falar em aprendizagem significativa em distintos referenciais 51 construtivistas. O enquadramento desta teoria no construtivismo fundamenta-se no pressuposto de que as pessoas são capazes de construir, seja individual ou socialmente, suas idéias sobre o mundo. A teoria da aprendizagem significativa tem como foco a explicação dos processos de aquisição, transformação, armazenamento, recuperação e emprego de informações. É uma teoria de base cognitivista, mas sem desconsiderar a importância dos fatores afetivos e sociais envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. Nesta teoria é de fundamental importância o conceito de estrutura cognitiva, que corresponde ao conjunto organizado de conhecimentos de cada indivíduo, resultante das representações que são construídas através das suas experiências de vida. Ausubel (2003) considera que a estrutura cognitiva tem uma organização hierarquizada, onde conceitos com significados mais amplos e gerais incluem outras com significados mais restritos. A estrutura cognitiva é mutável e as modificações podem ser tanto do seu conteúdo quanto da sua organização. As novas informações que se inserem na estrutura cognitiva vão estabelecer novas relações com o conhecimento já estruturado, provocando alterações nas relações já existentes. De acordo com esta teoria, a aprendizagem vai resultar da interação do novo conteúdo (conceitos, idéias,etc.) com o conhecimento prévio (subsunçores ou idéiasâncora) existente na mente do indivíduo (MOREIRA, 1999). Essa interação com a nova informação leva à produção dos novos significados que modificam a estrutura cognitiva do sujeito. A aprendizagem é um processo característico de cada indivíduo porque o conhecimento prévio individual é específico, de modo que, as relações que criam o significado da nova informação assimilada serão também específicas. Neste processo é 52 importante a existência de “idéias-âncora” bem elaboradas e que tenham alguma estabilidade na estrutura cognitiva do educando. A aprendizagem significativa pode ser identificada pelo estabelecimento de relações substantivas (essenciais, não literais) e não-arbitrárias (coordenadas) entre a nova informação e a estrutura cognitiva. Este tipo de relação deve contribuir para a diferenciação, reelaboração e estabilidade dos conhecimentos já existentes. Para que a aprendizagem significativa aconteça, é necessário que o aluno esteja disposto a aprender, esforçando-se por estabelecer relações substantivas e não arbitrárias entre o conteúdo da sua estrutura cognitiva e as novas informações. Outro ponto importante é a relevância, sob o ponto de vista cultural e intelectual do conteúdo da aprendizagem que deve ser logicamente significante. A aprendizagem de conceitos científicos envolve a diferenciação da estrutura cognitiva do aluno, pressupondo a manutenção dos significados existentes. É esperada a aprendizagem de significados de ‘termos ou palavras’ que são aceitos no contexto atual, mas que estão relacionados aqueles que existiam e eram aceitos em contextos diferentes. O processo de assimilação de conceitos envolve a diferenciação de conceitos e a aquisição de novos conceitos a partir da interação com aqueles préexistentes na estrutura cognitiva. Na teoria da aprendizagem significativa, a compreensão de um conceito ou proposição requer que o aluno adquira significados claros, precisos, diferenciados e transferíveis. Uma das maneiras de se avaliar esta compreensão pode envolver a resolução de problemas ou questões, um método considerado válido e prático para buscar evidências de aprendizagem significativa (MOREIRA, 2000). 53 O ensino e a aprendizagem devem acontecer através de uma relação triádica, ou seja, três partes estão envolvidas: professor, aluno e materiais curriculares (MOREIRA, 2000). Uma relação trialógica entre estas partes é requisito para uma aproximação educando/educador/conhecimento que se reflita numa aprendizagem mais eficiente. Nesta perspectiva, defendemos a preparação de ‘materiais didáticos/instrucionais’ com conteúdos que articulem o conhecimento científico específico e a História e Filosofia da Ciência, que possam funcionar como ‘facilitadores’ da aprendizagem, ajudando na compreensão do processo de produção e validação do conhecimento. Furió e Guisasola (1998) consideram que a compreensão de um conceito científico deve ultrapassar o conhecimento de sua definição ou significado preciso. É necessário que se conheça o contexto sócio-histórico em que surgiu, as relações conceituais estabelecidas e suas diferenciações, bem como modificações de caráter epistemológico ocasionadas pelo próprio contexto. De acordo com Moreira (2000, p.19) quando o assunto já é familiar, deve ser utilizado um “organizador comparativo” para integrar as novas idéias aos conceitos relacionados e já existentes na estrutura cognitiva. Este material vai aumentar a discriminação entre as novas idéias e aquelas já existentes, possibilitando a compreensão das semelhanças e diferenças entre elas e agindo como um facilitador da aprendizagem. Ausubel (2003) considera que a utilização deste tipo de recurso possibilita a manipulação proposital da estrutura cognitiva. Adotamos como pressuposto, o caráter relacional dos conceitos e que tais relações são históricas. Consideramos portanto, que o conhecimento da construção e modificações de um conceito científico poderão ajudar na discriminação de significados, no enriquecimento conceitual e, conseqüentemente, numa aprendizagem significativa. CAPÍTULO 3 A FILOSOFIA DA CIÊNCIA E A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS 55 3 A FILOSOFIA DA CIÊNCIA E A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS Para fundamentar teoricamente o levantamento de concepções epistemológicas dos nossos alunos, procuramos nos apoiar nas discussões recentes no âmbito da Educação em Ciências que argumentam sobre a importância da aproximação deste campo com a Filosofia da Ciência. Buscamos auxílio na História e na Filosofia para uma melhor compreensão das epistemologias implícitas ou mesmo explícitas na atuação docente e discente, o que se faz necessário para que possamos entender questões epistemológicas subjascentes. A síntese apresentada neste capítulo elegeu as principais posições filosóficas relacionadas à produção do conhecimento científico e alguns dos seus representantes, porque se reconhece que elas teriam influenciado nos rumos do ensino de Ciências nos últimos séculos. A relevância da Filosofia da Ciência para a Educação não tem sido muito explorada na educação científica ‘tradicional’. Os pesquisadores em ensino de ciência têm reconhecido a importância deste campo do conhecimento, no entanto, entre cientistas e professores predomina o desconhecimento de que a Filosofia da Ciência é capaz de ajudar o educador a pensar a educação sobre as ciências e a sua prática. Por outro lado, a educação científica também tem sido influenciada por discussões no âmbito da sociologia da ciência que valorizam o processo de construção da ciência em lugar do estudo da ciência como entidade. A investigação das ‘práticas’ científicas (LATOUR; WOOLGAR, 1986), de sua produção e difusão na sociedade contemporânea divulgam uma imagem mais realista da ciência, contribuindo positivamente para a educação em ciências. 56 Mesmo existindo o reconhecimento pelos envolvidos com a Didática das Ciências, da necessidade de uma base filosófica para orientar os currículos, o ensino e a aprendizagem, muitos trabalhos desenvolvidos por profissionais que trabalham com o ensino de ciências não são fundamentados na Filosofia da Ciência que, no entanto, poderia nortear muitas discussões que acontecem neste campo. De acordo com Abimbola (1983), um exemplo do distanciamento entre os dois campos aconteceu na década de setenta, quando muitos projetos de educação científica utilizavam uma abordagem de “ensino por descoberta”, ignorando a pouca relação existente entre a concepção de descoberta adotada no ensino das ciências e aquela defendida por muitos filósofos da ciência. Para Cleminson (1990) a decadência do “modelo de ensino por descoberta” decorreu da inclusão, neste modelo, de estratégias didáticas associadas a uma visão equivocada da atividade científica. Um outro problema identificado na educação em ciência ‘tradicional’ é a projeção de uma imagem “empiricista-indutivista” da ciência (CAWTHRON; ROWELL, 1978; GIL PÉREZ et al., 2001). Esta é uma imagem questionada por filósofos da ciência do século XX, sendo estes questionamentos quase totalmente desconhecidos pelos professores e alunos, não fazendo parte das discussões que tradicionalmente são realizadas durante o processo educativo. A ciência não costuma ser vista como fazendo parte da sociedade, portanto, o seu ensino não acontece de forma contextualizada e as múltiplas dimensões do conhecimento não são identificadas ou percebidas. Considerando-se esta situação, torna-se imprescindível que questões relacionadas à Filosofia da Ciência sejam reconhecidas e valorizadas para que possam ajudar na construção de novos currículos, 57 possibilitando uma melhor compreensão da natureza da ciência e da atividade científica. A identificação de aspectos da Filosofia da Ciência relevantes para uma educação científica e de princípios adotados na construção da ciência, são reconhecidos como questões de grande importância. Entre estas, três foram destacadas por Abimbola (1983): a) as implicações das novas descobertas científicas para questões importantes discutidas pela filosofia tradicional; b) a análise de conceitos fundamentais das diversas disciplinas científicas e do modo como as teorias se sucedem; c) a natureza das metas dos empreendimentos científicos e os métodos que são utilizados pelos cientistas para tentar alcançá-las. Outras questões relacionadas mais diretamente aos currículos das ciências também têm sido discutidas por filósofos da Ciência do século XX, a exemplo de: • que características distinguem a investigação científica de outros tipos de investigação? • que procedimentos devem os cientistas seguir na investigação da natureza? • como o conhecimento científico é estabelecido e aceito? • como este conhecimento se torna válido? • como ele eventualmente muda de significado? • como se dá o progresso científico? • qual é o ‘status’ cognitivo das leis e teorias científicas? 58 Tais questões têm sido debatidas principalmente, pelas tendências que emergiram no âmbito da Filosofia da Ciência utilizando uma abordagem historicamente orientada e questionadora do Empirismo Lógico, doutrina que predominou na primeira metade do século XX. O conhecimento dessas questões poderá ajudar na solução dos problemas relacionados à educação científica, bem como no planejamento de novos currículos para os cursos de ciências. 3.1 A Filosofia da Ciência: uma breve retrospectiva histórica As duas principais doutrinas da Filosofia da Ciência que surgiram no século XX foram: o Empirismo Lógico, também chamada de “visão recebida” ou “ortodoxa” da natureza da ciência (PESSOA JUNIOR, 1993), e o que tem sido chamado de “nova(s)” Filosofia(s) da Ciência 1(ROUSE, 1998) ou Teorias Globalistas da Ciência, que podem ser compreendidas como filosofias gerais sobre a ciência. Os globalistas priorizam nas suas análises a emergência histórica dos métodos científicos, teorias e ontologias, mantendo-se compromissados com a reconstrução racional do conhecimento científico (ROUSE, 1998). Na década de noventa do último século se evidenciou a decadência de alguns destes movimentos e o florescimento de ramos da Filosofia específicos ou filosofias de várias ciências, como da Biologia e da Química; no entanto, o resgate da História da Filosofia da Ciência dos últimos séculos, nos ajuda compreender estes movimentos filosóficos e a relação destes com a ciência e sua produção. Iniciaremos a revisão destacando o racionalismo. 1 O termo nova filosofia da ciência, embora seja muito utilizado por pesquisadores da Didática das Ciências, tem recebido algumas críticas, principalmente pela utilização da palavra ‘nova’. Optamos por usar a expressão no plural. 59 3. 1.1 A tradição racionalista A posição epistemológica que admite o pensamento e a razão como fonte principal do conhecimento humano é conhecida como racionalismo, termo que se origina do vocábulo grego ratio, que significa razão. Segundo esta visão, um conhecimento só merece na realidade este nome quando é logicamente necessário e universalmente válido. A razão assume o papel de julgar e arbitrar como as coisas devem ser e o verdadeiro conhecimento. Os juízos formulados não se fundamentam em qualquer experiência, mas sim no pensamento, possuindo necessidade lógica e validade universal (HESSEN, 1980). O conhecimento matemático, predominantemente conceitual e dedutivo, serviu de modelo à interpretação racionalista do conhecimento. No decorrer da História, muitos representantes do racionalismo foram também, importantes matemáticos. Nas idéias desenvolvidas por Platão, tem-se a forma mais antiga do racionalismo que considerava que os sentidos nunca poderiam conduzir a um verdadeiro saber. As suas idéias eram impregnadas de um tipo de idealismo que podia ser traduzido nos termos da matemática. René Descartes (1596-1650) é considerado fundador do Racionalismo Moderno, fazendo parte de uma tradição idealista e subjetivista. Ele considerava que o espírito era capaz de conhecer o mundo através da razão, demonstrando grande confiança na razão e na Ciência. Ainda que no século XIX o racionalismo tenha se tornado lógico, muitas críticas a esta visão a consideram exclusivista ou reducionista, porque faz do pensamento a fonte única ou própria do conhecimento (HESSEN, 1980). 60 Segundo Chalmers (1995), o racionalismo extremo afirma que há um critério único, atemporal e universal com referência a que se pode avaliar tanto as teorias rivais quanto os seus méritos. De acordo com este ponto de vista, as decisões e as escolhas feitas pelos cientistas devem ser guiadas pelo critério universal. Apenas teorias que, avaliadas de acordo com este critério, conseguirem sobreviver ao teste, serão consideradas científicas. No século XX, algumas formas mais sofisticadas de racionalismo foram propostas a partir de críticas ao racionalismo clássico e à idéia do predomínio do sujeito isolado. Entre estas críticas observamos aquelas que tentaram uma aproximação entre a teoria e o experimento, a exemplo do Racionalismo Aplicado de Gaston Bachelard que será comentado posteriormente. 3.1.2 A tradição empirista O termo Empirismo é muito utilizado nas discussões relacionadas ao processo de construção da Ciência, estando relacionado ao pressuposto de que a fonte do conhecimento encontra-se fora do homem, externamente; nesta condição ele deve ser buscado ou descoberto. Chaui (1997) considera que a concepção empirista inicia-se na medicina grega e em Aristóteles, indo até o final do século XIX. O termo Empirismo origina-se da palavra grega “empeiria”, que significa experiência, afirmando que a razão, incluindo seus princípios, procedimentos e idéias é adquirida através da experiência. O conhecimento, portanto, procede da experiência. Entre os mais importantes representantes do Empirismo tem-se os ingleses Bacon, Hobbes, Locke, Berkeley e Hume. No trabalho do empirista Francis Bacon 61 (1561-1626) temos uma das principais origens desta doutrina filosófica. Ele divulgou o método experimental indutivo e foi um pioneiro na tentativa de sistematização lógica dos procedimentos científicos. Bacon considerava que, para que o conhecimento pudesse ser colocado a serviço do homem, deveria estar fundamentado em fatos, numa ampla base de observação. Neste período, a atitude científica tomava como base que, para se compreender a natureza deveria se consultar a própria natureza e não o que tinha sido escrito por “autoridades”, a exemplo de importantes filósofos gregos que influenciaram a ciência durante o período medieval. Bacon foi um crítico tanto do método dedutivo e apriorístico característico da Escolástica, quanto da grande atenção dedicada à teoria em detrimento à ‘observação’ que caracterizou os filósofos gregos. Ele considerava a experiência como principal fonte de conhecimento que poderia ser alcançado pela via empírica e não pela especulativa (ANDERY et al., 1988; CHALMERS, 1995). Só há e só pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade. Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas gerais e, a seguir, descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses princípios e da sua inamovível verdade. Esta é a que ora se segue. A outra, que recolhe os axiomas dos dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porém ainda não instaurado (BACON, 1984, p.16). No trecho anteriormente citado, Bacon compara o método que costumava ser utilizado nas ciências com a sua nova proposta metodológica, conhecida como método indutivo, o que justifica o fato dele ser geralmente associado ao empirismo-indutivismo. A indução pressupõe o raciocínio indutivo que parte de um conjunto de fatos particulares para uma conclusão geral, ou seja, vai dos fatos à lei. Nesta visão, toma-se 62 como ponto de partida a observação, para a posterior elaboração de hipóteses seguida de experimentos, que levarão às conclusões. Segundo Chalmers (1995), as afirmações obtidas ou as “proposições de observações” formam a base a partir da qual as leis e teorias devem ser derivadas. Para outro empirista, John Locke (1632-1704), nada existe no espírito sem passar antes pelos sentidos. A alma, no momento do nascimento, é como uma “tábula rasa”, um grande vazio. A experiência sensível constitui a fonte de todo o conhecimento possível, sendo capaz de suprir a mente com novos conhecimentos, tendo a reflexão um importante papel a desempenhar neste processo (ANDERY et al., 1988). Outro importante representante do empirismo foi o filósofo escocês David Hume (1711-1776), que se destacou por argumentar contra a indução. A relação de Hume com o empirismo é observada em sua preocupação em discutir e criticar a fonte do conhecimento humano que, para ele, encontrava-se na percepção. A sua principal tese era que toda percepção da mente se resolve em dois tipos distintos: impressões e idéias (HUME, 1962 apud ANDERY et al., 1988, p.316). As impressões representam os objetos imediatos do conhecimento adquirido através da experiência, percebidos e internalizados. As impressões são as nossas sensações quando vivenciamos algo. As idéias baseiam-se e provêm das impressões, mas não devem ser confundidas umas com as outras porque são menos vivas. Elas representam os objetos que temos conhecimento através da atividade mental, são os nossos pensamentos. Para Hume, qualquer pensamento tem na sua base uma impressão (ANDERY et al., 1988). Podemos, pois, dividir aqui todas as percepções da mente em duas classes ou espécies, as quais se distinguem pelos seus diferentes graus de força ou vivacidade. As menos fortes ou vivazes são comumente denominadas pensamentos ou idéias. A outra espécie 63 não tem nome em nossa língua, como em muitas outras, suponho que por não ser necessário para nenhum fim que não fosse filosófico incluí-las sob um termo ou designação geral. Tomemos, pois, uma pequena liberdade e chamemo-las impressões, usando a palavra num sentido algo diferente do usual. Pelo termo impressão entendo todas as nossas percepções mais vivazes, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. E as impressões distinguem-se das idéias, que são as impressões menos vivazes das quais temos consciência quando refletimos sobre qualquer dessas sensações ou movimentos acima mencionados (HUME, 1973, p. 138). Para Andery e outros (1988), uma dificuldade relacionada com esta tese referiase à conexão racional entre as impressões, sem as quais leis científicas universais não podiam ser aceitas. Este problema permaneceu sem solução até o século XX, quando a lógica simbólica se desenvolveu. A crença no indutivismo está relacionada à observação dos fenômenos, constantemente presente no trabalho científico. Aceita-se que o conhecimento surge de observação desinteressada da natureza. Um dos maiores problemas é a sua justificação que, simultaneamente, parte da indução como premissa e admite que a constatação de regularidades possibilitaria a elaboração posterior de leis e teorias. De modo geral, as epistemologias tradicionais do tipo empirista-indutivista consideram que o conhecimento deriva direta ou indiretamente da experiência sensível através da observação. O método científico possibilita a obtenção de um conhecimento certo e seguro, não existindo espaço para a especulação, a imaginação, a intuição e a criatividade. As teorias não são inventadas ou construídas, mas descobertas a partir da manipulação e apropriação dos dados empíricos. Distintas visões de empirismo surgiram ao longo do tempo, no entanto, talvez uma das características mais nítidas preconizadas por tais concepções consista na crítica diante de concepções metafísicas veiculadas em seu tempo. As argumentações elaboradas pelos empiristas, contrariamente às pretensões metafísicas, priorizavam 64 dois pontos: a existência de certos limites à demanda de explicações e a não admissão de explicações “postulacionais” (BUENO, 1999). Concepções mais sofisticadas sobre o empirismo foram formuladas posteriormente, a exemplo do empirismo construtivo de Van Frassen. Esta concepção considera que as teorias são modelos e representam mais do que instrumentos, quando a elas se atribui valor real. Para o empirismo construtivo é fundamental que haja distinção entre verdade e adequação empírica. Em relação a este assunto, Dutra (1998) apresenta a seguinte explicação: [...] as teorias precisam dar conta dos fenômenos, daquilo que observamos, e para tanto postulam entidades inobserváveis, como no caso de uma teoria atômica que explica as qualidades aparentes diferentes de duas substâncias com base na hipótese de que elas possuem números atômicos diferentes. Mas sendo empiricamente adequada, uma teoria não precisa ser também verdadeira. Não é preciso que ela faça um relato exato do mundo, inclusive e principalmente de seus aspectos inobserváveis, e nem é preciso que se acredite que as entidades inobserváveis postuladas pela teoria existem (DUTRA, 1998, p.35). O empirismo construtivo reconhece a importância a ser dada à interpretação de cada teoria científica e dos componentes teóricos da ciência para que se possa ter uma melhor compreensão do conhecimento científico. 3.1.3 Positivismo e Positivismo Lógico O Positivismo se constituiu como o movimento de reação ao Idealismo que alcançou maior destaque na segunda metade do século XIX. Fundamentado nos critérios precisos e rigorosos das Ciências Naturais, refletia o sucesso alcançado pela Ciência e Técnica naquele período. Esta doutrina foi desenvolvida, principalmente, pelo 65 pensador francês August Comte (1798-1857) e de forma ampla esteve ligada a outras correntes filosóficas e a nomes como do irlandês John Stuart Mill (1806-1873). Comte se apoiou na filosofia empirista de Bacon e Hume para propor o seu método de investigação, embora se considerasse herdeiro da tradição racionalista cartesiana. Considerando-se esta dupla influência, o método de investigação positivista combina princípios do Racionalismo e do Empirismo que incluem: dedução, indução, observação, experimentação, comparação e analogia. A tese principal era que somente o conhecimento fundamentado diretamente na experiência seria autêntico. O conhecimento científico devia se basear na observação dos fatos e nas relações que são estabelecidas pelo raciocínio. Estas relações são na verdade, a descrição das leis que os regem. A concepção positivista não desapareceu juntamente com o seu fundador, tendo se mantido como uma das correntes mais poderosas e influentes nas Ciências em todo o século XX (CHAUÍ, 1997). Para os positivistas, as leis dos fenômenos deveriam traduzir o que ocorria na natureza e, de modo dogmático, Comte tomou como princípio que tais leis eram invariáveis: “É nas leis dos fenômenos que consiste realmente a ciência, à qual os fatos propriamente ditos, por mais exatos e numerosos que possam ser, nunca fornecem senão materiais indispensáveis [...]” (COMTE, 1990, p.18). O Positivismo pressupunha as seguintes teses: 1) demarcação criteriosa entre ciência e metafísica; 2) separação entre ciência e valor, ou seja, a ciência em si não tem valores embutidos; 3) unidade da ciência em relação ao seu método, considerado o mesmo, independente do campo científico; 66 4) o descritivismo, que admite que só faz sentido dizer que é real aquilo que é diretamente observado pelos sentidos (PESSOA JUNIOR, 2004). O conhecimento científico positivo segundo Comte (1990) tem duas importantes características: é um conhecimento sempre certo, não admitindo conjecturas e é um conhecimento que tem algum grau de precisão, que pode variar de ciência para ciência, dependendo do objeto de estudo. Comte argumentava que a ciência estava no seu limiar, necessitando romper com a religião e a metafísica, que teriam dificultado o progresso científico positivo. Ele reivindicava que até mesmo o pensamento social deveria ser tratado cientificamente, desejando um final positivo também para o desenvolvimento intelectual governado pela ciência. Para Modin(1987), o principal erro dos positivistas foi ter estendido um método adequado às ciências experimentais para outros campos, tomando como arbitrário tudo mais que não pudesse ser avaliado por seu método como a arte, a religião e a moral, bem como a própria metafísica. Esta supremacia da ciência passou a ser defendida por outros movimentos filosóficos, a exemplo do Positivismo Lógico, que se constituiu posteriormente, defendendo as ciências físicas como “modelo”, não somente para o pensamento científico em geral, mas para toda a investigação humana. O Positivismo Lógico, conhecido também como Neo-Positivismo, foi um programa filosófico que teve como ferramenta fundamental a lógica simbólica e cuja principal preocupação era em fornecer uma base lógica ao conhecimento científico. Sua doutrina clássica era a teoria da verificação dos significados, que afirmava ser uma proposição verdadeira, se e somente se, existisse um método empírico para decidir sua 67 verdade ou falsidade. A principal preocupação era em fornecer uma fundamentação segura para a Ciência, livrando-a da metafísica. Bunge (1980) considerava que o Positivismo Lógico possuía duas importantes características: era “fenomenista”, sustentando que só tinha sentido se falar daquilo que se observava e se media e também “operacionalista”, uma vez que, considerava que qualquer conceito científico devia ser definido em termos de operações concretas como pesagem ou amostragem. O cientista e filósofo Ernst Mach é freqüentemente considerado como o pai do Positivismo Lógico, bem como o principal arquiteto do que foi denominado “positivismo científico” (RAY, 2000). Este movimento filosófico considerava a possibilidade da verificação através da observação e da experimentação como característica que definia as afirmações científicas. Para Mach, o conhecimento do mundo físico era derivado totalmente das experiências sensoriais e o conteúdo da ciência era totalmente caracterizado pelas relações entre os dados obtidos da experiência. A Filosofia da Ciência “fenomenista” de Mach foi adotada por um grupo de filósofos que constituíram o Círculo de Viena, tendo o Positivismo Lógico emergido das preocupações filosóficas e tendências científicas deste grupo (RAY, 2000). Influenciado por estas idéias Mach assumiu uma posição anti-atomista, tendo rechaçado publicamente o atomismo em suas publicações e pronunciamentos a partir de 1872. Mach considerava que o atomismo era um recurso heurístico, meramente hipotético. Comparava o átomo a uma função matemática qualquer, que tinha utilidade por sua capacidade de ordenar fenômenos e permitir a sua compreensão, mas carecendo de realidade objetiva. A filosofia de Mach admitia que o mundo consistia de nossas sensações, tendo as investigações físicas a função de fixar o fluxo das mesmas. 68 Os objetos e as coisas seriam símbolos mentais que não teriam existência fora do pensamento. Os átomos só existiriam como símbolos mentais que resumiam sensações, as quais seriam a única realidade (BRUSH, 1968, apud ÓDON, 1986). O Círculo de Viena adquiriu vigor na década de 1920, atraindo filósofos como Rudolf Carnap, Friedrich Waisman, Otto Neurath e Moritz Schlick e alguns matemáticos e cientistas como Kurt Gödel e Hans Hahn. Inicialmente eram conhecidos como Sociedade Ernst Mach, debatendo e discutindo problemas da ciência, lógica e filosofia na tentativa de chegar a posições consensuais e na defesa de alguns compromissos como: (RAY, 2000). 1) o desenvolvimento da herança positivista de David Hume e Ernst Mach, que menosprezava a metafísica e cujo foco era sobre as investigações empíricas; 2) a promoção da investigação científica como modelo para toda investigação intelectual; 3) a convicção de que a Física não era somente um modelo para as outras ciências mas para todas as ciências inclusive as sociais; 4) o uso sistemático da análise lógica para reduzir afirmações complexas a proposições elementares. Losee (1998) considera que o maior problema desta doutrina surgiu nas divergências relacionadas à verificação das leis científicas. O questionamento apresentado conduziu a um novo movimento filosófico, o Empirismo Lógico, adotado por positivistas que estavam prontos para abandonar a verificação restrita das teorias. De acordo com Bunge (1980), Ludwig Wittgenstein (1889-1951), que tinha se tornado membro deste grupo, teve a pretensão de reduzir a Filosofia à análise da linguagem, desviando o Círculo de Viena dos seus objetivos iniciais, o que contribuiu 69 para o fim da unidade deste grupo. Wittgenstein considerava a filosofia como uma atividade que tinha como objetivo a elucidação lógica do pensamento. 3.1.4 O Empirismo Lógico As raízes do Empirismo Lógico estão intimamente ligadas àquelas do Positivismo Lógico, tanto que os dois movimentos são equivocadamente confundidos (SALMON, 2000). As duas escolas filosóficas surgiram como uma reação ao pós-kantianismo vigente no século XIX e à idéia kantiana de que seria possível estabelecer, no plano lógico, as condições mais gerais para o conhecimento científico. Os dois movimentos filosóficos tinham alguns pontos de vista comuns como: a valorização da epistemologia empirista, o compromisso com as ciências empíricas, a ênfase na importância da lógica moderna como ferramenta de análise das ciências, a rejeição da metafísica especulativa. Apesar das raízes comuns, existiam algumas diferenças filosóficas fundamentais entre os dois movimentos. Assim como Viena foi o centro em que floresceu o Positivismo Lógico, Berlim foi o centro do Empirismo Lógico, tendo o filósofo Hans Reichenbach como importante representante e articulador do chamado “grupo de Berlim”. Este último movimento manteve a sua vitalidade na Filosofia da Ciência até a segunda metade do século XX, enquanto o Positivismo Lógico perdeu o seu vigor em meados deste século. Membros do Círculo de Viena como Rudolp Carnap, Herbert Feigl e Carl G. Hempel que, inicialmente eram positivistas lógicos, posteriormente se envolveram com o Empirismo Lógico. 70 Os problemas relacionados à predição e à probabilidade das teorias que estão ligados ao pensamento de Reichenbach constituíram a abertura para a separação entre o Positivismo Lógico e o Empirismo Lógico. Em sua obra Experiência e Predição, publicada em 1938, Reichenbach resume as suas divergências com o Positivismo Lógico em três pontos (SALMON, 2000): 1) o fenomenalismo, que ele rejeita adotando o fisicalismo2 como base para a sua epistemologia. Considerava-se que as impressões do sentido não são dados obtidos da experiência, mas são ‘constructos’ teóricos da psicologia; 2) a teoria da verificação ou o critério do significado cognitivo; segundo o qual uma sentença é cognitivamente significante, se e somente se, a princípio, é possível encontrar evidências empíricas que lhe dêem sustentação; 3) o realismo científico que Reichenbach abraçou. A principal divergência estava relacionada ao conceito de probabilidade; considerava-se que a confirmação ou a refutação teria sempre algum grau de probabilidade (PESSOA JUNIOR, 2003). Para o Empirismo Lógico, a ciência indutiva é racional porque, em princípio, pode indicar ao cientista até que ponto suas teorias têm probabilidade de serem verdadeiras e em que medida podem ser confiáveis (KNELLER, 1980). 2 O fisicalismo é uma doutrina neo-positivista que considera a linguagem da Física como sendo, de direito, a linguagerm de todas as ciências e que as sentenças observacionais não precisam se referir a dados sensoriais, mas sim a objetos físicos. 71 O Empirismo Lógico ou a ‘Visão Recebida’ da natureza da ciência incluía pontos de vista de diferentes filósofos que se constituíram a partir de diversas tentativas para definir as teorias científicas a partir da lógica. Eles trocaram a noção de verificação pela de confirmação. A preocupação era com o problema de se analisar como os termos científicos ganham significado, considerando-se uma teoria científica como um sistema lógico. Outros pontos de interesses comuns foram as evidências científicas, as teorias e suas explicações, o método hipotético-dedutivo e o problema da indução. Algumas das reivindicações importantes foram: a) a observação era considerada como sendo independente das teorias; b) observações permaneciam as mesmas durante as mudanças científicas; porém uma nova teoria constituia um avanço em relação às velhas porque abrangia um maior domínio observacional ou explicava um maior número de observações. O progresso das teorias acontecia segundo certos critérios racionais; c) o conhecimento científico aumentava por acumulação; d) o que interessava era a estrutura lógica do produto ou da pesquisa científica. O critério da objetividade era necessário para a validação das descobertas científicas (ABIMBOLA, 1983, p.190). Os empiristas lógicos defendiam critérios normativos para descrever o processo de construção da ciência, ou seja, explicava a ciência como uma teoria científica; no entanto, não estavam preocupados com a descrição de como a ciência de fato era feita e com o seu funcionamento. Esta e outras questões levaram a muitos debates com representantes de novas escolas filosóficas que se constituíram na segunda metade do século XX, compromissadas com uma nova abordagem para as discussões 72 epistemológicas e priorizando a História da Ciência nas suas análises. Estas tendências visavam a descrição do comportamento da ciência reconhecendo a influência de múltiplos fatores: sociais, econômicos, religiosos, ideológicos, etc. no seu desenvolvimento. 3.1.5 A filosofia Popperiana Vários filósofos e investigadores da ciência contribuíram para a superação de uma concepção positivista da ciência e para o surgimento das ‘novas filosofias’ da ciência no século XX, entre eles o pensador austríaco Karl Popper. Este filósofo era um importante membro do Círculo de Viena, tendo no entanto, se afastado deste grupo por discordar de algumas das suas teses fundamentais. As idéias de Popper que podem ser situadas na transição entre o Empirismo Lógico e as novas tendências mais radicais que surgiram na Filosofia da Ciência neste período, ficaram conhecidas como o Falsificacionismo ou Falseacionismo. Ele criticou o modelo de investigação positivista baseado na observação como fonte segura de conhecimento, reconhecendo a ausência de embasamento lógico para o método da indução e a sua impossibilidade de garantir a verdade das afirmações científicas. Popper construiu uma teoria da ciência que não se apoiava na indução defendendo uma ciência empírica mas sem ser indutiva. Para descrever o desenvolvimento da Ciência propôs um novo modelo, o Falseacionismo que considerava a cientificidade de uma proposição atrelada à possibilidade de ser falseada pela experiência. O erro era fundamental neste processo, desempenhando um importante papel na elaboração do conhecimento. 73 Popper considerava que o método científico devia ter como objetivo provar a falsidade e não a verdade das hipóteses de que partia, verificando até que ponto elas iriam resistir a hipóteses contrárias. Mesmo defendendo um método hipotético-dedutivo, ele considerava que uma hipótese só avançava se pudesse ser empiricamente testada, tendo introduzido a noção de aproximação da verdade em oposição à verdade por correspondência, defendida pelos empiristas lógicos (POPPER, 2001). A Filosofia de Popper incluia dois aspectos principais: um critério de demarcação, isto é, a tentativa de estabelecer um critério que possibilitasse distinguir as teorias científicas da metafísica e/ou das pseudo-ciências e um conjunto de regras metodológicas elaboradas visando assegurar a aplicação deste critério. A falseabilidade ou refutabilidade é o critério que ele propôs para a demarcação entre ciência e nãociência, preservando o caráter racional da pesquisa científica. Para Popper, o falseamento não significa a rejeição imediata de uma teoria, podendo implicar apenas na modificação de hipóteses auxiliares. As teorias que têm maior validade nunca são teorias verdadeiras, mas teorias que ainda não foram falseadas. A atividade científica, como atividade crítica, deve ter como meta a refutação e não a verificação. Teorias científicas, na verdade, são consideradas como conjecturas que podiam ser a qualquer momento refutadas. Pode-se dizer, resumidamente, que o critério que define o status científico de uma teoria é a sua capacidade de ser refutada ou testada.[...] Não existe método mais racional do que o método de ensaio e erro, de conjectura e refutação, de proposição audaz de teorias, de esforços no sentido de demonstrar que elas são errôneas; e de sua aceitação, a título precário, se os nossos sentidos forem coroados de êxitos (POPPER, 1982, p. 66). 74 De acordo com Popper, no processo de indução encontrava-se implícita a idéia de que o investigador podia observar e experimentar a realidade sem pressupostos e de forma neutra. Ele propôs uma ciência dedutiva3 mas sem certezas, admitindo que as teorias podiam ser testadas através do método dedutivo visando a confirmação (PESSOA JUNIOR, 2004). Popper se destacou como importante crítico do Empirismo Lógico, entretanto, compartilha com esta escola a idéia de que a Filosofia da Ciência deve ter como função articular um ideal de Ciência e não descrever o trabalho científico. Este ideal devia se pautar em termos metodológicos e não numa reconstrução lógico-semântica das teorias científicas. Segundo Abrantes (1997), para Popper a principal função da Filosofia da Ciência era a compreensão do processo de crescimento do conhecimento científico, a dimensão histórica portanto, se fazia necessária à reflexão filosófica sobre a Ciência. 3. 2 Novos rumos da Filosofia da Ciência no século XX Na segunda metade do século XX, surgiu um novo tipo de Filosofia da Ciência que congregava diferentes pontos de vista filosóficos mas, com questões que asseguravam interfaces comuns entre eles (Kuhn, Lakatos, Laudan, Feyerabend, etc.). O que caracterizou o movimento dos “globalistas” foi a rejeição da “visão recebida” (Carnap, Reichenbach, Hempel) e da excessiva valorização da lógica formal como principal ferramenta para análise da ciência (Popper, Quine) (McGUIRE, 1992). Em seu lugar, propuseram um detalhado estudo da História da Ciência e o uso de muita 3 Dá-se o nome dedução à operação lógica de se partir de um enunciado geral para se formular ou justificar enunciados particulares. Contrariamente, o método indutivo pressupõe que se parta da observação de vários casos 75 informação histórica para subsidiar análises e justificar suas teses filosóficas. As dimensões histórica e temporal da mudança e do desenvolvimento científico passaram a ser bastante valorizadas. Outro importante aspecto desta nova abordagem foi a crítica à ortodoxia e à ênfase na continuidade dos programas de pesquisa e na acumulação do conhecimento científico. As “teorias globalistas” sobre a ciência e o seu desenvolvimento consideram que para se descrever como a ciência de fato é feita, devia-se prestar atenção na História, na Sociologia e na Psicologia e não apenas em seus aspectos racionais e em sua estrutura lógica. Sob este ponto de vista, considerava-se que as questões de justificação das teorias estavam relacionadas com as das descobertas (PESSOA JUNIOR, 1993). Considera-se como um dos precursores desta abordagem o filósofo francês Gaston Bachelard, cuja obra de maior repercussão foi o livro “O Novo Espírito Científico”, publicado em 1934 (BACHELARD, 1996). Outros filósofos que podem ser considerados como integrantes desta abordagem, alguns pelo menos como precursores são: Richard J. Blackwell, J. Bronowski, Harold I. Brown, Norwood Russel Hanson, Michael Polanyi e Stephen Toulmin (ABIMBOLA, 1983; PESSOA JUNIOR, 1993). Os trabalhos de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend são considerados como importantes focos de oposição às doutrinas positivistas e ofereceram uma direção alternativa de investigação. Uma importante conseqüência desta nova opção foi a aproximação entre a História e a Filosofia da Ciência. Os filósofos que abraçaram esta nova abordagem, embora ainda estivessem engajados na reconstrução racional do particulares para se chegar a enunciados gerais ou a generalizações. 76 conhecimento científico priorizaram, nesta reconstrução, a emergência histórica dos métodos científicos, teorias e ontologias tanto quanto na estrutura formal da confirmação e explicação dos aspectos teóricos. 3.2.1 Filósofos da ciência que destacamos como críticos à tradição positivista Gaston Bachelard (1884-1962) foi um filósofo francês que antes de ser professor de filosofia na Universidade lecionou Física e Química no nível secundário. Ele apresentou muitas contribuições no campo da epistemologia através de análises sobre a ciência e a sua História, construindo uma epistemologia que se nutriu da História. A pluralidade observada nas suas idéias filosóficas fizeram dele uma grande referência teórica nas pesquisas e discussões na área da Didática das Ciências e no ensino de ciências. Em parte, as suas reflexões decorreram do fato dele ter vivenciado grandes transformações acontecidas na ciência, que exigiram uma nova interpretação do conhecimento científico capaz de romper com interpretações tradicionais que se fundamentavam nas filosofias positivistas. A sua extensa obra abrange desde a Epistemologia da Ciência Moderna até o campo da poética, incluindo a influência do imaginário na formação de um novo espírito científico. Bachelard considerava que todo o conhecimento humano era baseado na articulação experiência-razão, reconhecendo que a experimentação necessitava do raciocínio e o próprio ato de raciocinar apoiava-se no fazer empírico. Este pensador 77 costuma ser considerado como representante da tradição racionalista, ficando a sua epistemologia conhecida como Racionalismo Aplicado ou Racionalismo Dialético. Comentando sobre este assunto e sobre a diversidade de suas idéias filosóficas que dificultavam a classificação do seu pensamento, ele assim se coloca: Racionalista? Tentamos tornar-nos isso, não apenas no conjunto da nossa cultura, mas nos detalhes de nossos pensamentos, na ordem pormenorizada de nossas imagens familiares (BACHELARD, 1989, p. 7). A articulação entre razão e empiria foi muito bem descrita por ele no trecho a seguir, onde ele apresenta o seu pensamento “racionalista aplicado”: [...] se pudéssemos então traduzir filosoficamente o duplo movimento que atualmente anima o pensamento científico, aperceber-nos-íamos de que a alternância do a priori e do a posteriori é obrigatória, que o empirismo e o racionalismo estão ligados, no pensamento científico por um estranho laço, tão forte como o que une o prazer à dor. Com efeito, um deles triunfa dando razão ao outro: o empirismo precisa de ser compreendido; o racionalismo precisa ser aplicado (BACHELARD, 1991, p.9). Bachelard (1977) também discutiu o conceito de verdade científica reconhecendo a importância do erro e considerando a inexistência de uma verdade permanente e única. Segundo ele, o próprio julgamento do que se imagina ser verídico envolve diferentes interesses e o momento histórico, constituindo-se numa construção cultural. Ele reconhece que a ciência busca um discurso verdadeiro, muito embora produzido às custas de erros. “Verdadeiro sobre fundo de erro, tal é a forma do pensamento científico” (BACHELARD, 1977, p.61). 78 A relação entre a observação e a interpretação também foi abordada quando ele reconheceu que o conhecimento prévio interfere na visão de realidade, influenciando na observação e na aprendizagem; [...] Com efeito, nós conhecemos contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal feitos, ultrapassando aquilo que, no próprio espírito, constitui um obstáculo à espiritualização” (BACHELARD, 1971, p.165). Muitas outras questões foram discutidas por este filósofo, entre as quais destacam-se: as distintas naturezas do conhecimento científico e do conhecimento comum, o desenvolvimento da ciência na História e o seu olhar descontinuísta sobre esta questão, a origem do conhecimento científico e o modo de produção deste tipo de conhecimento, entre outros. Muitos trabalhos desenvolvidos no Brasil têm utilizado a epistemologia bacherladiana como fundamentação teórica, sendo Bachelard considerado uma importante referência filosófica nas reflexões e pesquisas na área de educação em ciências (BARBOSA, 1996; BULCÃO, 1999; LOBO, 2002; LOPES, 1990, 1992; MORTIMER, 1995). Um outro filósofo que pode ser destacado nesta tendência foi Thomas Kuhn (1923-1996). Ele foi físico, historiador e professor de História da Ciência, tendo questionado revolucionariamente, a forma como a ciência “instituída” era considerada, até o início do século XX e propondo uma nova forma de compreender o seu processo de produção. Novos conceitos de paradigma, crise e revolução científica passaram a fazer parte do cotidiano do meio científico e das divulgações relacionadas às ciências exatas e humanas. O processo de construção da ciência passou a ser mais investigado 79 e as “verdades científicas” foram reconhecidas como provisórias, o que contribuiu para a desmistificação da ciência. A construção do conhecimento, considerada como um processo social, foi caracterizada considerando a sua complexidade aliada à grande inventividade deste tipo de atividade. A sua arrojada proposta resgatou aspectos históricos e sociológicos como requisitos para análise da produção do conhecimento e minimizou os aspectos lógicos e metodológicos. Através de uma abordagem inovadora e propositiva, ele criticou princípios defendidos pelas escolas positivistas, apresentando uma “visão consensualista” sobre o conhecimento científico. Uma importante preocupação dos filósofos da ciência encontra-se relacionada ao modo como as ciências têm se desenvolvido ao longo do tempo. Alguns consideram que esta evolução é contínua e outros consideram que o progresso científico é entremeado por rupturas ou descontinuidades. Thomas Kuhn considerou que o progresso na ciência não é acumulativo e envolve mudanças de paradigmas incomensuráveis. A atividade científica é guiada por um determinado paradigma que fornece uma imagem de natureza, bem como uma imagem de ciência (ABRANTES, 1998). Uma das definições apresentadas por Kuhn para o termo paradigma encontra-se a seguir: Considero paradigmas as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência (KUHN, 1996, p.13). Mapeando as principais idéias e conceitos Kuhnianos, Laudan e outros (1993, p.46) apresentam o termo paradigma relacionando-o com “as suposições diretivas de 80 um campo”. O aprimoramento deste termo incluiu um sentido geral e outro mais restrito. No geral, ele corresponde aos compromissos de pesquisa de uma comunidade científica (crenças, valores, e técnicas compartilhados), que se relacionam com a expressão matriz disciplinar. Os componentes de uma matriz disciplinar são generalizações simbólicas, modelos particulares, valores compartilhados e exemplares. Este último componente está relacionado com um sentido mais restrito do conceito, os exemplares formam o elo de ligação entre os fenômenos empíricos e as generalizações teóricas. “Exemplares são problemas concretos com as respectivas soluções” (KUHN, 1977, p.358-59, 368). De acordo com Kuhn, o desenvolvimento da ciência acontece envolvendo dois momentos: a ciência normal e a ciência revolucionária. Nos períodos de ciência normal, a comunidade atua consensualmente dentro de um paradigma que é compartilhado pelos cientistas. A existência de mudança acompanhada de muitas controvérsias são indícios que definem as revoluções científicas. A forma descontínua como acontece a mudança caracteriza a revolução científica. O período em que ocorre a transformação das anomalias em regra é caracterizado por observação, novos experimentos e uma reflexão sistemática. As expectativas, os padrões instrumentais e as teorias fundamentais são revistos (KUHN, 1977, p. 219). Qualquer teoria científica é elaborada dentro de uma visão de mundo ou de um paradigma. As leis científicas, por exemplo, são geralmente produtos deste processo normal e do próprio paradigma. Os cientistas operam dentro de paradigmas aceitos e compartilhados que determinam quais os problemas devem ser resolvidos, os instrumentos usados, as técnicas inferidas e os modelos empregados. Os dados 81 observacionais não permanecem os mesmos de um paradigma para outro, após as revoluções científicas. Isto acontece porque os paradigmas são considerados incomensuráveis. Inicialmente, o conceito de incomensurabilidade expressava a dificuldade de se comparar os componentes teóricos e padrões de cientificidade, característicos de paradigmas diferentes, sustentados em racionalidades distintas. Esta idéia inicial foi muito criticada sofrendo algumas reelaborações posteriores para garantir a possibilidade de comparação de teorias consideradas incomensuráveis e da comunicação entre cientistas adeptos de paradigmas diferentes (KUHN, 2000). Dutra (1998) entende que Kuhn defende uma tese construtivista quando considera que os paradigmas são construídos pelos cientistas, enquadrando-o como um anti-realista no aspecto epistemológico. Outro importante crítico do positivismo foi Paul Karl Feyerabend (1924-1994), considerado um dos mais estimulantes e polêmicos filósofos do século XX. Destacou-se por criticar a rigidez dos métodos usados na produção científica e a necessidade de um pluralismo de idéias capazes de promover o progresso. Feyerabend argumentou contra o domínio de uma única teoria na Ciência e incentivou os cientistas a atuarem de forma inovadora, “contra-indutivamente”. Ele lembrava que "a ciência é uma das muitas formas de pensamento desenvolvida pelo homem e não necessariamente a melhor" (FEYERABEND, 1989, p. 15). Embora tenha sido muito criticado em função do radicalismo de algumas das suas posições, uma importante contribuição das suas discussões foi a idéia da não existência de um único método científico, ou de um conjunto de regras perfeitamente 82 definidas a serem aplicadas mecanicamente para produzir novos conhecimentos; a pluralidade de métodos na ciência é real e desejável. Combinando essa observação com a percepção de que a ciência não dispõe de método especial, chegamos à conclusão de que a separação entre ciência e não ciência não é apenas artificial, mas perniciosa para o avanço do saber. Se desejamos compreender a natureza, se desejamos dominar a circunstância física, devemos recorrer a todas as idéias, todos os métodos e não apenas a um reduzido número deles (FEYERABEND, 1989, p. 462). Feyerabend contribuiu para o reconhecimento de que tanto a imaginação como o raciocínio lógico estão presentes na criação científica, considerando que para a Filosofia da Ciência tanto a descoberta quanto a justificação do conhecimento científico são importantes. A continuidade das pesquisas aliada à continuidade das críticas, tanto quanto dos resultados aceitos, passaram a ser questões centrais para a comunidade científica. 3. 3 Questões epistemológicas e a educação científica Dando prosseguimento à síntese proposta, destacaremos algumas questões discutidas no âmbito da epistemologia e consideradas como problemas epistemológicos com implicações na educação em ciências. O termo Epistemologia e a expressão Filosofia da Ciência têm sido usados muitas vezes, como sinônimos. Este termo origina-se dos vocábulos gregos: ‘episteme’ que significa conhecimento e ‘logos’ que designa estudo. Considerando-se a etimologia da palavra, o seu sentido mais próximo seria o estudo do conhecimento ou estudo da ciência. 83 Segundo Dutra (1998), o termo epistemologia pode ser utilizado freqüentemente com o sentido de teoria da ciência e neste caso tem o mesmo significado de Filosofia da Ciência. Este termo também costuma ser usado para designar uma disciplina filosófica que trata do conhecimento em geral, tradicionalmente conhecida como Teoria do Conhecimento. Neste caso, o interesse mais geral está nos aspectos cognitivos do conhecimento. O significado mais restrito deste termo é aquele adotado comumente pela tradição francesa. Muitas são as questões que interessam à epistemologia, entre elas algumas se destacam como: o conceito de ciência; o trabalho do cientista evolvendo tanto o contexto das descobertas quanto o da justificação das teorias; o papel da observação e da interpretação na produção do conhecimento científico; o progresso científico e as mudanças científicas acontecidas no decorrer da História; o papel da experimentação na pesquisa científica; a objetividade e subjetividade envolvidas na produção do conhecimento científico; o status epistemológico das leis e teorias científicas, entre outras. A consciência da problemática envolvida na produção do conhecimento científico e das questões anteriormente apresentadas começaram a acontecer entre os filósofos e alguns cientistas/filósofos no fim do século XIX, ocasionando o desenvolvimento da Filosofia da Ciência ou da Epistemologia como campo independente (MONDIN, 1987). Neste campo, uma das questões que tem merecido muita discussão é o próprio conceito de ciência. 84 3.3.1 A concepção de Ciência Certamente este é um conceito complexo e que poderia demandar uma discussão tão fecunda capaz de ocupar todo um livro. Alan Chalmers se propôs ao desafio de realizar esta discussão, tendo escrito o seu famoso livro: O que é ciência afinal? um importante exemplar de epistemologia traduzido para a língua portuguesa. Após uma longa discussão que envolveu quatorze capítulos e duzentos e dezeseis páginas, Chalmers assim se coloca com relação a sua pergunta inicial: A estrutura de grande parte dos argumentos desse livro foi de desenvolver relatos do tipo de coisa que é a Física e testá-los no confronto com a Física real. Diante dessa consideração sugiro que a pergunta que constitui o título desse livro é enganosa e arrogante. Ela supõe que exista uma única categoria “ciência” e implica que várias áreas do conhecimento, a Física, a Biologia, a História, a Sociologia e assim por diante se encaixem ou não nesta categoria.[...](CHALMERS, 1995, p. 211). Chalmers reconhece que cada área do conhecimento pode ser analisada por aquilo que é, não havendo necessidade de uma categoria geral “ciência” que possa servir de modelo para que outras áreas do conhecimento possam ser julgadas à luz deste modelo e aclamadas como ciência ou difamadas como não sendo ciência. Ainda em relação a este assunto, assim ele se coloca adiante: Cada área do conhecimento deve ser julgada pelos próprios méritos, pela investigação de seus objetivos, e, em que extensão é capaz de alcançá-los. Mas ainda, os próprios julgamentos relativos aos objetivos serão relativos à situação social (CHALMERS, 1995, p. 212). Deste modo Chalmers (1998) se coloca contra a idéia de um conceito universal e atemporal de ciência ou do método científico, criticando o uso ilegítimo de concepções 85 de ciência e de método científico. Este filósofo mantém no entanto, a tendência objetivista dos seus comentários evitando que estes sejam enquadrados em posições relativistas extremas. As idéias de Kuhn e Feyerabend contribuiram para a flexibilização dos critérios de cientificidade, em especial, na delimitação entre ciência e não ciência. A possibilidade de se usar a cientificidade de forma mais ampla com a aceitação de uma pluralidade de métodos de pesquisa permitiu o reconhecimento do status científico de outras ciências e não apenas as naturais. A ciência é uma das formas de conhecimento produzidas pelo homem no decorrer da sua história. A ciência é intrinsicamente histórica e este caráter se manifesta nas representações que o homem faz, inclusive para o próprio conhecimento. A epistemologia histórica não tem a intenção de estabelecer critérios de demarcação que visam a exclusão de certos saberes e a legitimação de outros. Neste sentido tornase pouco importante a preocupação das epistemologias positivistas de definir o que é ciência. Segundo Morais (1997), a atividade científica de forma paradoxal é ao mesmo tempo una e divisível. O entendimento da Ciência como uma atividade una, deve ser considerado a partir da sua finalidade global, que busca fazer a realidade inteligível visando o seu controle em favor do próprio homem. A possibilidade de divisão do saber científico parte do objeto específico e da técnica específica; sob este ponto de vista a ciência pode ser considerada divisível, incluindo os vários campos de investigação conhecidos. Na opinião de Granger (1994), três traços característicos distinguem a investigação científica de outros tipos de investigação: a ciência é visão de uma 86 realidade, a ciência visa objetos para descrever e explicar, não diretamente para agir e o último traço da visão científica é a preocupação constante com critérios de validação. Numa perspectiva histórica, Chauí (1997) considera três concepções de ciência ou ideais de cientificidade: o racionalista, o empirista e o construtivista. Estas concepções têm como objetivo central a apreensão da realidade que é feita pelo homem. A ênfase que foi dada à razão ou à experiência, ou a relação entre as mesmas na produção do conhecimento científico, gerou distintas concepções de Ciência. A concepção racionalista surge com os gregos e estende-se até o final do século XVII, tendo a matemática como modelo de racionalidade. Esta concepção considera que a ciência é um conhecimento racional, dedutivo e demonstrativo e que a realidade possui uma estrutura matemática. O objeto científico é considerado uma representação intelectual universal, necessária e verdadeira dos objetos representados, podendo ser conhecido apenas pelo pensamento. O trabalho experimental é realizado apenas para verificar e confirmar as demonstrações teóricas. A concepção empirista, que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do século XIX, considera a ciência como uma interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos, capazes de estabelecer induções que levarão à definição do objeto, suas propriedades e leis de funcionamento. A experiência tem como função a produção de conceitos e a teoria científica resulta das observações e dos experimentos. O rigor dos métodos experimentais utilizados possibilitará a objetividade pretendida da investigação. Chauí (1997) considera que as duas concepções de ciência anteriores possuíam o mesmo pressuposto, ou seja, consideravam que a teoria científica era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade. 87 Uma terceira concepção, a construtivista, que se estabeleceu no século XX, considera a ciência uma construção de modelos explicativos para a realidade e os seus fenômenos e não uma representação da própria realidade. Sob este ponto de vista a idéia que vigora é de um conhecimento aproximativo e corrigível, bem como de uma verdade aproximada que pode em qualquer momento ser corrigida, modificada ou abandonada por outra mais adequada à situação e aos fenômenos investigados. Durante o século XX, em função do enorme sucesso e avanços obtidos através dos feitos científicos, detectou-se um grande interesse de epistemólogos e sociólogos em questões relacionadas à natureza da ciência e a sua produção. Tais concepções têm se modificado desde o positivismo, passando pelo positivismo lógico e chegando até a posições relativistas extremas. 3.3.2 A relação entre observação e interpretação Uma das importantes questões debatidas na Filosofia da Ciência é a relação entre a observação e a interpretação. Uma das principais preocupações de Hanson (1975) foi discutir esta questão de uma forma inovadora. Ele identificava a impossibilidade da separação da observação e da interpretação sem que estas fossem descaracterizadas. Para Hanson, toda observação é carregada de teoria, quando um cientista observa ele já está interpretando. A idéia principal é que no próprio ato de observar já acontece a interpretação. Nesta perspectiva a pretensa objetividade da investigação científica é questionada uma vez que, o conhecimento prévio, as crenças e as teorias determinam, em grande extensão, o que se percebe. Outros filósofos da 88 ciência também discutiram e defenderam este ponto de vista a exemplo de Kuhn, Polanyi, Toulmin e Bachelard. O empirismo-indutivismo, tanto em seus aspectos teóricos quanto na sua prática, considera que o observador, investigador ou pesquisador pode observar, coletar e registrar dados ou eventos, objetivamente, sem possuir idéias prévias sobre a importância relativa dos fenômenos investigados. Uma observação não preconceituosa é possível pelo uso fiel dos órgãos dos sentidos. A dicotomização do sujeito e do objeto é um pré-requisito que se faz necessário. A análise dos dados não considera nenhuma hipótese subjacente para direcionar a observação, admitindo-se que as explicações envolverão relações e generalizações estabelecidas entre os fatos observados e os dados coletados. Na perspectiva construtivista admite-se que a elaboração de teorias pressupõe que estas precedem a observação, considera-se que as expectativas teóricas conduzem às observações, determinando o que é percebido. Nesta visão não se admite a idéia de estruturas mentais rígidas e imutáveis mas, contrariamente, a possibilidade de que as estruturas mentais passam ser desfeitas e novas estruturas construídas. Sob esta ótica admite-se que o significado de um acontecimento ou a apreensão de dados é uma construção do indivíduo. Popper (2001) considera a importância das hipóteses e conjecturas na explicação dos problemas investigados, negando a possibilidade de que através de observações particulares acumuladas e por processos indutivos o homem consiga atingir leis gerais e teorias. Ele não admite a existência de um processo lógico indutivo “per si”, no entanto, o caráter inventivo e criativo das hipóteses e conjecturas é amplamente reconhecido. 89 A dinâmica da criação científica discutida por Popper em relação a certos aspectos, assemelha-se àquela defendida por Bachelard (1991) que propõe a inversão da dinâmica característica do raciocínio indutivo com a substituição da ordem vigente: dos fatos para a teoria, para uma nova ordem, das teorias para os fatos, num processo que busca a reorganização da experiência em um esquema racional. Aliás, como neste capítulo preliminar pretendemos definir tão claramente quanto possível a nossa posição e o nosso objetivo filosófico, devemos acrescentar que em nossa opinião uma das duas direções metafísicas deve ser sobrevalorizada: a que vai do racionalismo a experiência. É através deste movimento epistemológico que tentaremos caracterizar a filosofia da ciência física contemporânea (BACHELARD, 1991b, p.10). 3.3.3 A realidade do mundo e a possibilidade do homem conhecê-la Embora seja este um problema fundamental da ontologia e da cosmologia desde a Grécia clássica, consideramos que uma das premissas básicas para o cientista é a existência de um mundo objetivo exterior ao investigador que busca o seu conhecimento. Esta premissa básica, no entanto, não impede que se reconheça a intervenção do cientista no mundo, seja através da observação e análise da realidade, ou pela interferência no funcionamento do mundo cuja dinâmica se pretende investigar. Outra importante questão é que esta aproximação do mundo deve acontecer gradativamente. O reconhecimento da provisoriedade das descrições da realidade e do mundo é essencial, o que implica em que estas estejam sempre sendo revistas e aprimoradas. A relação entre as afirmações da ciência e a realidade ou entre as teorias científicas e o mundo em que se tem a intenção de aplicá-las é uma importante questão debatida no âmbito da moderna filosofia da ciência. Duas principais tendências podem 90 ser identificadas em relação a esta questão: de um lado, os realistas científicos, que consideram que uma teoria científica descreve ou tem como objetivo descrever como o mundo realmente é, ou seja constitui um relato aproximadamente verdadeiro de como o mundo é. O conceito de verdade aproximada é utilizado pelos realistas científicos para explicar o sucesso preditivo de uma teoria (DUTRA, 1998). Neste caso considera-se que a realidade existe independentemente da nossa cognição e a aceitação de uma teoria acontece a partir da crença em sua “verdade aproximada”, as afirmações da ciência são descrições fiéis da realidade. Neste ponto de vista a idéia aceita é a de verdade como correspondência, ou seja uma teoria é verdadeira se o que ela diz corresponde ao mundo ou as coisas às quais ela faz referência (CHALMERS, 1995; DUTRA, 1998). Em oposição a esta visão encontram-se os anti-realistas que consideram que os componentes teóricos da ciência não descrevem a realidade, constituindo-se em instrumentos que possibilitam a relação entre conjuntos de estado de coisas observáveis, uns com os outros. As teorias seriam bons instrumentos de predição, que poderiam funcionar bem empiricamente, mesmo não se aproximando da verdade. A aceitação de uma teoria científica deve levar em conta a sua adequação empírica. Existem diversas variações possíveis combinando formas de realismo e de antirealismo envolvendo tanto as teorias quanto as entidades inobserváveis envolvidas na formulação de teorias. A relação entre o realismo sobre as teorias e o realismo sobre entidades, pode ser objeto de discussões e de novas categorizações; no entanto este é um assunto mais complexo que pode envolver a interpretação dada à linguagem científica. 91 Dutra (1998) chama o anti-realismo de teorias de instrumentalismo; neste ponto de vista as teorias são consideradas como instrumentos ou ferramentas de predição e sua avaliação não leva em conta o seu valor de verdade. O anti-realismo de entidades é denominado de nominalismo, uma vez que tais entidades inobserváveis são consideradas ficções ou fórmulas para se referir a observações, não tendo correspondência no plano real. O realista científico é aquele que aceita tanto que uma teoria é um relato que corresponde à realidade quanto que, as entidades relacionadas existem e são reais. O realismo científico é também conhecido como realismo ingênuo (MEDEIROS; BEZERRA FILHO, 2000). Um exemplo desta discussão pode ser encontrado na teoria atômica clássica. Esta teoria procura descrever a constituição da matéria como um agregado de partículas (átomos, íons ou moléculas), que originam as diversas substâncias e materiais conhecidos com as suas distintas propriedades. Incorporando os avanços da ciência no século XX, esta teoria tornou-se mais sofisticada e passou a postular a existência de novas partículas constitutivas da matéria (prótons, elétrons e neutrons, etc.) que não são diretamente observadas. Para o realista científico, se a teoria é aproximadamente verdadeira, então tais entidades, postuladas e descritas realmente existem de acordo com o que foi previsto pela teoria. Na interpretação realista aceita-se que as teorias científicas têm a pretensão de dizer algo acerca da constituição ontológica do mundo, tomado como objeto de investigação. Em relação a esta questão, Chalmers (1995) defende um ponto de vista que ele chama de realismo não representativo, porque não incorpora uma teoria de verdade de correspondência. Este tipo de realismo não envolve uma distinção em termos de 92 observação e termos teóricos, não sendo, portanto, passível de críticas como aquelas feitas ao instrumentalismo. O realismo não representativo é realista em dois sentidos. Em primeiro lugar, envolve a suposição de que o mundo físico é como é independentemente de nosso conhecimento dele[....] Em segundo lugar, ele é realista porque envolve a suposição de que, na medida em que as teorias são aplicáveis ao mundo, são aplicáveis dentro e fora das situações experimentais. As teorias físicas fazem mais que afirmações a respeito de correlações entre conjuntos de proposições de observação (CHALMERS, 1995, p.208). Entre as tendências anti-realistas, destaca-se a de Van Frassen, que considera que a ciência visa a construção de modelos empiricamente adequados mas que não precisam ser verdadeiros; portanto, uma teoria científica seria um programa de construção de modelos adequados empiricamente. Van Frassen é considerado um antirealista de teorias e de entidades, admitindo que a aceitação de uma teoria deve envolver a crença em sua adequação empírica. Em função do caráter construtivo das suas idéias sua filosofia é conhecida como empirismo construtivo. Outra postura encontrada nas discussões sobre este assunto é conhecida como realismo crítico, que assume a existência do mundo, mas admite que as descrições da ciência são apenas modelos ou construções metafóricas feitas pelos cientistas (MATTHEWS, 1994). Esta pode ser considerada uma perspectiva mais aberta da produção do conhecimento científico que está em consonância com a Filosofia da Ciência contemporânea. 93 3.3.4 A questão do progresso científico Uma importante discussão no âmbito da Filosofia da Ciência é a questão do progresso científico. A imagem da ciência, muito comum na sociedade em alguns meios acadêmicos, é a de uma atividade que desde o seu início tem evoluído positivamente, acertando sempre e cada vez mais, porque tem conseguido articular e melhorar o conhecimento acumulado até os dias atuais. Esta idéia de ciência tem sido acompanhada de uma visão de mundo como uma entidade estável que pode ser conhecida e representada de modo exato e preciso. Estas idéias podem ser consideradas como parte de uma epistemologia popular, ancorada numa cosmologia ingênua e no senso comum. Apesar da ingenuidade, estas idéias também são compartilhadas por alguns cientistas e filósofos que procuram justificá-las através de argumentos críticos favoráveis a tais visões. Esta imagem de ciência tem constituído a base das concepções “tradicionais” da ciência, que tentam através de um maior rigor filosófico discutir a questão de progresso científico dentro de uma perspectiva de acumulação de conhecimento. Nesta concepção ingênua ou vulgar de ciência imagina-se que o aperfeiçoamento das teorias pode levar a uma aproximação da verdade, implicando no progresso científico (DUTRA, 1998). A noção de progresso cumulativo da ciência é encontrada também entre pensadores mais antigos, bem como entre os da época moderna e mesmo da contemporaneidade. Alguns filósofos consideram a possibilidade de haver progresso, mesmo que não seja possível a confirmação de teorias, admitindo uma idéia de progresso da ciência através de refutações e da eliminação de erros (POPPER, 2001). 94 Na medida em que a teoria resista a provas pormenorizadas e severas, e não seja suplantada por outra, no curso do progresso científico, poderemos dizer que ela “comprovou sua qualidade” ou foi “corroborada” pela experiência passada (POPPER, 2001, p.34). Thomas Kuhn (1994) critica a idéia “tradicional” de progresso científico propondo a idéia de progresso através de revoluções em oposição ao progresso acumulativo, defendido pelos relatos indutivistas da ciência. As revoluções científicas postuladas por Kuhn se opõem tanto ao progresso acumulativo dos empiristas lógicos, quanto ao progresso através de refutações defendido por Popper (CHALMERS, 1995). A noção de revolução científica encontra-se relacionada com a idéia de mudança na ciência, constituindo-se numa abordagem dinâmica dos problemas epistemológicos da ciência. Este tipo de abordagem leva em conta as atividades científicas e seus resultados, sempre no decorrer do tempo, considerando-as enquanto processos de mudanças (DUTRA, 1998). No trecho a seguir, Kuhn define a sua concepção de progresso científico caracterizado pelo aumento na capacidade de resolver problemas, não se dirigindo a um fim determinado; não é um progresso em direção à verdade como na visão tradicional: As teorias científicas mais recentes são melhores que as mais antigas, no tocante à resolução de quebra-cabeças nos contextos freqüentemente diferentes aos quais são aplicadas. Essa não é uma posição relativista e revela em que sentido sou um crente convicto do progresso científico (KUHN, 1996, p.252-253). Laudan (1977) defende a revalorização da racionalidade e considera o progresso científico como um processo não acumulativo, onde a avaliação de teorias deve 95 acontecer num contexto comparativo que permita aos cientistas decidir entre as melhores teorias; neste caso o uso do termo ‘melhor’ é feito com o seguinte sentido: [...] nosso princípio de progresso nos indica que é preferível a teoria que mais se aproxima a resolver o maior número de problemas empíricos importantes, portanto gera o menor número de anomalias consideradas como o mesmo que problemas conceituais (LAUDAN, 1985 apud CUDNAMI, 1997, p.330). Laudan reconhece a importância da existência e convivência entre teorias rivais como essencial para que aconteça o progresso na ciência e o desenvolvimento científico. [...] o verdadeiro desenvolvimento da ciência se encontra mais próximo do quadro da coexistência permanente de rivais e da onipresença do debate conceitual que do quadro da ciência normal do “paradigma” dominante de Kuhn. As confrontações dialéticas são essenciais para o crescimento e a melhora do conhecimento científico; como a natureza, as ciências têm presas e garras revolucionárias (LAUDAN, 1985 apud CUDNAMI, 1997, 330). 3.3.5 A Filosofia da Química e a construção de modelos Mesmo reconhecendo o predomínio da Física como paradigma das ciências naturais no âmbito das comunidades envolvidas com a História e Filosofia da Ciência, a Filosofia da Química tem gradativamente emergido contrariando aqueles que defendem uma visão reducionista sobre este assunto. Ainda que a Química não tenha recebido a merecida atenção dos filósofos da Ciência, Scerri (1997) considera importante que se reconheça, dada as suas especificidades, a necessidade de uma atenção especial da Filosofia para este campo. 96 Um exemplo desta especificidade encontra-se nas visões de predições; na Física elas estão baseadas em modelos matemáticos que diferem dos modelos químicos relacionados com aspectos qualitativos da matéria. Tanto a Química quanto a Física fazem uso de conceitos quantitativos e dinâmicos; na Química, no entanto, muitos destes conceitos são acompanhados de outros conceitos qualitativos e classificatórios que são usados, muitas vezes, como meios de representação. Considerando que a Filosofia da Química é um campo emergente, alguns pesquisadores têm se dedicado a encontrar aplicações deste tipo de conhecimento na Educação em Química (ERDURAN, 2001; SCERRI, 2000, 2001). Os modelos e a modelagem têm sido considerados um importante contexto através do qual aspectos da epistemologia química podem emergir, possibilitando a discussão destas questões em salas de aula. O desenvolvimento dos modelos através da História da Química tem sido uma das preocupações dos estudos realizados por Justi e Gilbert (1999). Quando se considera o uso dos modelos no ensino, as pesquisas realizadas apontam a ausência de suporte teórico para que os estudantes compreendam adequadamente os modelos e a modelagem. O que tem predominado entre os estudantes é a concepção de modelo como cópia da realidade, em contraposição à idéia de uma representação aproximada e tentativa (GROSSLIGHT; UNGER; JAY, 1991). Nos livros didáticos muitos modelos apresentados são híbridos e não existe a preocupação com a diferenciação e caracterização dos diferentes tipos de modelos. Além disso, os experimentos químicos não são realizados como atividades para desenvolver, avaliar e revisar os modelos utilizados na Química. Segundo Erduran (2001), os modelos e a modelagem tiveram um papel fundamental na ciência química e historicamente tornaram-se cada vez mais 97 importantes na produção deste tipo de conhecimento. No entanto, isto nem sempre é reconhecido e a excessiva importância concedida à teoria quântica na previsão do comportamento físico e químico dos elementos tem ocasionado a visão da Química como uma ciência “reduzida”, cujos modelos podem ser explicados por teorias físicas. Scerri (2001) considera que esta visão equivocada pode ser em parte atribuída aos educadores químicos e também aos cientistas que compartilham o reducionismo da Química, considerando-a, mais especificamente, reduzida à própria Mecânica Quântica. 3.3.6 Modelos e modelagem na Educação Química O uso de modelos e a modelagem são assuntos muito investigados e de grande interesse para a Educação em Química, desempenhando um importante papel no desenvolvimento do conhecimento científico. Este assunto é muito importante para compreensão de como a ciência é feita e funciona, possibilitando uma melhor aprendizagem ‘sobre’ a ciência. Alguns pesquisadores inclusive reconhecem a importância dos estudantes aprenderem a criar os seus próprios modelos (JUSTI; GILBERT, 2002). A distinção dos diferentes tipos de modelos é uma importante função da Filosofia da Química que procura identificar os principais modelos atualmente utilizados nesta área, bem como aqueles que foram substituídos ao longo do tempo, os chamados modelos históricos. Embora muitos modelos científicos e didáticos sejam bastante utilizados na educação química, poucos modelos históricos têm sido adequadamente caracterizados na literatura (JUSTI; GILBERT, 1999, 2000). 98 A definição de modelos de forma adequada tem sido uma das preocupações de entidades padronizadoras como a ‘Nacional Science Education Standards’ que apresenta a seguinte definição: Modelos são esquemas tentativos ou estruturas que correspondem a objetos reais, eventos ou classe de eventos, e que tem um poder explanatório. Os modelos ajudam aos cientistas e engenheiros a entenderem como as coisas funcionam. Modelos assumem muitas formas, incluindo objetos físicos, projetos, construtos mentais, equações matemáticas e simulações em computador (NRC 1996 apud ERDURAN, 2001, p.587). A seguir encontra-se sumarizado vários significados atribuídos aos modelos, encontrados numa ampla literatura consultada por Justi e Gilbert (2002, p.216): • é uma imagem mental produzida para um dado propósito; • é compartilhado com outras pessoas, assim um modelo pode ser expresso através de uma série de representações (material, verbal, visual, matemática); • é construído por entidades que podem ser derivadas de objetos específicos, ou de conceitos formados por abstração através de objetos similares; • pode ser construído para um sistema, um evento ou um processo; • é usado para explicar o comportamento de um fenômeno podendo possibilitar previsões e testes tomando-o como base; • é aceito como um conhecimento científico em uma dada forma após ser referendado e aprovado nos meios de divulgação científicos; • pode ser modificado ou abandonado quando problemas relacionados ao seu poder de explicação emergirem; 99 A concepção de modelos científicos como mediadores ou intermediários entre o sistema teórico pertencente aos domínios mais abstratos do conhecimento científico e o empírico e concreto presente na experiência sensível é defendida por filósofos como Bunge (1974). Galagovsky e Adúriz-Bravo (2001) consideram que no âmbito da epistemologia a noção de modelo científico tem estado intimamente ligada a de teoria. Na década de noventa, no entanto, desenvolveram-se muitas teorizações específicas tanto para modelos quanto para teorias. Estas pesquisas têm sido fundamentadas em estudos teóricos realizados por pesquisadores em vários campos como: psicologia da aprendizagem, ciência cognitiva e didática das ciências. Estes estudos passaram a reconhecer a importância dos modelos para o entendimento da dinâmica das representações do mundo feitas tanto por cientistas quanto por estudantes (GIERE, 1999, 2004; DEL RE, 1998). 3.4 Implicações das “novas” Filosofias da Ciência para os currículos das ciências Na sua prática, a educação em ciência não tem acompanhado as discussões e as mudanças acontecidas no âmbito da Filosofia da Ciência do último século (XX); no entanto, as novas tendências observadas neste campo precisam ser incorporadas aos novos currículos dos cursos das ciências. Considerando-se esta questão, o planejamento destes currículos deve ser antecedido de um grande debate envolvendo a escolha dos conteúdos considerados necessários. Questões importantes relacionadas à estrutura do conhecimento científico, 100 como ele funciona e se modifica, devem estar presentes no planejamento dos currículos, assegurando assim, através desta dinâmica que o conhecimento científico em todas as suas dimensões seja legitimamente representado. A visão compartilhada de que a decisão sobre questões científicas deve permanecer com a comunidade científica tem implicações para as pessoas que estão envolvidas com o planejamento dos currículos. Esta visão pressupõe que o conhecimento adquirido na escola é de responsabilidade dos envolvidos com a educação científica; cabendo-lhes a decisão sobre que conteúdos são apropriados para o ensino. Para que estes educadores sejam capazes de assumir adequadamente este papel através da mediação didática, a sua formação deve envolver além dos conteúdos básicos das ciências, aqueles da Educação em geral, Filosofia e História das Ciências. Consideramos que o conhecimento histórico do desenvolvimento de conceitos, leis e teorias é fundamental e poderá auxiliar o professor no enriquecimento das suas aulas. Esta deve ser uma responsabilidade assumida conjuntamente pelos Departamentos dos Institutos Básicos e Escolas de Educação das Universidades. As ‘novas filosofias’ da ciência asseguram que o conhecimento, crenças e teorias determinam, em grande extensão, o que se percebe. Nesta perspectiva consideramos que o conhecimento da Filosofia da Ciência ajudará na capacitação do professor de Ciências para conhecer melhor a ciência a ser ensinada, contribuindo para melhoria de sua prática pedagógica. Esta é uma posição que contraria a visão empirista-indutivista da ciência, comum na educação científica tradicional. De acordo com Cawthron e Rowell (1978, p.32): 101 O cientista na ciência escolar é apresentado como despersonalizado e a busca idealizada de uma verdade cuidadosamente empurra para trás a cortina que obscurece a realidade objetiva, abstraindo a ordem do fluxo, ordem que é diretamente revelada a ele através de um distintivo método científico (CAWTHRON; ROWELL, 1978, p.32). Além disso, a imagem da ciência que tem predominado na educação científica tradicional considera que o conhecimento científico baseia-se em evidências experimentais sobre os fatos, tendo uma base observacional, não considerando possíveis especulações. Esta imagem contradiz, como foi visto, as discussões recentes no âmbito da Filosofia da Ciência, que consideram a ciência como uma complexa atividade humana, devendo os currículos retratá-la como tal. Concluindo a síntese feita neste capítulo, defendemos que as reflexões que constituem as novas filosofias da Ciência do século XX devam ser tomadas como um guia necessário para as pesquisas e práticas da educação em ciências. Portanto, tornase necessário sistematizar as principais teses defendidas pelos filósofos da ciência contemporâneos, que possibilitem novas imagens de ciências que vêm se consolidando nas últimas décadas. A síntese que apresentamos a seguir se apoia em sugestões oriundas do campo da Didática das Ciências e em artigos de: Campos; Cachapuz (1997); Cleminson (1990); Duschl e Guitomer (1991); Gil-Pérez (1996); Gil-Pérez et al. (2002), entre outros, que sugerem aspectos consensuais para nortear a educação “sobre” ciências: 1. o conhecimento científico nunca deve ser considerado como “verdade absoluta” e os erros são importantes elementos para reflexão, portanto, este tipo de conhecimento deve ser reconhecido como temporário e produzido por tentativas; 2. as descobertas científicas acontecem em um dado contexto histórico e a História da Ciência é importante para a compreensão desta contextualização; 102 3. as observações não existem dicotomizadas das teorias que guiam e dão significado a estas observações explicando e interpretando o mundo de forma tentativa; o reconhecimento do papel das hipóteses na produção do conhecimento científico é necessário e desejável; 4. o novo conhecimento na ciência é produzido por ação criativa aliada aos métodos da investigação científica, não tendo um caráter impessoal, objetivo e livre de problemas. O pluralismo metodológico é dependente do contexto envolvido na produção do conhecimento científico, não existindo um único método capaz de produzir este tipo de conhecimento; 5. o reconhecimento do caráter social e coletivo do desenvolvimento científico é essencial para que a ciência seja reconhecida também como uma atividade relacionada à sociedade e à tecnologia; 6. a aquisição de um novo conhecimento é problemática e complexa; o abandono de um conhecimento que tenha sido falseado geralmente ocorre com dificuldade; 7. os cientistas são parte do mundo que eles investigam, devendo constantemente submeter os seus resultados à certificação da comunidade científica; 8. o reconhecimento da presença de posições conflitantes no seio do desenvolvimento das ciências é um elemento importante para a desmistificação da ciência e da sua construção, que não deve ser vista como uma seqüência de contribuições lineares e cumulativas. CAPÍTULO 4 CONCEPÇÕES SOBRE A NATUREZA DA CIÊNCIA (CNC) 104 4 CONCEPÇÕES SOBRE A NATUREZA DA CIÊNCIA(CNC) Para entender as concepções epistemológicas dos nossos alunos optamos por fazer uma revisão de estudos envolvendo concepções sobre a natureza da ciência, porque muitas investigações realizadas na última década em diferentes países, identificaram que um dos obstáculos para a concretização de mudanças curriculares e renovação da educação são concepções epistemológicas pouco adequadas e, algumas vezes ingênuas, adquiridas por estudantes e professores de ciências (BECKER, 1993; GIL-PÉREZ et al., 2001; MALDANER, 2000; SCHNETZLER, 2002b). A educação escolar tradicional, ao lado da mídia, tem contribuído para o predomínio de uma visão dogmática e preconceituosa das Ciências, que tem resultado do desconhecimento histórico e metodológico do processo de produção do conhecimento científico. O atual modelo de formação docente tem sido responsabilizado pela ausência de discussões sobre a Filosofia da Ciência durante a formação inicial do professor, bem como na formação continuada. Este modelo adotado na maior parte das Universidades, consiste de um currículo com cerca de setenta por cento de disciplinas de conteúdos específicos e trinta por cento de disciplinas pedagógicas, cursadas em paralelo e de modo desarticulado. Esta concepção de currículo durante muito tempo constituiu a base de quase todos os cursos universitários de formação docente na área de ciências e se fundamenta no modelo da racionalidade técnica. “ A racionalidade técnica é uma epistemologia da prática derivada da filosofia positivista, construída nas próprias fundações da universidade moderna, dedicada à pesquisa.” (SHILS, 1978, p.194). 105 Esse modelo teve origem nas universidades, a partir de idéias de educadores/pesquisadores e considera que o professor deve se comportar como um técnico, que aplica teorias, leis e regras elaboradas a partir do conhecimento científico academicamente produzido e legitimado, para resolver problemas numa perspectiva essencialmente instrumental. O conhecimento teórico sólido é pré-requisito para que aconteça a solução dos problemas práticos detectados. A racionalidade técnica tem como base uma visão objetivista da relação do sujeito que busca o conhecimento com a realidade a ser conhecida. Considera-se que todo o conhecimento profissional tem uma base factual (MALDANER, 2000; SCHÓN, 2000). Nesse modelo, a formação profissional costuma envolver um conjunto de disciplinas específicas e outro de disciplinas pedagógicas de forma dicotomizada, formação em blocos, onde ‘as pedagógicas’ vão fornecer ferramentas para a ação do professor na sua prática. As disciplinas de Metodologia e Prática de Ensino oferecidas pelas Faculdades de Educação têm a função de concretizar a articulação teoria/prática. Nesta etapa da formação o futuro professor busca, de um modo geral, receitas e modelos já elaborados que possam ser utilizados sem uma construção interativa que o envolva, bem como ao seu formador. A formação pedagógica e a específica seguem em paralelo e, a necessária articulação entre os dois campos encontra-se quase totalmente ausente. A construção da autonomia do professor na sua ‘práxis’ não é priorizada. Refletindo sobre este assunto, Kinchelloe (1997) considera que os professores não buscam caminhos alternativos de ver e muitas vezes não estão interessados em encontrar novos meios de conceitualizar conhecimento e pedagogia. O que predomina 106 nas disciplinas de prática de ensino é a procura por ‘receitas’ para a transmissão de informações, bem como para o uso da disciplina em sala de aula. A aplicação dos conhecimentos e habilidades adquiridas acontece nos estágios onde se espera que o futuro professor finalmente coloque em prática tudo o que aprendeu. Neste momento a sua ação efetiva passa a ser supervisionada e avaliada. Ao licenciando cabe fazer as devidas articulações entre o que ele aprendeu nos Institutos Básicos e nas Faculdades de Educação, solitariamente. Não é previsto nenhum apoio posterior para as suas ações pedagógicas e possíveis conflitos que se fazem presentes, em especial, no início do seu exercício profissional (BEJARANO; CARVALHO, 2003). Uma outra questão é que os conteúdos curriculares encontram-se distantes das situações concretas e dos contextos do aluno. Os problemas abordados nos cursos fazem parte de situações idealizadas e não apresentam muita utilidade para a vida cotidiana. A pesquisa acadêmica passa a ser questionada já que não atinge as necessidades do professor na sua futura prática. O conhecimento recebido na Universidade parece ser inútil porque não pode ser utilizado para resolver problemas concretos que, em geral, possuem uma estrutura caótica e indeterminada (SCHON, 1992). Configura-se o distanciamento entre a teoria e a prática e a dicotomia ideal/real. Existe o reconhecimento de que as crenças e convicções dos professores são adquiridas durante a formação e constata-se que grande parte dos currículos dos cursos de licenciaturas na área de ciências, não possuem disciplinas específicas que discutam os pressupostos epistemológicos das ciências e do seu ensino. Nas disciplinas de conteúdo específico, estas questões também não costumam ser abordadas, seja pela grande quantidade de assuntos técnicos e científicos específicos 107 bem como pela pouca capacidade de parte dos professores/formadores de discutir estes assuntos. Considera-se que a incorporação no currículo de um maior conteúdo de História, Filosofia e Sociologia da Ciência pode facilitar a mudança de concepções simplistas sobre a ciência para posições mais relativistas e contextualizadas sobre este tipo de conhecimento (HODSON, 1985; LUFFIEGO et al., 1994). A visão do aluno sobre a natureza da ciência é em grande parte influenciada pelo modo como os manuais apresentam a ciência, tanto na Universidade quanto no níveis fundamental e médio. Uma abordagem ahistórica e acrítica dos conteúdos científicos tem predominado (LOPES, 1990, 1992). A seleção dos conteúdos tem priorizado os conceitos como ponto de partida, ignorando-se que estes são sínteses de um processo histórico. A comunidade científica e o seu papel na construção e validação dos avanços científicos têm uma importância secundária. O método científico, quando discutido, é apresentado como uma seqüência de etapas pré-estabelecidas que possibilitam aos cientistas fazer grandes descobertas. Esta é uma deformação que transmite uma visão rígida e infalível do método científico (GIL-PÉREZ et al., 2001). Um dos caminhos para se reverter esta situação deve envolver os processos de mediação pedagógica associados à seleção e à organização do conhecimento escolar, os mecanismos de transformação do saber científico em saber didático, ou seja, a transposição ou mediação didática (LOPES, 1992, 1997). Esta seleção deve pressupor uma clara definição dos objetivos e metas a serem atingidas, mantendo a importante função de socialização do conhecimento que cabe à escola. 108 Uma outra questão é o desconhecimento de muitos professores e alunos da existência de distintos conhecimentos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem (cotidiano, escolar, científico etc.). O julgamento da validade destes conhecimentos envolve diferentes critérios que dependem dos contextos: cultural, histórico e social. O conhecimento científico não deve ser excessivamente valorizado e considerado como uma forma superior de conhecimento, diferenciado com critérios racionais e universais do que não é científico. A relação entre o conhecimento científico e o conhecimento cotidiano é uma das preocupações de Lopes (1998), em seu ponto de vista [...] o conhecimento científico é epistemologicamente superior para explicar/resolver uma série de questões, mas não é capaz de dar conta de toda a existência humana. Existem racionalidades outras, diferentes das racionalidades do conhecimento científico, com as quais precisamos aprender a dialogar (LOPES, 1998, p.44). Precisamos valorizar na ação pedagógica, a pluralidade de saberes e as diversas formas de interpretação do mundo. As diferenças precisam ser resgatadas e a homogeneização questionada. A convivência de múltiplos saberes é necessária e desejável. “[...] assumir a diversidade supõe reconhecer o direito à diferença como um enriquecimento educativo e social” (IMBÉRNON, 2000, p.82). Muitas pesquisas atuais no campo da Didática das Ciências têm trabalhado com a idéia de professor-reflexivo (SCHNETZLER, 2002a; SCHÓN, 2000). Estes estudos consideram que a investigação e reflexão sobre a prática docente é um dos componentes essenciais ao processo formativo, devendo passar a ser uma précondição para uma melhor atuação docente no âmbito do seu exercício profissional. Os 109 resultados das pesquisas apontam que os programas de formação inicial e continuada devem priorizar algumas necessidades básicas, tais como: • domínio dos conteúdos científicos específicos que devem ser ensinados em seus aspectos epistemológicos e históricos e articulados com os contextos social, econômico e político; • questionamento e possível superação das visões simplistas sobre o processo pedagógico, em geral centradas no modelo de ‘transmissão-recepção’ e na concepção empirista-positivista de Ciência; • planejamento de atividades de ensino, incluindo o seu desenvolvimento e avaliação, que considerem as idéias dos alunos e a construção e reconstrução destas idéias; • uso da prática pedagógica como objeto de investigação/reflexão/ação, o que deve acontecer considerando a articulação teoria/prática (SCHNETZLER, 2002a). 4.1 Concepções sobre a natureza da ciência: o difícil consenso dos significados O progresso da ciência nos últimos dois séculos é inquestionável devido a sua grande visibilidade e as conseqüências sociais, no entanto, a descrição da natureza da ciência ainda não é feita precisamente e de forma inquestionável. Esta situação já era reconhecida há quase quarenta anos por Herron (1969) e não se modificou substancialmente. 110 Muitos investigadores têm reconhecido a ausência de consenso no âmbito da Filosofia e da Sociologia da Ciência em relação à imagem mais adequada da investigação científica e do crescimento do conhecimento científico. O caráter complexo e dinâmico que caracteriza a atividade científica justifica esta situação e não causa surpresa à comunidade científica. O reconhecimento deste fato, no entanto, não impede a aceitação de algum consenso sobre certos aspectos da natureza da ciência que podem ser norteadores da educação em ciências (McCOMAS; ALMAZROA; CLOUGH, 1998; LEDERMAN, 1992). No significado da expressão natureza da ciência encontram-se idéias situadas em diferentes domínios como: Filosofia, História, Sociologia e a Psicologia. Considerase que este tipo de conhecimento transcende às ciências naturais na direção da filosofia, das ciências cognitivas e sociais, constituindo-se num metaconhecimento (MEDEIROS; BEZERRA FILHO, 2000). Lederman (1992) localiza esta expressão no âmbito da epistemologia como uma forma de conhecimento que inclui valores e crenças inerentes ao próprio desenvolvimento do conhecimento científico. Neste sentido, as concepções sobre a natureza da ciência são concepções de natureza epistemológica. Encontros internacionais sobre Educação em Ciências têm produzido documentos com recomendações sobre esta temática, ficando acordado que na ausência de consenso sobre uma determinada questão, devem ser apresentadas diversas visões evitando-se assim uma possível doutrinação (VASQUÉZ ALONSO; MASSANARO-MAS, 1999; McCOMAS; ALMAZROA; CLOUGH, 1998). No Editorial da revista Science & Education, Matthews (1997) lembrava que o objetivo de se discutir a natureza da ciência no âmbito da educação científica não é a 111 doutrinação, mas a apresentação de razões e argumentos que possibilitem a aceitação de determinada posição em detrimento de outras, levando-se em conta o atual estágio das discussões. Para Abd-El-Khalick e Lederman (2000), as mudanças na forma de se conceitualizar a natureza da ciência, durante o último século, refletem os inúmeros debates e alguns consensos presentes nos diversos campos envolvidos como a Filosofia, a Sociologia e a História da Ciências e têm exercido influência na educação em ciências. Da grande ênfase atribuída ao método científico e suas etapas que marcou a década de sessenta passou-se, na década seguinte, ao reconhecimento das características do conhecimento científico ainda pouco exploradas, a exemplo do seu caráter provisório, público, histórico e sujeito a regras e valores que lhe conferem consistência interna. O grande desenvolvimento de pesquisas na área da psicologia aplicada à aquisição do conhecimento ou à cognição científica verificado na década de oitenta, ocasionou o reconhecimento da influência de outros fatores nas explicações sobre o desenvolvimento do conhecimento científico. A década de noventa foi marcada por tentativas de sistematização desta questão e algumas iniciativas foram implementadas para que fosse possível o delineamento de um adequado entendimento da natureza da ciência. O projeto Science for All American (AAAS - Ciências para Todos, 1993, 1995) elegeu três pontos essenciais para a implementação de um adequado entendimento sobre a natureza da ciência na atualidade: 1) a ciência não pode fornecer respostas para todas as perguntas; 112 2) mesmo reconhecendo que a investigação científica tem uma base lógica e empírica, não se deve esquecer que ela envolve a imaginação e a criatividade; 3) é importante o reconhecimento dos aspectos social e político que caracteriza a ciência. Entidades como National Science Education Standards (ERDURAN, 2001) tem enfatizado outras questões como a interação entre crenças pessoais, sociais e culturais na geração do conhecimento científico, além da necessidade de valorização do ceticismo e da comunicação aberta neste processo. McComas; Almazroa; Clough (1998) apresentam uma visão aceitável do significado da natureza da ciência, destacando alguns aspectos considerados consensuais que emergiram das discussões acontecidas no VIII Encontro Internacional de Educação em Ciências. No Quadro 1, a seguir, estão sintetizados os principais pontos destacados por estes pesquisadores. 113 QUADRO 1 - Aspectos da natureza da ciência considerados consensuais O conhecimento científico enquanto durável tem um caráter tentativo O conhecimento científico apoia-se fortemente, mas não completamente, na observação, evidência experimental, argumentos racionais e ceticismo Não existe um único modo de se fazer ciência (não existe um único método científico) A ciência é uma tentativa de se explicar os fenômenos naturais Leis e teorias assumem diferentes papéis na ciência, entretanto os estudantes devem considerar que as teorias não se tornam leis mesmo com evidências adicionais Pessoas de todas as culturas contribuem para a ciência Um novo conhecimento deve ser comunicado clara e abertamente Os cientistas necessitam de registros precisos, críticas e reprodutibilidade As observações são dependentes das teorias Os cientistas são criativos A História da Ciência revela um caráter tanto evolucionário quanto revolucionário A ciência é parte das tradições sociais e culturais A ciência e a tecnologia se influenciam mutuamente As idéias científicas são afetadas por seu meio social e histórico Os aspectos consensuais anteriormente definidos podem ser incorporados na formação científica através de abordagens didáticas implícitas ou explícitas. Neste último caso configura-se uma abordagem dentro do contexto do conteúdo da ciência e das atividades científicas, envolvendo elementos da História e Filosofia da Ciência. A implementação dos dois tipos de abordagens na educação científica tem sido sugerida por diferentes pesquisadores como Abd-El-Khalick; Lederman (2000), Duschl (1988), Lederman (1986, 1992), Matthews (1994), Robinson (1969) entre outros. Considera-se que o conhecimento da dinâmica da produção científica possibilitará a professores e estudantes uma maior compreensão do conhecimento científico ensinado 114 nas escolas (conhecimento escolar), tornando-os mais aptos à argumentação e a crítica de questões relacionadas à atividade científica. Uma importante meta a ser atingida na formação na área das ciências é o reconhecimento de que o conhecimento escolar é fruto de um processo complexo que busca a superação de dicotomias entre objetivo e subjetivo, o racional e o espontâneo, o absoluto e o relativo, entre outras. 4. 2 Concepções sobre a natureza da ciência: uma retrospectiva histórica A preocupação relativa ao entendimento dos estudantes sobre a ciência e a sua natureza remonta ao início do século XX. Ainda que nessa época não fosse claro o significado da expressão natureza da ciência, já fazia parte dos objetivos da educação científica a discussão de alguns elementos que caracterizavam a ciência e a atividade dos cientistas (McCOMAS; ALMAZROA; CLOUGH, 1998). Lederman (1992) relata que algumas associações científicas como o The Central Association of Science and Mathematics Teachers, desde 1907, já enfatizava a importância da presença de discussões sobre o método científico e o processo da ciência na educação em ciência. No início do século XX, importantes educadores como Dewey (1995) consideravam que o entendimento do método científico era mais importante do que a própria aquisição do conhecimento científico. Neste período, aceitava-se que o entendimento adequado da natureza da ciência era possível através de uma maior ênfase na compreensão e utilização do método científico no ensino de ciência. 115 Na década de trinta, em artigo que defendia a importância da História da Química para o Ensino de Química, Jaffe (1938) demonstrava a sua preocupação com esta questão, explicitando em seu livro New World of Chemistry alguns objetivos relativos à natureza da ciência como: a importância do julgamento de experimentos, a necessidade do abandono de uma teoria à luz de novas evidências e do reconhecimento de que as leis podiam não ser verdades definitivas. Na revisão de literatura percebe-se que a preocupação com a inclusão desta temática na educação científica era defendida por muitos cientistas, educadores e/ou filósofos que também consideravam importante a utilização de uma abordagem histórica na educação em ciência ou uma maior aproximação entre as ciências e as humanidades. Como precursores desta abordagem temos dois importantes educadores: o químico James Bryant Conant e o biólogo Joseph Jackson Schwab. Conant (1951) defendia que todos os estudantes deviam entender as táticas e estratégias da ciência e foi um dos pioneiros na valorização de uma educação científica com ênfase no entendimento da construção da ciência, priorizando, para tanto, uma abordagem histórica. Esta era uma questão defendida também por Schwab (1964 apud RODRÍGUEZ; NIAZ 2002) que, como filósofo e educador em ciências, considerava de grande importância uma maior aproximação entre as ciências e as humanidades, reconhecendo que o ensino de ciência tinha se constituído numa “retórica das conclusões” ignorando o complexo processo de construção da ciência e suas conseqüências sociais. A explicitação formal do que hoje é conhecido como ‘natureza da ciência’ por de uma sociedade científica só aconteceu na segunda metade do século XX. A forma 116 como esta questão foi apresentada pela entidade americana, National Society for the Study of Education pode ser vista a seguir: Existem dois principais objetivos do ensino de ciências: um é o conhecimento, e o outro é o empreendimento. Dos cursos de ciência os alunos devem adquirir um útil comando dos conceitos e princípios da ciência. A ciência é mais do que uma coleção de fatos isolados e sortidos[...] Um estudante deve aprender alguma coisa sobre o caráter do conhecimento científico, como ele tem sido desenvolvido e como ele é usado (HURD, 1960 apud McCOMAS; ALMAZROA; CLOUGH, 1998, p.511) Entre as décadas de sessenta e setenta, esta temática foi considerada como um dos principais objetivos do ensino de ciências, devendo ser incorporada na formação científica. Alguns projetos curriculares foram desenvolvidos para que os cursos de ciência incluíssem em seus programas, tanto os produtos da ciência quanto o seu processo. A importância da História da Ciência para auxiliar na compreensão de como o cientista adquire o conhecimento passou a ser reconhecida e alguns projetos com este enfoque se destacaram como: History of Science Cases (KLOPFER; COOLEY, 1963), Harvard Project Physics (RUTHERFORD; HOLTON; WALTON, 1970) e Biological Sciences Curriculum Studies (SCHWAB, 1962 apud RODRIGUEZ; NIAZ, 2002). Neste período, alguns livros publicados defendiam a inclusão de elementos da natureza da ciência nos currículos de ciências. Dois destes livros foram destacados por McComas; Almazroa e Clough (1998): The Nature of Science de Robinson (1969) que apresenta alguns conteúdos de Filosofia da Ciência necessários a uma formação inicial e Concepts of Science Education: a Philosophical Analysis de Martin (1972 apud MCCOMAS; ALMAZROA; CLOUGH 1998), que reafirmava argumentos já apresentados por Robinson apoiando questões relativas à inclusão deste assunto na educação. Posteriormente, Michael Matthews escreveu o importante livro Science Teaching - The 117 Role of History and Philosophy of Science (1994) que apresenta muitos argumentos para a inclusão da natureza da ciência na educação científica, sendo considerado um livro de referência sobre esta temática. Matthews (1994; 1997) considera que as questões sobre a natureza da ciência se relacionam, também, com muitos aspectos da educação atual a exemplo do multiculturalismo, da controvérsia criacionismo/evolucinismo, da relação entre o feminismo e a educação em ciências, da relação entre ciência e religião, da questão da preservação ambiental e o desenvolvimento da ciência. Apesar das louváveis iniciativas no campo da divulgação científica e do grande interesse que este assunto tem despertado entre os pesquisadores, nos últimos cinqüenta anos poucas mudanças efetivas aconteceram no sentido da implementação de currículos que priorizem esta temática. Nas últimas duas décadas do século XX esta situação despertou um maior interesse e alguns encontros científicos aconteceram com objetivo de investigar e encontrar meios de integrar a História e a Filosofia da Ciência na Educação. Estes encontros foram realizados em diferentes países e tiveram a participação de educadores, historiadores, filósofos e sociólogos. A criação de periódicos priorizando a articulação da História, Filosofia, Sociologia e o Ensino de Ciências é outra importante iniciativa que tem contribuído para melhorar a formação inicial e continuada do professor de ciências, proporcionando também, meios de divulgação das pesquisas nesta área. O Science and Education é um destes periódicos que têm suprido esta importante lacuna na formação superior, conseguindo apresentar artigos que articulam conteúdos de diferentes áreas, além de idéias situadas na interseção de diversos campos do conhecimento. 118 Nas últimas duas décadas do século XX, importantes organizações, em diferentes países defendem a incorporação da natureza da ciência no conhecimento escolar. De forma mais ou menos explícita, esta temática tem estado presente em muitos documentos oficiais e não oficiais que devem nortear as reconstruções dos currículos dos cursos de ciências, fazendo parte das reformas educacionais propostas. No Brasil, tentativas para esta concretização podem ser encontradas em documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Química (BRASIL, 2001). 4.3 A compreensão da natureza da ciência possibilitando a alfabetização científica A necessidade da compreensão dos pressupostos, valores, objetivos, metas e limitações da ciência tem sido defendida por muitos educadores da atualidade. Tais questões são reconhecidas como essenciais para que uma “alfabetização científica” seja possível. Segundo Bauer (1994 apud EPSTEIN 2002), a alfabetização científica (scientific literacy) deve incorporar três componentes culturais: o conhecimento razoável de determinados conceitos e temas de importância científica; uma introdução à compreensão da natureza da ciência e a consciência da sua importância na sociedade e na cultura. Reconhecemos que o uso da expressão “alfabetização científica” tem sido questionado por alguns educadores e pesquisadores, considerando-se que ela incorporaria uma visão reducionista; no entanto, esta expressão é amplamente usada na literatura da área da Educação em Ciências. A nossa opção pelo seu uso é 119 decorrente de considerar que ela satisfaz aos propósitos deste estudo, e por não dispor de uma palavra mais adequada à substituição. No Brasil, o professor Áttico Chassot, pioneiro na militância da educação química, tem se destacado na defesa da necessidade deste tipo de alfabetização em todos os níveis de ensino, tendo escrito o livro “Alfabetização científica: questões e desafios para a Educação” publicado no ano 2000. Segundo o autor “a alfabetização científica pode ser considerada como uma das dimensões para potencializar alternativas que privilegiam uma educação mais comprometida” (CHASSOT, 2003, p.29). Segundo Chassot (2000) a “alfabetização científica” envolve o conjunto de conhecimentos que capacitariam os indivíduos a fazer uma leitura do mundo. Esta expressão é empregada tendo como pressuposto que a ciência é uma linguagem que pode ser utilizada para facilitar a leitura da natureza ou do mundo natural (CHASSOT, 1993, p.37). Este professor considera o mundo natural como tudo aquilo que constitui a natureza, o inorgânico e orgânico, excluindo o sobrenatural ou o espiritual. Sob este ponto de vista, o fazer científico inclui a elaboração de um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos e a descrição da natureza numa linguagem específica, a linguagem científica. Fazer alfabetização científica é possibilitar o entendimento ou a utilização desta linguagem e a própria inclusão social, através da tomada de consciência de se estar fazendo parte do mundo. Este professor reconhece que a alfabetização científica é atualmente apresentada como uma linha de investigação emergente na Didática das Ciências. Numa perspectiva mais ampla inclui-se neste tipo de investigação o conhecimento dos fazeres cotidianos da ciência, da linguagem científica e da decodificação das crenças 120 que nela se agregam (AGUILAR, 1999, apud CHASSOT, 2003, p.30). Uma outra tendência detectada na literatura considera a alfabetização científica como possibilitadora de uma avaliação mais crítica do conhecimento veiculado, ajudando a fazer correções em ensinamentos relacionados à ciência, julgados distorcidos ou equivocados (PUIGCERVER; SANS, 2002). Mesmo em países como os Estados Unidos, detectou-se um baixo nível de cultura científica entre os alunos do nível secundário, motivando a elaboração e implementação de projetos como o Projeto 2061, que tem a pretensão de incrementar a alfabetização científica, favorecendo o exercício da cidadania. 4.4 As pesquisas sobre concepções sobre a natureza da ciência Como visto anteriormente, o objetivo de se promover as discussões sobre a natureza da ciência e sua inclusão na educação já era explicitado por educadores desde o início do século XX; no entanto, as pesquisas sobre este tema só começaram a acontecer durante a segunda metade desse século. Três importantes revisões sobre pesquisas envolvendo as CNC foram encontradas na literatura consultada. Alguns artigos com este enfoque se destacam: o de Lederman (1992) apresenta uma importante e abrangente revisão sobre este assunto, destacando-se pelo maior número de resultados de pesquisa apresentados; Kouladis e Ogborn (1995) revisaram vinte e quatro trabalhos realizados entre 1954 e 1991, enfatizando os pressupostos filosóficos das pesquisas identificadas e Pórlan e Riviero (1998 apud HARRES 1999), o mais recente deles, que teve uma maior preocupação com os pressupostos metodológicos utilizados nas investigações citadas. 121 No Brasil, um importante trabalho de revisão de pesquisas sobre as concepções de professores sobre a natureza da ciência e suas implicações sobre o ensino foi realizado por Harres (1999), que sintetizou os resultados das três revisões anteriormente citadas, comparando-as entre si e, também, com investigações mais recentes, destacando as implicações dos resultados destes trabalhos no ensino de ciências. Outro artigo de revisão mais recente, de Abd-El-Khalick e Lederman (2000) teve como principal objetivo avaliar a efetividade das várias tentativas realizadas para melhorar as concepções da natureza da ciência de professores em serviço ou em formação, através de abordagens instrucionais implícitas ou explícitas. No primeiro tipo de abordagem (implícita) utilizou-se atividades de aprendizagem orientadas sob a forma de investigação, priorizando-se o engajamento dos estudantes nestas atividades, não existindo qualquer referência direta à natureza da ciência. No segundo tipo de abordagem (explícita), prioriza-se a utilização de conteúdos relacionados a aspectos da natureza da ciência de forma direta e explícita através de leituras que tratam deste tema ou incorporando-se ao ensino elementos da História e Filosofia da Ciência. As leituras e discussões travadas possibilitaram a incorporação de concepções sobre a natureza da ciência em consonância com a Filosofia da Ciência contemporânea. As conclusões apresentadas nas investigações apontam que as pesquisas realizadas adotando abordagens explícitas foram mais bem sucedidas do que aquelas que adotaram abordagens implícitas, quando o principal objetivo pretendido era o aprendizado de questões epistemológicas subjascentes ao ‘conhecimento escolar’. 122 De acordo com Lederman (1992), as pesquisas desenvolvidas sobre as concepções sobre a natureza da ciência (CNC) se subdividiram em quatro linhas distintas de investigação: 1) o levantamento das concepções dos estudantes; 2) o desenvolvimento, uso e avaliação de currículos planejados para melhorar as CNC dos estudantes; 3) o levantamento e avaliação das CNC dos professores; 4) a identificação das relações entre as CNC dos professores, as práticas pedagógicas e as concepções dos estudantes. Os estudos iniciais sobre o levantamento das concepções dos professores e alunos possibilitaram a percepção da necessidade do desdobramento das linhas de investigação inicialmente adotadas, para que fosse possível articulá-las com os currículos e as práticas pedagógicas. A transferência das crenças ou concepções dos professores para o discurso e ações em sala de aula é uma questão ainda aberta a investigações. Existem pesquisas que admitem esta influência e outras que apresentam dúvidas quanto a esta questão. Hodson (1985) considera que a hipótese de uma relação direta entre visões filosóficas e crenças sobre como ensinar Ciências não é sustentada empíricamente. Lederman e Zeidler (1987), trabalhando com dezoito professores secundários, levantaram dúvidas sobre a existência de relação direta entre as convicções filosóficas destes professores e a sua prática pedagógica. Os autores consideraram que o comportamento do professor em sala de aula sofre a influência de diversos fatores como: currículo, políticas administrativas, materiais instrucionais, bem como pela sua concepção de ciência. 123 O resultado de uma pesquisa exploratória realizada por Becker (1994) apontou que a epistemologia predominante entre os professores brasileiros do nível médio é a empirista, segundo ele, talvez por ser aquela que mais se aproxima do senso comum. Este pesquisador observou que mesmo docentes com posições aprioristas/inatistas ou que se aproximam de uma postura interacionista não conseguem superar totalmente a epistemologia empirista. Entre aqueles que defendem a relação entre concepções filosóficas e pedagógicas alguns trabalhos são citados na literatura como: Cronin-Jones (1991), Dillon et al. (1994), Lorsbach et al. (1992), Mitchner e Anderson (1989), Tobin e Espinet (1989). Em estudo de revisão sobre os instrumentos elaborados para se ter acesso às concepções da natureza da ciência nas quatro últimas décadas do século XX, Lederman, Wade e Bell (1998) identificam o “Science Attitude Questionnaire” como o mais antigo instrumento construído e utilizado para este fim por Wilson (1954). Nesta pesquisa, o principal objetivo era validar o instrumento elaborado para ter acesso às atitudes sobre a ciência dos estudantes. Nas primeiras investigações realizadas não havia ainda uma nítida diferenciação nas pesquisas entre atitudes científicas, atitude para com a ciência e concepções sobre a natureza da ciência e sobre conhecimento científico. Muitos dos instrumentos elaborados foram questionados quanto a sua validade porque priorizavam uma ou mais idéias que não se enquadravam na compreensão que se tinha, naquele contexto, do significado da natureza da ciência. Um outro aspecto destacado foi o predomínio da utilização de metodologias de pesquisa quantitativa em relação às qualitativas. 124 Lederman, Wade e Bell (1998) apontam causas para baixa validade de alguns desses instrumentos como: o predomínio da preocupação com o levantamento de destrezas e habilidades do estudante para se engajar no processo da ciência; a maior ênfase em aspectos afetivos relacionados à ciência e aos cientistas, que no próprio conhecimento; a valorização dos aspectos da ciência como uma instituição e a pouca atenção dada às características epistemológicas do conhecimento científico. QUADRO 2 Instrumentos para levantamento de concepções sobre a natureza da ciência (CNC) DATA 1954 1958 1959 1961 1962 1966 1966 1967 1968 1968 1969 1970 1974 1975 1975 1976 1978 1980 1981 1982 1989 1990 1992 1995 1996 INSTRUMENTO Science Attitude Questionnaire Facts About Science Test (FAST) Science Attitude Scale Test on Understanding Science (TOUS) Processes of Science Test Inventory of Science Attitudes, Interests and Appreciations Science Process Inventory (SPI) Wisconsin Inventory of Science Processes (WISP) Science support scale Nature of Science Scale (NOSS) Tests on the Social Aspects of Science (TSAS) Science Attitude Inventory (SAI) Science Inventory (SI) Nature of science test (NOST) Views of science test (VOST) Nature of Scientific Knowledge Scale (NSKS) Test of Science-Related Attitudes (TOSRA) Test of Enquiry Skills (TOES) Conception of Scientific theories test (COST) Language of Science (LOS) Views on Science-TechnologySociety (VOSTS) Nature of science survey Modified Nature of Scientific Knowledge Scale (MNSKS) Critical Incidents Philosophy of Science Survey AUTOR Wilson Stice Allen Cooley & Klopfer BSCS Swan Welch Literacy Research Center Schwirian Kimball Korth Moore & Sutman Hungerford & Walding Rubba Hillis Rubba Fraser Fraser Cotham & Smith Ogunniyi Aikenhead, Fleming & Ryan Lederman & O’Malley Meichtry Nott & Wellington Alters 125 No quadro 2, na página anterior, extraído do artigo de Lederman, Wade e Bell (1998), apresenta os principais instrumentos elaborados desde 1954, que foram ou ainda são utilizados nas pesquisas nesta área, seus respectivos autores e o ano em que foram elaborados. No início da década de oitenta, com raras exceções, estes instrumentos tinham como objetivo classificar e mensurar o entendimento das perguntas formuladas e, em alguns casos obtinha-se ‘scores’ padronizados. Priorizava-se a utilização de instrumentos com escolhas direcionadas como: questionários com duas opções (concordo ou não concordo) e com outros formatos, incluindo os tipos múltipla escolha ou Likert. As criticas a esses instrumentos consideravam a questão da sua validade, bem como as ambigüidades detectadas na aplicação dos mesmos, pressupondo-se que os investigados compreendiam as questões apresentadas da mesma maneira que seus criadores. Um outro problema é que a visão obtida através destes instrumentos foi considerada artificial, refletindo a visão do próprio pesquisador, construída pelo instrumento, ao invés de uma fiel representação dos sujeitos que respondiam aos mesmos (ABD-EL-KHALICK; LEDERMAN, 2000). Existe o reconhecimento de que os resultados obtidos através de questionários sobre a natureza da ciência são simplificados enquanto que, nas entrevistas, obtêm-se manifestações mais ricas e frutíferas. Com a intensificação das pesquisas nesta área houve uma diversificação nos tipos de instrumentos, passando-se a utilizar questões abertas e mecanismos para validação dos itens selecionados. Apesar do 126 aprimoramento destes instrumentos, ainda havia uma pequena preocupação em se promover uma visão expandida das crenças individuais identificadas. As perspectivas apontadas por Lederman, Wade e Bell (1998) sobre as pesquisas nesta área, reconhecem a necessidade de utilização de mais de uma técnica para os levantamentos das concepções epistemológicas, possibilitando a obtenção de uma visão mais detalhada das idéias de cada indivíduo. A combinação de técnicas quantitativas e qualitativas permitiria a compilação de dados de diversas fontes. Neste caso, é de grande importância a descrição adequada das informações coletadas e de como foram analisadas para se chegar aos resultados descritos. Os autores consideram que as observações realizadas nos trabalhos de campo não têm sido adequadamente descritas em grande parte dos estudos. 4.4.1 Concepções sobre a natureza da ciência dos estudantes De um modo geral, os estudos realizados sobre as CNC dos estudantes tiveram as seguintes preocupações: ajudar na aprendizagem do conteúdo específico da ciência, possibilitar o entendimento da dinâmica da ciência, melhorar o interesse pela ciência, ajudar na tomada de decisões que envolvam o conhecimento científico e de uma participação mais efetiva nas questões sociais, ajudar na compreensão do processo de construção do conhecimento pelo estudante e nas relações estabelecidas neste processo. Como foi visto anteriormente, a investigação realizada por Wilson (1954) é considerada pioneira neste tipo de estudo. Ele trabalhou com uma amostragem de 43 estudantes, identificando nos sujeitos atitudes negativas relacionadas à ciência. As 127 idéias predominantes entre os investigados eram do conhecimento científico como absoluto e os cientistas como aqueles que buscavam descobrir as leis naturais e o conhecimento verdadeiro. Segundo Lederman (1992), três anos após a primeira iniciativa foi realizada uma nova pesquisa por Mead e Metraux (1957) com uma amostra aleatória de estudantes, mas representativa em relação a gênero, idade, distribuição geográfica e status sócioeconômico. Mesmo constituindo-se numa das primeiras investigações realizadas sobre este assunto, a opção não usual por uma abordagem qualitativa de pesquisa foi adotada e os resultados encontrados estavam de acordo com aqueles obtidos anteriormente por Wilson. Nas décadas de sessenta e setenta, muitos estudos foram realizados para levantamento de CNC utilizando-se diferentes modelos de questionários e através de abordagem de pesquisa quantitativa. Um dos instrumentos amplamente utilizado foi o Test on Understanding Science (TOUS), desenvolvido por Cooley e Klopfer em 1961. Nesse período, as conclusões das pesquisas estavam de acordo com os primeiros estudos, apontando a existência de concepções ingênuas sobre a natureza da ciência tanto dos estudantes quanto de professores. Estes resultados foram atribuídos à existência de lacunas na formação científica que estão relacionadas de forma mais específica aos seguintes aspectos: a) o desconhecimento do papel desempenhado pela criatividade na construção do conhecimento científico; b) a não distinção entre hipóteses, leis e teorias; c) a pouca compreensão da relação entre experimentação, modelos e teorias e o conceito de verdade científica; 128 d) uma visão não ampliada dos interesses da ciência, restringindo-se a idéia reducionista de que a ciência prioriza a coleção e classificação dos fatos; e) o desconhecimento da complexidade envolvida na explicação científica; f) a pouca valorização da inter-relação e interdependência entre diversos ramos da ciência. O resultado anterior foi referendado por várias investigações realizadas nas décadas seguintes: (AIKENHEAD, 1973; LEDERMAN; O’MALLEY, 1990; RUBBA; HORNER; SMITH, 1981). A identificação de concepções ingênuas sobre a natureza da ciência é um indicativo de que os currículos não têm sido eficientes para implementar este tipo de conhecimento, sugerindo a necessidade de novas pesquisas para investigação desta questão. Segundo Lederman (1992), os estudos empíricos têm apontado que mesmo após a formação inicial, os estudantes ainda mantêm concepções consideradas inadequadas; portanto a ineficiência dos currículos para modificar a situação anterior é uma realidade na educação em ciências. Outra questão problemática e aberta à pesquisa, refere-se às divergências sobre em que medida as convicções e crenças dos professores interferem ou são transferidas para a prática pedagógica. Muitos pesquisadores reconhecem a complexidade envolvida nesta questão e a dificuldade de se chegar a uma posição definitiva sobre o assunto. Abdl-el-Khalick e Lederman (2000) lembram que as pesquisas sobre CNC e os estudos relacionados sobre o assunto devem considerar que tanto o conhecimento científico como as concepções epistemológicas são históricas e possuem um caráter tentativo. As concepções hoje consideradas consensuais tanto pelos educadores em 129 ciência quanto pelas organizações educacionais, não são ‘inerentemente’ melhores do que aquelas adotadas nas décadas de sessenta e setenta. A contextualização histórica de tais concepções deve considerar o pensamento sistemático sobre o conhecimento científico e as suas práticas predominantes no período em que se situam. Como foi visto anteriormente existem dois tipos de abordagens pedagógicas para se introduzir conteúdos sobre a natureza da ciência no processo ensino/aprendizagem: a implícita e a explícita. No primeiro tipo assume-se que na dinâmica adotada, mensagens implícitas são comunicadas e que a construção deste tipo de conhecimento acontece naturalmente, como conseqüência do engajamento no processo pedagógico. Os trabalhos possibilitam o engajamento do aluno em atividades investigativas, incluindo instruções sobre a prática científica. Na abordagem explícita, os objetivos e materiais instrucionais são direcionados para aumentar a compreensão da natureza da ciência incluindo conteúdos epistemológicos. As atividades são planejadas com investigações e exemplos históricos que possibilitem discussões, reflexões guiadas e questionamentos específicos sobre o assunto. Como o nosso estudo teve como objetivo empregar elementos da História da Química e da Filosofia da Ciência para intervir nas concepções epistemológicas dos nossos alunos, optamos por fazer uma revisão da literatura sobre trabalhos realizados com este enfoque. Consideramos que, investigações que utilizaram abordagens explícitas eram as que nos interessavam porque a literatura aponta que abordagens utilizando a História e Filosofia da Ciência e instrução direta sobre a natureza da ciência foram mais bem sucedidas (ABD-El-KHALICK; LEDERMAN, 2000). 130 4.4.2 A influência de abordagens de ensino explícitas nas concepções sobre a natureza da ciência Na revisão de literatura realizada, percebemos que tanto os estudos que adotaram uma abordagem explícita para intervir nas CNC dos estudantes quanto aqueles de abordagem implícita, na sua maior parte, usaram metodologias de pesquisa quantitativa. Carey e Stauss (1968) investigaram se professores em formação para atuar no nível médio, poderiam melhorar as suas CNC com um curso direcionado (Science Methods Courses) e integrado na própria formação. A metodologia de levantamento destas concepções aplicou pré-testes e pós-testes num grupo de dezessete estudantes. Eles foram introduzidos ao assunto através de leituras e discussões de artigos e livros contendo conteúdos de História e Filosofia da Ciência relacionados aos tópicos específicos em estudo. Durante o curso, nas diversas atividades realizadas, os participantes foram motivados a avaliar se estas atividades e os assuntos discutidos estavam compatíveis com as imagens sobre a ciência apresentadas no curso. Os resultados deste estudo apontaram que houve ganhos significativos no entendimento de CNC quando comparados os ‘scores’ de pré-testes e pós-testes aplicados. Estes pesquisadores foram os primeiros a apresentar evidências obtidas através de estudos empíricos, que davam sustentação à tese de que a História e a Filosofia da Ciência poderiam contribuir para melhorar a compreensão da natureza da ciência na formação de professores. Em outro estudo realizado na Universidade de Tulsa, Jones (1969) investigou se estudantes de um curso superior de formação plena em ensino de Física 131 compreendiam melhor a ciência e os cientistas que estudantes inscritos em cursos mais específicos, com orientação profissionalizante. Três destes cursos com esta orientação foram escolhidos para estudo. No curso de formação plena foi realizado um trabalho empírico procurando dar uma maior ênfase aos conteúdos relacionados ao desenvolvimento histórico, à Filosofia da Ciência e aos aspectos sociais relacionados à ciência. O levantamento das CNC foi realizado através de questionário do tipo TOUS (Test on Understanding Science) usado na forma de pré-testes e pós-testes, sendo formado um grupo de controle específico para comparação dos resultados. As diferenças entre os resultados obtidos no grupo experimental e no de controle foram significativas, indicando um melhor rendimento nos scores obtidos para o grupo experimental. Lavach (1969) trabalhou com professores em serviço, utilizando um programa de ciência historicamente orientado e desenvolvido por ele, tendo como objetivo discutir o entendimento da ciência, dos cientistas, do empreendimento científico e dos objetivos e metas da ciência. O mesmo instrumento (TOUS) foi usado para levantamento das concepções tanto no grupo experimental quanto no de controle. No entanto, este estudo parece ter cometido alguns equívocos metodológicos pois não foi aplicado préteste no grupo de controle e os procedimentos empíricos não foram explicitados para que pudessem ser comparados com aqueles do grupo experimental. Apesar dos problemas, os resultados deste estudo apontaram que houve ganho no entendimento de CNC pelos professores participantes do grupo experimental. No mesmo ano do trabalho de Lavach, outro estudo foi realizado por Olstad (1969) na Universidade de Washington, através do curso intitulado Science in the Elementary School, direcionado para melhorar a formação de professores e contendo 132 vários tópicos como: natureza da ciência e seus métodos, modelos na ciência, a força social da ciência e processos indutivos e dedutivos. Estes tópicos e suas implicações metodológicas em termos de equipamentos, materiais curriculares e avaliação foram também explorados. Priorizou-se nas atividades realizadas em cada encontro, questões como: geração de modelos, interpretação de dados, planejamento de experimentos e pensamento indutivo. Os resultados obtidos através do questionário (TOUS) apontaram um razoável ganho na compreensão da natureza da ciência refletido nas diferenças dos scores obtidos nos pré e pós-testes. Na década de setenta, utilizando-se abordagem explícita, destaca-se nas revisões de literatura, o trabalho de Billeh e Hasan (1975). Estes pesquisadores fizeram uso de discussões diretas sobre aspectos da natureza da ciência em grupos de professores de Química, Física e Biologia. Trabalhou-se com grupo de controle e com a utilização do questionário NOST (Nature of Science Test) criado por Rubba (Quadro 2). A metodologia utilizada priorizou nos grupos experimentais, leituras com temas específicos como: o conceito de ciência, conhecimento científico e senso comum, ciência e tecnologia, a arte da investigação científica, natureza do conhecimento científico (características, teorias científicas e modelos), crescimento e desenvolvimento do conhecimento científico, aspectos sociológicos da ciência. As diferenças encontradas nos scores dos pré-testes e pós-testes dos grupos experimentais foram significativas e, embora não tenham sido tão altas, foram maiores que as do grupo de controle. Neste artigo não foi especificado se os investigados fizeram leituras com conteúdos de História e Filosofia da Ciência durante o curso. A conclusão dos pesquisadores é que a instrução formal e direta sobre a natureza da ciência contribuiu para um significativo ganho no entendimento deste tema. 133 Dois instrumentos para diagnóstico de concepções foram utilizados por Ogunniyi (1983) num estudo realizado na Nigéria. Ele levantou questões sobre o entendimento da linguagem utilizada na ciência e questões sobre a sua natureza. Os questionários utilizados foram: NOSS (Nature of Science Scale) e LOS (Language of Science). Este pesquisador planejou um curso que incluiu vários tópicos como: origem do pensamento científico, o significado de revolução científica e suas conseqüências, a natureza da investigação científica, a base epistemológica da ciência, ciência e superstição, características das sociedades científicas e alfabetização científica. As discussões eram alimentadas pelas leituras previamente acordadas e as novas leituras sugeridas no processo. Os resultados dos scores dos pré e pós-testes revelaram uma significativa melhora, porém, os valores da pontuação obtida através dos dois instrumentos foi inferior ao desejável, indicando que o entendimento da natureza e da linguagem da ciência ainda não tinha sido satisfatório. Defendendo o uso de uma abordagem explícita para ajudar o professor a desenvolver uma melhor compreensão da natureza da ciência, Akindehin (1988) idealizou o curso Introductory Science Teacher Education (ISTE) para futuros professores de ciência do nível secundário. Este curso era formado por nove unidades que incluíam leituras, discussões e aulas de laboratório. O planejamento de cada unidade aconteceu na seguinte seqüência: 1) introduziu os estudantes na natureza do conhecimento e nos diferentes tipos de conhecimento; 2) discutiu vários aspectos do empreendimento científico e das disciplinas científicas; 134 3) apresentou um modelo de investigação científica que incluía a geração e definição de problemas, a geração de hipóteses, modelos, teorias, sistemas lógicos e matemáticos, a criatividade na investigação científica; 4) discutiu um caso específico de investigação científica e do modelo de investigação em questão; 5) discutiu aspectos da história do conhecimento; 6) trabalhou sobre a prática da investigação científica em diferentes campos; 7) investigou um dado fenômeno natural e as várias possibilidade de explicá-lo; 8) debateu e refletiu sobre as atitudes dos participantes frente à ciência; 9) discutiu sobre os aspectos humanos do trabalho científico. O autor considerou que o resultado desta investigação foi positivo, muito embora não tenha apresentado claramente os scores dos pré e pós-testes aplicados através do questionário NOSS (Nature of Science Scale ) para serem comparados. Analisando os vários trabalhos revisados por Abd-El-Khalick e Lederman (2000) que utilizaram uma abordagem explícita, percebe-se que a maior parte deles usou metodologias quantitativas com levantamentos realizados através de diferentes tipos de questionários aplicados antes e após o trabalho experimental. Os scores dos pré e póstestes foram comparados nos grupos experimentais e também nos de controle. Uma exceção que se destaca é o trabalho de Shapiro (1996) que é mais recente e optou pela utilização de uma metodologia qualitativa e interpretativa. Este trabalho foi um ‘estudo de caso’ realizado com professores em formação inicial, para atuarem no nível secundário, tendo como objetivo examinar o seu pensamento sobre a natureza da investigação científica e como esta idéia se modificou a partir do envolvimento de cada sujeito na pesquisa. As informações foram coletadas durante os quatro anos do curso e 135 em função da maior duração da pesquisa puderam ser refinadas. Várias fontes de dados foram usadas como: entrevistas, gravações das discussões, registros dos estudantes, reflexões realizadas a partir das investigações feitas pelos alunos, registros das observações do pesquisador. As entrevistas foram analisadas em conjunto com outros materiais gerados durante o estudo. No início do curso os alunos registraram a sua concepção de ciência e no final eles voltaram a refletir sobre suas concepções iniciais para verificar possíveis modificações ocorridas após a participação na pesquisa. As mudanças detectadas foram codificadas e organizadas em categorias. Estas categorias foram agrupadas em temas de mudanças sobre a natureza das investigações em ciência, decorrente do envolvimento de cada indivíduo nas pesquisas, identificando-se doze temas relativos às mudanças. As mais significativas envolveram a apreciação da complexidade do processo de planejamento e condução da investigação científica e percepção da ciência como um empreendimento coletivo. O principal objetivo do trabalho foi levar os estudantes à reflexão sobre a sua própria experiência relacionando-a com suas idéias. Durante as entrevistas realizadas, os estudantes foram bastante estimulados a refletir sobre suas concepções prévias e tentar identificar possíveis modificações influenciadas pelo trabalho de pesquisa. A implementação de inovações curriculares tem sido um dos caminhos para se desenvolver um conhecimento mais amplo sobre a ciência. Algumas tentativas foram realizadas para incluir nos currículos novas estratégias de ensino que pudessem contribuir para uma melhor formação relativa à natureza da ciência. Matthews (1990), por exemplo, planejou um curso em História e Filosofia da Ciência para aumentar o interesse de professores australianos sobre este assunto, buscando através destes 136 conteúdos melhorar o ensino de ciências. Uma tentativa mais recente para implementação de um curso de educação em ciências, com ênfase em aspectos da natureza da ciência foi realizada por Eichinger, Abell e Dagher (1997). Neste artigo eles descreveram a experiência de planejamento e execução deste curso que foi ministrado com êxito para estudantes de graduação em duas universidade americanas. Um dos objetivos que se pretende alcançar com modificações curriculares é intervir nas concepções dos alunos (de ciência, de ensino etc.). Alguns dos estudos anteriormente citados detectaram que o processo de formação dos docentes nem sempre consegue promover as mudanças nestas concepções que são imprescindíveis, para que possíveis intervenções curriculares sejam efetivas. 4.4.3 Algumas pesquisas sobre concepções sobre a natureza da ciência (CNC) publicadas no Brasil entre 1995-2005 Para verificar o estágio de desenvolvimento das pesquisas sobre a natureza da ciência no Brasil, com ênfase na área de Química, fizemos um levantamento, não exaustivo, das publicações realizadas sobre este tema em alguns periódicos da área de Educação em Ciências e Ensino de Química. Os periódicos examinados foram: Química Nova na Escola (1995-2004); Investigações em Ensino de Ciências (19962004), Ciência & Educação (1999-2005). Buscamos esta informação também nos anais dos cinco últimos Encontros Nacionais de Ensino de Química (ENEQ) realizados no período de 1996 a 2004. 137 No levantamento realizado percebe-se o pequeno número de publicações, constatando-se que este tema ainda é pouco explorado nas pesquisas na área de Educação em Ciências e na Química, em particular. Guerra (1996) realizou um levantamento de concepções de ciência e de conhecimento científico com estudantes de graduação em Biologia e estudantes do magistério de um colégio estadual que cursavam a disciplina Metodologia do Ensino de Ciências. Para tal levantamento foram formuladas duas questões que constituíram a base da pesquisa: 1) Na sua concepção, o que é ciência? 2) Explique como se obtém o conhecimento científico. Após esta primeira fase de diagnóstico, a pesquisadora realizou uma análise conjunta das concepções relativas a este assunto, que estavam subjacentes, tanto na fala dos alunos quanto no programa didático, tentando estabelecer relações destas concepções com a metodologia e prática de ensino. A análise dos resultados obtidos revelou a dificuldade de modificações das concepções e representações dos estudantes, consideradas como um reflexo da própria formação docente adotada. A necessidade de se conhecer as concepções dos estudantes foi reconhecida como fundamental para a construção de novos conhecimentos a partir daqueles já existentes. Com o propósito de examinar as convicções filosóficas que dão suporte aos comportamentos de alguns professores de Física no contexto de um laboratório, Medeiros e Bezerra Filho (2000) entrevistaram professores de Instrumentação para o Ensino de Física em duas Universidades Federais e professores de Física do ensino médio que tinham cursado esta disciplina na graduação. Foram formuladas algumas questões para se levantar as concepções da natureza da ciência destes professores. Os resultados da pesquisa revelaram a existência de diferentes perspectivas sobre o 138 tema, no entanto, predominaram posições indutivistas e realistas ingênuas. Os autores reconhecem que a transferência das convicções dos professores para a prática em sala de aula é ainda uma questão indefinida e que deve continuar sendo objeto de investigações. Peixoto, Marcondes e Esperidião (2002) durante um curso de formação de professores de Química para o ensino médio desenvolveram atividades para fomentar reflexões sobre a natureza da ciência e sua importância na formação da cidadania. Estas atividades foram incluídas na disciplina de Prática e Metodologia do Ensino de Química e durante seis aulas foram realizadas atividades diversificadas que tiveram uma boa aceitação pelos estudantes. Mesmo considerando a ausência de consenso total sobre a influências destas concepções na prática docente, o objetivo do trabalho era detectar possíveis mudanças curriculares ou metodológicas, nos trabalhos didáticos realizados posteriormente pelos futuros professores. As conclusões apresentadas apontaram a ausência da influência das discussões e do trabalho realizado no planejamento feito pelos estudantes para suas aulas. As autoras justificaram os resultados obtidos considerando que o pouco tempo utilizado para o trabalho realizado não foi suficiente para que mudanças mais concretas pudessem ser percebidas. Kosminsky e Giordan (2002) levantaram algumas concepções sobre ciência e atuação do cientista em uma escola particular paulistana entre estudantes na faixa etária de 15 a 18 anos. As concepções foram coletadas através de respostas escritas e desenhos de alunos voluntários, que os fizeram anonimamente. Foram feitas algumas observações em aulas de Física e Química, breves debates sobre o assunto e para subsidiar o trabalho foram apresentadas as três questões seguintes aos estudantes: 1) para que servem as expressões numéricas e fórmulas usadas em Ciências? 139 2) a natureza obedece às leis das ciências?; 3) o que é ciência? Os resultados apresentados a partir da análise dos registros e respostas dos estudantes revelaram visões reducionistas e escolarizadas sobre a natureza da ciência e pouca compreensão da estrutura da ciência e do seu funcionamento. Estes resultados foram atribuídos ao enfoque adotado nos materiais didáticos sobre o assunto e a influência dos veículos de comunicação sobre a comunidade estudantil. Uma das conclusões apresentadas pelos autores é que: o desconhecimento sobre como pensam e agem os cientistas impede a aproximação dos alunos da cultura científica. Conseqüência imediata desse impedimento é a tentativa de transferência acrítica de valores prezados pela cultura científica para os estudantes (KOMINSKY; GIORDAN, 2002, p.17). Estes pesquisadores consideram que somente pesquisas mais aprofundadas e com objetivos específicos poderão levar a respostas conclusivas sobre a importância da inclusão nos currículos desta temática e o quanto esta aproximação pode contribuir para a realização de projetos educacionais nas escolas que tenham como meta tal inclusão. Na revista Investigações em Ensino de Ciências, identificamos um trabalho de Dumrauf (2001) que analisa uma experiência didática de ensino de Física no nível universitário na Argentina. Este estudo teve como objetivo identificar as imagens de ciência dos docentes na tentativa de encontrar relações entre estas e as práticas docentes. Existe o reconhecimento de que esta é uma questão controvertida, não havendo ainda consenso na comunidade envolvida com a Educação em Ciências. A autora reconhece que os estudos mais recentes sobre este assunto consideram a 140 grande complexidade das relações entre as interpretações dos docentes sobre a natureza da ciência e as suas práticas didáticas. Na Química Nova na Escola foi publicado um estudo realizado em Portugal, por Paixão e Cachapuz (2003) com o intuito de detectar as mudanças na prática de Ensino de Química através da formação dos professores em História e Filosofia das Ciências dentro de um programa de formação de professores. Este programa foi desenvolvido em três fases articuladas de modo a desenvolver práticas de ensino de Química mais inovadoras. Na primeira fase construiu-se e validou-se o instrumento de análise, na segunda fase aconteceram as sessões de formação com ênfase na História e Filosofia da Ciência e na terceira fase, os professores implementaram uma prática de ensino orientada pela planificação anteriormente realizada. Os perfis dos professores antes e depois da formação indicaram uma evolução positiva, de uma perspectiva realista ingênua para um realismo mais crítico e contextual. Percebeu-se também, uma melhoria na própria organização do processo de ensino e aprendizagem. Teixeira (2003) realizou uma pesquisa com estudantes do curso de Licenciatura em Física da Universidade Estadual de Feira da Santana (UEFS), na Bahia, visando detectar a influência de uma abordagem que incorporou elementos da História e Filosofia da Ciência no ensino de Ciências, abordagem contextual, nas concepções sobre a natureza da ciência destes estudantes. A pesquisa foi realizada através de um estudo de caso numa disciplina de Fundamentos de Física durante um semestre letivo. Os resultados desta pesquisa apontaram que apesar da existência de um foco de resistência à mudança parece ter havido um amadurecimento dos estudantes na compreensão de aspectos da natureza da ciência, influenciado pela abordagem 141 diferenciada utilizada durante as aulas da disciplina. (TEIXEIRA; EL-HANI; FREIRE JUNIOR, 2001). Santos e Novaes (2004), realizaram uma pesquisa para levantar as imagens de ciências em licenciandos de Química e Biologia, visando comparar os padrões de resposta dos calouros e formandos. Aplicou-se um questionário tipo “lápis e papel” com trinta questões em turmas de ambos os cursos. Os aspectos contemplados nos questionários foram: controle sócio-político da pesquisa científica e tecnológica, neutralidade ideológica da ciência e da tecnologia, objetividade como qualidade para o cientista, opiniões de caráter epistemológico sobre a natureza da ciência e do conhecimento científico como meio para resolução de problemas sociais. Segundo os autores foram encontradas pequenas variações entre as respostas dos calouros e formandos, que se distribuíram em diversas categorias, revelando um ecletismo em seu perfil epistemológico e a pouca efetividade dos cursos de formação de professores para fornecerem concepções mais adequadas sobre os temas investigados. Rezende e Queiróz (2004), levantaram as visões de estudantes do Curso de Bacharelado em Química do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, em São Carlos, sobre as atividades desempenhadas pelos cientistas. A pesquisa foi realizada com quarenta e sete estudantes que participaram de um mini-curso realizado nessa Universidade, onde se formulou uma questão específica para o levantamento das concepções. Os resultados indicaram que a visão predominante entre os estudantes foi a do cientista como um empreendedor e não a imagem de “sabe-tudo”. Os autores atribuíram este resultado à estrutura do currículo do curso de Química, que possibilitou discussões e atividades que levaram a uma imagem mais adequada do cientista. 142 Lobo (2004), realizou um trabalho de levantamento das concepções epistemológicas e pedagógicas de professores e estudantes do curso de licenciatura em Química da Universidade Federal da Bahia com o objetivo de explicar estas concepções, estabelecer suas relações com o currículo instituído e encontrar elementos para a superação de obstáculos resultantes de um modelo de formação docente calcado na racionalidade técnica. O trabalho utilizou-se da epistemologia bachelardiana para fundamentar as análises e discussões realizadas. Os resultados referendaram a idéia da existência de relação entre as concepções dos professores, suas práticas e as concepções dos discentes, condicionadas pela cultura curricular tecnicista de tradição filosófica empírico-positivista. El-Hani; Tavares e Rocha (2004), relatam a transformação de concepções epistemológicas de estudantes de Biologia possibilitada pela utilização de uma proposta explícita de ensino sobre História e Filosofia da Ciência. O teste da proposta foi feito por meio de uma abordagem de pesquisa quali-quantitativa. Os dados foram coletados em uma turma de uma disciplina de História e Filosofia das Ciências, de um curso de bacharelado em Ciências Biológicas da UFBA. Foi aplicado um questionário aberto do tipo VNOS-C (Views of Nature of Science - Form C), no início e final da disciplina. Em termos gerais, a proposta revelou uma evolução das visões sobre a natureza da ciência de todos os alunos que responderam ao questionário em ambas as etapas, revelandose mais eficaz em alguns aspectos do que outros. Em artigo recente, Acevedo e outros (2005) discutem os mitos da Didática das Ciências acerca dos motivos para incluir a natureza da ciência no ensino de ciências. Estes pesquisadores consideram que um destes mitos seria a suposta relação entre a prática docente e as crenças sobre a natureza da ciência e o outro seria a convicção 143 que o conhecimento sobre a natureza da ciência possibilitaria um maior discernimento na tomada de decisões cívicas em questões tecnocientíficas de interesse social. Segundo os autores, o exame de investigações procedentes da própria Didática das Ciências não sustentam estes mitos, revelando uma maior complexidade da problemática abordada. Entretanto, eles reconhecem que, atualmente, o sistema de valores majoritariamente partilhado na Didática das Ciências faz crer que é bom ensinar algo sobre a natureza da ciência e apontam razões para justificar esta decisão. A revisão que apresentamos neste capítulo demonstra que os resultados das pesquisas sobre concepções da natureza da ciência apresentam alguns consensos e disensos. Um aspecto consensual é a importância do uso da História e da Filosofia da Ciência no aprimoramento das concepções sobre a natureza da ciência dos alunos e professores, em especial através de estratégias de formação que fazem uso de abordagens explícitas, que têm se mostrado mais eficientes. Investigações empíricas para avaliar a influência do uso deste tipo de abordagem na formação inicial ainda são necessárias, para que se obtenha dados concretos sobre a sua maior ou menor eficácia. Estas informações são importantes para justificar a incorporação desta dimensão nos currículos escolares e o reconhecimento da sua importância na alfabetização científica dos alunos. CAPÍTULO 5 DELINEAMENTOS METODOLÓGICOS 145 5 DELINEAMENTOS METODOLÓGICOS A nossa tese teve três focos de investigação: as concepções sobre a natureza da ciência dos alunos, a aprendizagem de conceitos químicos e os livros didáticos. Considerando as diferentes questões investigadas tivemos necessidade de utilizar uma diversidade de recursos metodológicos nas várias etapas: ¾ a pesquisa histórica para elaboração dos materiais didáticos; ¾ a pesquisa didática envolvendo as concepções sobre a natureza da ciência; ¾ a pesquisa didática sobre a aprendizagem de conceitos; ¾ a análise dos livros didáticos. Neste capítulo tentaremos reunir e descrever os principais aspectos relacionados a metodologia utilizada em cada parte, com exceção da metodologia de análise dos livros didáticos, que será contemplada especificamente nos capítulos 7 e 9. Como a nossa pesquisa aconteceu em etapas distintas, isso implicou no uso de diferentes recursos para o levantamento de dados. A primeira etapa foi da pesquisa histórica, necessária para que fossem elaborados materiais didáticos, na forma de textos, com conteúdos específicos em História e Filosofia da Ciência. 5.1 Algumas informações metodológicas sobre a pesquisa histórica Nesta etapa realizamos pesquisa bibliográfica através de consulta, principalmente a fontes secundárias. A abordagem histórica utilizada na elaboração da pesquisa evitou priorizar o internalismo ou externalismo; múltiplos enfoques foram adotados para que a História da Ciência pudesse ser compreendida nos diversos aspectos que a 146 caracterizam. Os produtos da nossa pesquisa histórica encontram-se no capítulo 6 e no anexo A. Não tivemos a pretensão de fazer um estudo original em História da Ciência, exclusivamente com fontes primárias, uma vez que, o nosso objetivo era elaborar materiais didáticos com conteúdos de História e Filosofia da Ciência. Na escolha das fontes secundárias optamos por nos apoiar em trabalhos de historiadores da Ciência bem conceituados no âmbito da História da Ciência e da Química em particular. A elaboração desses textos teve como objetivo a sua utilização posterior na disciplina, dando subsídio às discussões em sala de aula que aconteceram durante a investigação didática e possibilitando, também, as análises dos livros de Química Geral (capítulos 7 e 9). 5.2 A metodologia da investigação didática Neste capítulo apresentaremos os delineamentos gerais da metodologia que foi utilizada na duas partes da investigação didática envolvendo, tanto as concepções sobre a natureza da ciência dos alunos (capítulo 8) quanto a avaliação da influência da contextualização histórica de um conceito químico na sua aprendizagem (capítulo 9). Tomamos como premissa o fato da pesquisa sobre o ensino das ciências considerar a complexidade que caracteriza o cotidiano escolar. O pesquisador, enquanto sujeito imerso nas relações sociais, deve se inserir no processo visando explicitá-lo, elucidá-lo sem interromper o seu movimento e considerando os múltiplos significados que vão sendo conferidos às relações que se fazem presentes (BURNHAM, 1998, p.41). 147 5.2.1 Tipo de abordagem da pesquisa, o contexto e os sujeitos Considerando a problemática inicial, a nossa investigação didática foi inserida dentro de uma abordagem de pesquisa qualitativa. Este tipo de pesquisa prioriza as descrições, a investigação da percepção das pessoas envolvidas no processo educacional e a interpretação dos resultados. As técnicas de pesquisa utilizadas na abordagem qualitativa têm suas raízes nos estudos realizados em áreas como a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia. Posteriormente elas passaram a ser adotadas também nas investigações no campo da educação (BOGDAN; BLIKEN, 1994). De acordo com Triviños (1987), a investigação da pesquisa qualitativa costuma se apoiar numa fundamentação teórica geral, o que requer uma revisão aprofundada da literatura em torno do assunto investigado, no entanto, a imersão na teoria vai acontecendo no processo e à medida em que as necessidades são criadas. O pesquisador que adota o enfoque qualitativo tem ampla liberdade teórico-metodológica para realizar o estudo, respeitando as condições de exigência de um trabalho científico. O tipo de pesquisa qualitativa adotado nesta investigação foi o estudo de caso observacional, considerado como uma “categoria típica” de pesquisa qualitativa (TIVIÑOS, 1987, p.135). Neste tipo de investigação, a observação participante é a principal técnica de coleta de informações. O estudo realizado teve um caráter “exploratório”. De acordo com Triviños (1987, p.109) “os estudos exploratórios permitem ao investigador aumentar a sua experiência em torno de um determinado problema”. Uma pesquisa com estas características costuma ser realizada quando se tem como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e idéias com a intenção de formular problemas mais precisos ou 148 hipóteses a serem pesquisadas. No final da investigação haverá um maior esclarecimento sobre o assunto estudado e procedimentos mais sistematizados que poderão servir para a realização de outras pesquisas semelhantes (GIL, 1987). Na pesquisa qualitativa a amostra selecionada deve ser pequena, o que está de acordo com a fundamentação teórica de natureza fenomenológica; o tamanho da amostra é decidido intencionalmente, levando-se em conta os objetivos da pesquisa e a facilidade de acesso aos sujeitos que são considerados essenciais à pesquisa (TRIVIÑOS, 1987). A nossa investigação foi realizada na disciplina História da Química, onde exercemos a função de professora e atuamos também na categoria “observador como participante” (LUDKE; ANDRÉ, 1986). Neste tipo de participação, o observador não oculta os seus objetivos de pesquisa dos sujeitos envolvidos, revelando o que pretende tendo em vista a questão ética, que se encontra subjacente à investigação. Na primeira aula todos os alunos receberam um formulário para preencher, nele comunicávamos sobre a realização do trabalho de pesquisa na disciplina e perguntávamos se cada aluno gostaria de participar do trabalho. Todos concordaram em participar. Em seguida, informamos aos alunos a natureza confidencial do material que seria obtido no levantamento de dados e disponibilizamos para todos os alunos um termo de compromisso que oficializava este compromisso (ANEXOS B e C). Tentamos fazer contato com a comissão de ética da UFBA mas, apesar de termos feito duas tentativas, não conseguimos localizar os membros da comissão. Fomos informados que essa comissão naquele momento estava com problemas na sua composição. A disciplina escolhida, História da Química (QUI-040), faz parte do Curso de Química da Universidade Federal da Bahia; sendo obrigatória apenas para os alunos 149 que escolhem o Curso de Licenciatura em Química desta Universidade e optativa para o bacharelado. Durante todo o trabalho em sala de aula, dois professores estiveram presentes, incluindo a pesquisadora, uma vez que, esta disciplina é ministrada desde 1990 por esses professores. O desenvolvimento da pesquisa aconteceu durante dois semestres letivos consecutivos 2004.1 e 2005.1, tendo como sujeitos da pesquisa os alunos da disciplina anteriormente citada. O segundo semestre de 2004 foi cancelado em função da greve que aconteceu na UFBA naquele período, portanto, o semestre 2005.1 foi consecutivo a 2004.1. O ‘trabalho de campo’, que se constituiu numa investigação didática, foi realizado em situação real da sala de aula e os instrumentos de coleta de dados foram aplicados durante os períodos letivos da disciplina História da Química. Todos os alunos matriculados foram sujeitos da investigação, uma vez que, o módulo da disciplina é pequeno (15 alunos), justificando a não utilização de técnicas de amostragem para o levantamento de dados. As aulas da disciplina aconteceram em um dia da semana, durante três horas consecutivas e envolveram dezesseis semanas letivas. As aulas foram planejadas envolvendo diferentes etapas. A estratégia didática utilizada para as duas partes da investigação será resumida a seguir. Inicialmente (primeira etapa) realizamos o levantamento das concepções prévias relacionadas aos conteúdos da Filosofia da Ciência que seriam priorizados na aula subseqüente, usando pequenos questionários, questões problematizadoras, resumidas no Quadro 3. Neste momento os alunos tomavam conhecimento do planejamento feito 150 para o próximo encontro, sendo informados sobre quais leituras dariam subsídio às discussões. Os textos eram disponibilizados para serem fotocopiados e lidos. Na aula seguinte (segunda etapa), acontecia a discussão dos assuntos que faziam parte do planejamento daquela aula. Estas discussões eram subsidiadas pelas leituras prévias indicadas no planejamento de cada semana. Neste momento, tanto os alunos quanto os professores se colocavam sobre o assunto priorizando os objetivos definidos para aquela aula. Na terceira etapa os alunos se reuniam em equipes e voltavam a discutir as questões problematizadoras, previamente formuladas, as quais já tinham sido respondidas na aula anterior (levantamento prévio). Após a discussão, ao final da aula, eles voltavam a responder, individualmente, as mesmas questões já respondidas no levantamento prévio. O nosso objetivo era detectar em que medida as informações fornecidas durante a aula através das discussões e utilizando novas estratégias pedagógicas, tinham possibilitado algum ganho no conhecimento epistemológico dos alunos. Em algumas aulas usamos também filmes como recurso didático para ilustrar alguns conteúdos que estavam sendo abordados. Este recurso no entanto, tem sido usado tradicionalmente na disciplina. Tivemos a pretensão de ajudar os alunos na reflexão tanto sobre suas concepções epistemológicas quanto sobre alguns conceitos químicos. Utilizamos 13 aulas (cerca de 80%) do curso para realizar a parte da pesquisa envolvendo as concepções sobre a natureza da ciência e, nas três últimas aulas trabalhamos a aprendizagem de conceitos químicos. No primeiro semestre de 2004 realizamos uma primeira etapa da investigação, que funcionou, principalmente, como um estudo piloto possibilitando um aprimoramento 151 dos instrumentos utilizados para o levantamento de dados. Como visto anteriormente, este foi considerado um semestre atípico porque aconteceu uma greve na UFBA com duração de quase noventa dias, o que atrasou o planejamento delineado. Inicialmente foram matriculados dez alunos na disciplina e após a greve, apenas oito alunos prosseguiram no curso. Os alunos que trancaram a disciplina apresentaram justificativas pessoais para o trancamento, no entanto, um fato importante a ser registrado é que no semestre seguinte, 2005.1, tivemos quinze alunos matriculados, embora somente quatorze tenham cursado efetivamente a disciplina. Houve apenas um abandono, justificado pela ocorrência de fatores não previstos, de início, que impossibilitaram este aluno de cursar a disciplina. Embora a disciplina História da Química fosse obrigatória apenas para alunos de Licenciatura, haviam alunos do Bacharelado matriculados, dois em 2004.1 e dois em 2005.1. No semestre 2004.1 contamos também com um aluno especial, que já era graduado em Licenciatura em Ciências e que cursou todo o semestre letivo. Outro ponto a ser destacado foram as justificativas apresentadas para cursar a disciplina. A maior parte dos alunos considerava o conteúdo da disciplina importante para a sua formação e tinha interesse em conhecer mais sobre a História da Química; alguns alunos (05) explicitaram que ouviram falar que a disciplina era interessante ou tratava do assunto da química de uma forma diferenciada das outras disciplinas do currículo. 5.2.2 O levantamento de dados: questões prévias O trabalho didático realizado teve como objetivo responder às perguntas explicitadas na “Introdução” desta tese (p. 23). Utilizamos uma abordagem de ensino 152 direcionada e contextualizada, que priorizou o referencial da História e Filosofia da Ciência no processo. Levamos em conta a constatação de Matthews (1994) que a epistemologia dos nossos alunos é comumente constituída informalmente, uma vez que, não encontra o respaldo adequado nos cursos de formação inicial. A disciplina que se constituiu no “locus” da investigação, História da Química (QUI 040), podia ser cursada a partir do quarto semestre do curso de Licenciatura em Química. Esta disciplina deveria ser cursada antes das Metodologias de Ensino I e II. Os alunos matriculados nos semestres 2004.1 e 2005.1 estavam cursando entre o sexto e o último semestre do curso; a variação detectada na semestralização era decorrente do andamento do aluno no curso. A escolha desta disciplina para implementação da proposta de pesquisa decorreu tanto pelo fato de atuarmos como professora quanto por considerarmos que era um espaço adequado para inserção das questões sobre o processo de construção do conhecimento científico e da sua natureza. Além disso, como professora desta disciplina, cada vez mais sentimos a necessidade de uma maior aproximação entre os conhecimentos específicos de História da Química e conteúdos relacionadas à Filosofia da Ciência. Para identificar as concepções sobre a natureza da ciência e o conhecimento prévio dos alunos ao ensino, utilizamos questionários com perguntas abertas, que foram denominadas de questões problematizadoras (Quadro 3). Como será visto no capítulo 9, um dos propósitos da nossa investigação era também, avaliar em que medida a contextualização histórica de um conceito científico, incluindo o conhecimento da sua gênese e historicidade, poderia contribuir para uma aprendizagem mais significativa deste conceito. 153 A análise da pesquisa didática foi conduzida sob um enfoque interpretativo (MOREIRA, 1990, p.34). Neste tipo de análise o pesquisador narra o que fez e a sua narrativa se concentra não nos procedimentos, mas nos resultados, levando-se em conta a dinâmica das relações estabelecidas. Suas asserções dependem da sua interpretação e só serão validadas por outros pesquisadores que concordem com a interpretação proposta. A narrativa utilizada deve ser enriquecida com elementos obtidos no levantamento de dados, a exemplo de trechos de entrevistas que deverão ser mesclados com comentários interpretativos que darão suporte à análise realizada, contribuindo assim, para a credibilidade da pesquisa. Considerando-se a complexidade envolvida no processo educacional, reconhecemos que a contribuição da História e Filosofia da Ciência no processo de ensino e aprendizagem da Ciência é um assunto controvertido e que tem gerado debates na comunidade científica, como já foi apresentado no Capítulo 2. Esta situação justifica a necessidade de um maior número de investigações empíricas sobre tal questão para que resultados mais conclusivos possam ser obtidos. Neste estudo usamos diferentes técnicas e instrumentos para levantamento de dados, a exemplo de observação participante, questionários e entrevistas. A aplicação dos instrumentos para levantamento de dados aconteceu no decorrer dos semestres letivos: primeiros semestres de 2004 e 2005. Os questionários utilizados foram elaborados antes do início do semestre 2004.1 e validados por pelo menos dois especialistas na área. Os professores que contribuíram nesta parte do trabalho foram: Edilson F. Moradillo, Maria Bernadette de Mello Cunha e José Luis de Paula. Os questionários de levantamento das concepções sobre a natureza da ciência contaram 154 com a colaboração dos professores Edilson e Bernadette e os questionários do levantamento conceitual com Edilson e José Luís. Nesta pesquisa levantamos concepções prévias dos alunos sobre a natureza da ciência, bem como, os significados de alguns conceitos químicos relacionados ao tema gerador selecionado. Durante a disciplina tivemos a pretensão de refletir sobre certas concepções epistemológicas consideradas pouco adequadas, introduzindo novas idéias ancoradas em outros referenciais fundamentados na Filosofia da Ciência produzida no século XX. Estes conteúdos não faziam parte da abordagem tradicional da disciplina que, em seu programa, priorizava conteúdos específicos relacionados às diferentes etapas da História da Química, numa abordagem cronológica. Como visto na Introdução, a nossa problemática inicial incluía, também, avaliar se a compreensão de um conceito químico através da sua contextualização histórica poderia contribuir para uma aprendizagem mais significativa deste conceito. Escolhemos o conceito de quantidade de matéria e para atingir este objetivo, elaboramos um texto/artigo (ANEXO A) sobre a história dos conceitos de quantidade de matéria e mol, que foi utilizado como material didático. A nossa investigação portanto, fez uso de materiais didáticos especificamente elaborados pela pesquisadora, que serviram como ‘referências’ que fundamentaram o trabalho na disciplina e as discussões em sala. 5.2.3 Procedimentos para coleta de dados, técnicas e instrumentos Como foi dito anteriormente, nossa investigação aconteceu na disciplina História da Química, onde atuamos como professora e observadora participante. A observação 155 envolvida neste tipo de pesquisa pode ter um caráter não sistemático, menos rígido, embora o pesquisador possa previamente estabelecer algumas questões a serem observadas. Na atuação do pesquisador são obtidos registros descritivos de cada aula sobre os acontecimentos e detalhes relevantes percebidos. Utilizamos para o registro dos encontros um “protocolo de registro”, para sistematizar as observações realizadas e foram feitas gravações para registrar as discussões entre os alunos, nas equipes. A parte descritiva contemplou as respostas dos alunos às questões problematizadoras, os registros das interações dos sujeitos nas equipes, os diálogos, o contexto da sala de aula, as atividades realizadas e o próprio comportamento do observador (LUDKE; ANDRÉ, 1986). Durante o curso procuramos registrar os principais fatos observados nas aulas durante a realização das discussões de forma ampliada, ou seja, envolvendo os professores e os alunos. Nesta pesquisa (nas duas partes da investigação didática) usamos uma dinâmica de sala de aula onde, após a discussão ampliada com a participação de toda a turma e dos professores, os alunos se reuniam em pequenos grupos (equipes) para discussão das questões problematizadoras, previamente respondidas. Os subsídios para estas discussões eram fornecidos por leituras de textos selecionados, anteriormente indicados, seguida de uma ampla discussão das questões propostas para cada aula. (Quadro 3). Teóricos e pesquisadores da área de Educação têm reconhecido a importância da socialização e do trabalho em grupo para o desenvolvimento cognitivo do indivíduo. Durante todo o semestre trabalhamos com três equipes E1, E2 e E3. A composição das equipes foi mantida, embora o número de alunos em cada equipe tenha variado em função da freqüência às aulas. Os alunos foram identificados com a letra A e um 156 número, que variou de 1 a 14 para a turma de 2005.1 e de 1 a 8 para a turma de 2004.1, em função do número total de alunos que freqüentou as turmas naqueles semestres. Esta identificação foi mantida em todo o trabalho. A necessidade de aprofundamento das observações realizadas e o levantamento de concepções e conceitos prévios dos alunos foi possibilitada pela utilização, nas duas partes da investigação didática, de diferentes instrumentos de coleta de dados: questionários, gravações das discussões e das entrevistas. O uso de questionários abertos teve o objetivo de permitir aos estudantes revelarem a sua própria opinião, sem ter que escolher entre visões já pré-estabelecidas que eventualmente poderiam não corresponder exatamente a sua visão. Este tipo de instrumento também permite que os sujeitos/alunos justifiquem cada uma das suas posições. Entre os tópicos que foram mapeados estavam: o conceito de ciência; a questão da metodologia científica; o papel das teorias, leis e da experimentação; a provisoriedade das teorias e a relação entre modelo e realidade, entre outros. Nos capítulos 7 e 9 analisamos também, livros didáticos utilizados na disciplina de Química Geral (ANEXOS E e F), em relação à apresentação da teoria atômica daltoniana e de alguns conceitos como: quantidade de matéria e mol. A nossa intenção era avaliar como estes conteúdos são abordados nestes manuais. Para minimizar os possíveis equívocos na interpretação das respostas dos questionários foram realizadas também, algumas entrevistas no final do período letivo, com a intenção de aprofundar o levantamento pretendido e ajudar no processo de interpretação das respostas aos questionários. Durante toda a pesquisa, utilizando protocolo de entrevista apropriado (ANEXO G), entrevistamos 06 alunos já formados e 157 11 alunos que participaram do trabalho na disciplina, incluindo os dois semestres. As entrevistas tiveram como foco as concepções sobre a natureza da ciência. A abordagem de pesquisa qualitativa tem na entrevista ao lado da observação um dos mais importantes instrumentos de coleta de dados. Ludke e André (1986) consideram que este tipo de técnica permite o aprofundamento de pontos levantados por outros meios de coleta que têm um alcance mais superficial; outra vantagem citada é a relação de interação que se cria entre entrevistado e entrevistador. O tipo de entrevista que utilizamos possibilitou maior flexibilidade no processo e autonomia no percurso. Optamos pela entrevista semi-estruturada que aconteceu a partir de um esquema básico com algumas categorias previamente definidas, porém, mantendo a flexibilidade do entrevistador para realização de adaptações necessárias ao percurso da entrevista. Bogdan e Biklen (1994) chamam atenção para o fato de que este tipo de entrevista permite obter dados comparáveis entre vários sujeitos. As entrevistas, bem como os momentos de discussões nas equipes foram gravadas em áudio e depois transcritas, após a negociação para obtenção de autorização prévia dos entrevistados. Nas entrevistas os estudantes foram estimulados a explanar sobre temas teóricos já abordados nos questionários e outros que julgamos necessários. Neste momento podiam explicar, reafirmar, ou mesmo contradizer opiniões previamente registradas. 5.2.4 Análise dos dados Os dados coletados foram analisados através de um enfoque qualitativo e interpretativo. Nesta análise visamos a objetivação dos dados levantados utilizando a 158 técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 1977; MORAES, 1999). O nosso corpus de análise era formado pelo conjunto das respostas aos questionários, as transcrições das entrevistas, os registros de observação e anotações das aulas. O foco da análise foram os registros obtidos no semestre 2005.1, embora os trechos de gravações nas equipes dos alunos do semestre 2004. 1 tenham sido utilizados, em pequena extensão, para ilustrar a análise e interpretação dos dados de algumas categorias epistemológicas. Numa primeira etapa efetuamos um recorte dos conteúdos em elementos, processo de unitarização que Moraes (1999) denomina de etapa de desmontagem do texto. As nossas unidades de análise foram as concepções dos estudantes sobre os tópicos abordados (cada resposta dada no questionário). O processo seguinte, a categorização, envolveu a comparação entre as unidades previamente definidas para realizar o agrupamento de ‘elementos’ semelhantes. Na definição das categorias analíticas utilizamos o modelo misto. De acordo com Laville e Dionne (1999), neste modelo algumas categorias são selecionadas no início, baseadas no referencial teórico utilizado, mas o pesquisador pode modificá-las em função do que a análise indicar. As categorias definidas “ a priori” nortearam também, as dimensões epistemológicas de análise selecionadas para as entrevistas semi-estruturadas. Na análise dos questionários foram estabelecidas categorias de classificação das respostas para cada questão, categorias emergentes (MORAES, 1999). Os dados descritivos coletados foram analisados comparativamente. Os resultados obtidos nesta etapa nortearam a análise das entrevistas e a seleção de alguns trechos de falas dos alunos gravadas, que foram citados durante as narrativas. Considerando o caráter exploratório do nosso estudo, buscamos identificar novas categorias emergentes das respostas dos alunos que refletissem concepções mais 159 “elaboradas” adquiridas no processo de ensino, além de toda a dinâmica interativa adotada. Os dados obtidos nos levantamentos através de questionários foram submetidos à avaliação crítica de outros pesquisadores da área (professores Edilson F. Moradillo e José Luis de P. Silva). Esta etapa teve o objetivo de comprovar a confiabilidade dos resultados. O rigor e a credibilidade deste tipo de pesquisa depende da sua validade interna que é considerada de grande importância. Como esta pesquisa foi um estudo de caso com uma amostragem pequena, os dados produzidos não possibilitam que se faça generalizações estatísticas, estendendose os resultados além da sua validade específica. As características mais importantes do caso estudado podem ser comparadas com resultados obtidos para outros grupos, em estudos similares, o que limita a validade externa obtida. Como pesquisa qualitativa que acontece em ambiente natural, busca-se capturar o significado que os sujeitos atribuem a objetos e eventos num dado contexto cultural, vivenciado no momento da pesquisa, não existindo a pretensão da reconstituição, o que restringe a fidedignidade. CAPÍTULO 6 CONTROVÉRSIAS SOBRE O ATOMISMO NO SÉCULO XIX 161 6 CONTROVÉRSIAS SOBRE O ATOMISMO NO SÉCULO XIX Neste capítulo apresentaremos o resultado da pesquisa histórica sobre o tema central destacado nesse trabalho (História do atomismo no século XIX) e que nos possibilitou a elaboração do material didático utilizado para subsidiar as discussões com os nossos alunos relacionadas à natureza da ciência. Consideramos que a discussão da presença de posições conflitantes no seio do desenvolvimento científico é um elemento importante para a desmistificação da ciência, ajudando na compreensão da sua natureza. 6.1 A relevância do tema escolhido Embora nos últimos anos, livros e artigos tenham sido escritos abordando e discutindo vários aspectos relacionados com as controvérsias acontecidas no século XIX entre atomistas e anti-atomistas, este é um tema desconhecido de grande parte dos estudantes e professores das ciências naturais. Uma evidência para esta afirmação pode ser encontrada na ausência desta questão nos livros didáticos de Química Geral onde o atomismo de Dalton é apresentado. A abordagem da História da Ciência na educação científica tradicional tem ocorrido geralmente de um modo dogmático, existindo pouco espaço para que controvérsias científicas sejam apresentadas ou discutidas. As controvérsias relacionadas com a aceitação do atomismo ao longo do século XIX desempenharam um importante papel na consolidação do conceito de átomo na Física e na Química do 162 século XX. A identificação de altos e baixos do atomismo, não estava relacionada apenas à interpretação dos fatos ou à ausência de evidências para a existência de átomos, envolvia múltiplos aspectos: ontológicos, metodológicos e epistemológicos. Investigando esta questão, Nye (1976) identificou as dificuldades da comunidade científica para perceber a profundidade das dúvidas existentes relacionadas, também, aos aspectos epistemológicos e metodológicos subjacentes aos debates sobre a possível realidade do átomo: O que muitas vezes tem sido omitido nas análises sobre os ásperos debates (sobre o atomismo) é que a crise na comunidade científica do século passado (século XIX) não concerniu apenas a evidência e a interpretação, mas também, a metodologia científica e a epistemologia. Em questão não estavam apenas a teoria atômica mas o objetivo e a estrutura da teoria física (NYE, 1976, p.246). (Tradução nossa) Durante o século XIX, a idéia de átomo foi considerada por grande parte da comunidade científica como uma hipótese fundamental para a interpretação de práticas da química quantitativa. As dúvidas e especulações sobre a realidade dos átomos eram, em parte, de ordem filosófica e não envolviam aspectos científicos da questão. Um grande desafio precisava ser enfrentado para tornar a hipótese atômica aceitável, adaptá-la no âmbito de duas dimensões: a macroscópica e a microscópica. Na comunidade científica do século XIX aconteceram momentos de ceticismo frente ao atomismo e suas implicações e momentos de confiança na hipótese atômica. Este assunto tem sido investigado por historiadores da ciência a exemplo de Alan J. Rocke (1978, 1984), Antonio Augusto Passos Videira (1993, 1994, 1997a, 1997b), Bernadette Bensaude-Vincent e Isabelle Stengers (1992, 1997), Carlos A. L. Filgueiras 163 (2004), Gerd Buschdal (1960), Mary Jo Nye (1976; 1984; 1996; 1997), Ricardo Ferreira (1987), William Brock e David Knight (1965), William Brock (1992). Tomando como referência os autores anteriormente citados, este estudo histórico foi realizado através de consulta a estas e outras fontes secundárias, tendo em vista responder a questões mais gerais e outras mais específicas formuladas para nortear a nossa pesquisa histórica que se fez necessária para a elaboração do material didático produzido, a exemplo de: 1) Quando surgiu o atomismo e qual o seu significado? Como se modificou o pensamento atomista? 1.1) Como aconteceu a recepção às idéias de Dalton pela comunidade científica na primeira metade do século XIX? 1.2) Em que aspectos diferiam o atomismo químico do físico? 2) Quais os argumentos dos atomistas e anti-atomistas? Qual a coerência, consistência, plausibilidade e aplicabilidade desses argumentos? 2.1) Qual a diferença entre o atomismo e o equivalentismo? 2.2) Qual a relação existente entre o energeticismo e os anti-atomistas? 3) Que condições (filosófica, científica e técnica) permitiram a ampla aceitação do atomismo? 3.1) Movimentos filosóficos como o positivismo, o romantismo e a “naturphilosophie” teriam influenciado na aceitação do atomismo no século XIX? 3.2) Qual a contribuição de Jean Perrin para a aceitação, em definitivo, da hipótese atômica? Este episódio da História da Ciência ilustra a dificuldade de cientistas e filósofos de submeterem certas “imagens de natureza” à comprovação empírica. Tais imagens 164 incluem “os constituintes que são considerados últimos ou essenciais da realidade, suas modalidades de interação, bem como os processos fundamentais dos quais participam” (ABRANTES, 1998, p.10). 6.2 A visão corpuscular da matéria: uma concepção gestada na antigüidade A constituição da matéria faz parte das primeiras especulações filosóficas do homem; inúmeras concepções surgiram em contextos variados e em diferentes épocas e culturas. A idéia de átomo, portanto, é muito antiga, podendo ser localizada na Grécia Antiga, no século V a.C., quando foram propostas duas visões opostas sobre a constituição da matéria: a descontinuista, também conhecida como visão corpuscular da matéria e as teorias que admitiam a continuidade da matéria e a possibilidade da sua divisão até o infinito. Segundo Abrantes (1998), várias imagens de natureza e de ciência estiveram presentes na antigüidade, entre elas, a imagem dos atomistas e diferentes imagens dos continuistas, que destacaremos a de Aristóteles. A tensão entre imagens de natureza mutuamente incompatíveis foi um fator positivo que contribuiu para o desenvolvimento científico e filosófico nos diversos períodos da história, culminando com o desenvolvimento da teoria atômica clássica no século XIX. Embora a palavra átomo tenha sido introduzida pelos gregos e a teoria atômica de Leucipo e Demócrito tenha se constituído num marco histórico, distintas teorias atômicas foram propostas até o século XX. As primeiras idéias atomistas foram uma resposta especulativa a algumas observações da natureza apresentadas por filósofos 165 que pertenciam a Escola Eleática1 e consideravam a matéria contínua e a inexistência do movimento. Os primeiros atomistas gregos postularam a existência de partículas homogêneas, eternas, invariáveis e impenetráveis, os átomos, que se moviam no vazio. As diferenças nas propriedades geométricas e mecânicas dos átomos explicavam a pluralidade das coisas. O mundo era concebido como matéria em movimento, com choques, incerteza e caos. As mudanças percebidas decorriam da associação e dissociação de átomos, considerados como os primeiros princípios constituintes da matéria. Assim como Leucipo, também Demócrito, seu discípulo, dizia que o cheio e o vazio são os princípios, sendo um existente e o outro não existente. Pois os átomos são a matéria das coisas, e todo o resto se segue de suas diferenças. Estas são três: forma, movimento e ordem (SIMPLÍCIO (?) apud BORNHEIM, 1993, p.126). Mesmo não sendo possível a visualização dos átomos diretamente pelos sentidos ou, indiretamente, através de instrumentos, o atomismo foi brilhantemente concebido na antigüidade grega, plena de imaginação e criatividade. Outros filósofos como Epicuro (341 - 270 a.C.) e Lucrécio Caro (95 -55 a.C.) foram também atomistas e ampliaram, em alguns aspectos, a idéia original concebida por Leucipo (490 – 420 a.C.) e desenvolvida por Demócrito (460 – 370 a.C.). Neste período ainda não existia uma separação nítida entre o conhecimento científico e o filosófico. Mesmo que as contribuições filosóficas e literárias legadas por Epicuro e Lucrécio em relação ao atomismo sejam reconhecidas, tais idéias, predominantemente mecânicas e materialistas, não conseguiram frutificar no período medieval em função 1 A escola eleática foi uma escola filosófica que se preocupava sobretudo com questões do mundo material, cujos representantes 166 do predomínio de uma visão teológica de mundo. Neste período algumas teorias corpusculares foram até mesmo consideradas heréticas. A hipótese atômica enquadrava-se numa visão materialista de mundo, tornando-se um ponto de vista controvertido para muitos filósofos da antigüidade e medievais. Na antigüidade, o mais importante defensor da continuidade da matéria foi Aristóteles, que admitia como objetos do conhecimento a forma, a essência, o real. Ele imaginava o mundo ordenado, submetido a uma hierarquia com um lugar natural para todas as coisas. Os sentidos seriam a fonte do conhecimento, sendo a substância uma categoria fundamental do ser, hierarquicamente superior às demais categorias. A natureza seria plena de força vital, uma imagem organicista de natureza. Aristóteles (384 – 322 a.C.) e os peripatéticos2 contestavam a concepção atomista, devido a sua natureza materialista (FILGUEIRAS, 2004). Em oposição defendiam a continuidade da matéria considerando-a formada por um número limitado de princípios/elementos: terra, água, ar e fogo. Aristóteles defendia a subdivisão da matéria sem um limite definido expressando o seu ponto de vista em uma das suas obras, “Sobre os céus”: “[...] um contínuo (continuum) é o que é divisível em partes sempre capazes de subdivisão, e um corpo é o que é de todo modo divisível” (ARISTÓTELES,1952 apud MIERZECKI, 1991, p.96). (Tradução nossa) Comentando sobre as idéias de Leucipo e Demócrito relativas à composição da matéria, Aristóteles escreveu no seu livro “Sobre a Geração e a Corrupção” “Demócrito e Leucipo dizem que existem corpos indivisíveis, infinitos tanto em número quanto na foram os filósofos Parmênides e Zenão, 2 O termo peripatético origina-se do vocábulo grego “peripatein”, que é categorizado como verbo e significa caminhar. Este termo é comumente utilizado para designar os filósofos seguidores de Aristóteles. 167 variedade de suas formas, dos quais tudo mais é composto” (ARISTÓTELES,1952 apud MIERZECKI, 1991, p.93). (Tradução nossa) Um outro ponto de divergência entre os atomistas e Aristóteles referia-se à existência do vácuo. Os atomistas acreditavam que os átomos existiam e se movimentavam no espaço vazio, já Aristóteles argumentava que o movimento podia acontecer somente em um meio material. Como eram observadas muitas mudanças e diversos tipos de movimento na natureza, sua conclusão é que o vazio não deveria existir no Universo. O conflito envolvendo estes dois pontos de vista tinha uma natureza ontológica e epistemológica; buscava-se responder a um questionamento global sobre a natureza e sobre o homem. Algumas categorias conceituais estiveram presentes nessas discussões: um/múltiplo; contínuo/descontínuo; ser/não ser. A tensão entre as diferentes explicações das qualidades da matéria e das suas transformações acompanhou as ciências naturais até os séculos XVIII e XIX e as divergências observadas contribuíram para o desenvolvimento da Química e da Física clássicas. 6.3 As visões continuistas e descontinuistas: do século XIV ao XVII O pensamento aristotélico sobre a continuidade da matéria teve uma grande difusão na Idade Média e no Renascimento, no entanto, alguns filósofos comentadores de Aristóteles associaram à teoria dos quatro elementos conceitos atomísticos. Em parte de sua obra, Aristóteles deixou aberta a possibilidade de uma interpretação que foi desenvolvida por vários pensadores medievais e ficou conhecida como “a teoria dos minima naturalia”. De acordo com esta teoria os “minima naturalia” eram as menores 168 partes das substâncias que conservavam as suas propriedades, o limite “teórico” da divisibilidade de cada substância (BELLO; SÁNCHEZ; RAMÓN, 2003; MAAR, 1999). As primeiras tentativas de relacionar os “minima naturalia” com as propriedades físicas e químicas das substâncias foi realizada por alguns filósofos averroístas3. Esta articulação era imprescindível para que os mínima fossem considerados entidades físicas e não puramente filosóficas. Esta idéia foi retomada posteriormente pelo filósofo natural Daniel Sennert (1572-1637). Até o fim do século XVII, a estrutura discreta da matéria era considerada como uma hipótese, sem uma base empírica que lhe desse sustentação. Apesar disto, a visão corpuscular, mesmo como um pensamento marginal se aplicava melhor a uma abordagem quantitativa, enquanto a visão aristotélica era usada para uma descrição qualitativa dos fenômenos. Com o desenvolvimento dos métodos quantitativos, a concepção corpuscular tornou-se cada vez mais necessária adquirindo uma maior importância. Filósofos como Angelo Sala (1578-1637), Daniel Sennert e Joachim Jungius (1587-1657) passaram a interpretar fatos empíricos usando “átomos” ou “mínimos” iniciando um processo de abertura na direção de um atomismo científico. As transformações e fenômenos percebidos foram relacionados às diferenças quantitativas existentes entre o tamanho, a forma e a massa dos átomos e suas combinações. 6.4. A filosofia mecânica Nos séculos XVI e XVII começou a emergir uma nova filosofia da natureza, a 3 Os filósofos averroístas eram seguidores do árabe Averróis (1126-1198) que era um aristotélico. 169 “Filosofia Mecânica ou Mecanicista”, que se constituía numa importante alternativa à visão de mundo aristotélica que ainda era dominante no século XVI. Em parte este movimento estava relacionado com o ressurgimento do atomismo grego e foi responsável pela “revolução científica” acontecida neste período (TAMNY, 1990). O atomismo foi retomado e difundido pelo filósofo francês Pierre Gassendi (15921655) e adotado por ‘personalidades’ como Robert Boyle (1627-1691) e Isaac Newton (1642-1727) que eram, em alguma extensão, partidários da filosofia mecânica. Os filósofos mecanicistas consideravam que os corpos eram formados por entidades não diretamente acessíveis aos sentidos, os átomos e/ou corpúsculos; tais partículas eram as últimas causas e explicavam todos os fenômenos. A Filosofia Mecânica não constituía um único pensamento. Todos os filósofos mecanicistas eram corpuscularistas, embora alguns não fossem atomistas. As propriedades consideradas fundamentais variavam de um filósofo para outro. Enquanto alguns destes filósofos consideravam sua visão como tendo uma correspondência no plano real, outros tinham o seu ponto de vista como uma hipótese consistente com a experiência (TAMNY, 1990). As qualidades percebidas nos corpos eram explicadas por um pequeno número de propriedades atribuídas às menores partes constituintes dos objetos percebidos. Embora os átomos não fossem diretamente visualizados, considerava-se que eles eram os constituintes dos corpos macroscópicos. A diversidade de explicações apresentadas pelos filósofos mecanicistas considerava as diferenças quantitativas superando, neste aspecto, o aristotelismo que fazia uso de explicações qualitativas (TAMNY, 1990). No século XVII, como resultado de uma nova abordagem metodológica, a tendência à 170 quantificação, à medida e à precisão tornou-se cada vez mais importante para a explicação dos fenômenos. Os estudos sobre a natureza do calor impulsionaram o retorno da idéia de descontinuidade do mundo material; o calor passou a ser considerado como manifestação do movimento atômico. Descartes e Boyle, entre outros, explicavam o calor e o frio a partir de uma única propriedade real, o movimento. A intensidade do frio ou calor estava relacionada com a extensão deste tipo de movimento. A idéia de que a matéria numa escala microscópica era corpuscular e composta de pequenas partículas, sustentava a hipótese de Newton sobre as propriedades dos gases. Ele demonstrou, na proposição 23 do livro II do “Principia”, que um gás era constituído de pequenas partículas que se repeliam umas em relação às outras, por uma força que aumentava na proporção que diminuía a distância entre elas (NYE, 1996, p.29). As evidências para esta suposição começaram a aparecer quando em 1738, Daniel Bernoulli (1700 – 1782) propôs a primeira teoria cinética dos gases. Este estudo teve um tratamento matemático satisfatório um século depois, quando James Clerk Maxwell (1831 – 1879) aplicou a teoria estatística adequada para explicar o movimento aleatório das partículas que formavam os gases (BARBEROUSSE, 1997; HARMAN, 1982). O desenvolvimento da teoria cinética dos gases transformaria a idéia de átomo num conceito teoricamente definido e capaz de articular fenômenos químicos com algumas áreas da Física como a termodinâmica e a mecânica. Newton aderiu à visão de que todos os fenômenos poderiam ser explicados com relação ao tamanho, forma, número e movimento das partículas que formavam os 171 corpos. Ele definiu os corpúsculos indivisíveis na questão trinta e um do seu livro Óptica, baseando-se em pressupostos teológico e teleológico: Consideradas todas essas coisas, parece-me provável que no princípio Deus formou a matéria em partículas sólidas, maciças, duras, impenetráveis, móveis, de tais tamanhos e formas, e com tais outras propriedades, e em tal proporção em relação ao espaço, como as que conduziriam mais ao fim para o qual Ele as formou; e que essas partículas sendo sólidas, são incomparavelmente mais duras do que quaisquer corpos porosos que delas se componham e mesmo tão duras a ponto de nunca se consumir ou partir-se em pedaços, pois nenhum poder ordinário é capaz de dividir o que o próprio Deus fez uno na primeira criação [...] (NEWTON, 1996, p. 290). A este pensamento fundamental da filosofia mecanicista Newton adicionou um outro importante fator, o poder ou força exercida por estes corpúsculos. Posteriormente ele postulou que a força que agia entre tais partículas variava inversamente com o quadrado da distância entre elas (NYE, 1996, p. 29). Segundo Purrington (1997, p.114), Newton mencionou a palavra átomo muito raramente em suas obras e pouco do seu trabalho dependeu do uso desta visão; no entanto, estudos sobre a constituição elementar das substâncias desenvolvidos posteriormente foram influenciados pela tradição newtoniana. Sobre esta influência disseminou-se a filosofia corpuscular, o que justifica a ligação entre Newton, Boyle e o atomismo no século XIX. Muitos químicos pesquisadores nos séculos XVIII e XIX admitiam a visão corpuscular da matéria defendida por Newton. O pensamento newtoniano, no entanto, não teve uma única recepção nas comunidades ou diferentes grupos científicos neste período, refletindo a existência de duas tradições distintas que estiveram presentes no desenvolvimento das ciências da natureza: a matemática e a experimental (KUHN, 1977, p.70). O primeiro tipo de tradição encontrava-se representado principalmente no grupo de ciências chamadas 172 clássicas formado pela Astronomia, Harmonia, Matemática, Óptica e a Estática. Estes campos se desenvolveram desde a antigüidade, utilizando-se de pouca observação refinada e em menor escala a experimentação. O segundo tipo de tradição começou a se desenvolver ao fim do período medieval com a elaboração de regras para o estabelecimento de conclusões sólidas a partir de observação e experimentação. Este novo movimento, tipicamente experimental, originou um gênero diferente de ciência empírica que conferia um novo papel e estatuto ao experimento. Estas ciências passaram a ser conhecidas como baconianas e desde a sua origem até o século XIX mantiveram-se separadas do grupo das ciências clássicas, conhecidas também como matemáticas. As ciências baconianas eram consideradas como “filosofia experimental”, tendo recebido na França o nome de “Physique Experimentale”. A Química, que sempre se destacou por sua tradição técnica fazia parte deste último grupo. Os programas de pesquisa desenvolvidos no século XVIII foram influenciados pelo pensamento newtoniano que se articulava com estas tradições. Newton compartilhava com Boyle algumas idéias sobre a composição das substâncias, imaginadas como contendo elementos químicos combinados em uma estrutura complexa e em cuja composição incluía partículas de diferentes formas, tamanhos e natureza e com o poder de exercer forças. Esta última sugestão, aliada à defesa da existência de um meio etéreo onde estariam mergulhados os corpúsculos, ocasionou muitas especulações e debates no século XVIII. Importantes cientistas como Antoine Laurent Lavoisier (1743 – 1794), Claude Louis Berthollet (1748 – 1822) e Pierre Simon de Laplace (1749 – 1827) foram influenciados pelas idéias de Newton que estabeleciam relação entre as propriedades 173 da matéria e a existência de partículas no seu interior, que interagiam através forças de atração e repulsão. Admitia-se ainda que, fluidos imponderáveis como o calórico, estariam também envolvidos neste processo. Nos séculos XVII e XVIII, o raciocínio científico admitia a formulação de hipóteses que deviam ser confirmadas pela experimentação. As concepções descontinuístas que envolviam átomos, moléculas ou corpúsculos encontraram dificuldades para se enquadrar na tradição “baconiana”. A interpretação dos fenômenos naturais através da filosofia mecanicista ainda era uma aproximação em função da impossibilidade de se chegar as “causas últimas”. Neste período tais explicações envolviam concepções filosóficas. Dois tipos de programas de pesquisa desenvolvidos no século XVIII tomaram como modelo as duas importantes obras de Newton: o “Principia” e a “Óptica”. Um grupo interessado numa Física mais geral, tendo o Princípia como modelo, estudava as propriedades universais dos corpos fazendo uso de uma metodologia mais abstrata e matematizada. Uma outra linha de investigação, a “Física Especial”, investigava as propriedades particulares dos corpos através de uma metodologia empírica, qualitativa e especulativa seguindo pressupostos contidos no livro “Óptica” (ABRANTES, 1998). Estas idéias influenciaram vários químicos, que tentaram quantificar as forças de afinidade visando trazer uma maior precisão para a Química e aproximá-la da Física e da Matemática. Na Química, este ponto de vista se manifestou nas teorias sobre as afinidades químicas e na Física, com a chamada “visão astronômica da natureza”4 que integrava o programa da Escola Laplaciana (ROCKE, 1984, p.2). 4 Esta foi a denominação dada pelo historiador Merz para as propostas da Societé d’Arcueil (grupo formado por Laplace, Berthollet e colaboradores) sobre a constituição da matéria. 174 Laplace se destacou por estabelecer uma conexão entre a “Física Geral” e a “Física Especial”5, criticando o caráter muito abstrato da primeira e tentando matematizar a segunda. O seu interesse pela Física Especial se acentua no período de 1805 a 1827 quando, sob a sua liderança se constituiu a Escola Laplaciana que reuniu jovens pesquisadores e ficou conhecida como Societé d’Arcueil (ABRANTES,1998). Entre os componentes desta escola estava Berthollet, que influenciado pelo trabalho de Lavoisier, desenvolveu uma teoria das afinidades químicas, tratando-as como uma manifestação de forças atrativas supostamente de natureza gravitacional que agiriam ao nível molecular. As teorias sobre as afinidades químicas foram muito importantes neste período, sendo utilizadas por importantes cientistas como Berthollet e François Etienne Geoffroy (1672 – 1731). Apesar da aceitação da visão corpuscular da matéria (apoiada na autoridade de Newton), o atomismo era um ponto de vista ainda pouco produtivo no século XVIII, porque poucas observações empíricas eram explicadas por esta teoria, que carecia de melhor estruturação. Uma exceção foi a teoria cinética de Daniel Bernoulli que explicou as propriedades dos gases usando a concepção atomista (PURRINGTON, 1997). A mais importante tentativa para desenvolver o atomismo químico antes do século XIX foi feita pelo químico irlandês William Higgins (1766-1825) em 1789. Este cientista publicou num livro pontos de vista favoráveis e contra a “teoria do flogisto”6. Ele retomou idéias atomistas para defender o seu pensamento, contrário a esta teoria. 5 Esta classificação feita por Abrantes (1998) baseia-se na diferença entre os objetos de investigação da Física. Teoria proposta por Georg E. Stahl(1660-1734) na segunda metade do século XVII, para explicar importantes fenômenos como: combustão, calcinação, respiração, fermentação, etc. 6 175 Especulando sobre combinações químicas, Higgins antecipou conceitos primitivos relacionados à valência, energia de ligação e a lei das proporções múltiplas. Ele utilizou muita especulação e pouca informação para propor seu sistema teórico antiflogista, não tendo utilizado ainda a idéia de ‘peso atômico’. Neste período a Química Analítica ainda era muito pouco desenvolvida e os conceitos de Higgins despertaram pouca atenção, não encontrando um ambiente favorável para prosperar (IHDE, 1984; LEICESTER; KLICKSTEIN, 1971). Na segunda metade do século XVIII, surgiram importantes evidências para o retorno de idéias atomistas: as primeiras leis que tentavam explicar quantitativamente as combinações químicas e os estudos de estequiometria química. A complexidade dos fenômenos químicos e o desenvolvimento de novas áreas de pesquisa, a exemplo da Química Orgânica, deram origem a um novo perfil de ciência dotada de certa autonomia e que necessitava de novos conceitos e explicações mais adequadas aos seus próprios problemas. Uma alternativa possível foi o atomismo daltoniano, que abandonou explicações envolvendo forças e afinidades e propôs um sistema de quantificação baseado nos pesos relativos dos átomos. John Dalton (1766-1844) se destacou por ter determinado pioneiramente estes pesos, consolidando a importante relação entre o conceito de átomo e o de elemento químico. Os pesos atômicos7 determinados por Dalton e a sua divulgação no meio científico ajudaram a química a adquirir um ‘status’ superior, de ciência exata. A cada elemento químico foi associado uma grandeza quantitativa que podia ser mensurada: o 7 Estamos usando o termo peso atômico que era usado na época, embora, atualmente, a IUPAC (International Union of Pure and Applied Chemistry) recomende para designar esta grandeza o nome massa atômica 176 peso relativo de seus átomos. Nas primeiras determinações e durante o século XIX , o peso atômico era um número relativo, um número que indicava uma relação de peso. Apenas com os trabalhos realizados pelos atomistas, no início do século XX, estes pesos relativos passaram a ser absolutos. 6.5 A possível origem do atomismo daltoniano A origem da hipótese atômica de Dalton é um episódio que tem demandado muita discussão pelos historiadores da Química, principalmente nas últimas décadas (ROSCOE; HARDEN, 1896 apud FERREIRA, 1987). As principais questões discutidas são: a influência dos estudos relativos à estequiometria8 química e dos trabalhos de Jeremias Benjamin Richter (1762 – 1807) e Joseph Louis Proust (1754 – 1826) na formulação desta hipótese e na seqüência das suas principais idéias. Embora várias versões tenham sido propostas, Nash (1956) considera que nenhuma delas é completamente satisfatória em função de três principais dificuldades: 1) o próprio Dalton apresentou três explicações mutuamente contraditórias para a origem da sua teoria, nenhuma delas totalmente coerente com informações disponíveis em fontes diferentes; 2) o seu principal trabalho que introduziu a teoria atômica sofreu alterações entre a apresentação pública e a publicação, para adaptá-lo a novos resultados empíricos obtidos; assim, a versão sobre a origem da sua teoria não pode se basear apenas na seqüência de suas idéias e das datas que aparecem nos documentos; 3) os registros obtidos das anotações de Dalton e dos seus trabalhos são 8 A palavra estequiometria vem do grego “stoicheion”, que significa elemento, e diz respeito à medição e cálculo das quantidades de elementos presentes nos compostos e reações químicas. 177 fragmentários; muitas datas estão ausentes e parte dos documentos foi destruída durante a Segunda Guerra Mundial. Alguns cientistas do século XIX, inclusive contemporâneos do próprio Dalton, divulgaram a versão que Dalton retomou à hipótese atômica após a realização de trabalhos experimentais envolvendo combinações químicas de gases, que os levaram também à descoberta da lei das proporções múltiplas, o que teria antecedido à sua teoria. Esta é considerada uma versão indutivista que admite que ele partiu dos resultados experimentais para chegar às generalizações teóricas. Este ponto de vista foi defendido, principalmente, no período onde o pensamento positivista era muito influente sobre os cientistas. De acordo com Rocke (1984, p.27): “ Essa versão estava totalmente de acordo com o então prevalecente ‘modelo vitoriano’ de ciência heróica.” Esta versão tem sido, contemporaneamente, discutida por alguns historiadores da ciência que a questionam (FERREIRA, 1987; GUERLAC, 1961; NASH, 1956; PARTINGTON, 1962; ROSCOE; HARDEN, 1986 apud FERREIRA, 1987; THACKRAY, 1966). Nash (1956) argumenta sobre a importância que teve o estudo sobre as solubilidades dos gases para a determinação dos pesos relativos dos átomos realizada por Dalton. Guerlac (1961) questiona a idéia que admitia que o trabalho de J. B. Richter não teria influenciado na formulação da hipótese atômica daltoniana. Partington (1962) tem escrito sobre o longo caminho que levou Dalton ao seu trabalho teórico, reconhecendo a sua complexidade e os inúmeros problemas envolvidos com a reconstrução histórica. Em um artigo onde se discute este assunto, Thackray (1966) apresenta argumentos que mostram que as dúvidas sobre a origem das idéias atomistas de 178 Dalton foram resolvidas, criticando a aceitação de uma visão empirista indutivista. Segundo este autor, a grande parte dos químicos que aceitava a tradição newtoniana já aceitava também a idéia que partículas químicas diferentes tinham pesos diferentes. Esta crença, que era partilhada por Dalton, bem como os seus estudos sobre a solubilidade de gases em água que estavam relacionados com o seu interesse no campo da meteorologia, o levaram a propor a sua primeira lei da mistura gasosa. Esta lei foi formulada em 1801 e antecedeu a sua teoria. Com a intenção de explicar as diferentes solubilidades dos diversos gases na água, Dalton intuitivamente retoma a hipótese atômica. A originalidade do seu trabalho decorreu do seu sistema para cálculo dos pesos atômicos relativos, fundamentado em idéias que ele claramente delineou e que davam sustentação à sua hipótese inicial. O aprimoramento de suas idéias aconteceu através da sua aproximação com o conhecimento empírico já existente sobre as medidas das quantidades relativas das substâncias que entravam em combinação, em especial, a lei dos equivalentes ou dos números proporcionais de Richter. Para Thacckray (1966), parece provável que Dalton tenha conhecido o trabalho de Richter somente em 1807 através do seu contato com Thomas Thomson (1773-1852), quando as suas idéias já estavam bem estabelecidas. Os primeiros cálculos de pesos atômicos realizados pela primeira vez na história da Química em 1803, tiveram a função de dar suporte a suas idéias teóricas sobre o comportamento físico dos gases (THACKRAY, 1966). Gradualmente, Dalton percebeu a grande importância destas idéias, embora, o seu trabalho incluindo a tabela de pesos atômicos na forma em que foi inicialmente publicada, não tenha despertado interesse de grande parte da comunidade química. O programa atômico de Dalton forneceu uma racionalidade para a lei da composição constante, explicando também a lei dos 179 equivalentes de Richter. A sua hipótese atômica teve como conseqüência os trabalhos realizados entre 1807-1808 que o levaram a propor a lei das proporções múltiplas, que foi dedutivamente prevista a partir das suas idéias teóricas. De acordo com Partington (1962), a primeira referência à hipótese atômica encontra-se no trabalho “Theory of absortion of gases by water” apresentado por Dalton em 21 de outubro de 1803 à Sociedade Literária e Filosófica (Literary and Philosophical Society). Neste trabalho aparece a sua tabela dos pesos atômicos relativos das “últimas partículas” dos corpos gasosos e outros elementos. A inovação proposta por Dalton e expressa nesta Tabela incorporava as leis de combinação química da matéria que, ao mesmo tempo que lhes fornecia a fundamentação empírica, eram racionalmente compreendidas. A novidade contida na sua proposta teórica a valorizava diante da comunidade científica. A formulação da hipótese atômica valorizou o uso de explicações racionais para os fenômenos químicos. Muitos cientistas da primeira metade do século XIX não partilhavam da crença na realidade dos átomos, mesmo utilizando teorias e um sistema conceitual que pressupunham a aceitação do conceito de átomo ou da teoria atômica de Dalton. Apesar de muitas resistências que se fizeram presentes ao longo deste século, grande parte dos progressos da Química dependeram direta ou indiretamente do atomismo ou a este foram agregados. 180 6.6 O atomismo daltoniano: iniciando um longo debate As idéias que levaram Dalton a propor a sua hipótese atômica foram interpretadas a partir de uma visão fortemente empiricista que foi largamente aceita no século XIX e ainda hoje é observada em alguns livros didáticos. Uma outra questão é o caminho indutivista proposto para o seu trabalho ou, uma interpretação puramente dedutiva da hipótese atômica, considerando-a originária de problemas de Química Analítica. Contrariamente, o “contexto da descoberta” de Dalton teve um percurso muito mais indireto e com forte contribuição da intuição. Neste episódio torna-se de grande importância distinguir entre a ‘ciência privada’, ou seja, como o cientista pensa o problema tentando resolvê-lo em sua própria mente e um outro aspecto da atividade científica, como as idéias são divulgadas, sendo aceitas ou rejeitadas pela comunidade científica, a ciência pública (ROCKE, 1984). Esta questão está relacionada com a distinção entre os dois contextos: da descoberta e da justificação ou justificativa, preocupação que teria sido sistematizada por Reichenbach, filósofo de orientação neo-positivista (LOSEE, 1998). A discussão apresentada por ele sobre esta questão teve como objetivo distinguir o “sistema do conhecimento” e os “métodos de aquisição de conhecimento”, tendo como pressuposto a dicotomização dos dois contextos. A crítica à separação entre os dois contextos e a não inclusão no âmbito filosófico do contexto da descoberta que aconteceu em meados do século XX, acompanhou as críticas ao empirismo lógico. Alguns autores, a exemplo de Kuhn, Lakatos, Feyerabend passaram a defender o envolvimento do contexto da descoberta no contexto da justificação. 181 Kuhn (1996) questionou a distinção entre o contexto da descoberta e da justificação, considerando de grande relevância para a Filosofia da Ciência os detalhes de como um avanço científico é obtido. Feyerabend (1985) é um dos filósofos da ciência que questionou posições ortodoxas assumidas em relação à distinção entre os dois contextos, reconhecendo o conflito que geralmente está presente entre a descoberta e a justificativa. Ao admitir a possibilidade de que os dois contextos sejam identificados, ele defende a possibilidade da articulação entre eles, atribuindo a mesma importância a ambos. A historiografia da ciência contemporânea reconhece a complexidade envolvida no contexto da descoberta científica e a possibilidade de interferência de fatores acientíficos e não racionais neste processo. A compreensão dos fatores psicológicos, sociológicos, culturais etc. que levam à proposição de uma teoria científica e dos procedimentos e negociações para a sua comprovação e validação são questões fundamentais no estudo de qualquer episódio da História da Ciência, adquirindo uma maior importância no estudo de controvérsias científicas. Os primeiros trabalhos de Dalton envolveram estudos da atmosfera, já que ele sempre demonstrou grande interesse por meteorologia e pela física do estado gasoso. Em 1793, ele publicou o trabalho “Meteorological Observations and Essays” e, na década seguinte, prosseguiu estudando misturas gasosas e absorção de gases em água; tais estudos o levaram a propor a “lei das pressões parciais dos gases” e antecederam a sua hipótese atômica. A teoria sobre mistura gasosa proposta por Dalton teve uma ampla divulgação e recebeu críticas de importantes químicos de diferentes países como: o escocês Thomas Thomson, o inglês William Henry (1774 – 1836) e o francês Claude L. Berthollet. 182 Para defender as suas idéias e aprimorá-las, Dalton retoma a hipótese atômica. Isto aconteceu através de dois caminhos: investigando métodos analíticos de determinação das proporções de combinação de gases para formar compostos e estendendo sua teoria para explicar a dissolução de gases na água (ROCKE, 1984). Dalton acreditava que a absorção de gases na água era um processo físico não envolvendo afinidade química e que dependia dos pesos relativos das partículas que formavam cada gás. No trabalho em que publica estas idéias, em novembro de 1805, a sua tabela de pesos atômicos relativos é apresentada oficialmente à comunidade científica. Por que a água não recebe um volume semelhante de cada tipo de gás? Considerei devidamente essa questão e, embora não seja capaz de me satisfazer completamente, estou quase persuadido de que essa circunstância depende do peso e do número das partículas últimas dos diversos gases: aqueles cujas partículas são mais leves e simples são os menos absorvíveis; os outros, mais, à medida em que aumentam de peso e de complexidade.9 Uma investigação sobre os pesos relativos das partículas últimas dos corpos é um assunto, até onde eu sei, inteiramente novo. Eu venho, ultimamente, empreendendo essa investigação com notável sucesso. O fundamento não pode aqui ser discutido neste trabalho, mas vou apenas anexar os resultados, até o ponto em que parecem verificados por meus experimentos:[...] (Tradução nossa) (DALTON, 1805 apud LEICESTER; KLICKSTEIN, 1952, p. 209) Para determinar os pesos atômicos ou das “últimas partículas”, de modo inovador, Dalton fez combinar os elementos cujos pesos queria determinar com um elemento de referência, o hidrogênio, escolhido como padrão, ao qual atribuiu como peso a unidade. A sua maior dificuldade foi ter que assumir arbitrariamente o número de átomos de cada elemento envolvido na combinação. Dalton utiliza o termo “última 9 Nesse ponto Dalton inseriu uma nota de rodapé onde afirmava que experimentos subseqüentes tornavam esta conjetura menos provável. 183 partícula” para se referir tanto aos átomos quanto as moléculas. Neste período, os termos partícula, corpúsculo ou mesmo molécula eram preferidos à palavra átomo. Ele adotou a “regra da simplicidade”, considerando que somente um átomo de cada elemento deveria participar da combinação. Quando existisse um único tipo de composto formado por dois elementos diferentes este seria binário. Esta regra, segundo Dalton, resultava de circunstâncias físicas, uma vez que, um menor número de átomos numa substância composta teria uma maior estabilidade mecânica. Qualquer outro composto que envolvesse os mesmos elementos combinados deveria ter proporções distintas 1:2 ou 1:3 ou outra, sempre envolvendo números inteiros e pequenos. Nye (1996) considera que embora alguns químicos modernos vejam Dalton como sucessor de Lavoisier, o seu trabalho está mais relacionado com as idéias de personagens do século XVII, a exemplo de Newton e Boyle. As explicações introduzidas por Dalton sobre o comportamento dos gases na atmosfera contrariavam algumas idéias de Lavoisier e da Escola Francesa sobre este assunto, que considerava que o vapor d’água e os gases nitrogênio e oxigênio encontravam-se combinados quimicamente na atmosfera. Apesar disto, Dalton adotou como ponto de partida para suas determinações quantitativas dos pesos atômicos, a tabela contendo trinta e três elementos que havia sido proposta por Lavoisier no seu Traité Élémentaire de Chimie (1789), aprimorando o conceito de elemento de Lavoisier e fornecendo-lhe uma base ontológica. Mesmo reconhecendo a influência da filosofia mecanicista newtoniana no pensamento de Dalton, Bensaude-Vincent e Stengers (1992) consideram que o átomo daltoniano não é um herdeiro dos átomos antigos, nem dos corpúsculos newtonianos; é 184 inventado e explorado noutro contexto. Os átomos daltonianos constituíam-se em unidades mínimas de combinação da matéria. Dalton imaginava que as “últimas partículas” possuíam forma esférica e pesos diferentes e que constituiriam a menor quantidade de uma substância que ainda preservava as suas propriedades. Cada átomo estaria arrodeado de uma atmosfera de calor formada de uma substância material fluida, extremamente rarefeita, capaz de penetrar ou escapar de todo e qualquer lugar do espaço, chamada “calórico”10. O calórico era fortemente atraído pela matéria e auto-repulsivo, no entanto, Dalton admitiu, por princípio, que somente átomos idênticos se repeliam. Em seu livro publicado em 1808, o seu ponto de vista sobre esta questão foi assim apresentado: “Cada átomo de ambos ou de todos os gases de uma mistura era o centro de repulsão para as partículas próximas do mesmo tipo, ignorando aquelas de outro tipo.” (DALTON, 1808 apud CONANT; NASH, 1957, p. 226). Para explicar o fato da atmosfera não se separar em camadas de diferentes composições químicas e densidades e visando explicar a independência das pressões de diferentes gases que compunham as misturas gasosas, Dalton abandona a idéia original de Lavoisier que admitia uma repulsão universal dos calóricos e postula que só haveria repulsão entre átomos de um mesmo elemento. Estas conjecturas justificariam a não estratificação dos gases e a independência das pressões gasosas11 (NYE, 1996). 10 Até a segunda metade do século XIX coexistiam duas teorias sobre a natureza do calor: a teoria do calórico e a idéia de calor como movimento das partículas constituintes da matéria. Dalton conhecia as duas teorias. 11 A independência das pressões dos componentes de uma mistura gasosa foi posteriormente generalizada constituindo a lei das pressões parciais de Dalton: a pressão total de uma mistura gasosa é igual a soma das pressões parciais dos seus constituintes. 185 Uma das grandes contribuições de Dalton à Química do século XIX foi o desenvolvimento de um novo simbolismo para representação dos átomos e de suas combinações. Os átomos daltonianos eram representados através de círculos, traços e pontos e para as substâncias compostas ele combinava símbolos usados para os átomos elementares. Para Nye (1996), a concepção de átomo de Dalton bem como a sua representação possuía elementos do seu senso comum e componentes de um realismo ingênuo. Antes mesmo de Dalton publicar em 1808 a primeira parte do seu importante livro “New System of Chemical Philosophy”, o escocês Thomas Thomson, influente professor em Glasgow, iniciou a divulgação dessas idéias através da terceira edição do seu importante livro, que foi traduzido rapidamente para o Francês como “Systéme de Chimie” tendo introduzido o atomismo daltoniano na França. As idéias de Dalton rapidamente se difundiram em revistas e livros científicos da época, suscitando algum acolhimento e também muitas críticas. O grande problema foi a sua ousadia ao penetrar na realidade dos constituintes elementares da matéria, quando introduziu o conceito de peso atômico e, além disto, utilizou regras arbitrárias para determinação destes pesos. Neste período vários estudos já aconteciam envolvendo a estequiometria química. Dalton tomou conhecimento da regra de Proust que sugeria que a combinação em peso dos elementos acontecia segundo proporções definidas. Para estabelecer as suas regras de combinação, ele levou em consideração o conhecimento já existente sobre as proporções de combinações químicas. 186 Análise química e síntese não vão além da separação de partículas umas das outras, e da sua reunião. Nem a criação ou destruição da matéria está ao alcance do agente químico[...]. Em toda a investigação química justamente tem sido considerado um importante objetivo para averiguação, os pesos relativos das unidades que constituem um composto. Mas, infelizmente, a investigação tem terminado aqui; entretanto a partir dos pesos relativos em massa, os pesos relativos das ‘últimas partículas’ ou átomos dos corpos podem ter sido inferidos, dos quais seu número e peso em vários outros compostos apareceriam, de forma a ajudar e guiar investigações futuras e a corrigir seus resultados [...]. (Tradução nossa) (DALTON,1808, p.123 apud MIERZECKI, 1991, p. 114 –5) A oposição da comunidade química à hipótese atômica de Dalton esteve também relacionada com a dificuldade de diferenciar adequadamente os conceitos de átomo e molécula, inclusive pelo próprio Dalton. 6.7 A hipótese de Avogadro: possibilitando a relação entre o atomismo daltoniano e a lei de Gay-Lussac Em 1808, o químico francês Louis Joseph Gay-Lussac (1778 – 1850) enunciou uma lei empírica sobre a relação dos volumes dos reagentes gasosos em uma reação química12. Esta lei foi publicada em 1809, e apresentada a “Sociedade de Arcueil” por Gay-Lussac, discípulo e amigo de Berthollet, uma vez que, ambos faziam parte desta sociedade: gases [. . .]combinam-se entre si em proporções muito simples, e a contração de volume que eles experimentam durante a combinação também segue uma lei regular. Compostos de substâncias gasosas umas com as outras são sempre formados nas razões mais simples (nas proporções mais simples) e de forma que quando um dos termos é representado pela unidade, o outro é 1 ou 2 ou no máximo 3 [...]. (Tradução nossa) (GAY LUSSAC, 1809 apud PARTINGTON, 1962, p.79) 12 Esta lei, conhecida como lei das combinações volumétricas de Gay-Lussac, é comumente formulada como: “os volumes de gases que reagem uns com os outros ou são produzidos em uma reação química estão relacionados entre si através de números inteiros e pequenos”. 187 Gay-Lussac não interpretou a sua lei usando as idéias atomistas já que ele e Dalton não compartilhavam das mesmas idéias. Ele foi um grande experimentalista com formação na École Polytechnique de Paris, tendo realizado grandes contribuições tanto para a ciência pura quanto para a tecnologia industrial. O seu trabalho enquadrava-se numa tradição empirista, comum no início do século XIX, que valorizava a medida de propriedades mensuráveis a exemplo de volumes e equivalentes e depreciava a aceitação de entidades não visíveis e hipotéticas como os átomos. No trecho que se segue Thomas Thomson referindo-se aos opositores da teoria atômica, deixa transparecer o comprometimento filosófico de alguns desses cientistas (Davy, Wollaston), reconhecendo, no entanto, a dificuldade de utilização do atomismo e das entidades hipotéticas na explicação de fatos e resultados experimentais: A única alteração que ele [Davy] fez foi substituir proporções pela palavra átomo de Dalton. Dr. Wollaston substituiu-a pelo termo equivalente. O objetivo destas substituições foi evitar todo o comprometimento teórico. De fato, estes termos: proporção, equivalente, são mais convenientes que o termo átomo; e a menos que adotemos as hipóteses que Dalton apresentou, principalmente que as últimas partículas dos corpos são átomos incapazes de divisões adicionais e que as combinações químicas consistem na união destes átomos uns com os outros, nós perdemos toda a nova luz que a teoria atômica lançou sobre a Química, trazendo nossas noções de volta à obscuridade dos dias de Bergman e de Berthollet (THOMSON, 1830 apud NIAZ, 2001, p.247). As divergências entre Dalton e Gay-Lussac revelam que o comprometimento de alguns cientistas com questões filosóficas, políticas, econômicas ou culturais podem interferir na postura científica adotada, dificultando até mesmo a aceitação de novos conhecimentos científicos. O trabalho de Gay-Lussac sobre a combinação gasosa serviu de base para que o químico italiano Amedeo Avogadro de Quarenga (1776 – 1856) formulasse em 1811, 188 duas importantes hipóteses. Partindo dos resultados experimentais de Gay-Lussac, ele questionou a possibilidade de interpretá-los usando a posição de Dalton sobre este assunto que relacionava o volume dos gases e o números de moléculas nele contido, em uma mesma condição de temperatura e pressão. Neste trabalho, Avogadro introduziu as suas próprias idéias sobre a constituição de moléculas. Ao escrever o seu texto original em francês, preferiu usar o termo molécula em lugar de átomo para discutir o seu ponto de vista. Os dois termos eram usados no início do século XIX, embora os significados atribuídos fossem diferentes dos atuais (BELLO; SÁNCHEZ; RAMÓN, 2003). Na sua hipótese mais conhecida, ele admitia que volumes iguais de gases diferentes nas mesmas condições de temperatura e pressão continham o mesmo número de moléculas: A primeira hipótese que se apresenta a esse respeito, e que parece mesmo a única admissível, é supor que o número de moléculas integrantes num gás qualquer, é sempre o mesmo a volumes iguais, ou é sempre proporcional aos volumes[...] (Tradução nossa) (AVOGADRO, 1811 apud LEICESTER; KLICKSTEIN, 1952, p. 232). Admitindo que as relações moleculares seriam iguais às relações de densidade gasosa correspondentes e que podiam ser medidas empiricamente, Avogadro tentou conciliar as idéias de Dalton e o trabalho de Gay-Lussac, não tendo sido bem sucedido neste seu empreendimento. A aceitação desta hipótese implicava na diferenciação entre os conceitos de átomo e molécula, o que se mostrou difícil de acontecer neste período. A hipótese “mesmo volume-mesmo número” foi proposta também de modo independente por André Marie Ampère (1775 – 1836) em 1814. Considerando esta hipótese, Avogadro propôs um método para “determinar facilmente as massas relativas das moléculas de substâncias que podiam passar para o 189 estado gasoso e o número relativo destas moléculas nas combinações”. Se volumes iguais de gases contêm igual número de partículas, a relação entre as densidades dos gases devia ser igual a relação entre as massas destas partículas. Avogadro usou esta sua hipótese para estimar o número de átomos que formavam os diferentes compostos. Aplicando as suas idéias no estudo de combinações químicas Avogadro encontrou resultados que contradiziam aqueles obtidos por Dalton, a partir da sua regra da máxima simplicidade. Ele questionou estas regras considerando-as “suposições arbitrárias” recomendando que estas fossem substituídas, através do uso do raciocínio fundamentado nas suas hipóteses. Complementando a sua idéia, numa segunda hipótese Avogadro sugeriu que substâncias simples pudessem ser formadas por moléculas poliatômicas. [...] Mas um meio de explicar fatos deste tipo, em conformidade com a nossa hipótese se apresenta de modo bastante natural. A saber, vamos supor que as moléculas constituintes13 de qualquer gás simples não são formadas de uma molécula elementar solitária, mas são feitas de um certo número dessas moléculas elementares, unidas por atração para formar uma molécula única. E mais, supomos também que, quando moléculas destas substâncias vão se combinar com moléculas de uma outra, para formar a molécula de um composto, a molécula integral que se deveria formar se quebra em duas ou mais partes... compostas da metade ou da quarta parte, etc...., do número de moléculas elementares que formavam a molécula constituinte da segunda substância. Assim sendo, o número de moléculas integrais do composto se torna o dobro ou o quádruplo, etc...do que seria, caso houvesse a quebra da molécula integral e passa a ser exatamente o número que é necessário para satisfazer o volume do gás resultante (Tradução nossa) (AVOGADRO, 1811, p.58 apud LEICESTER; KLICKSTEIN, 1952, p. 232). 13 O termo “molécula constituinte” foi usado por Avogadro para se referir às moléculas de substâncias elementares (simples) e “molécula integral” referia-se a molécula de uma substância composta. O termo “molécula elementar” era empregado para o átomo. 190 Esta segunda hipótese encontrou forte oposição, tanto de Dalton quanto de Berzélius, que imaginavam que átomos iguais se repeliam, o que tornava impossível a existência de partículas formadas pela combinação de átomos idênticos. A importância das hipóteses de Avogadro só foi reconhecida em 1860 (BENSAUDE-VINCENT, 1997). Caso este reconhecimento tivesse acontecido imediatamente após a sua formulação, a distinção entre os conceitos de átomo e molécula possivelmente teria acontecido anteriormente, antecipando a compreensão das implicações do atomismo. Uma das causas da dificuldade de acolhimento do trabalho de Dalton foi o seu não reconhecimento da importância e necessidade de articulação das suas idéias atomistas com as contribuições de Gay-Lussac e Avogadro. 6.8 O atomismo na Física e na Química: pontos de vista diferentes no século XIX Embora a Química e a Física sejam hoje campos do conhecimento muito próximos, no século XIX os interesses destas duas ciências eram, de certa forma, distintos e mais específicos. Estas diferenças podem ser identificadas, por exemplo, pelo modo como a teoria atômica clássica era usada neste período pelos físicos e químicos. A concepção de átomo que vigorava nas duas comunidades científicas não era única. Muitas discussões sobre as vantagens e desvantagens destas concepções foram travadas em vários encontros acontecidos no século XIX, a exemplo do Congresso Internacional de Karlsruhe em 1860 e encontros como da London Chemical Society em 191 1869, da Académie des Sciences de Paris em 1877 e o de Lubeck na Alemanha em 1895. Na Química, a idéia de átomo estava relacionada com a existência de elementos químicos que seriam compostos de partículas que não podiam mais ser decompostas. Edificada sobre bases empíricas (métodos químicos, analogias químicas, lei dos calores específicos, isomorfismo), a teoria atômica tinha aceitação entre os químicos devido a sua utilidade na determinação das fórmulas moleculares, possibilitando a representação e quantificação das transformações químicas (NYE, 1996). O átomo químico caracterizava-se por ter um único peso e grande parte da química prática quantitativa fazia uso dos pesos atômicos. O influente e respeitado químico Jöns Jacob Berzelius (1770 – 1848) usava a concepção atômica, tendo determinado pesos atômicos que tinham credibilidade no mundo científico. Ele considerava o átomo como uma entidade hipotética, visto que não era objeto de inspeção direta; no seu livro “Lehrbüch der Chemie” apresentou o seu ponto de vista reconhecendo o caráter hermético da hipótese atômica: Isto é apenas uma hipótese e provavelmente permanecerá assim; porém, ela segue elegantemente a partir dos fatos; e por outro lado, quando assumido ser fato, ela fornece direções para importantes conclusões, como uma teoria que é completamente provada. (Tradução nossa) (BERZELIUS, 1843 apud BUCHDAHL,1960). Em 1867, comentando sobre esta questão, outro importante químico August Kekulé (1829 – 1896) expõe o seu modo químico de pensar, fazendo distinção entre a menor porção da textura da matéria, o “átomo físico” e o “átomo químico” que, na função de unidade química devia ser considerado como muito necessário a esta ciência: 192 Eu não hesito em dizer que, de um ponto de vista filosófico, eu não acredito na existência real de átomos, tomando a palavra no seu significado literal de partículas indivisíveis de matéria. Eu prefiro esperar que nós possamos algum dia encontrar, para o que nós agora chamamos átomos, uma explicação mecânico-matemática para o peso atômico, a atomicidade e numerosas outras propriedades dos chamados átomos. Como químico, porém, eu recomendo a suposição de átomos, não apenas como recomendável, mas como absolutamente necessária à química. Eu irei até mais longe, e declaro minha crença de que átomos químicos existem, de modo que o termo seja compreendido para denotar aquelas partículas da matéria que não possam ser submetidas a divisões posteriores em metamorfoses químicas. Deverá o progresso da ciência levar à uma teoria da constituição de átomos químicos, importante tal como um conhecimento poderia ser para a filosofia geral da matéria, isto seria apenas uma pequena alteração na própria química. O átomo químico permanecerá sempre a unidade química (Tradução nossa) (KEKULÉ,1867 apud MIERZECKI, 1991, p.129). Alguns químicos contudo, apresentaram um comportamento controvertido sobre o atomismo como Jean Baptiste André Dumas (1800-1884), influente químico francês, que inicialmente aceitou as idéias de Dalton mas, posteriormente, passou a desconfiar da sua validade em função das dificuldades operacionais encontradas, quando passou a utilizar o atomismo daltoniano na interpretação dos seus resultados empíricos. No trecho a seguir extraído de uma publicação feita em 1836 ele manifesta o seu ponto de vista sobre esta teoria: O que nos resta da excursão ambiciosa que nos permitimos na região dos átomos? Nada ou pelo menos nada de necessário. O que nos resta é a convicção de que a química se perdeu aí, como sempre quando abandonando a experiência, quis caminhar sem guia através das trevas. Com a experiência à mão encontrareis os equivalentes de Wenzel, os equivalentes de Mitscherlich, mas procurareis em vão os átomos tal como a vossa imaginação os sonhou [...]. Se eu fosse o mestre, apagaria a palavra átomo da ciência, persuadido que ele vai mais longe que a experiência; e na química nunca devemos ir mais longe que a experiência. (Tradução nossa) (DUMAS, 1836 apud BENSAUDE-VINCENT; KOUNELIS, 1991, p.142). Usando a hipótese de Avogadro e assumindo a existência de espécies diatômicas, Dumas determinou as densidades do vapor de certas substâncias 193 elementares para calcular os seus pesos atômicos. Os resultados obtidos revelaram curiosas anomalias para o mercúrio, enxofre e fósforo14. Os pesos atômicos calculados não correspondiam aos valores obtidos por pesquisadores conceituados como Berzelius. As dificuldades encontradas levaram Dumas a pensar que era impossível determinar o número real de átomos envolvidos numa reação química. Ele passou a duvidar da existência do átomo como uma partícula real, aceitando apenas o seu caráter lógico, imaginando os átomos apenas como construtos hipotéticos. Segundo Buchdahl (1960), os questionamentos de Dumas sobre o atomismo químico se apresentavam no nível fenomenológico. O uso do termo átomo era muito mais perigoso do que os termos volume ou equivalente, em função de suas implicações teóricas não serem objeto de verificação empírica imediata ou não estarem de acordo com o corpo de conhecimento químico e físico que vigorava naquele período. Embora o átomo fizesse parte do discurso científico vigente, esta entidade encontrava dificuldade para adquirir o estatuto de realidade. Rocke (1978) considera que os conflitos sobre o atomismo principalmente na Química, não decorreram de divergências envolvendo aspectos científicos ou metafísicos da questão mas de dificuldades semânticas principalmente do fracasso em se definir precisamente certos termos. Durante as duas primeiras décadas do século XIX, os químicos tinham a sua disposição um certo número de princípios e regras para determinar os pesos atômicos mas, na linguagem da estequiometria química percebiase divergências relacionadas aos diferentes termos usados como: átomos, equivalente e proporções. 14 Hoje sabemos que estas espécies químicas são poliatômicas: P4, S6, Hg(n) 194 Na Física a idéia de átomo decorreu inicialmente da teoria dinâmica do calor que foi retomada e muito debatida na primeira metade do século XIX. Os átomos eram imaginados como partículas inelásticas ou pontos inerciais, submetidos a forças atrativas e repulsivas que agiam tanto dentro dos átomos como no meio entre as partículas. Esta estrutura discreta do mundo microscópico era utilizada para descrever outros fenômenos como a luz. Modelos mecânicos, considerando átomos como pontos, eram usados para descrever também o éter, um fluido imponderável que alguns cientistas presumiam que era também composto de tais corpos, átomos de éter. O atomismo na Física era uma hipótese que despertava grande oposição em virtude de se apoiar em suposições mecânicas sobre a natureza íntima das substâncias. Um outro impasse estava relacionado, como veremos posteriormente, a aspectos epistemológicos desta questão, debatida na comunidade científica sob forte influência de escolas de pensamento originadas na França, no século XVIII, mas ainda influentes no cenário científico do século XIX. Evidências que apontavam para uma identidade envolvendo os dois tipos de atomismo foram se acumulando durante o século XIX, levando a um conceito de átomo comum à Química e à Física. No entanto, a oposição ao atomismo que aconteceu neste período ignorava estas singularidades dos dois pontos de vista e o ataque ao atomismo físico por associação era estendido ao químico (ROCKE, 1984). 195 6.9 A física francesa no século XIX: questões epistemológicas subjacentes No início do século XIX, a física francesa era bastante respeitada em vários países; nomes como o de Laplace mereciam grande reverência e alta credibilidade. As idéias de grupos de cientistas franceses repercutiam em outros países europeus. Na França se desenvolveram dois tipos de propostas metodológicas de investigação científica que tiveram como questão central a explicação sobre constituição atômica da matéria (VIDEIRA, 1993). Uma primeira proposta era defendida pela escola laplaciana que teve como grandes representantes Laplace e Siméon Denis Poisson (1781-1840). Estes cientistas consideravam importante incorporar às teorias, hipóteses sobre a constituição dos átomos. Estas idéias incorporavam elementos que podiam ser enquadrados dentro de uma concepção realista e ficaram conhecidas como visão astronômica ou molecular da natureza porque procuravam aplicar aos fenômenos microscópicos a teoria da gravitação de Newton, que explicava precisamente fenômenos macroscópicos. Laplace e Poisson preocupavam-se com o vínculo entre a linguagem matemática utilizada nas teorias e a física subjacente, inclusive os mecanismos específicos dos fenômenos e os modelos mecânicos usados. A matemática era vista como um instrumento capaz de provocar o encadeamento dos fatos, não possuindo qualquer potencial heurístico (ABRANTES, 1998, p.168). Em relação a este assunto, no trecho a seguir extraído do seu Traité de Mécanique (1811), Poisson critica a teoria de Fourier explicitando o seu ponto de vista: 196 A aplicação da análise matemática a questões de Física é baseada, em cada caso, num certo número de leis obtidas a partir da observação ou, na sua ausência, em hipóteses que se deseja verificar. O cálculo matemático não tem nenhuma participação nessas suposições. Ele serve somente para desenvolver suas conseqüências na maior medida possível e, consequentemente, ele oferece o melhor método para comparar teorias com resultados experimentais, de todos os pontos de vista. (ARNOLD, 1983 apud ABRANTES, 1998, p.168). Outra escola francesa negava qualquer afirmação ou mesmo especulação sobre a realidade dos átomos, possíveis constituintes da matéria. Esta visão “fenomenológica” era defendida pelo matemático francês Jean Baptiste Joseph Fourier (1768-1830) e colaboradores, para quem os átomos ou as possíveis forças existentes entre eles não possuíam qualquer valor cognitivo, pois não eram passíveis de observação. A mecânica analítica ou racional do século XVIII era o modelo que inspirava este grupo de investigadores (VIDEIRA, 1993). Os adeptos destas idéias defendiam que o verdadeiro objetivo de uma teoria física era procurar reduzir os problemas físicos à análise matemática; não haveria necessidade, portanto, da formulação de hipóteses relativas à constituição dos corpos ou de modelos atômicos e mecânicos. Caberia a uma boa teoria científica descrever o que era sensorialmente observado; os conceitos teóricos seriam fictícios e teriam utilidade por facilitarem os cálculos matemáticos. O pensamento científico francês influenciou, também, um grupo de físicos britânicos que defendiam uma proposta diferenciada, uma vez que, recusavam a idéia de reduzir a física à análise matemática; faziam parte deste grupo cientistas como James Clerk Maxwell (1831-1879) e William Thomson (1824-1907). Eles defendiam o uso cauteloso de hipóteses moleculares e de modelos mecânicos, que deveriam ter um conteúdo físico obtido a partir da experiência. Sob este aspecto, as teorias físicas não 197 eram reproduções exatas dos fenômenos da natureza, mas representações destes fenômenos. Este pensamento admitia que as teorias deveriam ser compreendidas como instrumentos que permitissem aos cientistas fazerem relações e previsões sobre manifestações de fenômenos naturais observáveis. A determinação do estatuto de uma teoria científica e a redefinição de uma teoria física implicava na necessidade de se debater questões mais amplas como o conceito de teoria científica e seus objetivos, o meio que ela dispõe para alcançar seus objetivos, o papel das hipóteses e da experimentação, a separação entre ciência e metafísica (VIDEIRA,1997b). As divergências entre as comunidades científicas sobre o papel que a matemática deveria desempenhar na Física e sobre o verdadeiro papel das hipóteses, das teorias e dos modelos mecânicos eram preocupações manifestadas pelos físicos do século XIX. 6.10 Atomismo e Equivalentismo: convergências e divergências O “atomismo químico” começou a se concretizar em 1808 com a publicação da primeira edição da obra de Dalton: New System of Chemical Philosophy. De acordo com Brock (1992), neste livro de 916 páginas, apenas um capítulo contendo cinco páginas foi dedicado a esse tema que se tornou tão importante para a História. Em 1810, Dalton publicou a segunda parte desse livro que foi paginada como continuação do anterior e a terceira parte, preparada como um segundo volume só foi publicada em 198 1827. Mesmo assim, o seu projeto ficou incompleto, uma vez que, ele não publicou a parte final prometida que seria sobre “compostos complexos”15. Entre 1810 e 1814, as idéias de Dalton passaram a ser amplamente discutidas. Importantes químicos como Humpry B. Davy, Thomas Thomson, William H. Wollaston e Jöns J. Berzelius propuseram pesos atômicos alternativos aqueles que tinham sido determinados por Dalton. O atomismo químico fundamentava-se na idéia de que os corpos eram formados por um conjunto de átomos homogêneos; átomos de elementos diferentes possuíam massas distintas. A base conceitual do atomismo químico era a relação entre as leis de combinações químicas, os pesos atômicos relativos determinados e o esquema teórico utilizado para explicá-los. Na realidade, como não era possível se obter informações microscópicas sobre as características dos compostos químicos, a certeza sobre o número de átomos destes compostos não era ainda possível. Esta era uma questão central para o cálculo de pesos atômicos, portanto, os valores desses não podiam ser conhecidos com precisão. Uma importante lei de combinação química, conhecida como “Lei de Richter” é a das proporções equivalentes ou dos números proporcionais. Richter fez uso de quantidades equivalentes, embora nunca tenha usado este nome explicitamente. O título do seu trabalho “Stoichiometry” foi assim justificado por ele: Desde que a parte matemática da química diz respeito na maior parte a corpos elementos que não podem ser decompostos, e nos ensina como determinar relações quantitativas entre eles, eu não poderia inventar para esta disciplina ciência um nome mais conciso e apto que a palavra estequiométrico, proveniente 15 ou as da de O termo composto complexo passou a designar posteriormente, a partir do trabalho de Werner (1893), uma classe de compostos de coordenação. 199 ‘stocheion’, que em grego significa algo que não pode ser posteriormente dividido, na medida em que significa encontrar relações quantitativas (p. XXIX). Esta razão é baseada na seguinte observação: dois sais neutros que se decompõem um no outro formam combinações neutras novamente. A conclusão direta que eu derivei a partir disto não poderia ser outra a não ser aquela (que enuncia) que relações quantitativas definidas têm que existir entre as partes constituintes de sais neutros. (Tradução nossa) (RICHTER, 1792, p.3 apud MIERZECKI, 1991, p.106-7). A lei dos equivalentes pode ser expressa de forma simplificada como: “ o peso de dois elementos que reagem com um peso definido de um terceiro elemento, reagirão entre si de acordo com razões de números inteiros e pequenos. Para todas as reações químicas podem ser obtidos empiricamente valores numéricos dos pesos equivalentes que correspondem às proporções dos pesos de combinação relativos das substâncias envolvidas. Esta definição de equivalente de um elemento químico pressupõe três importantes características: são calculados empiricamente e obtidos diretamente dos dados analíticos; os pesos equivalentes dependem do composto analisado e a maioria dos elementos admite diferentes valores calculados para um mesmo elemento; os pesos equivalentes de um dado elemento podem ser numericamente iguais ao peso atômico ou a submúltiplos destes. O termo equivalente, que já havia sido introduzido no século XVIII por Henry Cavendish (1731-1810), foi retomado por J. B. Richter e popularizado por William Hyde Wollaston (1766-1828) em um importante artigo publicado em 1814, “A synoptic scale of chemical elements”. Ele usou este conceito de modo inovador propondo um único equivalente para cada elemento (ROCKE, 1984). As quantidades calculadas por Wollaston eram operacionalmente idênticas aos pesos atômicos e obtidas diretamente como pesos de combinações químicas ou pesos 200 proporcionais. Ele usou como padrão para os cálculos o elemento oxigênio que teve arbitrariamente atribuído ao seu peso equivalente o valor de cem. Diferentes elementos foram usados como padrão para estes cálculos por outros investigadores e o valor atribuído variava conforme o investigador. Em suas publicações iniciais Wollaston se mostrou fortemente atomista, no entanto, considerava que a teoria atômica de Dalton postulava entidades desnecessárias cujos pesos eram arbitrariamente obtidos e cujos arranjos eram inacessíveis. Lentamente, Wollaston percebeu que deveria distinguir entre os dados empíricos obtidos das leis de combinações químicas e os modelos que poderiam ser utilizados nas explicações destes dados (BROCK; KNIGHT, 1965). Os estudos realizados por Wollaston o levaram a se afastar do atomismo daltoniano e a propor a substituição dos pesos atômicos por pesos equivalentes nos cálculos químicos. O conceito de equivalente químico proposto exibia todas as características do peso atômico, a exemplo da invariância, do mesmo modo de determinação sob o ponto de vista operacional e da sua utilização para deduzir fórmulas e pesos moleculares. No entanto, existia uma diferença ontológica entre os dois tipos de pesos: atômicos de Dalton e os equivalentes de Wollaston. Dalton fez determinações de pesos a partir de fórmulas que embora tivessem sido propostas arbitrariamente eram consideradas como sendo muito prováveis. Wollaston, por outro lado, considerava as suas fórmulas como uma convenção, que obedecia a critérios de simplicidade e conveniência, mas que não implicavam em correspondência no âmbito da realidade molecular. 201 Rocke (1984) considera que estes dois pontos de vista representam posições de conflito entre realistas e convencionalistas no âmbito do atomismo químico. Este historiador considera que estes dois grupos tinham muito em comum já que definiram pesos invariantes para os elementos químicos, visando explicar os dados empíricos obtidos nas combinações. Outra idéia compartilhada era a crença na existência de unidades de construção da matéria e a utilização desta idéia para explicar a formação dos compostos; portanto ambos eram químicos que aceitavam uma visão corpuscular da matéria. Comentando sobre esta questão, Goodman (1969) registra a crítica feita por August Comte (1798-1857) sobre o trabalho de Wollaston publicado em 1814. Comte considerava que a troca de átomos para equivalentes implicava não mais do que em um mero artifício de linguagem, no entanto idéias corpuscularistas eram identificadas nos dois pontos de vista. “O químico deixava escapar uma análise perspicaz e sucumbia a uma substituição lingüística”(COMTE, 1842 apud GOODMAN, 1969, p.45), quando a hipótese atômica estava em questão. Na primeira metade do século XIX, os termos equivalente de Wollaston e peso atômico de Dalton foram usados muitas vezes como sinônimos. O importante químico Humphrey Davy (1778-1829) preferiu usar o termo “números proporcionais” e Berzelius usou o termo “volumes proporcionais” com a mesma significação dos outros dois. Através do trabalho de Wollaston que tinha maior prestígio acadêmico do que Dalton, Berzelius tomou conhecimento do atomismo daltoniano. Considerando as idéias atomistas, ele realizou inúmeras análises químicas tanto para determinar as massas atômicas de cada elemento quanto para obter valores para esta grandeza com maior exatidão. 202 Entre 1808 e 1860, os químicos utilizaram indiferentemente os termos átomos, equivalentes e proporções e discutiam, também, questões metafísicas relativas à divisibilidade da matéria. Os debates envolvendo atomistas e equivalentistas estiveram presente nos principais países da Europa. Este período é chamado por alguns historiadores da Química, a exemplo de Papp e Prelat (1950) de “intervalo equivalentista”, caracterizando-se pelo uso do peso equivalente ou equivalente químico como suporte experimental na interpretação quantitativa das reações químicas e na menor valorização dos pesos atômicos. Segundo Bensaude-Vincent e Stengers (1992, p.164), “o retrocesso sobre os equivalentes foi acompanhado de uma desconfiança em relação aos métodos físicos e de um abandono categórico das pretensões realistas na química”. Um encontro internacional parecia ser o local ideal para se tentar estabelecer um acordo sobre as divergências conceituais em questão. Assim foi programado um dos mais importantes encontros de químicos, o primeiro congresso internacional científico desta área. 6.11 O congresso de Karlsruhe e a procura de entendimento Este encontro aconteceu no mês de setembro de 1860 em Karlsruhe, Alemanha, com a presença de cento e vinte e nove químicos pertencentes a doze países. O principal objetivo era encontrar uma posição consensual de uma comunidade em expansão. As divergências entre atomistas e equivalentistas se agravou com o crescimento das investigações em Química Orgânica. As teorias usadas para explicar a formação de 203 compostos orgânicos admitia uma arquitetura molecular fixa, onde era possível a troca de um átomo por outro ou por um grupo de átomos, o radical. Apesar das dúvidas sobre a realidade dos átomos, alguns químicos orgânicos tentavam fazer representações dos compostos conferindo-lhes uma dimensão espacial e sugerindo sua realidade. Neste período, uma parte da comunidade dos químicos, em especial os orgânicos, já utilizava a notação baseada na hipótese de Avogadro que considerava possível a existência de moléculas formadas por átomos iguais. Esta possibilidade não estava de acordo com a teoria dualista desenvolvida por Berzelius que considerava que as combinações químicas aconteciam entre átomos ou grupos de átomos de naturezas e cargas opostas; os constituintes atômicos das moléculas eram mantidos juntos por forças de natureza elétrica (teoria dualista). As divergências teóricas também foram acompanhadas do uso de diferentes sistemas de medidas das massas, entre eles os pesos atômicos de Berzelius (C=12; O=16), o sistema francês de pesos atômicos (C=3, O=8) e o dos equivalentes adotados por Wollaston e Gmelin (C=6, O=8) (BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992). A confusão nos valores utilizados dos pesos atômicos ou equivalentes era acompanhada de divergências nas notações utilizadas para as fórmulas químicas e nas definições discordantes de vários termos da linguagem química. Um mesmo composto como o ácido acético podia ser escrito utilizando-se dezenove fórmulas químicas diferentes, o que não era surpreendente no contexto da época. Duas outras importantes questões foram colocadas para serem debatidas. Primeiro a diferença dos conceitos de átomo e molécula; este entendimento poderia esclarecer o fato das moléculas poderem se dividir em reações químicas. Outra questão 204 era a discussão sobre a necessidade de se buscar uma convergência entre o atomismo químico e o físico. A idéia do encontro partiu de August Kekulé que planejou trazer para serem debatidos importantes aspectos da química daquele período. Para realização do evento ele contou, em especial, com a ajuda do francês Charles Adolphe Wurtz (1817-1884) e do alemão Karl Weltzien professor da Escola Politécnica de Karlsruhe. Wurtz foi um dos grandes defensores do atomismo na França onde se opunha às idéias do influente Marcelin Pierre Eugène Berthelot (1827 – 1907) com o qual travou grandes debates. A ascendência de fatores políticos e sociais nos rumos da ciência é evidente neste episódio. Berthelot se destacou também como político tendo ocupado importantes cargos públicos a exemplo de Ministro da Instrução Pública, em 1886. A sua presença no governo possibilitou a sua ação no sentido de afastar os atomistas que ocupavam alguns postos importantes no meio governamental e a adoção da notação equivalentista na França, até mesmo no tempo em que os físicos já se ocupavam com a caracterização do elétron (PIGEARD, 1997). Em 1869, nas publicações da importante revista de divulgação científica “Le Bulletin” da Sociedade Química de Paris, registrava-se 25 estrangeiros e 23 franceses que utilizavam a notação equivalentista contra 191 estrangeiros e 22 franceses que utilizavam a notação atomista. Dos 22 atomistas, metade deles (onze) eram alunos de Wurtz (PIGEARD, 1997, p.64). Na circular que foi enviada aos congressistas foram delineados os principais objetivos deste encontro: 205 O grande desenvolvimento que teve a química nesses últimos anos e as divergências manifestadas nas opiniões teóricas, tornaram oportuno e útil a realização de um congresso, tendo como objetivo a discussão de algumas questões importantes do ponto de vista dos progressos futuros da ciência.Tal assembléia não saberia tomar résoluções ou déliberações obrigatórias para todos, mas, através de uma discussão livre e aprofundada, ela poderia acabar com certos mal-entendidos e facilitar um entendimento comum, a respeito de alguns dos seguintes pontos: Definição de noções químicas importantes, como as que são exprimidas pelas palavras: átomo, molécula, equivalente, atômico, básico. Exame da questão dos equivalentes e das fórmulas químicas. Estabelecimento de uma notação e de uma nomenclatura uniforme (Tradução nossa) (NYE, 1984, p.633-634). Durante o evento predominaram as rivalidades entre os congressistas de diferentes nacionalidades e a dificuldade de entendimento. Os químicos franceses adotaram uma atitude conservadora na defesa do equivalentismo e os químicos alemães mostraram-se mais abertos e progressistas. Bensaude-Vicent (1997) considera que o Congresso de Karlsruhe marcou a bifurcação da química alemã e da francesa que optaram por percursos teóricos diferenciados. A opção dos alemães pelo atomismo facilitou o desenvolvimento da química estrutural e dos estudos de estereoquímica, base da construção de um império industrial que se apoiou na exploração da arquitetura molecular dos compostos orgânicos. O uso da ciência pura e aplicada para a fabricação de artefatos, no desenvolvimento de técnicas mais elaboradas e na própria organização de atividades humanas consolidou a utilização da moderna tecnologia com base científica que se apoia em conhecimentos e instrumentos criados pela pesquisa. Esta maior aproximação entre ciência e tecnologia foi um dos importantes legados do século XIX; a interação entre o cientista e o industrial tornou-se cada vez mais evidente e planejada. A incorporação da ciência ao sistema produtivo foi um dos pilares de sustentação da revolução industrial, especialmente na sua segunda fase. 206 A participação do químico italiano Stanislao Cannizzarro (1826-1910) no encontro de Karlsruhe foi decisiva para que antigas dúvidas fossem resolvidas. Ao final do Congresso, distribuiu-se entre os participantes, um artigo de sua autoria “Sunto di um Corso di Filosofia Chimica”. Este artigo trazia esclarecimentos sobre a diferença entre os conceitos de átomo e molécula, tendo retomado as idéias de Avogadro necessárias para que esta distinção acontecesse. Um outro aspecto foi a sua defesa da importância do peso atômico como propriedade fundamental para os cálculos estequiométricos. Após este evento ainda aconteceram várias tentativas para se chegar a um acordo sobre a definição dos pesos atômicos e a sua notação; no entanto discussões ainda ocorreram, pois alguns ilustres anti-atomistas como Marcelin Berthelot, mesmo diante de evidências em favor da hipótese atômica, recusavam a existência de átomos e continuaram fazendo uso das fórmulas obtidas com base nos pesos equivalentes. Esta grande resistência foi responsável pelo fato da notação atomista ter encontrado dificuldades de ser aceita na França e incorporada ao ensino de química nesse país. Os átomos se fizeram presentes nos manuais escolares franceses a partir de 1894; no entanto até o ano de 1930, estes manuais ainda usavam a designação hipótese atômica e não teoria atômica (PIGEARD, 1997, p.65). Muitos livros apresentavam o átomo como um termo “cômodo” que possibilitava uma linguagem útil para exprimir diversos resultados experimentais, no entanto a existência dos átomos não era reconhecida. O atomismo continuou sendo uma importante questão que mobilizou outros importantes encontros envolvendo a comunidade de químicos e físicos ainda no século 207 XIX como o da Chemical Society de Londres em 1869, o da Academie des Sciences de Paris em 1889, o Encontro de Genève em 1892, a Conferência de Luebeck em 1895. Uma importante conseqüência do encontro de Karlshure foi a ascensão da teoria da valência, que levaria a uma transformação no conceito de equivalente químico. A descoberta de que os átomos tinham definidas e limitadas capacidades de combinação com outros átomos, parecia indicar que o poder de combinação estava de algum modo localizado em diferentes partes do átomo. Esta hipótese originou especulações sobre a possibilidade de uma estrutura interna subatômica contendo regiões onde se localizavam o poder e a força do átomo (ROCKE, 1984). A hipótese de átomos contendo agregações de subátomos monovalentes foi apresentada; esta concepção promoveu uma visualização conveniente da valência e da equivalência. A valência seria o número de subátomos em um átomo, sua atomicidade e o equivalente seria o peso de um subátomo (ROCKE, 1984). A definição de equivalente passou a ser “o peso atômico dividido pela valência”; uma forma utilizada pelos livros didáticos de química para apresentarem esta definição até recentemente. Outra importante conseqüência do Congresso de Karlsruhe (1860) foi a lei periódica dos elementos químicos. O próprio Dimitr Ivanovich Mendeleev (1834 – 1907) reconheceu que as duas definições de átomo e molécula, ‘votadas’ no primeiro dia do Congresso, foram as mensagens principais deste encontro que preparou o terreno da sua descoberta e proporcionou a sua principal conseqüência: a tabela periódica (BENSAUDE-VINCENT, 1997). Os congressistas não tinham a intenção de se pronunciar sobre a existência dos átomos ou das moléculas. O átomo era considerado uma hipótese indispensável para 208 se fazer a Química, no entanto, o seu “status” como uma entidade física nos compostos era considerada uma questão metafísica cuja discussão não era de interesse imediato. Em Karlsruhe não se observou um enfrentamento entre equivalentistas idealistas ou positivistas e atomistas realistas. Aceitava-se consensualmente que os átomos e as moléculas eram absolutamente necessários à Química, mesmo considerando-os como hipotéticos. Nesta ocasião, o objetivo dos químicos era se posicionar defendendo o seu ponto de vista que era diferente dos físicos. A reação contra o realismo ingênuo dos modelos mecânicos do átomo, uma atitude convencionalista ou instrumentalista viria a acontecer posteriormente (BENSAUDE-VINCENT, 1997). Em meados do século XIX, a Química já tinha adquirido uma identidade que a distinguia de outros campos experimentais, em parte devido à influência da teoria atômica de Dalton sobre as investigações químicas e da maior atenção dada à química orgânica e seus compostos. Conceitos químicos específicos, que se diferenciavam de conceitos usados em outras ciências físicas foram formulados. 6.12 O programa atomista: fomentando discussões epistemológicas A influência dos debates entre continuístas e atomistas esteve presente na História das Ciências Naturais, a Física e a Química desde a antigüidade grega. Nestes debates observa-se que os cientistas foram também motivados por princípios metafísicos, muito embora nem sempre os reconheça como tais. Tais princípios se manifestaram, por exemplo, na forma de certas hipóteses formuladas que muitas vezes não eram empiricamente testáveis. 209 A hipótese atômica foi uma das mais desafiadoras e importantes entre as que surgiram na história da humanidade. No século XIX, esta hipótese assumiu diferentes funções ou papéis, em um mesmo momento ou em ocasiões variadas, envolvendo diversas comunidades que a compartilhavam. Examinando esta questão no período correspondente à segunda metade do século XIX, Nye (1976) detectou os seguintes papéis para a hipótese atômica: um primeiro papel de hipótese heurística, que não tem uma existência verificável, mas capaz de sugerir novos experimentos, novas observações e informações que devem se articular com o seu programa de pesquisa. Neste papel ela foi meramente um instrumento ou ferramenta. No desenvolvimento da química orgânica este foi o principal papel desempenhado pela hipótese atômica. Uma segunda possibilidade é a hipótese funcionar como um dispositivo histórico ou pedagógico, ou seja, desempenhar um papel expositivo ou exemplar; neste caso a sua comprovação empírica não é particularmente importante. No século XIX, a hipótese atômica, principalmente para a comunidade química, assumiu este papel e estimulou pesquisas que visavam inclusive a sua contestação. A terceira opção é a hipótese assumir um papel realista, adquirindo uma importância existencial ou real e podendo ser verificada experimentalmente, seja de modo direto ou indireto. Este foi o mais importante papel que a hipótese atômica almejou no século XIX. No debate envolvendo o atomismo, muitas críticas foram colocadas quanto ao papel desempenhado pela hipótese atômica, considerada pelo importante físico Henri Poincaré (1854-1962) como uma hipótese indiferente, que não cabia ser validada nem invalidada (NYE, 1976). 210 No século XIX, existiam três alternativas disponíveis para substituir o programa atômico: o uso de conceitos decorrentes de uma abordagem homogênea e contínua da matéria como era feito na hidrodinâmica; o uso dos equivalentes e volumes proporcionais como uma alternativa quantitativa de uma Química pautada numa metodologia positivista e o estabelecimento de leis da Físico-Química fundamentadas na energia. Esta última alternativa se desenvolveu com grande sofisticação a partir de 1860 (NYE, 1976). As idéias de átomo e molécula eram necessárias tanto às teorias físicas quanto às químicas; não era possível, no entanto, medidas diretas de grandezas como: peso, comprimento e número de átomos em um certo volume. Esta dificuldade foi usada para justificar a não aceitação da realidade dos átomos pelos anti-atomistas. As informações possíveis de serem obtidas sobre os átomos e as moléculas eram relativas e baseadas em medidas estatísticas. O átomo ainda carecia de provas empíricas para adquirir uma maior credibilidade. 6.13 Alternativas ao atomismo na Física Na segunda metade do século XIX, a visão mecanicista de mundo esteve sobre ataque e o atomismo físico, como parte constitutiva da mecânica clássica também era muito criticado. Duas promissoras alternativas de investigação se apresentavam na Física para substituí-la. Uma delas fundamentava-se na Teoria Eletromagnética de Maxwell, que relacionava eletricidade, magnetismo e luz através de equações matemáticas. Dentro desta visão, alguns teóricos inferiam que a realidade física era constituída do éter eletromagnético e de partículas elétricas que podiam ser redutíveis 211 para as propriedades do éter. A concepção de éter da Física contribuiu muito mais para a divisão do que para a unificação dos problemas da Física e da Química (NYE, 1996, p. 50). A concepção dinamicista da matéria inerente à visão eletromagnética do mundo e as pesquisas que ela suscitou, influenciaram importantes cientistas como William Thomson (1824-1907), conhecido como Lord Kelvin, e a sua teoria dos “átomos turbilhões” que incluía um modelo de átomos “vórtex”. Este modelo baseava-se na idéia do engenheiro escocês William John Macquorn Rankine (1820 – 1872) que, em um trabalho publicado em 1850, delineou a sua concepção de átomo: Cada átomo da matéria consiste de um núcleo, ou ponto central, envolvido por uma atmosfera elástica que está retida na sua posição por forças atrativas, e a elasticidade devida ao calor surge da força centrífuga destas atmosferas, revolvendo ou oscilando ao redor de seus núcleos ou pontos centrais. (Tradução nossa) (RANKINE, 1850 apud LAIDLER, 1993, p.140). Em 1867, W. Thomson desenvolveu uma teoria baseada nos trabalhos de Helmholtz relativos aos movimentos em turbilhão nos fluidos homogêneos e incompressíveis e na dinâmica do éter; os átomos eram concebidos como um tipo especial de movimento rotatório (vortical modes) de um fluido primitivo e perfeito geralmente identificado com o éter homogêneo que preenchia todo o espaço; a matéria seria apenas o “modo de movimento”. O átomo resultante apresentava-se como uma espécie de turbilhão tubular formando um anel (SILLIMAN, 1963). Thomson reconhecia na sua teoria um aprofundamento da teoria cinética dos gases, capaz de explicar fenômenos relacionados com a elasticidade e a espectroscopia. Esta teoria foi desenvolvida posteriormente pela escola de físicos- 212 matemáticos britânicos que tentaram ampliá-la para explicar também problemas químicos como afinidade e dissociação. Os químicos, no entanto, não deram muita atenção a essa teoria, considerando-a muito especulativa. Em 1895, o programa “vortex” já estava em degenerescência tendo sido abandonado pela maioria dos físicos. A visão eletromagnética de mundo entrou em declínio no início do século XX com o surgimento de teorias competidoras mais eficazes (KRAGH, 1999). 6.14 O energeticismo Na segunda metade do século XIX, identificava-se duas principais orientações da corrente fenomenológica: o energeticismo e a fenomenologia de fundamento físicomatemático16. Ambas as orientações condenavam o emprego de hipóteses arbitrárias e de entidades não observáveis como impulsionadoras ou constituintes de teorias. Os fenomenologistas não admitiam que uma teoria física pretendesse explicar a realidade, o que implicaria em um desvelamento das essências e tal procedimento não poderia ser submetido ao controle da experiência (VIDEIRA, 1994, 1997b). Um importante representante da filosofia anti-mecanicista foi Ernst Mach (18381916), cujas idéias fundamentavam-se em princípios positivistas, muito difundidos neste período; nos países de língua germânica esta escola filosófica tornou-se conhecida como empiro-criticismo. 16 Videira atribui esta denominação a Boltzmann. Os termos fenomenologista e fenomenólogo são utilizados por este autor como sinônimos, neste trabalho, mesmo ele reconhecendo que a segunda denominação é comumente usada para identificar os adeptos da tese do filósofo E. Husserl. A minha opção foi pelo uso do termo fenomenologista. 213 Segundo Nye (1984), Mach que além de físico foi historiador e filósofo era um “fenomenologista”, cujas idéias exerceram grande influência tanto na geração de físicos mais jovens, incluindo Max Carl Ernst Planck (1858 – 1947) e Albert Einstein (1879 1955), como nos princípios que fundamentavam o positivismo lógico do Círculo de Viena. Na passagem do século XIX para o XX, Mach debatia sobre a possível realidade dos átomos com Planck defendendo a idéia de se considerar os átomos meramente como símbolos para representação dos fenômenos; a existência destas entidades como partículas que tivessem uma existência real não era admitida, uma atitude convencionalista (MATTHEWS, 1994). Uma segunda importante linha de investigação que se constituiu como alternativa ao atomismo foi o energeticismo ou energismo, fundamentado no conceito de energia e em alguns princípios. Este novo programa de pesquisa originou-se com o desenvolvimento da termodinâmica, considerada como uma teoria fundamental que não necessitava de explicações mecânicas e de apelo à existência de entidades não visualizadas. Esta visão ficou também conhecida como “A energética das transformações químicas” e foi parte de um movimento de reação de cientistas adeptos do neoromantismo contra o positivismo e sua influência na ciência. Os partidários deste movimento colocavam-se contra uma visão materialista do mundo e foram influenciados pela epistemologia idealista de Kant que na ciência originou uma série de idéias que ficaram conhecidas como “Naturphilosophie”. Esta denominação foi introduzida em 1799 pelo filósofo Friedrich Schelling que, sobre forte influência do movimento 214 romântico, defendia uma ontologia antimaterialista de forças ativas e polaridades, além de uma visão organicista e unificada da natureza. Embora o energeticismo apresentasse características progressistas, criticando o monopólio de uma visão mecânica do mundo e o uso de modelos mecânicos na Física, paradoxalmente possuía certas características de um movimento conservador, não aceitando a desafiadora hipótese atômica. Os energeticistas contestavam o uso de hipóteses especulativas na ciência ou, a crença na existência de forças que agiriam entre os átomos, mas que não eram possíveis de serem comprovadas experimentalmente. Um outro aspecto era a valorização da energia, ela regeria os fenômenos físicos e podia ser mensurada; os processos naturais eram considerados como transformações de energia. A energia representava a vitalidade e liberdade e a matéria, a inércia e o determinismo (NYE, 1996, p.111). Ostwald foi um importante representante do energeticismo na Alemanha, grande estudioso e pesquisador em Físico-Química que recebeu um prêmio Nobel em 1909. Durante a sua vida tornou-se gradativamente interessado na “Naturphilosophie”, escola filosófica que influenciou as suas idéias sobre a energia. O pensamento filosófico desta “escola” teve considerável influência sobre os fisicalistas newtonianos que defendiam a ênfase nas forças e nos mecanismos dinâmicos. O fisicalismo e a epistemologia dinamista ressurgiram com grande vigor na Europa com o surgimento da “Naturphilosophie” (ROCKE, 1984). O pensamento idealista defendia a unidade das forças da natureza e exaltava a “força viva” confrontando-se com as idéias do atomismo materialista e a visão mecanicista dos fenômenos e da natureza. Na Alemanha, onde existiam muitos 215 adeptos da “Naturphilosophie”, o atomismo físico era geralmente evitado e criticado por sua ênfase no materialismo, mas o atomismo químico era aceito com entusiasmo por grande parte dos químicos. Alguns cientistas foram influenciados por estas idéias e apresentavam uma inclinação dinamicista como H. Davy e Michael Faraday (1791 – 1867). A ciência empírica era menosprezada por não ir além da mera observação; evidenciando-se uma visão anti-mecanicista da natureza. Os fenômenos naturais estariam interligados e poderiam ser correlacionados por uma lei fundamental, a ser descoberta pelo próprio intelecto. O conceito de energia poderia articular vários fenômenos observados e justificar tudo o que antes era explicado por outros conceitos como o de matéria e o de força. Só a energia se encontra sem exceção em todos os fenômenos naturais conhecidos ou, em outras palavras, todos os fenômenos naturais podem classificar-se no conceito de energia. Assim, este conceito é adequado, sobretudo, para constituir a solução completa do problema encerrado no conceito de substância e não completamente resolvido pelo conceito de matéria (OSTWALD,1902). O grande interesse de Ostwald era aplicar a termodinâmica à Química e reinterpretá-la, tomando como base o conceito de energia. Segundo Holt (1970, p.387) “ para Ostwald, moléculas, átomos e íons eram somente ficções matemáticas para explicar as operações de energia”. Suas idéias deram sustentação ao debate travado entre energeticistas e atomistas que tinha também uma natureza epistemológica. A divergência decorria das diferentes interpretações sobre o papel de uma teoria física e da própria ciência. Os argumentos de natureza epistemológica e ontológica que foram 216 usados pelos energeticistas tiveram uma maior importância entre estes cientistas do que aqueles considerados como científicos. Os energeticistas Wilhelm Ostwald (1853 – 1932), Georg Helm (1851-1923) e o francês Pierre Duhem (1861 – 1916) consideravam que cabia à ciência a descrição dos fatos e do que era sensorialmente observado. Para o outro grupo de atomistas como o austríaco Ludwig Boltzmann (1844 – 1906) e o francês Jean Baptiste Perrin (1870 – 1942), o principal era conseguir ultrapassar a aparência do que era observado fazendo uso do pensamento teórico, “explicar o visível complicado pelo invisível simples” (PERRIN, 1913 apud BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 2001, p.298). Ostwald apresentou as suas principais idéias no artigo “La Déroute de L’atomisme Contemporain” publicado numa importante revista francesa (OLIVEIRA, 1993). Ele defendia a supremacia da energia, que podia ser verificada empiricamente em lugar de uma interpretação mecânica e corpuscular da natureza, sujeita a hipóteses não comprovadas e a modelos. Apresentou ainda críticas ao conceito de massa e matéria, ao conceito de força e de irreversibilidade. Em 1904, durante uma conferência em Londres (Faraday Lecture), Ostwald defendeu o seu ponto de vista: É possível deduzir a partir dos princípios da dinâmica química todas as leis estequiométricas. [...]. O que nós chamamos matéria é apenas um complexo de energias que nós encontramos juntas no mesmo lugar. Nós estamos ainda perfeitamente livres, se nós quisermos, supor ou que a energia preenche o espaço homogeneamente, ou de uma forma periódica ou granulada; a última suposição seria substituída pela hipótese atômica. A decisão entre estas possibilidades é uma questão puramente experimental. Evidentemente existe um grande número de fatos – e eu incluo os fatos químicos entre eles – que podem ser completamente descritos por uma distribuição homogênea ou não periódica de energia no espaço. Se existem fatos que não podem ser descritos sem a suposição periódica, eu não ouso decidir pelo desejo do conhecimento; eu apenas me limito a dizer que não conheço nenhum. (Tradução nossa) (OSTWALD,1904 apud MIERZECKI, 1991, p.147). 217 A massa era considerada como um conceito pobre para ser usado na representação de todos os fenômenos apesar da sua articulação com outros conceitos importantes. A energia seria a invariante geral governando todas as forças físicas e a energética seria uma teoria superior porque não dependia de hipóteses especulativas. A idéia de conceitos unificadores também estava relacionada com a influência sobre alguns cientistas do positivismo comtiano. Esta corrente filosófica defendia a importância de uma ciência unificada e a necessidade de uma metodologia empírica e não metafísica para estabelecer o verdadeiro conhecimento das coisas e dos processos. As críticas ao atomismo consideravam que os átomos não eram capazes de se constituir em um tema unificador para todas as ciências, ao passo que a energia era um conceito comum a todos os fenômenos. Ė necessário dizer que, a ausência de hipótese fornece à energética uma unidade do método desconhecida, até o presente: unidade que não é menos importante para o ensino e a inteligência da ciência do que ela é do ponto de vista filosófico. Para dar um só exemplo, todas as equações que ligam um ao outro, dois ou vários fenômenos de espécies diferentes, são, necessariamente, equações entre quantidades de energia; não poderia haver outras porque, fora o tempo e o espaço, a energia é única grandeza comum a todas as ordens de fenômenos. (Tradução nossa) (OSTWALD, 1895 apud BENSAUDE-VINCENT; KOUNELIS, 1991, p.221). Segundo os energeticistas uma vantagem da termodinâmica sobre o atomismo era a sua fundamentação empírica manifestada nas medidas de perda e ganho de calor. Mach considerava que medidas do calor de combustão davam uma idéia muito mais clara da estabilidade química do que a representação pictórica de moléculas em interações químicas. O energeticismo, assim como o atomismo era considerado apenas como uma estrutura auxiliar para caracterizar a matéria (HOLT, 1970). 218 Alguns anti-atomistas como Ostwald e Berthelot reconheciam a “termodinâmica empírica ou fenomenológica” como um instrumento promissor para o desenvolvimento de leis fundamentais da dinâmica química, tornando desnecessário as explicações baseadas no atomismo (NYE, 1984, p.xxii). Um outro aspecto do conflito localizava-se no plano ideológico, envolvendo a possibilidade da falência da ciência. Os energeticistas defendiam um poder limitado das teorias científicas; o método físico-matemático poderia ser o caminho para livrar a ciência de imagens e hipóteses. Os atomistas defendiam o uso da ciência para se chegar ao conhecimento da natureza, identificando-se mais com uma concepção realista (VIDEIRA, 1993). Antiatomistas como o austríaco E. Mach e o americano J.B. Stallo consideravam que o conceito de átomo não era adequado para ensinar ou demonstrar o conhecimento científico. O caráter expositivo da hipótese atômica era o foco deste debate; esta era uma preocupação que ecoava também na América, como pode ser visto no trecho abaixo escrito pelo cientista Stallo. [...] o átomo pode não ser um cubo ou esferóide ‘oblato’ para propósitos físicos, e uma esfera para propósitos químicos. E um grupo de átomos constantes pode não ser um agregado de massas estendidas e absolutamente inertes e impenetráveis ou repelidas, e um sistema de meros centros de força como parte de um imã ou de uma Clamond batter... Se a física como uma ciência [sic] não está para cair em ulterior descrédito, é hora de evocar alguma ordem a partir da confusão que prevalece entre os primeiros princípios, teorias e definições da física teórica. (Tradução nossa) (STALLO, 1960 apud NYE, 1984,p.xxv). 219 6.15 A emergência da Físico-Química Em alguns livros de História da Ciência (IHDE, 1984; LAIDLER, 1993) certos acontecimentos que ocorreram no ano de 1887 são relacionados com o estabelecimento da Físico-Química. O lançamento da revista “Zeitschrift für Physikalische Chemie”, considerado o primeiro jornal dedicado exclusivamente a publicações deste assunto; a edição do primeiro volume do livro “Zeitschrift”, de Svante A. Arrhenius (1859-1927) contendo o seu polêmico trabalho da dissociação eletrolítica e o importante artigo de Jacobus H. van’t Hoff (1852-1911) sobre a termodinâmica de soluções que lhe conferiu um Prêmio Nobel. Ao lado de Arrhenius e van’t Hoff, Ostwald contribuiu para o reconhecimento da Físico-Química como uma nova sub-área da Química tendo sido considerado além do seu fundador, o seu mais importante organizador e divulgador. O reconhecimento da Físico-Química como um campo independente foi conseqüência da mudança de atitude detectada neste período, em relação às investigações neste campo, que já alcançava uma certa maturidade. A publicação de um jornal específico da área: Zeitschrift für physikalische Chemie, permitiu a comunicação entre fisico-químicos de vários países e a consolidação deste campo de investigação. A possibilidade que a definição da Físico-Química pudesse ter sido motivada também pelas disputas entre atomistas e anti-atomistas é uma conjectura que estamos levantando e que necessitaria de uma investigação posterior. O grande interesse manifestado por alguns cientistas em demarcar de modo autônomo esta sub-área de 220 estudo, poderia estar relacionado com as divergências que envolveram atomistas e anti-atomistas neste período. Comentando sobre o surgimento do energeticismo Bensaude-Vincent e Stengers (1992, p.294) assim escreveram: “Ao programa de uma ciência da arquitetura da matéria, Duhem e Ostwald opõem um contra-programa de uma “energética” das transformações químicas”. O energeticismo que se constitui na última década do século XIX, pode ter desempenhado um papel heurístico impulsionador do surgimento de programas de pesquisa capazes de ampliar e aprimorar os conhecimentos neste campo emergente. De acordo com Brock (1992, p.336), o programa da “Química-Física ou FísicoQuímica” encontrou forte oposição inicialmente. Na Alemanha, esta hostilidade estava relacionada com as pretensões de Ostwald em conferir um lugar de destaque a esta nova “sub-área” da Química, o que representava uma grande ameaça ao poder e prestígio dos químicos orgânicos neste país. As discussões envolveram químicos de várias nacionalidades a exemplo de Henry Armstrong (1848-1937) um químico orgânico inglês, reputado membro da Sociedade Química de Londres que muitas vezes atacou Ostwald, Arrhenius e van’t Hoff , como pode ser visto a seguir: O caso é que desde a intrusão da doutrina de Arrhenius se tem produzido uma cisão da química nas escolas ou, melhor dizendo, se tem agregado um novo tipo de trabalhador nesta profissão: gente sem conhecimento das técnicas de laboratório e com domínio matemático suficiente para deixar-se levar por maus-caminhos, por coincidências sinuosas; pessoas sem capacidade alguma de crítica, e menos ainda para formular uma interpretação química. O caso é que os físico-químicos não usam nunca seus olhos e, o que é mais lamentável, carecem de cultura química. É essencial arrancar a raiz deste elemento físico e regressar aos nossos laboratórios. (Tradução nossa) (ARMSTRONG, 1936 apud BROCK, 1992, p. 337). 221 Armstrong manifestou-se publicamente muitas vezes contra a “escola dos físicoquímicos” e a sua oposição envolvia aspectos sociais e filosóficos e não puramente científicos. Um aprofundamento na investigação desta questão poderia esclarecer se as ações desenvolvidas na tentativa de delimitação de territórios poderiam ter contribuído para a demarcação da Físico-Química neste período. Alguns historiadores da ciência reconhecem que a distinção entre a Física e a Química, sob alguns aspectos, não é tão nítida e tem sofrido variações com o passar dos anos. Laidler (1993, p.5) considera que, atualmente a Físico-Química não pode ser precisamente definida. Esta distinção tem acontecido mais no âmbito da conveniência administrativa. Comentando sobre o desenvolvimento da Físico-Química em uma palestra proferida na Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade de São Paulo, o importante químico brasileiro Simão Mathias apresentou o seguinte comentário sobre esta questão: É difícil imaginar uma linha divisória entre a Matemática e a Física. É impossível fazê-lo no caso da Física e da Química. A divisão entre estes dois ramos da ciência é necessariamente artificial e arbitrária e tem variado com o desenvolvimento histórico de ambos. Um exame deste desenvolvimento, a partir da época de Dalton, revela que estas duas ciências se tem influenciado mutuamente e que a linha divisória, hoje vagamente perceptível é frequentemente cruzada de ambos os lados (MATHIAS, 1957). A Físico-Química tem se expandido e se misturado, ou mesmo fundido com outras disciplinas científicas, levando alguns pesquisadores a questionar sua separação como uma disciplina autônoma. Este ponto de vista foi expresso por Gilbert N. Lewis (1875-1946) no trecho a seguir, escrito nas primeiras décadas do século XX; muito embora sua opinião sobre este assunto tenha se modificado posteriormente: 222 O fato é que a físico-química não mais existe. Os homens que têm sido chamados físico-químicos têm desenvolvido um grande número de métodos úteis..., e como as aplicações desses métodos se tornaram mais numerosas, fica cada vez mais difícil aderir à nossa velha classificação. (Tradução nossa) (LEWIS, 192_ apud LAIDLER, 1993, p.6). 6.16 Energeticistas x atomistas: debatendo sobre o atomismo Um importante debate entre atomismo e energeticismo foi travado no Encontro de Lubeck em 1895, através de críticas feitas pelo atomista Boltzmann aos antiatomistas Ostwald e Mach. Os energeticistas foram acusados de dogmáticos por pretenderem chegar à realidade última da natureza defendendo a energia como categoria fundamental e definitiva. Para fundamentar as suas críticas Boltzmann apoiava-se em dois argumentos: a defesa da mecânica como uma ciência distinta e que não tinha pretensões de desencantar a natureza e a provisoriedade das teorias científicas e da visão de mundo subjacente a elas (RODRÍGUEZ, 1986). O grande interesse de Boltzmann era encontrar explicação para a aparente homogeneidade da matéria percebida a nível macroscópico e a sua descontinuidade interna a nível microscópico. Seus estudos sobre a teoria cinética e a termodinâmica foram fundamentais para ajudá-lo na compreensão destas questões. Entre suas principais preocupações no campo científico estavam a defesa do atomismo, da concepção das teorias científicas como uma imagem da realidade e a defesa de uma visão mecanicista da natureza. As pesquisas de Boltzmann levaram-no a propor explicações baseadas em leis mecânicas aplicadas ao domínio microscópico das moléculas, para explicar fenômenos macroscópicos relacionados ao calor. Uma outra importante contribuição foi sua 223 descrição mecânica do segundo princípio da termodinâmica. Ele introduziu uma explicação probabilística da entropia, que apresentava uma conciliação da segunda lei da termodinâmica com a reversibilidade das leis da mecânica. O trabalho de Boltzmann teria reconduzido a termodinâmica à mecânica, eliminando a contradição entre processos mecânicos reversíveis e processos termodinâmicos irreversíveis através da relação entre a entropia de um sistema (S) e o seu estado de probabilidade (W). Os estudos de Boltzmann apresentaram um tratamento mecânico original que contribuiu para o aparecimento de uma nova tradição de pesquisa, a mecânica estatística. Esta nova área de estudo tem a mecânica como teoria fundamental e apoiase na hipótese atômico/molecular que, neste período, encontrava oposição na comunidade científica dos físicos. As explicações de natureza estatística introduzidas na Física gerou problemas; a possibilidade de se contestar as certezas e trabalhar no campo das probabilidades parecia ser um fato ameaçador que chocava muitos contemporâneos de Boltzmann (BARBEROUSSE, 1997). De acordo com Brush (1968 apud ODÓN, 1986), concepções atomísticas diferentes influenciaram Boltzmann durante o seu processo de formação. Existia um atomismo primitivo que dominava os livros textos em período anterior a 1860, explicando diferentes fenômenos como eletricidade, calor, magnetismo, gravidade em função de classes de átomos; átomos de éter e átomos de matéria. Um segundo tipo era o atomismo dos seus mestres da Universidade de Viena, que admitia a realidade dos átomos. Este ponto de vista foi muito criticado pelos “fenomenologistas” e parece não ter sido defendido por Boltzmann. Existiu ainda um terceiro tipo de atomismo compartilhado pelo grupo anglo-saxão formado por Maxwell, Faraday, William Thomson incluído nas teorias do dinamismo físico. Este último ponto de vista parece ter sido o 224 que mais influenciou o trabalho de Boltzmann, uma vez que admitia a possibilidade das hipóteses serem modificadas de acordo com os resultados experimentais. O atomismo desempenhou no trabalho de Boltzmann um papel heurístico, inspirando a sua enorme criatividade e metodológico, fundamentando hipóteses úteis para a construção de novas teorias e conceitos. Ele defendeu a impossibilidade de construção de uma ciência sem imagens porque as próprias teorias científicas seriam imagens da realidade. O papel das imagens na construção do conhecimento científico foi um ponto de grande polêmica entre Boltzmann e Mach. Este último considerava a teoria como uma tradução da experiência, e demonstrando um empirismo exacerbado não aceitava a hipótese atômica. Boltzmann, ao contrário, defendia uma maior liberdade de pensamento e do uso da criatividade, o que possibilitaria a capacidade heurística da atividade científica. Apesar dos novos argumentos utilizados por Boltzmann, fundamentados na mecânica estatística, a hipótese atômica não encontrou de imediato a unanimidade desejada. No ataque de Ostwald contra o atomismo e o mecanicismo foram usados uma mistura de argumentos pertencentes a diferentes níveis de uma teoria: epistemológico, ontológico e científico; esta confusão se manifestava inclusive no seu discurso científico (VIDEIRA, 1994). No fim do século XIX a posição de Ostwald sobre o atomismo já era considerada obsoleta entre a maioria dos físicos e químicos. Cientistas e filósofos não aceitavam a idéia do conceito de matéria ser subordinado ao conceito de energia. No entanto, dois aspectos da “energética” defendidos por Ostwald têm resistido ao tempo, constituindo-se em importante legado à ciência: a sua formulação da segunda lei da 225 Termodinâmica como a impossibilidade do “moto perpétuo” do segundo tipo, e a sua insistência sobre a necessidade de se empregar a energia livre (função de Gibbs e Helmholtz), em vez do calor de reação, como um critério para a previsibilidade da espontaneidade química e da medida da posição de equilíbrio de reações químicas (GILLISPIE, 1980). 6.17 A constante de Avogadro A realidade dos átomos esteve em debate ao longo de todo o século XIX. Em grande parte, a resistência à consideração dos átomos e moléculas como reais estava relacionada com a impossibilidade de observação direta e a inexistência de meios que permitissem esta observação, mesmo indireta. A concepção espacial de átomos e moléculas tornou-se cada vez mais importante com o desenvolvimento da química orgânica. O uso de diferentes teorias e conceitos como: radicais, tipos, substituição, levaram à teoria da valência e à representação gráfica das ligações químicas. Representações bidimensionais foram propostas para explicar compostos orgânicos alifáticos e aromáticos; outras representações mais sofisticadas em três dimensões passaram a ser usadas para justificar certos fenômenos como a isomeria óptica. Todos estes avanços, no entanto, não foram considerados como provas suficientes para a hipótese atômica, que continuava sendo debatida nos encontros científicos. A aceitação da existência dos átomos aconteceu, principalmente, a partir de duas importantes contribuições: os trabalhos feitos no início do século XX por Jean Perrin, que levaram à determinação mais precisa da constante de Avogadro (NA) e os 226 estudos envolvendo a ionização de gases em tubos de descargas realizados por Joseph John Thomson (1856-1940), que culminaram com a descoberta do elétron, levantando a possibilidade de um átomo divisível. No primeiro caso, os estudos teóricos e empíricos envolvendo a teoria cinética/molecular e o movimento browniano foram fundamentais. No segundo caso, a revolução industrial acontecida no século XIX, os avanços tecnológicos e os novos instrumentos desenvolvidos a partir das pesquisas envolvendo a eletricidade (espectrômetros, tubos de descarga de gases) contribuíram para que experimentos cruciais acontecessem e permitissem o aprofundamento das investigações desta desafiante partícula: o átomo. No século XX, uma maior aproximação da ciência e da técnica e um aumento na sofisticação dos instrumentos tecnológicos produzidos possibilitaram o desenvolvimento de três importantes técnicas de microscopia capazes de fornecer resolução em escala atômica: a Microscopia Iônica de Campo, a Microscopia Eletrônica de Alta Resolução e a Microscopia de Tunelamento e Varredura. As imagens obtidas através destas técnicas evidenciam a presença dos átomos individualmente legitimando a frase que é hoje comumente formulada, tanto no meio científico ou jornalístico especializado, de que “é possível ‘ver’ os átomos” (CASTILHO, 2003). 6.18 O trabalho de Jean Perrin e a aceitação da realidade atômica Jean Perrin foi um importante professor de Físico-Química na Faculdade de Ciências da Universidade de Paris que percebeu a importância de se encontrar evidências experimentais que tivessem credibilidade nos meios científicos sobre a 227 realidade dos átomos e moléculas. Ele assumiu como principal objetivo definir, usando procedimento empírico confiável, o valor de NA (constante de Avogadro) que aparecia em vários estudos cinéticos, mas que não possuía um valor consensualmente aceito. Propostas para o valor desta grandeza já haviam sido feitas por Joseph Loschmidt (1821-1895), Rudolf Clausius (1822-1888) e Johannes Diderick van der Waals (18371923) que obtiveram resultados diferentes, embora próximos, através de estudos envolvendo a teoria cinética dos gases. A investigação do movimento browniano foi o ponto de partida para o esclarecimento desta questão. O movimento de partículas coloidais ou na forma de suspensões grosseiras em um líquido era um tema de grande interesse neste período, principalmente após a descoberta do microscópio ótico. A idéia que este movimento fosse ocasionado por colisões moleculares não encontrava provas experimentais ou teóricas até o início do século XX. Entre 1905 e 1910 surgiram vários estudos teóricos e experimentais sobre o assunto; o principal objetivo era elaborar modelos teóricos que pudessem ser submetidos a teste empírico. Neste contexto apareceu o trabalho de Perrin que testou um modelo teórico para este tipo de movimento com o intuito de explicar os seus resultados experimentais. De 1905 até 1912 Perrin realizou investigações sobre suspensões coloidais (emulsões) de partículas visíveis ao microscópio na forma de grãos (goma-guta e almécega) em líquidos. Ele estudou três fenômenos: a distribuição vertical de partículas coloidais depois que elas alcançavam o equilíbrio (esta correspondia à distribuição de Laplace de partículas do ar sob influência da gravidade); o deslocamento translacional das partículas e a rotação das partículas. Os procedimentos experimentais foram complicados e realizados com precisão, necessitando de uma separação das partículas 228 com raios idênticos por centrifugação fracionada. Esta técnica foi desenvolvida por ele para esta investigação. Perrin determinou as densidades, os volumes e os raios das partículas e estudou o movimento de rotação destas partículas, tendo realizado muitas fotografias das partículas durante a realização do seu trabalho (NYE, 1997). Um dos principais objetivos de Perrin era determinar experimentalmente o valor da constante de Avogadro (NA) utilizando equações da teoria cinética dos gases e medidas obtidas para as grandezas: densidade dos grãos, massa, número de grãos por unidade de volume de água, a pressão exercida por um grão numa certa temperatura. Seus experimentos com as emulsões conseguiram conjugar a teoria do movimento browniano (Einstein e Smoluchowski) e o modelo osmótico de Van’t Hoff que tinha aplicado as leis dos gases a soluções diluídas. Os experimentos realizados variando a natureza do líquido usado na preparação da suspensão dos grãos, o volume dos grãos e a tempertaura conduziram a valores convergentes de NA. A equação de distribuição de grãos dava condições de determinar o número de Avogadro, desde que fosse estudado um número suficiente de grãos. O principal objetivo de Perrin era encontrar a ligação indispensável entre as massas na escala macroscópica e as massas moleculares (OLIVEIRA, 1993). Foram determinados treze valores do número de Avogadro (N) compreendidos entre 6,0 x 1023 e 7,5 x 1023 (NYE, 1997). Cada um dos valores foi obtido usando procedimento empírico diferente e a partir de diversos fenômenos como: viscosidade de gases, deslocamento de íons em água, brilho do azul do céu, energia do infravermelho da radiação do corpo negro, medidas direta da carga de um íon em meio gasoso e cargas de corpos radioativos. Segundo Chagas (2003), o ponto alto do trabalho de Perrin foi a convergência dos números obtidos a partir de treze equações relativas a 229 diferentes tipos de fenômenos, mas que legitimavam a realidade molecular tendo como invariante a constante de Avogadro (NA). Comentando sobre os resultados obtidos, Perrin se colocou brilhantemente em seu livro “Les atomes” defendendo a realidade dos átomos: Penso, ele diz, que é impossivel a um espírito livre de todo preconceito, de refletir sobre a extrema diversidade dos fenômenos que convergem dessa maneira para o mesmo resultado, sem ficar impressionado, e acho que, por consequência, será dificil defender com argumentos racionais, uma posição hostil em relação as hipóteses moleculares. (Tradução nossa) (PERRIN, 1913 apud NYE, 1997, p.13). Grande parte das suas idéias ficaram registradas nesta obra “Les Atomes”, importante livro editado na “Nova Coleção Científica”, dirigido a um público não especializado e publicado em 1913 (CHAGAS, 2003; NYE, 1997). Nele é apresentado detalhadamente o seu trabalho empírico que se baseou também em estudos teóricos sobre o movimento browniano. Em 1905, utilizando raciocínio estatístico, Einstein havia explicado qualitativamente a dependência do valor do deslocamento de uma partícula macroscópica suspensa em um líquido em um certo período de tempo. Esse deslocamento resultava do movimento browniano, tendo sido explicado como colisão caótica de moléculas do líquido com as macropartículas. Esta teoria ficou conhecida como “Teoria da flutuação” e foi desenvolvida depois por Marian Smoluchowski (1872 – 1917), pesquisador polonês que derivou uma fórmula que explicava o movimento browniano (MIERZECKI, 1991). O trabalho de Perrin contribuiu para solucionar a interminável controvérsia sobre o atomismo que marcou o século XIX. Em reconhecimento ao seu trabalho foi-lhe concedido o prêmio Nobel de Física no ano de 1926. Perrin acreditava numa Física 230 realista e seu trabalho levou à aceitação, em definitivo, da teoria atômica; o átomo estava sendo aceito como uma ‘entidade’ que possuía uma subestrutura que caberia ser investigada. No campo empírico, novos instrumentos como tubos de vácuo, ultramicroscópico aliados a novas descobertas e técnicas como a espectroscopia e a radiotividade deram um novo vigor ao programa atomista. As idéias de Perrin promoveram a aceitação do atomismo de modo amplo inclusive por Ostwald, que em 1909 reconheceu publicamente que os argumentos empíricos em favor da hipótese atômica não podiam ser recusados (BARBEROUSSE, 1997). Ele passou a reconhecer o mérito desta hipótese e a necessidade que se restabelecesse a confiança na representação atômica e corpuscular da matéria. Percebendo a importância do seu trabalho, Perrin se coloca no trecho a seguir ratificando a importância da teoria atômica: “Esse resultado confere à realidade molecular uma probabilidade próxima da certeza…A teoria atômica triunfou” (PERRIN, 1913, apud BENSAUDE-VINCENT; KOUNELIS, 1991, p.299). De acordo com Nye (1976), para a maior parte da comunidade científica os debates sobre o atomismo começaram a ser resolvidos em 1911, o ano da primeira “Conferência Solvay” e abriu um amplo programa de pesquisa, a Teoria Quântica, que tem sido frutífero até a atualidade, colocando novos problemas a serem investigados e fomentando novos campos de investigação e programas de pesquisa. Neste período a termodinâmica clássica estava sendo transformada por uma nova teoria da descontinuidade da energia: a Teoria Quântica; simultaneamente, tanto a Física como a Química clássicas estavam sendo transformadas ao incorporar as idéias da descontinuidade da matéria e da energia. O caráter estatístico e probabilístico das novas teorias era considerado revolucionário. 231 Após este encontro, alguns problemas da Física e da Química passaram a ser pensados e resolvidos de uma mesma forma. O átomo não era apenas um princípio de unificação, mas passava a ser aceito de forma unânime como uma entidade científica. O diâmetro de um átomo e o número de partículas em um dado volume de matéria já podiam ser determinados. Perrin promoveu a aceitação da determinação do número absoluto de átomos contidos num dado peso de substância e o cálculo do peso absoluto de um átomo de uma substância qualquer. A teoria atômico-molecular de Perrin incorporou elementos da tradição eletromagnética e da termodinâmica, além da visão mecanicista de mundo. Numa tentativa de obter o reconhecimento dos energeticistas para a realidade molecular, Perrin reconhece o duplo triunfo dos dois campos: “Não se tratará, é claro, de opor uma a outra essas duas grandes disciplinas, assim a união da atomística à energética consagrará o duplo triunfo das duas”. (PERRIN, 1909 apud BENSAUDE-VICENT; KOUNELIS, 1991, p. 237). 6. 19 Conclusão A formulação da teoria atômica de Dalton veio dar legitimidade tanto a uma nova maneira de praticar a Química quanto às leis de combinações químicas obtidas empiricamente. O paradigma daltoniano explicou a ampla generalidade dos resultados empíricos obtidos e sugeriu novas experiências, a exemplo do trabalho posteriormente desenvolvido por Gay Lussac sobre a combinação de gases. Um exemplo utilizado por Kuhn para ilustrar os seus conceitos, segundo ele “talvez o exemplo mais completo de uma revolução científica” foi o trabalho de Dalton 232 contido em parte no seu livro: “Novo Sistema de Filosofia Química” (KUHN, 1996, p.169). Durante o século XVIII, a teoria das afinidades químicas era usada nas explicações das interações químicas, fundamentando o paradigma amplamente utilizado na concepção e análise dos experimentos químicos. Esta teoria no entanto, apresentava dificuldades no campo conceitual relacionada às explicações fornecidas para a diferença entre mistura e composto. Neste período não era possível distinguir as misturas dos compostos utilizando-se testes operacionais. O desenvolvimento da química experimental levou à formulação de leis que introduziram novas explicações quantitativas para as combinações químicas, a exemplo da lei dos equivalentes químicos e da lei das proporções definidas. Um dos indícios de que o paradigma das afinidades estava em crise foi a importante controvérsia entre Proust e Berthollet. O primeiro sustentava que todas as reações químicas ocorriam segundo proporções fixas, enquanto que, o segundo negava este fato admitindo combinações em proporções que podiam variar de acordo com as quantidades das substâncias reagentes (BROCK, 1992). No cerne do debate encontrava-se a compreensão dos conceitos de mistura e substancia composta, “onde Berthollet via um composto que podia variar segundo proporções, Proust via apenas uma mistura física” (KUHN, 1996, p.168). Dalton apresentou explicações inovadoras fundamentadas em um novo paradigma distinto daquele utilizado pelos químicos daquele período. Embora suas idéias tenham enfrentado dificuldades para se impor no meio acadêmico, sua teoria permitia a compreensão da diferença entre mistura e composto de modo mais eficaz do que o sugerido por Proust, além de ter implicações mais amplas. 233 A visão de mundo introduzida por Dalton pressupunha uma maneira diferente de se compreender as reações químicas; os novos cálculos estequiométricos realizados passaram a ser orientados pelo novo paradigma. Os pesos atômicos determinados por Dalton conferiram à Química o status de ciência exata, ratificando o seu caráter quantitativo. A análise do trabalho de Dalton feita por Kuhn teve como objetivo resgatar o seu caráter revolucionário. A aplicação à Química de conceitos tradicionalmente usados na Física e nos estudos de meteorologia introduziu profundas mudanças na interpretação dos fenômenos químicos. O principal mérito de Dalton foi retomar conceitos antigos e submetê-los a uma reelaboração à luz de uma nova racionalidade; novas questões foram formuladas e novas conclusões apresentadas. Dentro do paradigma daltoniano, novas redes conceituais se estabeleceram. Os conceitos científicos adquirem seus significados à luz do contexto em que são formulados ou reelaborados. As controvérsias científicas sobre o atomismo no século XIX ficaram registradas nos debates travados em reuniões científicas, artigos e livros, revelando a existência de dois tipos de atomismo: o primeiro, o atomismo químico, que se constituiu na base conceitual que justificava a atribuição dos pesos elementares relativos e as fórmulas moleculares, tornou-se gradativamente aceito pela comunidade química durante este século; o segundo tipo, o atomismo físico, revelou-se muito controvertido em função de defender a natureza mecanicista última de todas as substâncias. Os dois tipos de atomismo estavam intimamente relacionados e o próprio Dalton defendeu idéias que se enquadravam nos dois tipos de atomismo, embora não fosse este o comportamento da maior parte dos químicos. 234 Na segunda metade do século XIX, a identidade destes dois pontos de vista foi se tornando cada vez mais clara e a unificação dos dois tipos de atomismo aconteceu no início de século XX, ao tempo em que os físicos começaram a admitir um átomo estruturado, iniciando a exploração da sua estrutura. As profundas modificações introduzidas na Física influenciaram decisivamente os rumos do atomismo no século XX. Os novos conhecimentos gerados pelo desenvolvimento da teoria cinética dos gases e pela nova física quântica foram fundamentais neste processo e na consolidação dessa teoria. Nesta fase, novas teorias formuladas com sólida fundamentação matemática e empírica possibilitaram a aceitação da realidade atômica. A velha hipótese atômica foi revigorada quando se percebeu a credibilidade do átomo e de sua representação através de um único modelo aceito pelos físicos e químicos. Novas propriedades detectadas empiricamente através de experimentos e novos instrumentos apontavam para uma subestrutura eletrificada do átomo e direcionaram físicos e químicos para uma nova teoria atômica. A unificação de uma grande variedade de fenômenos químicos foi possível graças a idéia de átomo estruturado e do reconhecimento da complexidade molecular. O átomo maciço e indivisível estava dando lugar a um novo átomo vazio e dividido. O átomo de J.J Thomson e Ernest Rutherford (1871 –1937) tornou-se o princípio de unificação da Física e da Química e levou, no atual contexto, à rejeição do conceito de textura contínua da matéria (NYE, 1984, p.xxvii). O novo programa atomista superou o energeticismo como importante alternativa de pesquisa e incorporou não somente a teoria atômica clássica, mas também, muitas idéias e algumas exigências dos anti-atomistas do século XIX. O átomo não poderia 235 ficar restrito aos fundamentos científicos e epistemológicos da mecânica clássica. Neste contexto não era mais possível aceitá-lo apenas como uma partícula material maciça e indivisível. Comentando sobre o átomo da Física Moderna, Bachelard (1991, p. 131) lembra a importância de se evocar a história das suas imagens, segundo ele “[...]o átomo é exatamente a soma das críticas a que se submete a sua imagem primeira.” A aceitação da hipótese atômica por atomistas e antiatomistas, no decorrer do século XX, revela a posição consensual adotada inclusive em relação a sua continuidade na ciência sob o ponto de vista ontológico. Nos debates acontecidos ainda no século XIX é possível perceber-se a preocupação com a natureza e objetivos da investigação científica incluindo a articulação de critérios empíricos, bem como de outra natureza, inclusive metafísicos. Alguns atomistas defenderam suas idéias com grande entusiasmo e mantiveram uma posição não dogmática exemplar. O pensamento de Perrin, por exemplo, antecipava certas idéias que foram posteriormente desenvolvidas por epistemólogos como Gaston Bachelard (1884-1962) que defendia a necessidade de se ultrapassar as aparências e o observável de imediato, as impressões primeiras, no processo de construção do conhecimento. Comentando sobre a complexidade da filosofia química Bachelard escreveu: Assim, sobre esta noção de peso atômico, podemos seguir uma evolução de filosofia química, filosofia que acede lentamente ao realismo preciso graças à organização racional de uma experiência comparativa essencialmente complexa. Basta acompanhar esta evolução que conduz a um realismo científico para ver como eram inertes as teses de um realismo imediato sempre pronto a alinhar todo o seu saber a partir de uma experiência particular. Através das suas múltiplas técnicas e das suas teorias cada vez mais racionais a química contemporânea determina um verdadeiro “espectro filosófico”, 236 que apresenta os diversos matizes de uma filosofia primitivamente tão simples como o realismo (BACHELARD, 1990, p.113). O caráter provisório do conhecimento científico é visível no estudo de episódios de controvérsias científicas, bem como a grande necessidade de articulação entre os cientistas para que teorias consensuais fossem adotadas. O conceito de realidade também esteve envolvido nesta disputa. De acordo com Videira (1997a, p. 74) “no caso do átomo, falar da sua realidade somente é possível, se a realidade é compreendida como objetividade, aqui usada na acepção de algo que pode fazer parte de uma teoria física matematizada e testável empiricamente.” Percebe-se na complexidade que caracteriza a história do atomismo no século XIX, que os argumentos usados pelos anti-atomistas eram não somente científicos mas, epistemológicos e ontológicos. Uma grande preocupação era definir o papel das teorias científicas na ciência, bem como, o papel que a matemática e as hipóteses desempenhavam na construção das teorias. Estas questões estão presentes nos debates travados entre personagens que defendiam pontos de vistas variados: fenomenologistas ou fenomenistas, convencionalistas, positivistas, realistas etc. Consideramos que este tema possibilitará discussões sobre o papel da experimentação na validação de teorias e sua provisoriedade, o “status” cognitivo dos modelos na Química, a diferença entre leis e teorias, o papel da criatividade e subjetividade envolvidos no processo de produção científica, entre outros. CAPÍTULO 7 A HISTÓRIA DA CIÊNCIA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE QUÍMICA: O ATOMISMO NO SÉCULO XIX 238 7 HISTÓRIA DA CIÊNCIA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE QUÍMICA: O ATOMISMO NO SÉCULO XIX 7.1 Algumas informações preliminares Neste capítulo apresentamos os resultados da análise de livros didáticos de Química Geral, em relação ao modo de apresentação da hipótese atômica daltoniana e suas implicações. Esta parte da nossa pesquisa teve como objetivo identificar nos manuais, a abordagem de apresentação da teoria atômica no século XIX, sua relação com as leis de combinação químicas e a hipótese de Avogadro, além das dificuldades enfrentadas por esta teoria naquele período. Usamos critérios fundamentados na História e Filosofia da Ciência para avaliar a forma como estes conteúdos encontram-se presentes nestes manuais e o resultado da mediação didática adotada para este assunto que tem chegado aos alunos. A metodologia utilizada foi semelhante àquela adotada por Niaz (2001) e Rodriguez e Niaz (2002), em pesquisas realizadas na Venezuela e envolveu a análise de conteúdo de livros didáticos selecionados usando categorias definidas ‘a priori’, fundamentadas no material histórico elaborado (Capítulo 6). A opção pela análise de conteúdo levou em conta a sua adequação e este tipo de trabalho. (LEITE, 2002; MORAES, 1999; TRIVIÑOS, 1987) Foram consultados dezesseis livros didáticos de Química Geral usados no terceiro grau, com edições compreendidas entre os anos de 1973 e 2005. Não foram usados critérios estatísticos para escolha dos livros. Os manuais foram selecionados considerando a sua indicação na bibliografia básica das disciplinas de Química Geral 239 do Departamento de Química Geral e Inorgânica da UFBA (DQGI) e a maior disponibilidade para consulta na biblioteca do Instituto de Química da UFBA (BSQ). Os critérios de análise foram definidos previamente, tomando como base os conteúdos obtidos da pesquisa histórica sobre o atomismo no século XIX. A História da Química foi tomada como principal referencial de análise. A definição desses critérios pretendeu identificar o modo de apresentação de alguns conteúdos fundamentais e aspectos conceituais, contidos nos livros e relacionados ao tema histórico investigado. A definição destes critérios levou em conta os seguintes aspectos: 1. a apresentação da hipótese atômica de Dalton e sua origem; 2. a relação que é estabelecida entre a lei de Gay-Lussac e a teoria atômica de Dalton; 3. a articulação feita entre a lei de Gay-Lussac, a hipótese de Avogadro e a teoria atômica de Dalton; 4. a apresentação da(s) hipótese(s) de Avogadro; 5. a abordagem da questão envolvendo as dificuldades enfrentadas para aceitação do atomismo naquele período. No século XIX surgiram importantes conceitos relacionados à teoria atômicamolecular e ao mesmo tempo, esta teoria ainda enfrentava forte oposição (Capítulo 6). O conhecimento da existência de controvérsias para a consolidação da teoria atômica de Dalton e das dificuldades enfrentadas por esta teoria torna-se importante, para que a visão dos alunos sobre este assunto não seja equivocada ou distorcida. 7. 2 Definição de critérios e categorias de análise: 240 • PRIMEIRO CRITÉRIO: apresentação da hipótese atômica e sua possível origem Para o primeiro critério foram definidas seis categorias: a, b, c, d, e, f a) a teoria atômica de Dalton explicou as duas leis de combinaçõs químicas: lei da conservação da massa (Lavoisier) e a lei das proporções definidas ou composição constante (Proust); b) a teoria atômica foi proposta antes da lei das proporções múltiplas. Utilizando a sua teoria atômica Dalton deduziu a lei das proporções múltiplas; c) a teoria atômica de Dalton possibilitou a compreensão das leis de combinação químicas: Conservação da Massa, Proporções Definidas, Proporções Múltiplas; Proporções Equivalentes; d) a teoria atômica de Dalton se baseou nas relações de peso determinadas experimentalmente ajudando a entender as leis de combinações químicas e) as dificuldades para precisar as origens da teoria atômica de Dalton são mencionadas f) Dalton chegou à teoria atômica com base nas observações realizadas no laboratório ou em seus estudos experimentais • SEGUNDO CRITÉRIO: articulação entre a lei de Gay-Lussac e a teoria atômica de Dalton. Para o segundo critério foram definidas três categorias: a, b, c a) As divergências entre Gay-Lussac e Dalton são mencionadas; b) Faz-se alguma articulação entre a lei proposta por Gay-Lussac e a importância da teoria atômica de Dalton para a sua explicação; c) nenhum dos argumentos anteriores (a ou b) são apresentados 241 • TERCEIRO CRITÉRIO: relação estabelecida entre a lei de combinação volumétrica de Gay-Lussac, a hipótese de Avogadro e a teoria atômica de Dalton. Para o terceiro critério foram definidas quatro categorias: a, b, c, d a) a lei de Gay-Lussac foi explicada pela hipótese de Avogadro; b) a lei de Gay-Lussac e a hipótese de Avogadro são apresentadas e relacionadas à teoria atômica de Dalton e sua consolidação; c) a lei de Gay-Lussac e a hipótese de Avogadro são apresentadas no capítulo de estudo dos gases sem articulação destas com a teoria atômica de Dalton; d) • a hipótese da Avogadro resolveu o impasse entre Gay-Lussac e Dalton. QUARTO CRITÉRIO: apresentação da(s) hipótese(s) de Avogadro. Para o quarto critério foram definidas cinco categorias: a, b, c, d, e a) a aceitação da hipótese de Avogadro e do conceito de molécula contribuiu para resolver problemas detectados nos cálculos de pesos atômicos; b) são apresentadas duas hipóteses de Avogadro, incluindo aquela em que ele propõe a existência de moléculas poliatômicas de gases ‘elementares’(substâncias simples); c) é apresentada uma única hipótese1 de Avogadro (Vαn) destacando-se a sua importância para a compreensão da Lei de Gay-Lussac; d) a segunda hipótese de Avogadro é mencionada de modo equivocado; e) é apresentada uma única hipótese de Avogadro antes da lei de Gay- Lussac. 1 A primeira hipótese de Avogadro é também denominada lei ou princípio de Avogadro nos livros de Química Geral. 242 • QUINTO CRITÉRIO: abordagem das dificuldades enfrentadas para a aceitação do atomismo no século XIX. Para o quinto critério foram definidas três categorias: a, b, c a) estas dificuldades não são mencionadas; b) o atomismo daltoniano é apresentado como uma teoria vencedora e sem conflitos; c) menciona-se superficialmente as polêmicas entre partidários e adversários da teoria atômica. 7.3 Os resultados obtidos Os resultados obtidos estão resumidos na Tabela 1 a seguir. Para cada critério buscamos identificar nos livros, a presença das diferentes categorias de análise definidas previamente. Em um mesmo livro poderia ser identificada mais de uma categoria. A legenda a seguir foi utilizada na composição da Tabela 1 (página 243): Legenda: A simbologia CN foi utilizada para explicitar e numerar os critérios de análise, onde C= critério utilizado para análise e N= número do critério 243 Tabela 1 - Resultado da análise dos livros didáticos fundamentada na história do atomismo no século XIX Legenda: CN LIVROS Brady e Humiston 2a. ed./ 1986 – vol.1 Brady et al. 3a. ed./ 2002 – vol.1 Brown et al. 7a. ed./ 1999 Brown et al. 9a. ed./ 2005 Bueno et al. 1978 Chang 5a. ed./ 1994 Garritz e Chamizo 2002 Kotz e Treichel 4a. ed./ 2002 – vol.1 Quagliano e Vallarino 1973 Mahan e Myers 4a. ed. 1993 Masterton et al. 6a. ed./ 1990 Russel 2a. ed./ 1994 Rozenberg 1973 Rozenberg 1a. ed/ 2002 Slabaugh e Parsons 2a. ed./ 1982 Sienko e Plane 7a. ed./ 1976 C= critério utilizado para análise e N= número do critério C1 C2 C3 C4 C5 1a 1b 1f 1a 1b 2c 3c 4c 5a 5b 2c 3c 4c 5a 2c 3a 3c 4c 5a 2c 3a 3c 4c 5a 2c 3a 3b 3c 4c 5a 4c 5a 3a 3b 3d 3a 3c 4a 4b 4d 4c 5a 1a 1b 1f 1a 1b 1f 1a 1c 1f 1c 1d 2c 2a 2b 1a 1b 1d 1f 1c 2c 2c 3c 4e 5a 1b 1c 1d 1f 1a 1b 1a 2a 2b 3b 3d 4a 4c 5a 2a 2b 2c 3d 4a 4c 4c 5a 4a 4c 5c 4a 4c 5c 4a 4c 4c 5a 1d 1e 1f 1d 1e 1f 1a 1a 1b 1f 2a 2b 2a 2b 2a 2b 2c 3a 3c 3a 3b 3d 3a 3b 3a 3d 3a 3c 5a 5a 5a Obs: Os livros que possuíam três autores ou mais, optamos por colocar nas tabelas o sobrenome do primeiro autor e a expressão et al., em função do pequeno espaço disponível. 244 7.4 Analisando e discutindo os resultados Muitas explicações têm sido apresentadas sobre as possíveis origens da teoria atômica e como Dalton chegou a esta teoria. A literatura reconhece a complexidade envolvida na reconstrução histórica deste episódio, como foi visto no Capítulo 6. Uma visão indutivista ou em alguns casos puramente dedutivista da origem da hipótese atômica de Dalton tem sido questionada, uma vez que, em ambos os casos transmite-se uma visão distorcida dos fatos, ignorando-se a complexidade envolvida no real contexto desta descoberta. Estes aspectos têm sido discutidos por cientistas e historiadores no século XX que reconhecem o envolvimento de outros fatores, inclusive a forte participação da intuição neste processo. A teoria daltoniana foi fruto da combinação de intuição teórica e das suas observações realizadas durante seus estudos sobre os gases e a atmosfera (FILGUEIRAS, 2004). Por outro lado, não se percebe uma adequada contextualização histórica na apresentação das leis de combinações químicas nos livros de Química Geral. Nem todos os livros apresentam estas leis no capítulo que introduz a teoria atômica de Dalton. Consideramos que a discussão destas leis deveria acontecer de forma articulada com a origem da teoria atômica de Dalton e o processo de sua consolidação, o que não tem acontecido de forma satisfatória. Analisando os livros didáticos em relação ao primeiro critério estabelecido (Tabela 1) percebemos que, a maioria dos livros apresenta a teoria atômica de Dalton como tendo sido aquela que explicou ou se baseou nas principais lei de combinação química (Lavoisier, Proust, Richter). Os trechos dos livros de Kotz e Treichel (2002) e Russel (1994) a seguir, ilustram esta afirmação: 245 Kotz e Treichel, 2002, v.1 (p.42) “As idéias de John Dalton foram aceitas pela comunidade científica porque elas ajudavam os cientistas a entenderem duas leis científicas importantes que já eram conhecidas: a lei da conservação da matéria e a lei da composição constante.” Russel, 1994, v.1, (p.207) “Em 1803, John Dalton, acreditando nas leis de conservação da massa e da composição definida, propôs uma teoria que explicava estas e outras generalizações químicas. De fato, Dalton ressuscitou o conceito grego da existência de átomos e foi capaz de sustentar este conceito com evidências experimentais que ele e outros obtiveram.” (Grifo nosso) Grande parte dos livros didáticos de Química Geral, introduz o atomismo filosófico dos gregos Leucipo e Demócrito (sec. V a.C.) e apresentam, em seguida, o atomismo daltoniano (séc. XIX). Não existe a preocupação de informar, minimamente, sobre o que aconteceu com o atomismo neste longo intervalo de tempo. Alguns livros, como o Russel (1994), utilizam termos como “ressuscitou”, para se referir a retomada do atomismo feita por Dalton, passando uma idéia equivocada que o atomismo esteve ‘morto’ por quase dois mil anos. Uma parte desses livros (56,25%) explicita que Dalton chegou à teoria atômica com base nas observações realizadas no laboratório, ou em seus estudos experimentais. A ênfase na obtenção da teoria a partir de observações ou experimentos reforça uma imagem empirista e indutivista da ciência. Nos dois trechos do livro de Brown et al. (1999); (2005), em suas duas edições, podemos identificar esta visão: 246 Brown et al., 1999 (p.24) “Dalton imaginou a sua teoria para explicar diversas observações experimentais. Suas concepções eram tão fundamentais que sua proposta permaneceu intacta, na essência, até os dias de hoje.” Brown et al., 2005 (p.32) “Dalton chegou à sua conclusão sobre átomos com base nas observações químicas no universo macroscópico do laboratório.” Embora muitos historiadores reconheçam o caráter controvertido da origem da teoria atômica de Dalton (Capítulo 6) existe atualmente, uma visão consensual de que a proposta teórica de Dalton sobre o atomismo, aconteceu para justificar os resultados de suas pesquisas envolvendo estudos da atmosfera e de solubilidade de gases em água. Esses estudos o levaram a formular a lei das pressões parciais dos gases e a primeira teoria de mistura gasosa. No entanto, Dalton não partiu de análises químicas para chegar a sua teoria, mas se voltou a elas, pois as suas idéias envolviam também possíveis explicações das leis de combinações químicas. Sua teoria passou a fornecer uma racionalidade para a lei das proporções constantes, explicando também, a lei dos equivalentes químicos de Richter. Outro ponto consensual é que Dalton deduziu a lei das proporções múltiplas após a proposição da sua teoria; este fato só aparece em (50,0%) dos livros analisados. Nestes livros destaca-se a importância do dedutivismo na ciência quando afirma que a teoria de Dalton levou à dedução da lei das proporções múltiplas. Entretanto, alguns livros apresentam esta lei como sendo fruto da aplicação do método científico, 247 transmitindo a idéia que existe um método científico que possibilita as grandes descobertas científicas. Brady et al., 2002, v.1 (p. 35) “A descoberta da lei das proporções múltiplas é um belo exemplo da aplicação do método científico”. (Grifo nosso) Em apenas um único livro (ROZEMBERG, 1982; 2002), em suas duas edições, o que representa (12,5 %) do total dos livros analisados, encontramos referência às dificuldades dos historiadores em precisar a origem da teoria atômica daltoniana: “Entre os historiadores existe alguma divergência quanto às circunstâncias que teriam levado à sua formulação” (ROZENBERG, 1982, p. 53). Este livro dedica o seu primeiro capítulo à História da Química e apresenta algumas informações históricas específicas nos demais capítulos. Avaliando a relação entre a lei de Gay-Lussac e a teoria atômica de Dalton percebe-se que muitos livros apresentam a lei de Gay-Lussac no capítulo de gases, não existindo a preocupação de articulação desta lei com a teoria atômica de Dalton, no contexto em que foi formulada. Em alguns destes livros (37,5%) existe a tentativa de relacionar esta lei com a teoria atômica; contudo, a ênfase é na falta de entendimento entre Gay-Lussac e Dalton ou na possibilidade da teoria atômica de Dalton ter explicado a lei de Gay-Lussac. A pesquisa histórica reconhece que esta articulação é muito complexa, porque naquela época houve dificuldade para ser percebida pelos próprios envolvidos (BENSAUDE-VINCENT, 1997). 248 A lei de Gay-Lussac foi proposta para explicar resultados de experimentos obtidos através de reações entre gases. Esta lei foi publicada em 1808, porém Dalton não a reconheceu como importante para ajudar na consolidação de sua teoria que, contrariamente, sempre questionou a sua validade. Os resultados obtidos por GayLussac eram diferentes daqueles encontrados por Dalton; ele determinou uma taxa de 2:1 para a combinação do gases oxigênio com hidrogênio na formação da água, enquanto Dalton havia proposto a proporção de 1:1. Esta lei foi bem recebida por uma parte da comunidade científica, a exemplo de Berzélius que se baseou na mesma para determinar a fórmula da água, H2O e a da amônia NH3. Estes resultados não foram aceitos por Dalton que imaginava a água como HO e a amônia como NH. (PARTINGTON, 1962; IHDE, 1984; BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992). Posteriormente, Gay-Lussac reconheceu a importância do trabalho de Dalton e o fato de seus estudos poderem dar sustentação à teoria atômica, ainda assim, manifestou um comportamento ambíguo não valorizando a teoria de Dalton. A falta de entendimento entre Gay-Lussac e Dalton exemplifica a influência de fatores externos na dinâmica da ciência incluindo componentes de natureza política e filosófica e não puramente científico (NYE, 1984; 1997; KUHN, 1996). O exame da relação entre a lei de Gay-Lussac, a hipótese de Avogadro e a teoria atômica de Dalton ratifica a tendência já detectada nos livros didáticos de não articulação dos fatos e descontextualização histórica. Mais da metade dos livros (56,25%) apresenta a lei da Gay-Lussac e a hipótese de Avogadro no capítulo de Gases. Não existe a preocupação de relacionar adequadamente essas leis com a teoria atômica de Dalton e os debates acontecidos sobre esta teoria na primeira metade do século XIX. Quando algum tipo de relação é feita, predomina a ênfase de que a 249 hipótese de Avogadro explicou a lei de Gay-Lussac (62,5%) ou resolveu o impasse entre Gay-Lussac e Dalton (37,5%). Apenas cinco livros se detêm mais nesta questão, relacionando a lei de Gay-Lussac e a hipótese de Avogadro com a consolidação da teoria atômica no século XIX e a necessidade de diferenciação entre os conceitos de átomo e molécula naquele período. A apresentação da hipótese de Avogadro nos livros didáticos é um assunto que demanda grande interesse pois, em sua maioria, está muito distante da Química presente no século XIX. A grande parte dos livros apresenta uma única hipótese de Avogadro, que é na verdade a primeira de suas duas principais hipóteses. Estes manuais apresentam esta hipótese usando comumente a seguinte frase: “volumes iguais de gases diferentes, medidos nas mesmas condições de pressão e temperatura, contém o mesmo número de moléculas”. A ênfase na apresentação desta hipótese é dada na sua importância para a compreensão da lei de combinações volumétricas de Gay-Lussac (68,75%). Alguns livros, como Mahan e Myers (1993), destacam o fato da hipótese (primeira) de Avogadro só ter sido aceita em 1860, aproximadamente cinqüenta anos após a sua formulação e após o Congresso Internacional de Química de Karlshure, na Alemanha. As causas para a não aceitação da hipótese de Avogadro no entanto, não são priorizadas. Na apresentação deste episódio registra-se apenas a sua contribuição para que os valores consensuais relativos aos pesos atômicos fossem acordados. Nesse período, os químicos enfrentaram muitas dificuldades para encontrar um sistema de pesos atômicos satisfatório (TOLENTINO; ROCHA-FILHO, 1994). O reconhecimento da importância das hipóteses de Avogadro também foi fundamental para que acontecesse a diferenciação entre os conceitos de átomo e molécula naquele período. 250 As leis de Avogadro estavam parcialmente baseadas nas investigações realizadas por Gay-Lussac, que o teriam levado à lei de combinações de volumes gasosos. Avogadro considerava que, como Gay-Lussac havia mostrado que “as combinações dos gases têm lugar sempre segundo relações muito simples em volume”, se fazia necessário admitir, também, a existência de “relações muito simples entre os volumes das substâncias gasosas e o número de moléculas simples ou compostas que as formavam” (BELLO; SANCHÈZ; RAMÓN, 2003, p.150). Avogadro utilizou exemplos estudados por Gay-Lussac mostrando que as dúvidas desapareciam caso se admitisse que as moléculas envolvidas nas reações estudadas podiam ser quebradas em meia molécula, supondo a existência de moléculas poliatômicas. Ele não usava o termo átomo e sim meia molécula ou seja, o termo molécula integrante referia-se às moléculas compostas, e o termo molécula constituinte era usado para as moléculas dos gases elementares (substâncias simples), formados por um mesmo tipo de átomo (PAPP; PRELAT, 1950; IHDE, 1984; NYE, 1996). Alguns livros quando tentam articular a lei de Gay-Lussac e a hipótese de Avogadro com a teoria atômica, o fazem de maneira confusa. Um argumento apresentado é que Dalton não tinha entendido as contribuições de Gay-Lussac e Avogadro porque não aceitava a existência de moléculas diatômicas. Em um desses livros são apresentadas duas hipóteses de Avogadro; no entanto, a forma como a segunda hipótese é enunciada não está de acordo com os registros históricos e com a hipótese originalmente formulada (Capítulo 6, p.189). 251 Garritz e Chamizo, 2002 (p.201) “A relação existente entre os volumes de combinação e as fórmulas corretas dos produtos formados foi estabelecida pelo italiano Amadeo Avogadro. As suas hipóteses podem ser enunciadas assim: 1. Dois gases que ocupam o mesmo volume, nas mesmas condições de temperatura e pressão, contêm o mesmo número de moléculas. 2. Certos elementos formam moléculas diatômicas, pois dois de seus átomos formam agregados estáveis.” Na sua segunda hipótese, Avogadro admitia que as moléculas dos gases poderiam ter qualquer grau de molecularidade: [...] A saber, vamos supor que as moléculas constituintes de qualquer gás simples não são formadas de uma molécula elementar solitária, mas são feitas de um certo número dessas moléculas elementares, unidas por atração para formar uma molécula única (AVOGADRO, 1811, apud LEICESTER; KLICKSTEIN, 1952, p.232).(Grifo nosso) Em relação às dificuldades enfrentadas pelo atomismo no século XIX, percebe-se que a maior parte dos livros (87,5%) não aborda esta questão mesmo de forma superficial, ignorando os debates e disputas existentes entre os atomistas e antiatomistas naquele período. Predomina nos manuais a apresentação dos resultados da ciência de forma descontextualizada e algumas vezes distorcida ou equivocada. Na maioria dos livros, o “atomismo daltoniano” é apresentado como uma teoria vencedora (naquele período) e que não enfrentou conflitos durante o século XIX, mesmo que este fato esteja apenas implícito nos textos. No entanto, em pelo menos 252 dois manuais este ponto de vista encontra-se bastante explícito, como podemos observar nos trechos a seguir: . Brady e Humiston, 1986, v.1 (p.18) “A teoria atômica de Dalton obteve tanto sucesso na explicação das leis da Química, que foi aceita quase que imediatamente” (Grifo nosso) Kotz e Treichel, 2002, v.1 (p.42) “Embora somente em 1860 se tenha estabelecido um conjunto consistente de massas relativas dos átomos, a idéia de Dalton, de que as massas dos átomos eram cruciais para a química quantitativa, foi aceita a partir do início do século XIX.” (Grifo nosso). Apenas um livro (ROZEMBERG, 1982; 2002), nas suas duas edições, menciona a existência de polêmicas entre partidários e adversários da teoria atômica no século XIX, embora não aprofunde a questão: Rozenberg, 2002 (p. 46) “O século XIX com o aparecimento dos trabalhos de John Dalton assistiu ao triunfo definitivo dos atomistas sobre os partidários do contínuo.”... Percebe-se que disputas como as que envolveram equivalentistas e atomistas ou energeticistas e atomistas só têm valor histórico, pois não estão presentes nos livros e não são utilizadas minimamente para fins didáticos. 253 Constatamos a ênfase na figura de Dalton como o grande mentor da teoria atômica moderna com bases científicas, na maioria dos livros analisados, reforçando uma imagem individualista e elitista do cientista e do seu trabalho. Não existe a preocupação em se destacar outros cientistas, que também contribuíram neste processo, ajudando no progresso da ciência. Os trechos dos livros selecionados a seguir apresentam indícios desta constatação. Chang, 1998 (p.37) “Foi em boa parte devido ao discernimento de Dalton que a Química pode progredir muito no século XIX.” Sienko e Plane, 1976 (p.26) “A teoria de Dalton permitiu responder a muitas das perguntas levantadas pelas observações da época. O átomo simples, indivisível, desprovido de estrutura, podia explicar todas as observações a respeito das relações ponderais nas reações químicas.” (Grifo nosso) Garritz e Chamizo, 2002 (p.193) “O primeiro que formalizou, do ponto de vista quantitativo, que os átomos tinham de existir foi Dalton[...]” (Grifo nosso) Nos manuais didáticos predomina uma visão linear e acumulativa da história do atomismo a partir do século XIX; uma teoria gradativamente aprimorada que se tornou 254 pronta no século XX, gerando os inúmeros modelos propostos para tentar representar a desafiante ‘entidade’: o átomo. Os trechos dos livros analisados citados anteriormente revelam, de certa forma, o modo como a teoria atômica de Dalton é apresentada nos livros didáticos de Química do terceiro grau, contribuindo para que a visão recebida sobre o assunto seja desprovida de historicidade. Observamos que existe uma grande distância entre as conclusões dos historiadores da ciência e as informações históricas transmitidas nos livros didáticos ou na imagem de ciência possibilitada por esses manuais. Este é uma fato preocupante, uma vez que, os livros didáticos constituem-se nas principais ferramentas que fundamentam o trabalho didático da maior parte dos professores. Os pesquisadores do campo da Didática das Ciências têm procurado caminhos que aproximem a História da Ciência e a Didática da Ciência, afim de possibilitar o diálogo entre os dois campos que, certamente, poderá trazer benefícios mútuos. Consideramos que avaliações sobre a abordagem feita pelos livros didáticos de certos acontecimentos históricos poderão ajudar a melhorar a qualidade desses manuais, numa perspectiva mais contextualizada, tomando-se como referencial de análise o contexto sócio-histórico investigado.