UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MARIA DA CONCEIÇÃO MARINHO OKI
A HISTÓRIA DA QUÍMICA POSSIBILITANDO O
CONHECIMENTO DA NATUREZA DA CIÊNCIA E UMA
ABORDAGEM CONTEXTUALIZADA DE
CONCEITOS QUÍMICOS:
UM ESTUDO DE CASO NUMA DISCIPLINA DO CURSO DE QUÍMICA DA UFBA
Salvador
2 00 6
MARIA DA CONCEIÇÃO MARINHO OKI
A HISTÓRIA DA QUÍMICA POSSIBILITANDO O
CONHECIMENTO DA NATUREZA DA CIÊNCIA E UMA
ABORDAGEM CONTEXTUALIZADA DE
CONCEITOS QUÍMICOS:
UM ESTUDO DE CASO NUMA DISCIPLINA DO CURSO DE QUÍMICA DA UFBA
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação
em
Educação,
Faculdade
de
Educação,
Universidade Federal da Bahia, como requisito para
obtenção do grau de Doutora em Educação.
ORIENTADORES: Prof. Dr. Olival Freire Júnior
Prof. Luis Felippe P. Serpa
(In Memoriam)
Salvador
2006
Biblioteca Anísio Teixeira – Faculdade de Educação/ UFBA
O41
Oki, Maria da Conceição Marinho.
A história da química possibilitando o conhecimento da natureza da
ciência e uma abordagem contextualizada de conceitos químicos : um estudo
de caso numa disciplina do curso de química da UFBA. – 2006.
430 f.
Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Educação, 2006.
Orientador: Prof. Dr. Olival Freire Júnior e Prof. Luis Felippe P. Serpa (In
Memoriam).
1. Química – Estudo e ensino – Universidade Federal da Bahia. 2.
Ciência – Estudo e ensino. 3. Química – História. 4. Ciência – Filosofia. 5.
Livros didáticos. I. Freire Júnior, Olival. II. Serpa, Luis Felippe P. III.
Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. IV. Título.
CDD 540.7 – 22.ed.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
TITULO DA TESE:
A História da Química possibilitando o conhecimento da natureza da
ciência e uma abordagem contextualizada de conceitos químicos: um
estudo de caso numa disciplina do curso de Química da UFBA.
Autora: Maria da Conceição Marinho Oki
Tese apresentada para obtenção do grau de doutor, defendida e
aprovada em 26/06/2006, pela banca examinadora constituída pelos
seguintes professores:
Dr. Olival Freire Júnior – Instituto de Física da UFBA (orientador)
Dra. Rejane Maria Novais Barbosa – Universidade Federal Rural de Pernambuco
Dra. Nídia Franca Roque – Instituto de Química da UFBA
Dra. Maria Helena S. Bonilla – Faculdade de Educação da UFBA
Dr. Nelson Rui Ribas Bejarano – Instituto de Química da UFBA
Dra. Maria Luiza dos S. Correa – Instituto de Química da UFBA (suplente)
AGRADECIMENTOS
Várias pessoas nos apoiaram, incentivaram e ajudaram durante o nosso trajeto.
Gostaria de agradecer a todos, em especial :
aos professores Luis Felippe Serpa (In Memoriam) e Olival Freire Júnior da UFBA,
meus orientadores, por terem acreditado ser possível;
ao colega do DQGI Edilson Fortuna de Moradillo, pela proveitosa parceria intelectual
dos últimos quinze anos e pela decisiva colaboração;
aos colegas do IQ José Luis de P. B. Silva; Maria Bernadette de Melo Cunha e José
Petroníllio Cedraz pela importante colaboração;
aos colegas do grupo de ensino, Soraia Lobo e Abraão Félix da Penha pelo incentivo e
torcida;
ao professor Pedro Sarno, pelo exemplo de vida;
aos funcionários do IQ Antônio Reis Cerqueira e Antônio Luis Machado pelo apoio e
cooperação e a Lígia Teixiera pela ajuda distante.
Um agradecimento muito especial aos nossos alunos da disciplina História da Química,
dos semestres 2004.1 e 2005,1; aos ingressos no Curso de Química de 2004, que
responderam ao nosso questionário e aos seis graduados que aceitaram ser
entrevistados e participar da nossa pesquisa.
A minha família, em especial meus pais e filhos e ao grande companheiro Norio Oki,
pela torcida e por tudo o que fizeram tornando possível a concretização deste desafio.
RESUMO
Nesta tese relatamos um estudo de caso que teve como objetivo explorar as
potencialidades de uma aproximação entre a História e Filosofia da Ciência da
educação científica através da utilização do ensino de História da Química. Visávamos
auxiliar os alunos na compreensão da natureza da ciência e no aprendizado de
conceitos químicos.
O estudo envolveu a nossa intervenção como professora/investigadora na
disciplina História da Química (QUI 040), lotada no Departamento de Química Geral e
Inorgânica da UFBA e teve um caráter exploratório utilizando uma abordagem de
pesquisa qualitativa.
A investigação didática foi realizada em duas partes: inicialmente identificamos
concepções prévias sobre aspectos da natureza da ciência dos alunos e avaliamos
variações em tais concepções, influenciadas por uma abordagem explícita de
conteúdos de História e Filosofia da Ciência; na segunda parte, trabalhamos com a
contextualização histórica dos conceitos químicos para ajudar na compreensão desses
conceitos.
Este estudo envolveu, também, a análise da apresentação de alguns conteúdos
e conceitos científicos nos livros didáticos, tendo como principal referencial teórico a
História e Filosofia da Ciência.
Os resultados obtidos demonstraram que a disciplina História da Química foi um
espaço importante para os alunos conhecerem melhor a natureza da ciência e
aprenderem de forma significativa conceitos químicos. Os alunos conseguiram adquirir
concepções menos ingênuas e simplistas sobre a natureza da ciência e manifestaram
uma maior compreensão de conceitos como a quantidade de matéria e mol.
Concluímos que o referencial histórico-epistemológico contribuiu para que os
estudantes de Química envolvidos neste trabalho adquirissem uma imagem de ciência
mais contextualizada, possibilitando uma melhor formação inicial.
Palavras-chave: História e Filosofia da Ciência; Ensino de Química; Natureza da
Ciência; Aprendizagem de conceitos químicos; Livros didáticos
ABSTRACT
This dissertation intended to explore the potentialities of a rapproachement
between history and philosophy of science, and science education through the teaching
of a History of Chemistry course (QUI 040) for Chemistry students. We aimed to help
students understand the nature of science and learn chemical concepts.
The study involved our practice as teacher and researcher in the above
mentioned discipline at the Department of General and Inorganic Chemistry of the
UFBA. This exploratory work is reported as an observation study which is a typical
category of qualitative research.
The classroom investigation was performed in two parts: we first identified
student’s previous conceptions about the nature of science and evaluated possible
changes in these conceptions influenced by an explicit approach of the contents based
on elements of history and philosophy of science; in the second part we worked on a
contextual approach of the chemical concepts to help students understand them.
This study also involved the analysis of the presentation of some chemical
contents and scientific concepts in chemistry textbooks, taking the History and
Philosophy of Science as a framework to assess them.
The results showed that the History of Chemistry course was important for the
students improve their knowledge about the nature of science, as well as get meaningful
knowledge of some chemical concepts. The students could get less naive and simplistic
conceptions about the nature of science and showed better understanding of concepts
like the amount of substance and mole. Thus a conclusion of this study is that the
historical-epistemological approach contributed for a student more contextualized image
of science, and enable them to have a better initial formation.
Keywords: History and Philosophy of Science; Chemistry teaching; Nature of science;
Chemistry textbooks; Learning of chemical concepts.
LISTA DE ABREVIATURAS
AAAS - American Association for the Advancement Science
BNCC - British National Curriculum Council
BSQ – Biblioteca Setorial de Química
CNC – Concepções sobre a natureza da ciência
DCN – Diretrizes Curriculares Nacionais
DQGI – Departamento de Química Geral e Inorgânica
FACED – Faculdade de Educação da Ufba
INMETRO – Instituto de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial
IQ – Instituto de Química
ISO - Organização Internacional de Padronização
ISTE - Introductory Science Teacher Education
IUPAC – União Internacional de Química Pura e Aplicada
IUPAP – União Internacional de Física Pura e Aplicada
LOS - Language of Science
MEC – Ministério da Educação
NOSS - Nature of Science Scale
NOST - Nature of Science Test
NRC - National Research Council
PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais
RMN - Ressonância Magnética Nuclear
SCC - Science Council of Canada
SI - Sistema Internacional de Unidades
TOUS - Test on Understanding Science
UEFS - Universidade Estadual de Feira da Santana
UFBA – Universidade Federal da Bahia
VNOS-C - Views of Nature of Science
LISTA DE ANEXOS
ANEXO A - A quantidade de matéria e o mol: senso comum, história e aprendizagem
ANEXO B – Termo de compromisso
ANEXO C – Ficha de identificação do aluno
ANEXO D – Questionário para levantamento de concepções sobre a natureza da
ciência (alunos ingressos)
ANEXO E – Lista de Livros de Química analisados
ANEXO F – Lista de livros de Química analisados e disponibilidade na Biblioteca
Setorial de Química (BSQ)
ANEXO G – Protocolo de entrevistas
ANEXO H - Questionários para levantamento prévio de conceitos químicos
ANEXO I - Problemas
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Aspectos da natureza da ciência considerados consensuais
113
Quadro 2 – Instrumentos para levantamento de concepções sobre a natureza da
ciência (CNC)
124
Quadro 3 - Resumo do planejamento semestral de aulas
258
Quadro 4 – Primeira categoria epistemológica
280
Quadro 5 – Segunda categoria epistemológica
292
Quadro 6 – Terceira categoria epistemológica
314
Quadro 7 – Relações de proporcionalidade da quantidade de matéria (n)
340
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Resultado da análise de livros didáticos fundamentada na
história do atomismo no século XIX
243
Tabela 2 – Perfis dos egressos do Curso de Química entrevistados
261
Tabela 3 - Concepção de Ciência (alunos ingressos)
262
Tabela 4 - Etapas do método científico
267
Tabela 5 - Imagem do cientista (alunos ingressos)
270
Tabela 6 - Diferença entre lei e teoria científica (alunos ingressos)
272
Tabela 7 - Significado de modelo científico (alunos ingressos)
277
Tabela 8 - A origem do conhecimento científico
281
Tabela 9 - Concepção de ciência (alunos de QUI 040)
284
Tabela 10 - Alquimia como ciência
289
Tabela 11 - O método científico e as etapas deste método
293
Tabela 12 - O conceito de experimento
298
Tabela 13 - Diferença entre lei e teoria científica (alunos de QUI 040)
304
Tabela 14 - O contexto da descoberta científica
311
Tabela 15 - A concepção de modelo científico (alunos de QUI 040)
317
Tabela 16 - O uso de modelos científicos na ciência
322
Tabela 17 – Avaliação de livros didáticos em relação à apresentação
dos conceitos de quantidade de matéria e mol
345
Tabela 18 - Definições de mol nos livros didáticos
347
Tabela 19 - Definições de quantidade de matéria nos livros didáticos
347
Tabela 20 - Significado atribuído à grandeza quantidade de matéria
354
Tabela 21 - Citações dos alunos para o significado de massa
354
Tabela 22 - Citações dos alunos para o significado de número de
entidades elementares
354
Tabela 23 - Significado atribuído ao mol
355
Tabela 24 - Significado atribuído ao número de mols
355
Tabela 25 - Significado atribuído a constante de Avogadro
357
Tabela 26 - Conceitos que foram relacionados à quantidade de matéria
358
Tabela 27 - Cálculo da quantidade de matéria
359
Tabela 28 - Conceitos identificadas no segundo momento
363
Tabela 29 - Resultados das respostas a questão 01
367
Tabela 30 - Resultados das respostas a questão 02
368
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1
1
INTRODUÇÃO
15
16
CAPÍTULO 2
26
2
HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA: ENSINO E APRENDIZAGEM
27
2.1 História e Filosofia da Ciência na educação científica: alcances e limitações
39
2.2 Problemas envolvidos na reconstrução histórica
44
2.3 Buscando contribuições da historiografia contemporânea para o ensino “sobre”
as ciências
46
2.4 Aprendizagem significativa: conceitos básicos e modelo de ensino decorrente 49
CAPÍTULO 3
3
A FILOSOFIA DA CIÊNCIA E A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS
3.1 A Filosofia da Ciência: uma breve retrospectiva histórica
3. 1.1 A tradição racionalista
3.1.2 A tradição empirista
3.1.3 Positivismo e Positivismo Lógico
3.1.4 O Empirismo Lógico
3.1.5 A filosofia Popperiana
3. 2 Novos rumos da Filosofia da Ciência no século XX: teorias globalistas sobre
a ciência
3.2.1 Filósofos da ciência que destacamos como críticos a tradição positivista
3. 3 Questões epistemológicas e a educação científica
3.3.1 A concepção de Ciência
3.3.2 A relação entre observação e interpretação
3.3.3 A realidade do mundo e a possibilidade do homem conhecê-la
3.3.4 A questão do progresso científico
3.3.5 A Filosofia da Química e a construção de modelos
3.3.6 Modelos e modelagem na Educação Química
3.4 Implicações das “novas” Filosofias da Ciência para os currículos das ciências
54
55
58
59
60
64
69
72
74
76
82
84
87
89
93
95
97
99
CAPÍTULO 4
103
4
CONCEPÇÕES SOBRE A NATUREZA DA CIÊNCIA (CNC)
104
4.1 Concepções sobre a natureza da ciência: o difícil consenso dos significados 109
4.2 Concepções sobre a natureza da ciência: uma retrospectiva histórica
114
4.3 A compreensão da natureza da ciência possibilitando a alfabetização científica118
4.4 As pesquisas sobre concepções sobre a natureza da ciência
120
4.4.1 Concepções sobre a natureza da ciência dos estudantes
126
4.4.2 A influência de abordagens de ensino explícitas nas concepções sobre a natureza
da ciência
130
4.4.3 Algumas pesquisas sobre CNC publicadas no Brasil entre 1995-2004
136
CAPÍTULO 5
5
DELINEAMENTOS METODOLÓGICOS
5.1 Algumas informações metodológicas sobre a pesquisa histórica
5.2 A metodologia da investigação didática
5.2.1 Tipo de abordagem de pesquisa, o contexto e os sujeitos
5.2.2 O levantamento de dados: questões prévias
5.2.3 Procedimentos para coleta de dados, técnicas e instrumentos
5.2.4 Análise de dados
144
145
145
146
147
151
154
157
CAPÍTULO 6
6
CONTROVÉRSIAS SOBRE O ATOMISMO NO SÉCULO XIX
6.1 A relevância do tema escolhido
6.2 A visão corpuscular da matéria: uma concepção gestada na antigüidade
6.3 As visões continuistas e descontinuistas: do século XIV ao XVII
6.4 A filosofia mecânica
6.5 A possível origem do atomismo daltoniano
6.6 O atomismo daltoniano: iniciando um longo debate
6.7 A hipótese de Avogadro: possibilitando a relação entre o atomismo daltoniano
e a lei de Gay-Lussac
6.8 O atomismo na Física e na Química: pontos de vista diferentes no século XIX
6.9 A Física francesa no século XIX: questões epistemológicas subjacentes
6.10 Atomismo e equivalentismo: convergências e divergências
6.11 O Congresso de Karlsruhe e a procura de entendimento
6.12 O programa atomista fomentando discussões epistemológicas
6.13 Alternativas ao atomismo na Física
6.14 O energeticismo
6.15 A emergência da Físico Química
6.16 Energeticistas x Atomistas: debatendo sobre o atomismo
6.17 A constante de Avogadro
6.18 O trabalho de Jean Perrin e a aceitação da realidade atômica
6.19 Conclusão
160
161
161
164
167
168
176
180
CAPÍTULO 7
7
A HISTÓRIA DA CIÊNCIA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE QUÍMICA: O
ATOMISMO NO SÉCULO XIX
7.1 Algumas informações preliminares
7.2 Definição de critérios e categorias de análise
7.3 Os resultados obtidos
7.4 Analisando e discutindo os resultados
237
186
190
195
197
202
208
210
212
219
222
225
226
231
238
238
239
242
244
CAPÍTULO 8
8
INVESTIGAÇÃO DAS CONCEPÇÕES SOBRE A NATUREZA DA CIÊNCIA
DOS ALUNOS DE QUÍMICA
8.1 Antecedentes da pesquisa didática na disciplina História da Química
8.2 O resultado da primeira parte da pesquisa didática na disciplina História da
Química
8.2.1 Primeira categoria epistemológica: ciência e conhecimento científico
8.2.2 Segunda categoria epistemológica: a dinâmica da ciência e seus produtos
8.2.3 Terceira categoria epistemológica: a ciência e a representação da realidade
8.3 Reflexões finais da primeira parte da investigação didática
255
256
260
279
280
292
313
325
CAPÍTULO 9
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DE CONCEITOS CIENTÍFICOS E
9
APRENDIZAGEM
328
9.1 Os conceitos científicos de quantidade de matéria e mol
330
9.2 A gênese do mol como quantidade macroscópica de matéria
332
9.3 A constante de Avogadro possibilitando a mediação do macroscópico e do
microscópico
335
9.4 A redefinição do mol e suas implicações
337
9.5 O conceito de quantidade de matéria nos livros didáticos de Química
Geral
343
9.6 A aprendizagem dos conceitos de quantidade de matéria e mol
349
9.7 As idéias prévias dos nossos alunos sobre os conceitos de quantidade de matéria e
mol
352
9.8 O trabalho didático realizado na disciplina História da Química
360
9.9 Avaliando os resultados da segunda parte da pesquisa didática na disciplina
História da Química
362
9.10 Reflexões finais da segunda parte da investigação didática
369
CAPÍTULO 10
10
CONSIDERAÇÕES FINAIS
373
374
REFERÊNCIAS
381
ANEXOS
403
CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO
16
1 INTRODUÇÃO
A escolha do tema desta pesquisa teve uma forte motivação pessoal. Nos últimos
dez anos da nossa vida profissional, como professora de Química, conhecemos e nos
envolvemos prazerosamente com a História da Química. Este envolvimento foi
motivado pela necessidade de professores para ministrar a disciplina Evolução da
Química (QUI 104) no Departamento de Química Geral e Inorgânica da UFBA, do qual
fazemos parte do corpo docente. Esta disciplina, que atualmente passou a ser
denominada História da Química (QUI 040), tem como conteúdo programático a própria
história da construção dos conhecimentos químicos.
Após alguns anos do nosso ingresso na Universidade Federal da Bahia e, em
função da necessidade criada, dispusémo-nos a estudar os conteúdos necessários e
nos apaixonamos pela História da Ciência. Esta não foi uma tarefa fácil pois, como
engenheira química e mestre em Química Inorgânica, não havíamos tido nenhuma
formação nesta área. Aceitamos o desafio estimulados pela possibilidade de
estabelecer uma importante parceria com um colega de Departamento, o professor
Edilson Fortuna de Moradillo, que também aceitou ministrar a disciplina. Desde o início
contamos com todo o apoio do professor Pedro Sarno, que ministrava esta disciplina
desde a década de setenta e estava se aposentando. Ele foi um grande incentivador,
tendo nos ajudado muito no início da nossa caminhada, inclusive nos fornecendo livros
e artigos sobre o assunto.
A nossa aproximação com a História da Química, por outro lado, fez nascer um
profundo
desejo
de
continuar
a
trajetória
de
qualificação
nesta
direção.
Reconhecíamos, no entanto, a dificuldade para a concretização deste desejo. Ainda
17
não existia um curso de doutorado nesta área aqui na Bahia e não poderíamos nos
deslocar de Salvador para continuar a nossa formação em Universidade de outros
estados.
Algum tempo depois, começamos a vislumbrar a possibilidade de tentar a
seleção para o curso de doutorado na Faculdade de Educação da UFBA (FACED).
Imaginávamos que poderíamos realizar este curso desenvolvendo um projeto de
pesquisa que articulasse a História, a Filosofia e o Ensino de Química. Contando com o
incentivo de uma colega de Departamento, a professora Soraia Lobo, que já havia
ingressado no Doutorado na FACED e com o grande apoio do inesquecível professor
Felippe Serpa, fomos selecionados para o Doutorado da Faculdade de Educação da
UFBA. Iniciamos o curso em 2002, graças ao estabelecimento de uma importante
parceria entre o professor Felippe e o nosso atual orientador, professor Olival Freire
Júnior.
O interesse pelo tema também foi motivado por nossa percepção, durante os
mais de vinte anos como docente, que a imagem de ciência que parecia predominar
entre os alunos que ingressavam nas Universidades se fundamentava em visões
simplistas de ciência, que enfatizam os resultados e produtos e não o processo de
construção e legitimação do conhecimento científico. Esta situação se evidenciava nas
discussões travadas na disciplina História da Química, que tem como foco principal a
construção do conhecimento químico. Por outro lado, as concepções sobre a natureza
da ciência pareciam não se modificar substancialmente no decorrer da formação
universitária, o que nos estimulou a investigar esta questão.
Os problemas detectados no ensino tradicional das ciências tem sido um assunto
amplamente discutido nos meios acadêmicos. A abordagem de ‘ensino tradicional’
18
fundamenta-se
na
epistemologia
“empirista-indutivista”.
Considera-se
que
o
conhecimento científico é comprovado empiricamente, devendo ser aceito como correto
e inquestionável. A principal idéia é que estes conhecimentos vão se acumulando e se
tornando cada vez melhores, mais aprimorados, justificando o atual desenvolvimento
científico. O grande avanço da ciência é atribuído ao trabalho individual e neutro de
cada cientista e os discursos científicos costumam aparecer como verdades absolutas.
Neste tipo de ensino prioriza-se os conteúdos científicos e a aquisição máxima de
informações, negligenciando-se os aspectos da natureza da ciência e da dinâmica da
atividade científica. Nesta perspectiva, considera-se que o trabalho de professor é muito
simples pois deve se pautar na transmissão do máximo de informações para o
estudante, existindo a crença em que, para ser professor basta conhecer bem os
conteúdos científicos específicos.
O reconhecimento de que o ensino tradicional não está satisfazendo, é um
grande desafio a ser enfrentado através da inserção nos currículos tanto dos produtos
científicos quanto do processo que caracteriza a ciência, enfatizando-se a forma como
o produto e o processo estão relacionados com a própria estrutura e dinâmica da
ciência. Consideramos que qualquer caminho possível para se modificar esta situação
passa pela implementação de mudanças no sistema de formação dos docentes,
visando a superação de lacunas de caráter epistemológico e pedagógico detectadas
nesta formação.
Na literatura especializada existe o reconhecimento de que os professores de
ciências têm enfrentado dificuldades na sua atividade docente relacionadas ao ensino e
aprendizagem de conceitos científicos. A superação de uma aprendizagem mecânica
requer uma mediação pedagógica direcionada, para que aconteça uma aprendizagem
19
significativa dos conteúdos. Nesta situação, consideramos que, o processo de ensino
de conceitos científicos deve incluir informações sobre a construção destes conceitos. A
História da Ciência pode possibilitar o conhecimento do contexto em que surge um
determinado conceito, além da sua interação com outros conceitos, ajudando na
mediação adequada dos significados que devem ser adquiridos pelo estudante.
A preocupação com a formação docente é uma realidade em vários países. No
Brasil tem sido impulsionada por modificações na política educacional do governo para
os vários níveis de ensino: fundamental, médio e superior. As novas orientações
contidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e as Novas Diretrizes
Curriculares para os cursos de graduação, apontam a necessidade de uma formação
do professor de ciências com um maior conteúdo humanístico, com a inclusão de
conhecimentos básicos de História, Filosofia, Sociologia, Economia, História da Ciência
e dos Movimentos Educacionais, além de uma maior ênfase na prática de ensino. A
implementação de propostas concretas para atender a estas orientações são ainda
incipientes na área das ciências e da Química em particular.
A formação de um novo profissional docente requer uma maior preocupação com
a identificação de concepções epistemológicas e pedagógicas que se fazem presentes
nos currículos. O ensino e a aprendizagem parecem estar alicerçados nas concepções
compartilhadas durante a formação. A investigação destas concepções necessita de
conhecimentos relativos às Filosofia, História e Sociologia da Ciência que poderão
fornecer subsídios para que aconteçam as análises, discussões e reflexões. Este é um
processo longo e difícil, implicando num maior compromisso dos envolvidos: o
professor/formador e os seus alunos.
20
Algumas reformas curriculares foram realizadas na última década com o objetivo
de superar os problemas detectados, no entanto, elas não produziram ainda resultados
significativos, uma vez que, não conseguiram atingir de modo eficaz, os alunos e
professores. Em artigo publicado na Revista Química Nova, Mortimer; Machado e
Romanelli (2000) apresentam as idéias básicas que nortearam a elaboração do novo
currículo de Química para o Ensino Médio no Estado de Minas Gerais. Nas
considerações finais deste trabalho fica explícito a grande dificuldade que os
Professores de Química de Minas Gerais enfrentaram e continuam enfrentando para
implementar qualquer mudança na sua prática pedagógica, considerando a complexa
realidade da Educação Brasileira.
Desde 1998, teve início no Instituto de Química da UFBA, de forma não oficial, a
discussão da reconstrução dos currículos para as três habilitações do Curso de
Química (PENHA et al., 2002, 2003a, 2003b). Em uma reunião que aconteceu em
02/09/2000 foi constituída a primeira comissão para deslanchar o processo. A primeira
reunião que voltou a discutir o assunto só aconteceu em 24/09/2002. Entre essa data e
a aprovação da nova proposta em 26/10/2005, ocorreram dezoito reuniões que tiveram
como um dos pontos de pauta este assunto. A nossa expectativa é que a proposta já
aprovada seja efetivada no segundo semestre de 2006, refletindo as dificuldades para a
concretização de qualquer mudança curricular, o que decorre da complexidade inerente
ao próprio processo.
O atual modelo de formação docente ainda tem acontecido, predominantemente,
através do ensino tradicional, centrado na autoridade do professor e na imagem de
ciência empirista e positivista. Grande parte dos resultados das pesquisas que propõe a
21
modificação desta situação ainda se mantêm nos ambientes das academias ou nas
publicações em revistas especializadas, não se refletindo em mudanças significativas.
Consideramos que o conhecimento da ciência a partir de uma visão históricofilosófica pode ajudar na compreensão do processo de construção tanto da ciência
quanto dos conceitos científicos e no uso deste conhecimento para entender o mundo
contemporâneo, atingindo o objetivo maior da educação que é a de formação de
indivíduos críticos e socialmente atuantes.
Estas questões tornam-se cada vez mais importantes porque a “racionalidade
técnico-científica” tem influenciado muitas decisões da vida moderna. A prioridade do
ensino de ciências ainda é a transmissão de resultados da atividade científica aceitos
no âmbito acadêmico, o que tem proporcionado uma visão reducionista da ciência.
Reconhecendo a situação anteriormente apresentada, consideramos que seria
desejável ter a História e Filosofia da Ciência como conhecimentos estruturantes para a
formação inicial, tanto do bacharel quanto do futuro professor, ampliando e
enriquecendo este processo e possibilitando a construção de novos valores. A
utilização da História e Filosofia da Ciência na formação do bacharel é ainda uma
questão controversa; no entanto, já existe um amplo reconhecimento da importância
destes temas para a formação inicial e continuada do professor de ciências.
Por outro lado, as pesquisas sobre o levantamento de concepções sobre a
natureza da ciência de professores ou alunos, não apresenta resultados totalmente
conclusivos, mesmo considerando que esta linha de pesquisa já vem sendo
desenvolvida a mais de cinco décadas, em diferentes países. Esta é uma questão que
será aprofundada no Capítulo 4 desta tese.
22
No Brasil, na área da Química, as investigações com esta temática têm
acontecido em pequena quantidade. Consideramos que os resultados de pesquisas
neste tema poderão ajudar na compreensão da epistemologia implícita e explícita dos
professores e alunos e na sua relação com concepções didático/pedagógicas. Esses
estudos poderão fornecer subsídios para mudanças curriculares, bem como apontar
caminhos para a formação continuada de professores.
Este estudo, portanto, se insere na busca de alternativas para uma formação
inicial do professor de química, que contemplem em maior extensão, a dimensão
epistemológica nesta formação. Para realizar este trabalho, estruturamos de forma
diferente a disciplina em que atuamos, História da Química – QUI 040, buscando
interferir nas concepções sobre a natureza da ciência dos nossos alunos para ajudá-los
na compreensão do processo de construção do conhecimento científico. Imaginamos
que a História e a Filosofia da Ciência podem ser importantes alternativas para
implementar esta compreensão podendo contribuir, também, para a aprendizagem
significativa de conceitos científicos.
Esta pesquisa se constituiu num estudo de caso realizado no primeiro semestre
letivo de 2004 e no primeiro semestre letivo de 2005, envolvendo a nossa intervenção
como professora-investigadora na disciplina História da Química (QUI 040), lotada no
Departamento de Química Geral e Inorgânica, do Instituto de Química da UFBA e teve
uma função exploratória.
O problema inicial da pesquisa era, até que ponto uma disciplina específica de
História da Química poderia contribuir para que o aluno adquirisse concepções
‘adequadas’ sobre a natureza da ciência. O termo ‘adequado’ aqui utilizado toma como
referência as discussões e reflexões produzidas por filósofos da ciência pós-positivistas
23
como Bachelard, Popper, Hanson, Feyerabend, Kuhn, Laudan, entre outros, que
apresentaram idéias inovadoras sobre a ciência e o seu processo de construção
(Capítulo 3). Estas filosofias das ciências que se constituíram no século XX, têm se
destacado pela valorização tanto do contexto de produção da ciência, quanto da sua
justificação, incluindo modelos históricos e sociológicos para a construção do
conhecimento científico e possibilitando ‘imagens de ciência’ que têm influenciado na
educação científica.
As considerações anteriormente colocadas desdobraram-se numa problemática
que foi investigada envolvendo as seguintes questões:
1. o referencial histórico-epistemológico contribui para o estudante adquirir uma
imagem de ciência mais contextualizada, promovendo uma melhor formação inicial?
2. o conhecimento da História da Ciência e de controvérsias científicas pode ajudar o
aluno na compreensão da natureza da ciência e de conteúdos de natureza
epistemológica?
3. a compreensão de um conceito químico através da sua contextualização histórica,
pode contribuir para uma aprendizagem mais significativa deste conceito?
4. a abordagem que os livros de Química Geral utilizam para a apresentar a Teoria
Atômica de Dalton, sua origem e consolidação, tem considerado de forma adequada
os registros históricos?
5. os livros didáticos de Química Geral têm apresentado os conceitos de quantidade de
matéria e mol de acordo com as novas orientações da União Internacional de
Química Pura e Aplicada (IUPAC) para o ensino destes conceitos?
24
Estas são as perguntas mais gerais que deverão ser respondidas a partir desse
trabalho de tese, que incluiu a construção de uma nova proposta de ensino aplicada em
uma disciplina do curso de Química da Universidade Federal da Bahia.
Esta pesquisa incluiu, também, o uso de materiais didáticos com conteúdos em
História e Filosofia da Ciência, elaborados pela pesquisadora, cujo tema central
contemplou as controvérsias relativas à aceitação do atomismo no século XIX. A
história do atomismo e suas controvérsias foi um fio condutor que perpassou a
investigação realizada. Uma parte dos materiais didáticos foi elaborada após a
pesquisa histórica sobre o “tema gerador” selecionado. Como conseqüência desta
pesquisa produzimos um texto sobre a história dos conceitos de quantidade de matéria
e mol, usado como material didático na segunda parte da pesquisa didática (ANEXO A).
Esta tese foi dividida em dez capítulos, sendo que os capítulos 2, 3 e 4 tiveram
um caráter de revisão teórica, necessária ao seu desenvolvimento e os capítulos
subseqüentes 5, 6, 7, 8, 9 e 10 constituem, efetivamente, os produtos da nossa
pesquisa.
Inicialmente, apresentamos esta introdução; no segundo capítulo dissertamos
sobre a articulação entre a História e Filosofia da Ciência e o ensino e a aprendizagem
das ciências; no terceiro capítulo elaboramos uma retrospectiva histórica da Filosofia da
Ciência e da sua importância na educação. O quarto capítulo apresenta uma revisão de
trabalhos envolvendo concepções sobre a natureza da ciência (CNC); o quinto capítulo
refere-se ao delineamento metodológico da investigação didática e da pesquisa
histórica; o sexto capítulo apresenta o resultado da pesquisa histórica do tema
selecionado: “Controvérsias sobre o atomismo no século XIX” e que foi transformado
em parte do material didático utilizado na disciplina. No sétimo capítulo apresentamos a
25
análise de livros didáticos de Química Geral tomando como base a história do atomismo
no século XIX. No oitavo e nono capítulos analisamos e discutimos os resultados das
duas etapas da investigação didática: no oitavo capítulo as concepções sobre a
natureza da ciência e no nono capítulo a aprendizagem de conceitos químicos. No
décimo e último capítulo tecemos algumas considerações que pretendem sistematizar
os principais pontos discutidos na nossa pesquisa e possíveis conclusões obtidas no
decorrer do processo.
Antes de passarmos ao segundo capítulo, gostaríamos de explicitar duas opções
de ordem organizacional adotadas nesta tese.
A primeira delas envolveu a retomada de algumas informações históricas e de
natureza metodológica no capítulos 8 (aprendizagem de conceitos químicos), em
função do desdobramento desta parte da nossa pesquisa e das suas especificidades.
Como o nosso trabalho utilizou uma abordagem qualitativa, fizemos uso da maior
liberdade de imersão no referencial teórico, na medida da sua necessidade, para ajudar
na interpretação e justificação dos resultados.
A segunda opção se refere a não inclusão dos livros didáticos de Química Geral
nas referências citadas a partir da página 381, optamos por colocar separadamente, no
Anexo E, a relação de todos os livros de Química Geral analisados.
CAPÍTULO 2
HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA:
ENSINO E APRENDIZAGEM
27
2 HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA: ENSINO E APRENDIZAGEM
Embora argumentos favoráveis ao uso de abordagens históricas no ensino de
ciências possam ser encontrados desde o século XIX, não existe até a atualidade uma
posição consensual sobre a relação existente entre este tipo de abordagem e um
melhor rendimento dos alunos nas disciplinas científicas. Nas últimas décadas, muitas
pesquisas realizadas em diferentes países têm reconhecido a importância da História e
da Filosofia da Ciência para a Educação em Ciências, no entanto, ainda é pequeno o
número de iniciativas para a utilização deste tipo de abordagem no ensino tradicional, o
que justifica as dúvidas que ainda são detectadas sobre a importância da sua utilização
(MATTHEWS,1994; RODRÍGUEZ; NIAZ, 2002; SEQUEIRA; LEITE, 1988).
A aproximação entre a História e Filosofia da Ciência e a educação científica tem
sido possibilitada por ações oficiais e não oficiais fomentadas em diferentes países.
Como conseqüência tem havido uma maior valorização da História da Ciência em
currículos que têm emergido de reestruturações curriculares mais recentes. Alguns
exemplos que concretizam essa tendência são: os relatórios do Projeto 2061 da
American Association for the Advancement Science (AAAS/U.S.A.); The Liberal Art of
Science do British National Curriculum Council (BNCC/Inglaterra); Science Council of
Canada (SCC/Canadá); Danish Science and Technology Curriculum (Dinamarca);
PLON Curriculum Materials (Holanda); Parâmetros Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio/PCNs e Novas Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação
(MEC/Brasil).
Muitos trabalhos realizados para a inclusão da História e Filosofia no ensino das
ciências são bastante teóricos e não apresentam dados referentes à aplicação prática.
28
Nesse contexto, as dificuldades dos alunos não são detectadas e as alternativas
oferecidas não trazem inovações efetivas, não chegando a ser testadas. Outra
importante questão é a insuficiência de materiais didáticos com este enfoque, que
poderiam possibilitar a mediação didática das reflexões e estudos históricos teóricos
para situações concretas de ensino.
A abordagem da educação em ciência informada pela História e Filosofia da
Ciência é conhecida por abordagem contextual ou liberal (MATTHEWS, 1994, p.1). Ela
faz parte de uma tradição de educação em ciência que tem sido em certos períodos
marginalizada e em outros muito valorizada. Entre os possíveis precursores deste tipo
de abordagem estão alguns cientistas e/ou filósofos como Ernst Mach, Wilhelm
Ostwald, Pierre Duhem, Paul Langevin, John Dewey, James Conant, Joseph Schwab,
Gerald Holton, entre outros, incluídos nessa tradição (FREIRE JUNIOR, 2002;
MATTHEWS, 1994; RODRÍGUEZ; NIAZ, 2002).
As críticas a educação científica tradicional, predominantemente ortodoxa e não
contextual tem justificado a necessidade de um novo enfoque para a educação
científica. Esta situação reflete alguns dados preocupantes citados por Matthews (1994)
e que merecem ser divulgados:
•
grande parte da população escolarizada não sabe o significado de conceitos
científicos básicos (esta é uma situação identificada na maior parte dos
países);
•
visões anti-científicas e “pensamento ilógico” são muito comuns entre a
população;
29
•
cerca de setenta por cento dos estudantes norte-americanos não incluem
Ciência no seu programa escolar.
No Brasil, num estudo de revisão que incluiu o levantamento sobre inovações e
tendências do currículo de Física, Carvalho e Vannucchi (1996) analisaram propostas e
trabalhos apresentados em encontros científicos sobre ensino de Física realizados nos
quatro primeiros anos da década de 90. Estes pesquisadores constataram a prioridade
de propostas que defendiam a inclusão de História e Filosofia nos currículos escolares,
no entanto, esta tendência não se refletiu em inovações curriculares e não se
concretizou em novas propostas didáticas. Os resultados obtidos levaram os autores
deste artigo a sugerir a realização de novas pesquisas para investigar as razões que
têm dificultado a concretização dessa abordagem na realidade educacional brasileira,
nos seus diferentes níveis de ensino.
Um dos mais importantes pesquisadores que tem defendido a relevância da
História e da Filosofia no ensino das ciências é Michael Matthews. Em artigos e livros
escritos sobre esse assunto, ele defende a importância destes conteúdos no ensino
sobre as ciências, tão importante quanto o ensino de ciências. O ensinar sobre as
ciências inclui tanto a discussão da dinâmica da atividade científica, da sua
complexidade manifestada no processo de produção de hipóteses, leis, teorias,
conceitos etc., quanto da justificação, validação, divulgação e aceitação do
conhecimento científico produzido. Não é ensino dos resultados da ciência mas,
envolve alguma compreensão da dinâmica inerente à produção do conhecimento
científico.
As preocupações com aproximação da História e Filosofia do ensino das
Ciências têm refletido uma tendência mundial de humanização da ciência. Embora
30
tentativas de utilização deste tipo de abordagem no ensino tenham acontecido desde as
primeiras décadas do século XX, somente ao final da década de 40, as experiências
realizadas começaram a ter uma maior repercussão. Naquele período, o químico e
educador americano James B. Connant introduziu na educação em ciências o estudo
de certos episódios da Historia da Ciência, que ficaram conhecidos como: History of
Science Cases. A sua idéia era que o estudo de como a ciência se desenvolveu poderia
ajudar na compreensão da sua natureza (WANG; MARSH, 2002).
A abordagem contextual ganhou importância nos Estados Unidos após a
Segunda Guerra Mundial, influenciada pelo trabalho realizado por Connant e seus
materiais didáticos inovadores com conteúdos em História e Filosofia da Ciência. Um
outro precursor deste tipo de abordagem foi Gerald Holton, que apresentou uma nova
metodologia para o ensino de Física, a abordagem conectiva1, valorizando as relações
entre conteúdos específicos da Física e os diferentes campos como Astronomia,
Biologia, Química, Economia, Filosofia, Matemática, Engenharia, História, Literatura,
Psicologia, etc. (HOLTON, 1963).
Defendendo a reaproximação entre historiadores e educadores em ciência,
Holton (2003) sugere cinco possíveis caminhos para promover uma ponte entre as
ciências e as humanidades. O primeiro seria a promoção de atividades de cooperação
entre historiadores da ciência e educadores que apoiam a aproximação da História e
Filosofia da Ciência da Educação em Ciências.
1
O termo abordagem conectiva é similar ao termo abordagem contextual ou liberal utilizado por Matthews.
31
A segunda possibilidade seria o apoio a pessoas que tenham se distinguido em
um dos dois campos e, ao mesmo tempo, tenham interesse no outro, o que poderia ter
um forte efeito multiplicador. Uma terceira forma de incentivar uma maior cooperação
seria possibilitando o aumento no número de publicações com este enfoque e a
participação conjunta de profissionais dos dois campos em encontros científicos
envolvendo as duas áreas. O quarto caminho incluiria a elaboração e implementação
de projetos para utilização da História e Filosofia no Ensino de Ciências e, finalmente, o
estímulo à produção de materiais curriculares como livros, textos, publicações
suplementares, filmes e “websites” que ajudem na aproximação entre as duas culturas.
Nesse artigo, três personalidades foram destacadas como eficientes articuladores da
História e Filosofia da Ciência com a educação científica: George Sarton, Jammes
Bryant Conant e Isidor Isaac Rabi.
O primeiro deles, George Sarton, foi matemático e se tornou um dos principais
divulgadores da inclusão da História da Ciência no Ensino de Ciências. Em 1913
fundou o jornal Isis, um dos mais importantes periódicos da área de História da Ciência.
O segundo exemplo citado foi James B. Conant que teve uma intrigante e complexa
motivação ideológica para as suas atitudes. Ele considerava essencial para uma
“alfabetização científica” o conhecimento da História, tanto quanto da Ciência. Estes
conhecimentos possibilitariam o entendimento das “táticas e estratégias da ciência”,
necessárias à preservação da civilização e ao pleno exercício da cidadania. Um
entendimento da ciência no seu contexto histórico, ajudaria a melhorar práticas
democráticas, facilitando nas decisões relacionadas à ciência e à tecnologia, por parte
de cada indivíduo. O último exemplo citado foi Isidor Isaac Rabi, físico da Universidade
de Columbia, que se destacou por apresentar a ciência e os seus métodos ao lado da
32
sua História. Rabi ganhou Prêmio Nobel de Física em 1944, pelo trabalho com
Ressonância Magnética Nuclear (RMN) e, como era fascinado pela História defendia a
articulação das duas tradições: a Ciência e as Humanidades. Dois anos antes de Snow
(1995) ter reconhecido a lacuna existente entre estes dois campos e a necessidade de
aproximação, ele já defendia que um bom ensino de ciência devia adotar uma
abordagem mais ampla com a incorporação da História da Ciência.
A humanização da educação científica tem sido um tema recorrente. Wang e
Marsh (2002) identificaram três períodos históricos relacionados às tentativas de
humanização da educação em
ciências nos Estados Unidos, nas quatro últimas
décadas do século XX:
¾
a idade áurea da educação em ciência deflagrada pela reação chamada de “pós-
sputinik”; esta fase resultou em grandes mudanças visando formar cientistas mais
competitivos e superiores àqueles formados na União Soviética. Muitos projetos foram
formulados, alguns deles relativamente bem sucedidos. Entre os projetos que visavam
apresentar os conteúdos científicos numa abordagem histórico-filosófica, destaca-se o
“Projeto Harvard” elaborado por Gerald Holton, Fletcher G. Watson e F. James
Rutherford, a partir de 1962. Este projeto teve uma boa aceitação naquela época e
incluiu a elaboração de seis volumes contendo textos que apresentavam os diferentes
conteúdos científicos nesta nova abordagem.
¾
A educação em ciência para a cidadania caracterizou as décadas de 70 e 80;
considerada como o segundo período de humanização da educação científica
americana. Os reformadores defendiam um currículo que fosse relevante e atraente
para todos os estudantes. Esta abordagem teve alguns reflexos positivos relacionados
à compreensão da ciência e ao desenvolvimento de habilidades de investigação dos
33
estudantes; no entanto, este movimento declinou com o surgimento de iniciativas para
reformas mais abrangentes.
¾
O terceiro período teve início ainda na década de 80, a partir da análise de relatórios
que denunciavam o fraco desempenho de estudantes americanos comparado com de
outros países, em relação a testes de entendimento sobre a ciência. Para a superação
desta situação foram propostas estratégias e projetos envolvendo diferentes setores da
sociedade e do governo. Entre estes projetos destacou-se o “Projeto 2061”, formulado
pela “Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAC)” e que resultou na
elaboração de importantes documentos e no estabelecimento de metas arrojadas que
incluíam recomendações que consideravam a formação científica num sentido
‘alargado’. Esta é ainda hoje uma preocupação dos americanos que precisam motivar
seus alunos para estudar ciências, cujo ensino não é obrigatório no nível médio.
A proposta apresentada no relatório final do “Projeto 2061”, corresponde à
primeira fase de sua concretização, tendo originado o livro Ciências para Todos (AAAS
- Ciência para Todos/Projeto 2061, 1995). Neste documento retoma-se uma abordagem
humanística para a educação em ciência; o prazo apresentado para que as mudanças
aconteçam é suficientemente amplo para que possa ser viável. A História da Ciência é
considerada como um conhecimento indispensável para a humanização da ciência e
para o enriquecimento cultural, passando a assumir o elo capaz de conectar a ciência e
a sociedade. Uma das importantes recomendações desse projeto consiste em: ensinar
menos para ensinar melhor. É deixado aos curriculistas a importante tarefa de promover
reestruturações visando muito mais eliminar conteúdos de ensino do que os
acrescentar.
34
Não é necessário exigir das escolas que ensinem conteúdos cada vez mais alargados,
mas sim que ensinem menos para ensinarem melhor. Concentrando-se em menos
temas, os professores podem introduzir as idéias gradualmente, numa variedade de
contextos, aprofundando-as e alargando-as à medida que os estudantes amadurecem.
Os estudantes acabarão por adquirir conhecimentos mais ricos e uma compreensão
mais profunda do que poderiam esperar adquirir a partir de uma exposição superficial de
mais assuntos do que aqueles que seriam capazes de assimilar. O problema, para quem
escreve os currículos, é, portanto, muito menos o que acrescentar do que o que eliminar
(AAAS, CIÊNCIA PARA TODOS, 1995, p.21). (Grifo nosso)
Um problema da utilização didática da abordagem contextual tem sido os
sucessos e insucessos das iniciativas e as descontinuidades detectadas. O Projeto
Harvard de ensino de Física fez uso desta abordagem na década de 60 apresentando
um currículo escolar de ciências fundamentado em princípios históricos e preocupado
com as dimensões cultural e filosófica da ciência. Esse projeto foi o mais amplamente
utilizado com este enfoque, tendo atingido 15% dos alunos de primeiro e segundo graus
nos Estados Unidos. Os principais êxitos alcançados foram: diminuição da evasão
escolar, aumento do interesse das mulheres pelos cursos de ciências, desenvolvimento
do raciocínio crítico e melhor rendimento nas avaliações (FREIRE JUNIOR, 2002;
MATTHEWS, 1994).
Apesar dos pontos positivos, o Projeto Harvard não teve a continuidade
desejada, principalmente devido às dificuldades enfrentadas pelos professores para a
sua concretização. No entanto, ele tem sido mencionado na literatura como um
exemplo bem sucedido de utilização no ensino da História da Ciência. No que pese o
projeto, o distanciamento entre a História, a Filosofia da Ciência e o ensino se manteve
nas décadas de 70 e 80, refletindo tanto a influência da psicologia behaviorista na
educação, quanto o predomínio da tendência “teorética-especialista”, que foram
35
algumas das alternativas norteadoras das reformas educacionais acontecidas nos
Estados Unidos naquele período (FREIRE JUNIOR, 2002; MATTHEWS, 1994).
Nas últimas décadas, trabalhos publicados na área da Didática das Ciências têm
reconhecido a importância da História e da Filosofia da Ciência (GAGLIARD, 1988;
JUSTI; GILBERT, 1999, 2000; LEITE, 2002; MATTHEWS, 1990; NIAZ, 2001; PAIXÃO;
CACHAPUZ, 2003; SOLBES; TRAVERS, 1996; WORTMANN, 1996).
A valorização desses assuntos para a formação do professor de Ciência tem
crescido na comunidade científica; apesar disto, a inclusão destes temas nos currículos
ainda segue um modelo tradicional, onde geralmente disciplinas específicas abordam
estas questões e a articulação com a didática é extremamente frágil ou inexistente.
Wortmann (1996) considera que uma das possibilidades de intensificação da
aproximação entre a Didática, a Filosofia e a História das Ciências pode acontecer
através da revisão do conteúdo conceitual das diferentes áreas do conhecimento
visando o seu redimensionamento.
Uma importante linha de articulação entre a Epistemologia, a História da Ciência
e a Didática tem sido a associação da História da Ciência e a Psicogênese do
conhecimento. As investigações desenvolvidas com este enfoque tomam como
referência o estudo desenvolvido por Piaget e Garcia (1991), que procurou associar os
níveis da psicogênese à construção histórica dos conceitos, para compreender de que
maneira o desenvolvimento cognitivo individual e o processo de desenvolvimento
conceitual histórico podem estar relacionados. Estes educadores, no entanto,
reconhecem que os paralelismos entre a construção do conhecimento científico na
História e na mente do estudante devem ser vistos com muito cuidado, em função das
especificidades das duas situações.
36
Estudos que relacionam a evolução das idéias ao longo da história e o
desenvolvimento cognitivo individual, tiveram alguma repercussão no ensino, dentro da
modalidade de estudos sobre mudança conceitual. Bizzo (1992) defende que os
estudos sobre “misconceptions”(concepções alternativas ou concepções errôneas), se
aproximaram da História da Ciência com objetivos de interpretar o discurso dos
estudantes, utilizando-se, muitas vezes, de interpretações “whig”2 que são muito
criticadas. Este autor lembra que “paralelos muito fortes entre o discurso dos
estudantes e o dos cientistas do passado devem ser vistos com muito cuidado” (BIZZO,
1992, p. 34).
Consideramos que, tanto o estudo do desenvolvimento cognitivo individual,
quanto da evolução das idéias ao longo da História, são campos de grande importância
para o ensino de ciências, não cabendo no entanto, o estabelecimento de
correspondências
indevidas
entre
estes
dois
campos
que
poderia
levar
à
ultrapassagem dos limites de cada um. A evolução das idéias e as modificações
teóricas ao longo da história podem ser úteis na compreensão dos mecanismos de
explicação da ciência, na compreensão da articulação entre os diferentes conceitos e
as redes conceituais, bem como na identificação de conceitos ainda empregados pelos
estudantes e já modificados no âmbito da ciência. O principal objetivo a ser alcançado
deve ser a promoção de uma atitude dialógica entre a construção do conhecimento na
ciência e a construção do conhecimento pelo aluno.
Na discussão sobre a importância da História da Ciência para o ensino de
Ciências encontra-se implícita a discussão sobre os objetivos da educação científica
nos seus diferentes níveis, necessitando que se faça distinção do nível de ensino a ser
2
Abordagem historiografica que seleciona elementos do passado capaz de justificar o conhecimento presente.
37
focalizado. A utilização da História da Ciência pelo historiador ou para fins pedagógicos
deve ser avaliada através de critérios diferentes porque as duas atividades têm
objetivos distintos. Anteriormente, discutindo sobre essa questão, Abrantes (1988)
defendia que o ensino de História da Ciência não deveria ser misturado com o ensino
de Ciências, porque poderia reduzir o potencial crítico que essa História teria para a
formação do cientista. No entanto, em trabalho mais recente, Abrantes (2002)
reconheceu a relevância desses conteúdos para a formação dos professores de
ciências, o que teria como conseqüência a influência na formação dos estudantes.
Para Abrantes (2002), a principal função da História da Ciência no ensino,
qualquer que seja o nível considerado, é desenvolver um senso crítico relacionado às
imagens de ciência e de natureza que prevaleceram nos diferentes momentos
históricos e, freqüentemente, veiculadas de modo distorcido. Uma outra contribuição é
localizar a atividade científica na sociedade, contextualizando-a historicamente e
estabelecendo relacões com outros elementos culturais.
Este mesmo autor considera que a investigação histórica de episódios da ciência
pode revelar a articulação existente entre imagens de natureza e imagens de ciência e
o condicionamento recíproco existente entre estas imagens. O termo imagem de
natureza é utilizado para os pressupostos ontológicos de um programa de pesquisa,
enquanto que a imagem de ciência se refere aos pressupostos epistemológicos e
metodológicos da atividade científica. O uso do termo imagem, em ambos os casos,
visa reforçar a interdependência sugerida e o tratamento global para as diferentes
categorias de imagens (ABRANTES, 1998).
Consideramos que a abordagem contextual é uma poderosa ferramenta para
promover o entendimento geral da ciência contribuindo para a alfabetização científica
38
através da compreensão da natureza da ciência, da inter-relação entre a ciência e as
humanidades, da ética e do trabalho do cientista, das relações entre ciência, tecnologia
e sociedade, entre outros.
Klopfer e Cooley (1963) consideram que uma abordagem da educação científica
informada pela História e Filosofia da Ciência, prepara o indivíduo para desenvolver o
entendimento dos aspectos conceituais, procedimentais e contextuais da ciência. A
operacionalização de propostas curriculares que incluam estes conteúdos requer uma
melhor qualificação dos professores, novos materiais e até mesmo novos critérios de
avaliação.
Para Kauffman (1989), a formação profissional do químico sem a inclusão da
História permanece insatisfatória e incompleta. Este pesquisador considera que os
químicos em geral, têm pouco interesse na sua história, predominando na educação
química um caráter anti-histórico. Os principais objetivos da Educação Química nas
Universidades tem sido: o treinamento de profissionais químicos ou de outras áreas, a
utilização majoritária de uma visão dogmática, linear e acumulativa do conhecimento e
o interesse na Química pelo seu valor prático e inúmeras aplicações tecnológicas.
Alguns educadores defendem a inclusão da História no currículo de Química inclusive
no nível médio (CHASSOT, 1993; 2000; KAUFFMAN, 1989).
A integração da História da Ciência no ensino de ciências tem acontecido através
da utilização de diferentes abordagens, a exemplo de: trabalhos interdisciplinares, uso
de tópicos geradores, como biografias, descobertas importantes, aniversários de
cientistas, utilização de experiências antigas e abandonadas, estudo de casos ou
episódios históricos. Nesses trabalhos são usados diversos materiais didáticos como
39
livros raros, fontes primárias com artigos originais, artigos de revistas obtidos através da
Internet, livros paradidáticos, etc.
Algumas experiências que utilizam abordagens contextuais realizadas em países
como Inglaterra e Estados Unidos, encontraram dificuldades para sua consolidação
decorrentes da inadequada formação dos professores para sua implementação. Uma
melhor formação do professor nos parece ser o caminho possível para que essa
abordagem seja retomada e concretizada.
Os defensores da abordagem contextual consideram que o ensino sobre ciências
deve incluir o modo de produção e validação do conhecimento científico, além da sua
dimensão cultural, possibilitando a compreensão de uma visão crítica do processo. A
inclusão destas dimensões ajudaria a evitar a dogmatização do conhecimento científico,
fundamentado no rigor do método científico, na exatidão dos resultados obtidos e na
crença de uma verdade absoluta (IZQUIERDO, 1996;MATTHEWS, 1994).
2.1 História e Filosofia da Ciência na educação científica:
alcances e limitações
Algumas vantagens são apresentadas na literatura para o uso da história no
ensino: (BRUSH, 1974; KAUFFMAN, 1989; LOMBARDI, 1997; MATTHEWS, 1994;
SÀNCHEZ-RON, 1988)
™
melhoria da motivação e a possibilidade de trabalhar o conteúdo de modo
mais criativo e integrado;
™
humanização da visão de ciência;
™
mudança na visão de ciência como processo e não como um produto;
40
™
percepção do caráter dinâmico do conhecimento científico;
™
compreensão da articulação de eventos em determinados períodos da
História e contextualização das descobertas;
™
conhecimento de problemas internos à comunidade científica e a
valorização de debates científicos;
™
compreensão da gênese de conceitos e teorias.
Muitos educadores reconhecem que a História da Ciência não deve se deter
meramente em apresentar conclusões obtidas por cientistas mas, mostrar como estas
conclusões foram alcançadas e quais as alternativas existentes nos diferentes
períodos. A compreensão da dinâmica da investigação científica pode acontecer
através da sua história, incluindo tanto caminhos indutivos quanto dedutivos que são
intercambiáveis (BRUSH, 1974; SCWAB, 1962 apud RODRÍGUEZ; NIAZ, 2002).
O conhecimento dos sucessos e insucessos das teorias, as grandes
controvérsias científicas e as modificações nas imagens de natureza podem ajudar a
esclarecer a provisoriedade dos resultados considerados como verdades absolutas. O
papel da comunidade científica envolvida no processo e na validação dos resultados
poderão ser evidenciados.
O estudo de controvérsias na História da Ciência é defendido por Freitas (1988),
Madras (1955) e Silverman (1992) que consideram este tipo de estudo como capaz de
ajudar o estudante a entender a Ciência através das circunstâncias sobre as quais
problemas foram reconhecidos, dados acumulados, leis formuladas e teorias propostas.
De acordo com Madras, as circunstâncias que determinaram o envolvimento dos
cientistas em controvérsias estão intimamente relacionadas com os aspectos
experimentais e interpretativos da ciência em um dado ambiente intelectual.
41
Algumas desvantagens para o maior uso da História no ensino das ciências são
também apresentadas na literatura (BRUSH, 1974; LOMBARDI, 1997; SÀNCHEZ-RON,
1988):
™
o não reconhecimento dos diferentes pontos de vista e interesses do
cientista e do historiador ;
™
a visão distorcida do passado e da História;
™
a decepção com o comportamento e posturas de alguns cientistas quando
se conhece mais profundamente sobre sua história;
™
a complexidade de alguns episódios da História cuja simplificação pode
ser muito prejudicial;
™
o uso de preconceitos e uma visão “presentista” para julgar fatos e
narrativas históricas;
™
a questão da interpretação envolvendo a subjetividade do historiador no
processo de reconstrução.
Muitos argumentos contra o emprego da História da Ciência no ensino
questionam a necessidade de simplificação da própria história para fins didáticos, o que
é indesejável por distorcer a própria História e diminuir a qualidade do seu conteúdo
(BRUSH, 1974; WANDERSEE, 1992; WHITAKER, 1979).
Wandersee (1992), aprofunda a sua crítica introduzindo o conceito de quasehistória ou seja, uma história simplificada, reescrita para fins didáticos e sujeita a
distorções que podem influenciar nas concepções das ciências de cada professor.
Analisando alguns trabalhos sobre a utilização da história no ensino, Whitaker
(1979) concluiu que muitos relatos históricos são elaborados ou com fins pedagógicos
ou com objetivo de apoiar a concepção epistemológica do seu autor.
42
As críticas apresentam em comum dois pontos básicos: a questão da
simplificação da história e a interpretação dos fatos históricos ou da sua reconstrução.
Em ambas as situações, a subjetividade do autor é um fator determinante, podendo
comprometer a qualidade da narrativa.
Embora se reconheça que a escolha do tema a ser discutido pode levar a um
inevitável reducionismo, em função das condições reais para se trabalhar com o
assunto na dinâmica da sala de aula e no pouco tempo disponível, estas dificuldades
podem ser minimizadas se os materiais didáticos utilizados apresentarem “uma história
simplificada, que lance uma luz sobre os conteúdos discutidos e que não seja uma
mera caricatura do processo histórico” (MATTHEWS, 1995, p.164). Este autor
reconhece que a simplificação deve considerar a faixa etária dos alunos e as
especificidades do
currículo de cada situação. Neste processo estão em questão
também a visão de mundo do professor e as suas concepções de ciência, de ensino,
etc. Argumentando sobre a importância da utilização pedagógica da História da Ciência,
Matthews (1995) apresentou o seguinte comentário:
[...] O problema hermenêutico de interpretação na história, longe de dificultar ou impedir
o uso da história, pode tornar-se uma boa ocasião para que os alunos sejam
apresentados a importantes questões de como lemos textos e interpretamos os fatos,
isto é, ao complexo problema do significado: a partir de seu dia a dia, os alunos sabem
que pessoas vêem as coisas de forma diferente; portanto, a história da ciência constituise num veículo natural para se demonstrar como esta subjetividade afeta a própria
ciência (MATTHEWS, 1994, p. 177).
Pesquisando sobre o uso da dimensão histórica, epistemológica e sociológica na
educação em ciência em quarenta países, Wang e Schmidt (2001) concluíram que a
inclusão destas dimensões no ensino não resultaram necessariamente num melhor
rendimento relativo à aprendizagem dos conteúdos específicos. Estes pesquisadores
43
consideram que um maior conteúdo de História, Filosofia e Sociologia das Ciências na
preparação e aperfeiçoamento do professor das ciências pode ser o meio para realçar a
alfabetização científica dos alunos. Este estudo também revelou que as abordagens
para a inclusão destas dimensões podem ser diferentes, não existindo um único meio
de melhorar a qualidade da educação científica, considerando-se inclusive as
diferenças culturais existentes em cada país.
A contribuição da História da Física para a Educação em Física também foi
investigada por Seroglou e Koumaras (2001) ao longo do século XX. Estes
pesquisadores constataram um gradual deslocamento no foco de interesse das
pesquisas da dimensão cognitiva para a metacognitiva a partir de 1965. Este fato foi
relacionado com uma maior valorização da natureza da ciência e do relacionamento
entre a ciência e a sociedade através da inclusão de estudos da História da Física no
ensino.
Estes
estudos
contribuíram
para
o
desenvolvimento
de
habilidades
metacognitivas nos estudantes.
Segundo Wandersee (1992), além da inadequada formação profissional, em
alguns trabalhos tem sido apontada uma dificuldade técnica para inclusão de um maior
conteúdo de História, Filosofia e Sociologia da Ciência no ensino: o maior tempo
necessário para uma abordagem neste contexto. Muitos professores reconhecem a
importância de ajudar o aluno a compreender os mecanismos de produção e
funcionamento da ciência, embora encontrem dificuldades em conciliar estas
dimensões com o grande conteúdo a ser ensinado e a pouca atenção dispensada a
estes conteúdos nos livros didáticos.
Algumas alternativas podem ser viabilizadas para superar essas dificuldades.
Uma possibilidade envolve o processo de seleção cultural do conhecimento escolar
44
através de investigações que articulem a Didática, a História e a Filosofia da Ciência.
Neste caso, deve-se buscar o necessário redimensionamento dos temas que são
incluídos de modo acrítico nos currículos (ASTOLFI; DEVELAY, 1995; WORTMANN,
1996). Outra opção pode acontecer com o desenvolvimento de materiais didáticos
apropriados que estabeleçam uma rede de relações conceituais, indispensável à
compreensão de conceitos científicos estruturantes. As análises históricas e filosóficas
podem possibilitar a identificação de “conceitos estruturantes” que “permitiram e
impulsionaram a transformação de uma ciência, a elaboração de novas teorias, a
utilização de novos métodos e novos instrumentos conceituais” (GAGLIARDI 1988,
p.291).
2. 2 Problemas envolvidos na reconstrução histórica
A relação entre o passado e o presente tem se revelado um assunto complexo no
âmbito da historiografia da ciência, embora nem sempre esta complexidade seja
percebida nos registros produzidos. Abrantes (2002), considera que as historiografias
que visam a compreensão e a explicação do passado das ciências são mais adequadas
para promover a função crítica, que cabe à História da Ciência. Estes gêneros
historiográficos visam uma melhor compreensão do presente, buscando manter
fidelidade com o contexto histórico do passado que possa ter influenciado aspectos do
conhecimento científico contemporâneo. Esse autor defende uma História da Ciência
filosoficamente orientada e sensível às imagens de natureza e de ciência que
condicionaram a prática dos cientistas nos diferentes contextos (ABRANTES, 1998).
45
Algumas abordagens historiográficas da ciência se caracterizaram por selecionar
alguns elementos do passado capazes de justificar o conhecimento atualmente
validado, uma reconstrução distorcida e utilitária do passado. Este tipo de abordagem
foi muito utilizada no século XIX, estando relacionada com a tese de continuidade e
acumulação do conhecimento e com o caráter linear adotado para o desenvolvimento
desta historiografia, conhecida como “whig” ou “whiggismo” (BUTTERFIELD, 1949, p.v
apud MATTHEWS, 1994; CABRAL, 1996).
Esta abordagem teve como objetivo estudar o passado para compreender o
presente, julgando o passado à luz do presente e com referência ao conhecimento
atual. Trabalhos e personagens que tivessem contribuído para as idéias científicas
aceitas hoje eram valorizados; outras propostas já ultrapassadas e abandonadas eram
menosprezadas.
A historiografia ‘whig’ tem sido objeto de muitas críticas. Os principais aspectos
criticados são a sua linearidade, o anacronismo e a capacidade de apresentar uma
visão distorcida dos fatos, restringindo-se a uma “história dos sucessos”. Kuhn (1996)
considera que esta historiografia anacrônica teve como resultado uma história
teleológica das ciências.
Os críticos deste tipo de historiografia questionam a interpretação do passado a
partir do conhecimento presente. Considera- se que os êxitos e fracassos só podem ser
julgados em relação ao contexto de cada época, no entanto, a dificuldade de se despir
do próprio contexto, coloca em questão a impossibilidade de um enfoque diacrônico
restrito nessa reconstrução.
A possibilidade dos distintos enfoques historiográficos tem sido debatida no
âmbito da Filosofia da Ciência. Algumas escolas filosóficas, a exemplo dos “globalistas”
46
têm enfatizado a História da Ciência em suas análises. As teorias globalistas da ciência
e as “novas filosofias das ciências” que tiveram origem no último século, questionaram
a distância entre a prática científica concreta e o ideal lógico da ciência (PESSOA
JÚNIOR, 1993; 2004).
2. 3 Buscando contribuições da historiografia contemporânea para
o ensino “sobre” as ciências
A historiografia do século XX tem sofrido mudanças importantes que deverão se
refletir cada vez mais no ensino sobre ciências. Os avanços tecnológicos no campo da
informática têm facilitado a pesquisa histórica, permitindo o acesso às informações e às
fontes de pesquisa, possibilitando a comunicação à distância e uma maior interação
entre os pesquisadores.
A aproximação da História da Ciência do ensino tem sido uma das importantes
questões discutidas pelos educadores da área de ciências. Esta nova demanda é
ocasionada pelo desejo de muitos professores das ciências de possibilitarem uma visão
mais humanizante da ciência, ajudando seus alunos a aprenderem de forma
diferenciada os conteúdos científicos. Este novo público tem solicitado uma abordagem
que trate de aspectos sociais, filosóficos, metodológicos e conceituais. Entretanto,
Martins (2000)
considera que este novo enfoque não interessa aos historiadores
sociais da ciência que não o desejam e nem estão preparados para desenvolvê-lo.
Freire Júnior (2002) reconhece a importância das ponderações apresentadas por
Martins para a aplicação da História da Ciências na educação científica, embora
considere que toda a reflexão sobre a ciência, seja ela mais histórica, filosófica ou
47
sociológica pode contribuir para um aprendizado sobre a ciência. A diversidade de
temas e abordagens que caracterizam a historiografia contemporânea, portanto, é
desejável para concretizar a alfabetização científica.
Aprofundando essa questão Greca e Freire Júnior (2004) apresentam
argumentos que justificam a importância das contribuições da História Social da Ciência
e da Sociologia da Ciência para tornar mais inteligível o fenômeno da ciência e de sua
produção e difusão nas sociedades contemporâneas. Esses pesquisadores consideram
que a investigação em educação em ciências se tornará mais fecunda se incorporar
esses temas no ensino e na pesquisa, independente de alguns problemas identificados
nos pressupostos desses campos. Alguns episódios da História Social da Ciência são
discutidos e usados como exemplos para justificar a importância de se incorporar essas
contribuições para ajudar na compreensão da ciência e do seu processo histórico bem
como, na formação de cidadãos críticos e responsáveis.
Em alguns países, a incorporação da História e Filosofia da ciência no ensino
médio (secundário) já encontra-se explicitada em documentos que orientam
reestruturações curriculares mais recentes. No Brasil, as novas políticas educacionais
têm estimulado esta tendência que esperamos um crescimento ainda maior. Martins
(2000) defende que a demanda crescente por esta inclusão poderá ter como
conseqüência uma cisão dos estudos em História da Ciência em duas linhas de
investigação: a abordagem da história social e a abordagem conceitual, metodológica e
filosófica, que ele considera mais relevante para a educação científica.
O nosso ponto de vista é que a História e a Filosofia da Ciência não deve ser
apenas um conteúdo a mais no processo de ensino e aprendizagem, mas deve
possibilitar a introdução de elementos relevantes para o debate, estimulando a reflexão,
48
o diálogo e uma visão crítica do conhecimento. A opção didática pela História da
Ciência deve acontecer de modo articulado com a Filosofia da Ciência que poderá
ajudar na análise e compreensão dos assuntos abordados, tendo em vista a
necessidade
de
transposição
didática
dos
conteúdos
(CHEVALARD,
1997).
Entendemos que qualquer tipo de reflexão sobre a ciência, seja histórica, filosófica ou
didática ajudará numa formação crítica e mais humanista do educador.
A superação de um modelo de racionalidade técnica na formação de
sujeitos/alunos e futuros educadores exige a proposição de ações que não se limitem
apenas a questões técnicas e burocráticas relativas às mudanças curriculares ou à
construção de novas metodologias de ensino e aprendizagem. O debate epistemológico
relativo à natureza do conhecimento científico e a sua construção, o levantamento das
concepções epistemológicas e pedagógicas dos estudantes e futuros professores,
devem passar a ser uma realidade no ‘currículo na ação’ (SÁCRISTÁN, 1998, p.201);
subsidiando permanentemente a formação docente, de modo a permitir o seu
redirecionamento e possíveis intervenções curriculares.
Sácristán (1998) lembra que qualquer proposta de mudança para a prática
educativa só pode ser comprovada em sua concretização nas situações reais. O uso de
uma abordagem contextual de ensino das ciências pode ser uma alternativa e precisa
efetivamente acontecer para que mostre a sua eficácia na melhoria da formação inicial.
No processo para concretização de propostas que contemplem esta abordagem,
poderão ser identificadas possíveis dificuldades a serem superadas, para que aconteça
sua ampla inserção na prática educativa em nosso país.
Consideramos, também, que a história das ciências pode se constituir numa
alternativa capaz de explicitar os significados de conceitos científicos, esclarecendo
49
sobre sua construção histórica e mutabilidade do conhecimento científico. Como
conseqüência, acreditamos que a abordagem histórica dos conceitos científicos pode
ser uma alternativa didático-pedagógica capaz de ajudar na aprendizagem significativa
destes conceitos.
2. 4 Aprendizagem significativa: conceitos básicos
e o modelo de ensino decorrente
Nas últimas décadas vários modelos foram propostos para o ensino e a
aprendizagem da ciência; no entanto, os resultados obtidos em relação à eficiência da
aprendizagem não foram os esperados, levando a questionamentos e críticas às suas
bases epistemológicas e psicológicas representadas pelo empirismo e behaviorismo.
A partir da década de oitenta, surgiram novas propostas de ensino utilizando
como orientação, idéias racionalistas para a produção do conhecimento fundamentadas
nos avanços no campo da psicologia cognitiva. Estas novas idéias originaram modelos
construtivistas e interacionistas, que fundamentaram novos projetos pedagógicos e
muitas pesquisas educacionais (MALDANER, 1996).
O paradigma que fundamenta a concepção construtivista de ensino admite uma
relação mais complexa entre o ensino e a aprendizagem. Segundo esta concepção, a
aprendizagem só ocorre a medida que o “sujeito/aluno” age sobre os conteúdos
específicos, pressupondo-se que já existe no educando, um conjunto organizado de
conhecimentos e estruturas teóricas prévias que irão orientar as observações e a
interação entre o novo conhecimento e aquele já existente. Este processo poderá levar
a uma aprendizagem significativa ou não para o aprendiz.
50
Na literatura existem divergências relacionadas à validade da substituição de
idéias prévias dos estudantes, ou do seu abandono, por concepções científicas, durante
o processo de ensino. Concordamos com os teóricos que argumentam que a
aprendizagem de ciências deve ajudar o estudante a distinguir os conceitos apropriados
para cada contexto específico, em vez de conduzir a uma simples mudança dos
conceitos prévios (MOREIRA; GRECA, 2003; MORTIMER, 1995, 1996).
Uma das maiores preocupações do professor é apresentar alternativas que
ajudem na aprendizagem de seus alunos, tornando-a mais significativa e eficiente. Uma
aprendizagem é significativa quando a nova informação consegue interagir com a
estrutura cognitiva do sujeito/aluno de forma substantiva ou seja, o seu conteúdo vai ser
relacionado com significados pré-existentes, aquilo que o aluno já sabe, o seu
conhecimento prévio (AUSUBEL, 2003; MOREIRA, 2000). A aprendizagem significativa
é caracterizada por uma modificação ou evolução da estrutura cognitiva do indivíduo.
A teoria da aprendizagem significativa considera que o enriquecimento da
estrutura cognitiva do aluno pode ocorrer sem abandono de concepções antigas, idéias
que muitas vezes são úteis em outras situações e contextos diferentes daqueles que
constituem a matéria de ensino (MOREIRA, 2000).
O conceito de aprendizagem significativa originou-se dos trabalhos de David
Ausubel (AUSUBEL, 2003). A publicação destas idéias, em 1963, motivou a
interpretação dos resultados de pesquisa de Joseph Novak e colaboradores que a
incorporaram em seus estudos, possibilitando a sua ampliação. No Brasil, o principal
estudioso e divulgador desta teoria é o professor Marco Antônio Moreira que a tem
utilizado amplamente em suas pesquisas sobre o ensino de ciências. Moreira (1999)
considera que se pode falar em aprendizagem significativa em distintos referenciais
51
construtivistas. O enquadramento desta teoria no construtivismo fundamenta-se no
pressuposto de que as pessoas são capazes de construir, seja individual ou
socialmente, suas idéias sobre o mundo.
A teoria da aprendizagem significativa tem como foco a explicação dos
processos de aquisição, transformação, armazenamento, recuperação e emprego de
informações. É uma teoria de base cognitivista, mas sem desconsiderar a importância
dos fatores afetivos e sociais envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. Nesta
teoria é de fundamental importância o conceito de estrutura cognitiva, que corresponde
ao conjunto organizado de conhecimentos de cada indivíduo, resultante das
representações que são construídas através das suas experiências de vida.
Ausubel (2003) considera que a estrutura cognitiva tem uma organização
hierarquizada, onde conceitos com significados mais amplos e gerais incluem outras
com significados mais restritos. A estrutura cognitiva é mutável e as modificações
podem ser tanto do seu conteúdo quanto da sua organização. As novas informações
que se inserem na estrutura cognitiva vão estabelecer novas relações com o
conhecimento já estruturado, provocando alterações nas relações já existentes.
De acordo com esta teoria, a aprendizagem vai resultar da interação do novo
conteúdo (conceitos, idéias,etc.) com o conhecimento prévio (subsunçores ou idéiasâncora) existente na mente do indivíduo (MOREIRA, 1999). Essa interação com a nova
informação leva à produção dos novos significados que modificam a estrutura cognitiva
do sujeito.
A aprendizagem é um processo característico de cada indivíduo porque o
conhecimento prévio individual é específico, de modo que, as relações que criam o
significado da nova informação assimilada serão também específicas. Neste processo é
52
importante a existência de “idéias-âncora” bem elaboradas e que tenham alguma
estabilidade na estrutura cognitiva do educando. A aprendizagem significativa pode ser
identificada pelo estabelecimento de relações substantivas (essenciais, não literais) e
não-arbitrárias (coordenadas) entre a nova informação e a estrutura cognitiva. Este tipo
de relação deve contribuir para a diferenciação, reelaboração e estabilidade dos
conhecimentos já existentes.
Para que a aprendizagem significativa aconteça, é necessário que o aluno
esteja disposto a aprender, esforçando-se por estabelecer relações substantivas e não
arbitrárias entre o conteúdo da sua estrutura cognitiva e as novas informações. Outro
ponto importante é a relevância, sob o ponto de vista cultural e intelectual do conteúdo
da aprendizagem que deve ser logicamente significante.
A aprendizagem de conceitos científicos envolve a diferenciação da estrutura
cognitiva do aluno, pressupondo a manutenção dos significados existentes. É esperada
a aprendizagem de significados de ‘termos ou palavras’ que são aceitos no contexto
atual, mas que estão relacionados aqueles que existiam e eram aceitos em contextos
diferentes. O processo de assimilação de conceitos envolve a diferenciação de
conceitos e a aquisição de novos conceitos a partir da interação com aqueles préexistentes na estrutura cognitiva.
Na teoria da aprendizagem significativa, a compreensão de um conceito ou
proposição requer que o aluno adquira significados claros, precisos, diferenciados e
transferíveis. Uma das maneiras de se avaliar esta compreensão pode envolver a
resolução de problemas ou questões, um método considerado válido e prático para
buscar evidências de aprendizagem significativa (MOREIRA, 2000).
53
O ensino e a aprendizagem devem acontecer através de uma relação triádica, ou
seja, três partes estão envolvidas: professor, aluno e materiais curriculares (MOREIRA,
2000). Uma relação trialógica entre estas partes é requisito para uma aproximação
educando/educador/conhecimento que se reflita numa aprendizagem mais eficiente.
Nesta perspectiva, defendemos a preparação de ‘materiais didáticos/instrucionais’ com
conteúdos que articulem o conhecimento científico específico e a História e Filosofia da
Ciência, que possam funcionar como ‘facilitadores’ da aprendizagem, ajudando na
compreensão do processo de produção e validação do conhecimento.
Furió e Guisasola (1998) consideram que a compreensão de um conceito
científico deve ultrapassar o conhecimento de sua definição ou significado preciso. É
necessário que se conheça o contexto sócio-histórico em que surgiu, as relações
conceituais estabelecidas e suas diferenciações, bem como modificações de caráter
epistemológico ocasionadas pelo próprio contexto.
De acordo com Moreira (2000, p.19) quando o assunto já é familiar, deve ser
utilizado um “organizador comparativo” para integrar as novas idéias aos conceitos
relacionados e já existentes na estrutura cognitiva. Este material vai aumentar a
discriminação entre as novas idéias e aquelas já existentes, possibilitando a
compreensão das semelhanças e diferenças entre elas e agindo como um facilitador da
aprendizagem. Ausubel (2003) considera que a utilização deste tipo de recurso
possibilita a manipulação proposital da estrutura cognitiva.
Adotamos como pressuposto, o caráter relacional dos conceitos e que tais
relações são históricas. Consideramos portanto, que o conhecimento da construção e
modificações de um conceito científico poderão ajudar na discriminação de significados,
no enriquecimento conceitual e, conseqüentemente, numa aprendizagem significativa.
CAPÍTULO 3
A FILOSOFIA DA CIÊNCIA E A EDUCAÇÃO
EM CIÊNCIAS
55
3 A FILOSOFIA DA CIÊNCIA E A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS
Para fundamentar teoricamente o levantamento de concepções epistemológicas
dos nossos alunos, procuramos nos apoiar nas discussões recentes no âmbito da
Educação em Ciências que argumentam sobre a importância da aproximação deste
campo com a Filosofia da Ciência. Buscamos auxílio na História e na Filosofia para uma
melhor compreensão das epistemologias implícitas ou mesmo explícitas na atuação
docente e discente, o que se faz necessário para que possamos entender questões
epistemológicas subjascentes. A síntese apresentada neste capítulo elegeu as
principais posições filosóficas relacionadas à produção do conhecimento científico e
alguns dos seus representantes, porque se reconhece que elas teriam influenciado nos
rumos do ensino de Ciências nos últimos séculos.
A relevância da Filosofia da Ciência para a Educação não tem sido muito
explorada na educação científica ‘tradicional’. Os pesquisadores em ensino de ciência
têm reconhecido a importância deste campo do conhecimento, no entanto, entre
cientistas e professores predomina o desconhecimento de que a Filosofia da Ciência é
capaz de ajudar o educador a pensar a educação sobre as ciências e a sua prática.
Por outro lado, a educação científica também tem sido influenciada por
discussões no âmbito da sociologia da ciência que valorizam o processo de construção
da ciência em lugar do estudo da ciência como entidade. A investigação das ‘práticas’
científicas (LATOUR; WOOLGAR, 1986), de sua produção e difusão na sociedade
contemporânea divulgam uma imagem mais realista da ciência, contribuindo
positivamente para a educação em ciências.
56
Mesmo existindo o reconhecimento pelos envolvidos com a Didática das
Ciências, da necessidade de uma base filosófica para orientar os currículos, o ensino e
a aprendizagem, muitos trabalhos desenvolvidos por profissionais que trabalham com o
ensino de ciências não são fundamentados na Filosofia da Ciência que, no entanto,
poderia nortear muitas discussões que acontecem neste campo.
De acordo com Abimbola (1983), um exemplo do distanciamento entre os dois
campos aconteceu na década de setenta, quando muitos projetos de educação
científica utilizavam uma abordagem de “ensino por descoberta”, ignorando a pouca
relação existente entre a concepção de descoberta adotada no ensino das ciências e
aquela defendida por muitos filósofos da ciência. Para Cleminson (1990) a decadência
do “modelo de ensino por descoberta” decorreu da inclusão, neste modelo, de
estratégias didáticas associadas a uma visão equivocada da atividade científica.
Um outro problema identificado na educação em ciência ‘tradicional’ é a projeção
de uma imagem “empiricista-indutivista” da ciência (CAWTHRON; ROWELL, 1978; GIL
PÉREZ et al., 2001). Esta é uma imagem questionada por filósofos da ciência do século
XX, sendo estes questionamentos quase totalmente desconhecidos pelos professores e
alunos, não fazendo parte das discussões que tradicionalmente são realizadas durante
o processo educativo.
A ciência não costuma ser vista como fazendo parte da sociedade, portanto, o
seu ensino não acontece de forma contextualizada e as múltiplas dimensões do
conhecimento não são identificadas ou percebidas. Considerando-se esta situação,
torna-se imprescindível que questões relacionadas à Filosofia da Ciência sejam
reconhecidas e valorizadas para que possam ajudar na construção de novos currículos,
57
possibilitando uma melhor compreensão da natureza da ciência e da atividade
científica.
A identificação de aspectos da Filosofia da Ciência relevantes para uma
educação científica e de princípios adotados na construção da ciência, são
reconhecidos como questões de grande importância. Entre estas, três foram
destacadas por Abimbola (1983):
a) as implicações das novas descobertas científicas para questões importantes
discutidas pela filosofia tradicional;
b) a análise de conceitos fundamentais das diversas disciplinas científicas e do
modo como as teorias se sucedem;
c) a natureza das metas dos empreendimentos científicos e os métodos que são
utilizados pelos cientistas para tentar alcançá-las.
Outras questões relacionadas mais diretamente aos currículos das ciências
também têm sido discutidas por filósofos da Ciência do século XX, a exemplo de:
•
que características distinguem a investigação científica de outros tipos de
investigação?
•
que procedimentos devem os cientistas seguir na investigação da natureza?
•
como o conhecimento científico é estabelecido e aceito?
•
como este conhecimento se torna válido?
•
como ele eventualmente muda de significado?
•
como se dá o progresso científico?
•
qual é o ‘status’ cognitivo das leis e teorias científicas?
58
Tais questões têm sido debatidas principalmente, pelas tendências que
emergiram no âmbito da Filosofia da Ciência utilizando uma abordagem historicamente
orientada e questionadora do Empirismo Lógico, doutrina que predominou na primeira
metade do século XX. O conhecimento dessas questões poderá ajudar na solução dos
problemas relacionados à educação científica, bem como no planejamento de novos
currículos para os cursos de ciências.
3.1 A Filosofia da Ciência: uma breve retrospectiva histórica
As duas principais doutrinas da Filosofia da Ciência que surgiram no século XX
foram: o Empirismo Lógico, também chamada de “visão recebida” ou “ortodoxa” da
natureza da ciência (PESSOA JUNIOR, 1993), e o que tem sido chamado de “nova(s)”
Filosofia(s) da Ciência 1(ROUSE, 1998) ou Teorias Globalistas da Ciência, que podem
ser compreendidas como filosofias gerais sobre a ciência.
Os globalistas priorizam nas suas análises a emergência histórica dos métodos
científicos, teorias e ontologias, mantendo-se compromissados com a reconstrução
racional do conhecimento científico (ROUSE, 1998). Na década de noventa do último
século se evidenciou a decadência de alguns destes movimentos e o florescimento de
ramos da Filosofia específicos ou filosofias de várias ciências, como da Biologia e da
Química; no entanto, o resgate da História da Filosofia da Ciência dos últimos séculos,
nos ajuda compreender estes movimentos filosóficos e a relação destes com a ciência e
sua produção. Iniciaremos a revisão destacando o racionalismo.
1
O termo nova filosofia da ciência, embora seja muito utilizado por pesquisadores da Didática das Ciências, tem
recebido algumas críticas, principalmente pela utilização da palavra ‘nova’. Optamos por usar a expressão no plural.
59
3. 1.1 A tradição racionalista
A posição epistemológica que admite o pensamento e a razão como fonte
principal do conhecimento humano é conhecida como racionalismo, termo que se
origina do vocábulo grego ratio, que significa razão. Segundo esta visão, um
conhecimento só merece na realidade este nome quando é logicamente necessário e
universalmente válido. A razão assume o papel de julgar e arbitrar como as coisas
devem ser e o verdadeiro conhecimento. Os juízos formulados não se fundamentam em
qualquer experiência, mas sim no pensamento, possuindo necessidade lógica e
validade universal (HESSEN, 1980).
O conhecimento matemático, predominantemente conceitual e dedutivo, serviu
de modelo à interpretação racionalista do conhecimento. No decorrer da História,
muitos representantes do racionalismo foram também, importantes matemáticos. Nas
idéias desenvolvidas por Platão, tem-se a forma mais antiga do racionalismo que
considerava que os sentidos nunca poderiam conduzir a um verdadeiro saber. As suas
idéias eram impregnadas de um tipo de idealismo que podia ser traduzido nos termos
da matemática.
René Descartes (1596-1650) é considerado fundador do Racionalismo Moderno,
fazendo parte de uma tradição idealista e subjetivista. Ele considerava que o espírito
era capaz de conhecer o mundo através da razão, demonstrando grande confiança na
razão e na Ciência. Ainda que no século XIX o racionalismo tenha se tornado lógico,
muitas críticas a esta visão a consideram exclusivista ou reducionista, porque faz do
pensamento a fonte única ou própria do conhecimento (HESSEN, 1980).
60
Segundo Chalmers (1995), o racionalismo extremo afirma que há um critério
único, atemporal e universal com referência a que se pode avaliar tanto as teorias rivais
quanto os seus méritos. De acordo com este ponto de vista, as decisões e as escolhas
feitas pelos cientistas devem ser guiadas pelo critério universal. Apenas teorias que,
avaliadas de acordo com este critério, conseguirem sobreviver ao teste, serão
consideradas científicas.
No século XX, algumas formas mais sofisticadas de racionalismo foram
propostas a partir de críticas ao racionalismo clássico e à idéia do predomínio do sujeito
isolado. Entre estas críticas observamos aquelas que tentaram uma aproximação entre
a teoria e o experimento, a exemplo do Racionalismo Aplicado de Gaston Bachelard
que será comentado posteriormente.
3.1.2 A tradição empirista
O termo Empirismo é muito utilizado nas discussões relacionadas ao processo
de construção da Ciência, estando relacionado ao pressuposto de que a fonte do
conhecimento encontra-se fora do homem, externamente; nesta condição ele deve ser
buscado ou descoberto. Chaui (1997) considera que a concepção empirista inicia-se na
medicina grega e em Aristóteles, indo até o final do século XIX. O termo Empirismo
origina-se da palavra grega “empeiria”, que significa experiência, afirmando que a
razão, incluindo seus princípios, procedimentos e idéias é adquirida através da
experiência. O conhecimento, portanto, procede da experiência.
Entre os mais importantes representantes do Empirismo tem-se os ingleses
Bacon, Hobbes, Locke, Berkeley e Hume. No trabalho do empirista Francis Bacon
61
(1561-1626) temos uma das principais origens desta doutrina filosófica. Ele divulgou o
método experimental indutivo e foi um pioneiro na tentativa de sistematização lógica
dos procedimentos científicos. Bacon considerava que, para que o conhecimento
pudesse ser colocado a serviço do homem, deveria estar fundamentado em fatos,
numa ampla base de observação. Neste período, a atitude científica tomava como base
que, para se compreender a natureza deveria se consultar a própria natureza e não o
que tinha sido escrito por “autoridades”, a exemplo de importantes filósofos gregos que
influenciaram a ciência durante o período medieval.
Bacon foi um crítico tanto do método dedutivo e apriorístico característico da
Escolástica, quanto da grande atenção dedicada à teoria em detrimento à ‘observação’
que caracterizou os filósofos gregos. Ele considerava a experiência como principal fonte
de conhecimento que poderia ser alcançado pela via empírica e não pela especulativa
(ANDERY et al., 1988; CHALMERS, 1995).
Só há e só pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade.
Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas
gerais e, a seguir, descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses princípios e
da sua inamovível verdade. Esta é a que ora se segue. A outra, que recolhe os axiomas
dos dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até
alcançar, em último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro
caminho, porém ainda não instaurado (BACON, 1984, p.16).
No trecho anteriormente citado, Bacon compara o método que costumava ser
utilizado nas ciências com a sua nova proposta metodológica, conhecida como método
indutivo, o que justifica o fato dele ser geralmente associado ao empirismo-indutivismo.
A indução pressupõe o raciocínio indutivo que parte de um conjunto de fatos
particulares para uma conclusão geral, ou seja, vai dos fatos à lei. Nesta visão, toma-se
62
como ponto de partida a observação, para a posterior elaboração de hipóteses seguida
de experimentos, que levarão às conclusões. Segundo Chalmers (1995), as afirmações
obtidas ou as “proposições de observações” formam a base a partir da qual as leis e
teorias devem ser derivadas.
Para outro empirista, John Locke (1632-1704), nada existe no espírito sem
passar antes pelos sentidos. A alma, no momento do nascimento, é como uma “tábula
rasa”, um grande vazio. A experiência sensível constitui a fonte de todo o conhecimento
possível, sendo capaz de suprir a mente com novos conhecimentos, tendo a reflexão
um importante papel a desempenhar neste processo (ANDERY et al., 1988).
Outro importante representante do empirismo foi o filósofo escocês David Hume
(1711-1776), que se destacou por argumentar contra a indução. A relação de Hume
com o empirismo é observada em sua preocupação em discutir e criticar a fonte do
conhecimento humano que, para ele, encontrava-se na percepção. A sua principal tese
era que toda percepção da mente se resolve em dois tipos distintos: impressões e
idéias (HUME, 1962 apud ANDERY et al., 1988, p.316). As impressões representam os
objetos imediatos do conhecimento adquirido através da experiência, percebidos e
internalizados. As impressões são as nossas sensações quando vivenciamos algo. As
idéias baseiam-se e provêm das impressões, mas não devem ser confundidas umas
com as outras porque são menos vivas. Elas representam os objetos que temos
conhecimento através da atividade mental, são os nossos pensamentos. Para Hume,
qualquer pensamento tem na sua base uma impressão (ANDERY et al., 1988).
Podemos, pois, dividir aqui todas as percepções da mente em duas classes ou espécies,
as quais se distinguem pelos seus diferentes graus de força ou vivacidade. As menos
fortes ou vivazes são comumente denominadas pensamentos ou idéias. A outra espécie
63
não tem nome em nossa língua, como em muitas outras, suponho que por não ser
necessário para nenhum fim que não fosse filosófico incluí-las sob um termo ou
designação geral. Tomemos, pois, uma pequena liberdade e chamemo-las impressões,
usando a palavra num sentido algo diferente do usual. Pelo termo impressão entendo
todas as nossas percepções mais vivazes, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos,
odiamos, desejamos ou queremos. E as impressões distinguem-se das idéias, que são
as impressões menos vivazes das quais temos consciência quando refletimos sobre
qualquer dessas sensações ou movimentos acima mencionados (HUME, 1973, p. 138).
Para Andery e outros (1988), uma dificuldade relacionada com esta tese referiase à conexão racional entre as impressões, sem as quais leis científicas universais não
podiam ser aceitas. Este problema permaneceu sem solução até o século XX, quando a
lógica simbólica se desenvolveu.
A crença no indutivismo está relacionada à observação dos fenômenos,
constantemente presente no trabalho científico. Aceita-se que o conhecimento surge
de observação desinteressada da natureza. Um dos maiores problemas é a sua
justificação que, simultaneamente, parte da indução como premissa e admite que a
constatação de regularidades possibilitaria a elaboração posterior de leis e teorias.
De modo geral, as epistemologias tradicionais do tipo empirista-indutivista
consideram que o conhecimento deriva direta ou indiretamente da experiência sensível
através da observação. O método científico possibilita a obtenção de um conhecimento
certo e seguro, não existindo espaço para a especulação, a imaginação, a intuição e a
criatividade. As teorias não são inventadas ou construídas, mas descobertas a partir da
manipulação e apropriação dos dados empíricos.
Distintas visões de empirismo surgiram ao longo do tempo, no entanto, talvez
uma das características mais nítidas preconizadas por tais concepções consista na
crítica diante de concepções metafísicas veiculadas em seu tempo. As argumentações
elaboradas pelos empiristas, contrariamente às pretensões metafísicas, priorizavam
64
dois pontos: a existência de certos limites à demanda de explicações e a não admissão
de explicações “postulacionais” (BUENO, 1999). Concepções mais sofisticadas sobre o
empirismo foram formuladas posteriormente, a exemplo do empirismo construtivo de
Van Frassen. Esta concepção considera que as teorias são modelos e representam
mais do que instrumentos, quando a elas se atribui valor real. Para o empirismo
construtivo é fundamental que haja distinção entre verdade e adequação empírica. Em
relação a este assunto, Dutra (1998) apresenta a seguinte explicação:
[...] as teorias precisam dar conta dos fenômenos, daquilo que observamos, e para tanto
postulam entidades inobserváveis, como no caso de uma teoria atômica que explica as
qualidades aparentes diferentes de duas substâncias com base na hipótese de que elas
possuem números atômicos diferentes. Mas sendo empiricamente adequada, uma teoria
não precisa ser também verdadeira. Não é preciso que ela faça um relato exato do
mundo, inclusive e principalmente de seus aspectos inobserváveis, e nem é preciso que
se acredite que as entidades inobserváveis postuladas pela teoria existem (DUTRA,
1998, p.35).
O empirismo construtivo reconhece a importância a ser dada à interpretação de
cada teoria científica e dos componentes teóricos da ciência para que se possa ter uma
melhor compreensão do conhecimento científico.
3.1.3 Positivismo e Positivismo Lógico
O Positivismo se constituiu como o movimento de reação ao Idealismo que
alcançou maior destaque na segunda metade do século XIX. Fundamentado nos
critérios precisos e rigorosos das Ciências Naturais, refletia o sucesso alcançado pela
Ciência e Técnica naquele período. Esta doutrina foi desenvolvida, principalmente, pelo
65
pensador francês August Comte (1798-1857) e de forma ampla esteve ligada a outras
correntes filosóficas e a nomes como do irlandês John Stuart Mill (1806-1873).
Comte se apoiou na filosofia empirista de Bacon e Hume para propor o seu
método de investigação, embora se considerasse herdeiro da tradição racionalista
cartesiana. Considerando-se esta dupla influência, o método de investigação positivista
combina princípios do Racionalismo e do Empirismo que incluem: dedução, indução,
observação, experimentação, comparação e analogia. A tese principal era que somente
o conhecimento fundamentado diretamente na experiência seria autêntico. O
conhecimento científico devia se basear na observação dos fatos e nas relações que
são estabelecidas pelo raciocínio. Estas relações são na verdade, a descrição das leis
que os regem. A concepção positivista não desapareceu juntamente com o seu
fundador, tendo se mantido como uma das correntes mais poderosas e influentes nas
Ciências em todo o século XX (CHAUÍ, 1997).
Para os positivistas, as leis dos fenômenos deveriam traduzir o que ocorria na
natureza e, de modo dogmático, Comte tomou como princípio que tais leis eram
invariáveis: “É nas leis dos fenômenos que consiste realmente a ciência, à qual os fatos
propriamente ditos, por mais exatos e numerosos que possam ser, nunca fornecem
senão materiais indispensáveis [...]” (COMTE, 1990, p.18).
O Positivismo pressupunha as seguintes teses:
1) demarcação criteriosa entre ciência e metafísica;
2) separação entre ciência e valor, ou seja, a ciência em si não tem valores
embutidos;
3) unidade da ciência em relação ao seu método, considerado o mesmo,
independente do campo científico;
66
4) o descritivismo, que admite que só faz sentido dizer que é real aquilo que é
diretamente observado pelos sentidos (PESSOA JUNIOR, 2004).
O conhecimento científico positivo segundo Comte (1990) tem duas importantes
características: é um conhecimento sempre certo, não admitindo conjecturas e é um
conhecimento que tem algum grau de precisão, que pode variar de ciência para ciência,
dependendo do objeto de estudo.
Comte argumentava que a ciência estava no seu limiar, necessitando romper
com a religião e a metafísica, que teriam dificultado o progresso científico positivo. Ele
reivindicava que até mesmo o pensamento social deveria ser tratado cientificamente,
desejando um final positivo também para o desenvolvimento intelectual governado pela
ciência.
Para Modin(1987), o principal erro dos positivistas foi ter estendido um método
adequado às ciências experimentais para outros campos, tomando como arbitrário tudo
mais que não pudesse ser avaliado por seu método como a arte, a religião e a moral,
bem como a própria metafísica.
Esta supremacia da ciência passou a ser defendida por outros movimentos
filosóficos, a exemplo do Positivismo Lógico, que se constituiu posteriormente,
defendendo as ciências físicas como “modelo”, não somente para o pensamento
científico em geral, mas para toda a investigação humana.
O Positivismo Lógico, conhecido também como Neo-Positivismo, foi um
programa filosófico que teve como ferramenta fundamental a lógica simbólica e cuja
principal preocupação era em fornecer uma base lógica ao conhecimento científico. Sua
doutrina clássica era a teoria da verificação dos significados, que afirmava ser uma
proposição verdadeira, se e somente se, existisse um método empírico para decidir sua
67
verdade ou falsidade. A principal preocupação era em fornecer uma fundamentação
segura para a Ciência, livrando-a da metafísica.
Bunge (1980) considerava que o Positivismo Lógico possuía duas importantes
características: era “fenomenista”, sustentando que só tinha sentido se falar daquilo que
se observava e se media e também “operacionalista”, uma vez que, considerava que
qualquer conceito científico devia ser definido em termos de operações concretas como
pesagem ou amostragem.
O cientista e filósofo Ernst Mach é freqüentemente considerado como o pai do
Positivismo Lógico, bem como o principal arquiteto do que foi denominado “positivismo
científico” (RAY, 2000). Este movimento filosófico considerava a possibilidade da
verificação através da observação e da experimentação como característica que definia
as afirmações científicas. Para Mach, o conhecimento do mundo físico era derivado
totalmente das experiências sensoriais e o conteúdo da ciência era totalmente
caracterizado pelas relações entre os dados obtidos da experiência. A Filosofia da
Ciência “fenomenista” de Mach foi adotada por um grupo de filósofos que constituíram o
Círculo de Viena, tendo o Positivismo Lógico emergido das preocupações filosóficas e
tendências científicas deste grupo (RAY, 2000).
Influenciado por estas idéias Mach assumiu uma posição anti-atomista, tendo
rechaçado publicamente o atomismo em suas publicações e pronunciamentos a partir
de 1872. Mach considerava que o atomismo era um recurso heurístico, meramente
hipotético. Comparava o átomo a uma função matemática qualquer, que tinha utilidade
por sua capacidade de ordenar fenômenos e permitir a sua compreensão, mas
carecendo de realidade objetiva. A filosofia de Mach admitia que o mundo consistia de
nossas sensações, tendo as investigações físicas a função de fixar o fluxo das mesmas.
68
Os objetos e as coisas seriam símbolos mentais que não teriam existência fora do
pensamento. Os átomos só existiriam como símbolos mentais que resumiam
sensações, as quais seriam a única realidade (BRUSH, 1968, apud ÓDON, 1986).
O Círculo de Viena adquiriu vigor na década de 1920, atraindo filósofos como
Rudolf Carnap, Friedrich Waisman, Otto Neurath e Moritz Schlick e alguns matemáticos
e cientistas como Kurt Gödel e Hans Hahn. Inicialmente eram conhecidos como
Sociedade Ernst Mach, debatendo e discutindo problemas da ciência, lógica e filosofia
na tentativa de chegar a posições consensuais e na defesa de alguns compromissos
como: (RAY, 2000).
1) o desenvolvimento da herança positivista de David Hume e Ernst Mach, que
menosprezava a metafísica e cujo foco era sobre as investigações empíricas;
2) a promoção da investigação científica como modelo para toda investigação
intelectual;
3) a convicção de que a Física não era somente um modelo para as outras
ciências mas para todas as ciências inclusive as sociais;
4) o uso sistemático da análise lógica para reduzir afirmações complexas a
proposições elementares.
Losee (1998) considera que o maior problema desta doutrina surgiu nas
divergências relacionadas à verificação das leis científicas. O questionamento
apresentado conduziu a um novo movimento filosófico, o Empirismo Lógico, adotado
por positivistas que estavam prontos para abandonar a verificação restrita das teorias.
De acordo com Bunge (1980), Ludwig Wittgenstein (1889-1951), que tinha se
tornado membro deste grupo, teve a pretensão de reduzir a Filosofia à análise da
linguagem, desviando o Círculo de Viena dos seus objetivos iniciais, o que contribuiu
69
para o fim da unidade deste grupo. Wittgenstein considerava a filosofia como uma
atividade que tinha como objetivo a elucidação lógica do pensamento.
3.1.4 O Empirismo Lógico
As raízes do Empirismo Lógico estão intimamente ligadas àquelas do Positivismo
Lógico, tanto que os dois movimentos são equivocadamente confundidos (SALMON,
2000). As duas escolas filosóficas surgiram como uma reação ao pós-kantianismo
vigente no século XIX e à idéia kantiana de que seria possível estabelecer, no plano
lógico, as condições mais gerais para o conhecimento científico. Os dois movimentos
filosóficos tinham alguns pontos de vista comuns como: a valorização da epistemologia
empirista, o compromisso com as ciências empíricas, a ênfase na importância da lógica
moderna como ferramenta de análise das ciências, a rejeição da metafísica
especulativa. Apesar das raízes comuns, existiam algumas diferenças filosóficas
fundamentais entre os dois movimentos.
Assim como Viena foi o centro em que floresceu o Positivismo Lógico, Berlim foi
o centro do Empirismo Lógico, tendo o filósofo Hans Reichenbach como importante
representante e articulador do chamado “grupo de Berlim”. Este último movimento
manteve a sua vitalidade na Filosofia da Ciência até a segunda metade do século XX,
enquanto o Positivismo Lógico perdeu o seu vigor em meados deste século. Membros
do Círculo de Viena como Rudolp Carnap, Herbert Feigl e Carl G. Hempel que,
inicialmente eram positivistas lógicos, posteriormente se envolveram com o Empirismo
Lógico.
70
Os problemas relacionados à predição e à probabilidade das teorias que estão
ligados ao pensamento de Reichenbach constituíram a abertura para a separação
entre o Positivismo Lógico e o Empirismo Lógico. Em sua obra Experiência e Predição,
publicada em 1938, Reichenbach resume as suas divergências com o Positivismo
Lógico em três pontos (SALMON, 2000):
1)
o fenomenalismo, que ele rejeita adotando o fisicalismo2 como base
para a sua epistemologia. Considerava-se que as impressões do
sentido não são dados obtidos da experiência, mas são ‘constructos’
teóricos da psicologia;
2)
a teoria da verificação ou o critério do significado cognitivo; segundo o
qual uma sentença é cognitivamente significante, se e somente se, a
princípio, é possível encontrar evidências empíricas que lhe dêem
sustentação;
3)
o realismo científico que Reichenbach abraçou.
A principal divergência estava relacionada ao conceito de probabilidade;
considerava-se que a confirmação ou a refutação teria sempre algum grau de
probabilidade (PESSOA JUNIOR, 2003). Para o Empirismo Lógico, a ciência indutiva
é racional porque, em princípio, pode indicar ao cientista até que ponto suas teorias
têm probabilidade de serem verdadeiras e em que medida podem ser confiáveis
(KNELLER, 1980).
2
O fisicalismo é uma doutrina neo-positivista que considera a linguagem da Física como sendo, de direito, a
linguagerm de todas as ciências e que as sentenças observacionais não precisam se referir a dados sensoriais, mas
sim a objetos físicos.
71
O Empirismo Lógico ou a ‘Visão Recebida’ da natureza da ciência incluía pontos
de vista de diferentes filósofos que se constituíram a partir de diversas tentativas para
definir as teorias científicas a partir da lógica. Eles trocaram a noção de verificação
pela de confirmação. A preocupação era com o problema de se analisar como os
termos científicos ganham significado, considerando-se uma teoria científica como um
sistema lógico. Outros pontos de interesses comuns foram as evidências científicas,
as teorias e suas explicações, o método hipotético-dedutivo e o problema da indução.
Algumas das reivindicações importantes foram:
a) a observação era considerada como sendo independente das teorias;
b) observações permaneciam as mesmas durante as mudanças científicas;
porém uma nova teoria constituia um avanço em relação às velhas porque
abrangia um maior domínio observacional ou explicava um maior número de
observações. O progresso das teorias acontecia segundo certos critérios
racionais;
c) o conhecimento científico aumentava por acumulação;
d) o que interessava era a estrutura lógica do produto ou da pesquisa científica.
O critério da objetividade era necessário para a validação das descobertas
científicas (ABIMBOLA, 1983, p.190).
Os empiristas lógicos defendiam critérios normativos para descrever o processo
de construção da ciência, ou seja, explicava a ciência como uma teoria científica; no
entanto, não estavam preocupados com a descrição de como a ciência de fato era feita
e com o seu funcionamento. Esta e outras questões levaram a muitos debates com
representantes de novas escolas filosóficas que se constituíram na segunda metade do
século XX, compromissadas com uma nova abordagem para as discussões
72
epistemológicas e priorizando a História da Ciência nas suas análises. Estas tendências
visavam a descrição do comportamento da ciência reconhecendo a influência de
múltiplos
fatores:
sociais,
econômicos,
religiosos,
ideológicos,
etc.
no
seu
desenvolvimento.
3.1.5 A filosofia Popperiana
Vários filósofos e investigadores da ciência contribuíram para a superação de
uma concepção positivista da ciência e para o surgimento das ‘novas filosofias’ da
ciência no século XX, entre eles o pensador austríaco Karl Popper. Este filósofo era um
importante membro do Círculo de Viena, tendo no entanto, se afastado deste grupo por
discordar de algumas das suas teses fundamentais.
As idéias de Popper que podem ser situadas na transição entre o Empirismo
Lógico e as novas tendências mais radicais que surgiram na Filosofia da Ciência neste
período, ficaram conhecidas como o Falsificacionismo ou Falseacionismo. Ele criticou o
modelo de investigação positivista baseado na observação como fonte segura de
conhecimento, reconhecendo a ausência de embasamento lógico para o método da
indução e a sua impossibilidade de garantir a verdade das afirmações científicas.
Popper construiu uma teoria da ciência que não se apoiava na indução defendendo
uma ciência empírica mas sem ser indutiva.
Para descrever o desenvolvimento da Ciência propôs um novo modelo, o
Falseacionismo que considerava a cientificidade de uma proposição atrelada à
possibilidade de ser falseada pela experiência. O erro era fundamental neste processo,
desempenhando um importante papel na elaboração do conhecimento.
73
Popper considerava que o método científico devia ter como objetivo provar a
falsidade e não a verdade das hipóteses de que partia, verificando até que ponto elas
iriam resistir a hipóteses contrárias. Mesmo defendendo um método hipotético-dedutivo,
ele considerava que uma hipótese só avançava se pudesse ser empiricamente testada,
tendo introduzido a noção de aproximação da verdade em oposição à verdade por
correspondência, defendida pelos empiristas lógicos (POPPER, 2001).
A Filosofia de Popper incluia dois aspectos principais: um critério de
demarcação, isto é, a tentativa de estabelecer um critério que possibilitasse distinguir as
teorias científicas da metafísica e/ou das pseudo-ciências e um conjunto de regras
metodológicas elaboradas visando assegurar a aplicação deste critério. A falseabilidade
ou refutabilidade é o critério que ele propôs para a demarcação entre ciência e nãociência, preservando o caráter racional da pesquisa científica. Para Popper, o
falseamento não significa a rejeição imediata de uma teoria, podendo implicar apenas
na modificação de hipóteses auxiliares. As teorias que têm maior validade nunca são
teorias verdadeiras, mas teorias que ainda não foram falseadas. A atividade científica,
como atividade crítica, deve ter como meta a refutação e não a verificação. Teorias
científicas, na verdade, são consideradas como conjecturas que podiam ser a qualquer
momento refutadas.
Pode-se dizer, resumidamente, que o critério que define o status científico de uma teoria
é a sua capacidade de ser refutada ou testada.[...] Não existe método mais racional do
que o método de ensaio e erro, de conjectura e refutação, de proposição audaz de
teorias, de esforços no sentido de demonstrar que elas são errôneas; e de sua
aceitação, a título precário, se os nossos sentidos forem coroados de êxitos (POPPER,
1982, p. 66).
74
De acordo com Popper, no processo de indução encontrava-se implícita a idéia
de que o investigador podia observar e experimentar a realidade sem pressupostos e
de forma neutra. Ele propôs uma ciência dedutiva3 mas sem certezas, admitindo que as
teorias podiam ser testadas através do método dedutivo visando a confirmação
(PESSOA JUNIOR, 2004).
Popper se destacou como importante crítico do Empirismo Lógico, entretanto,
compartilha com esta escola a idéia de que a Filosofia da Ciência deve ter como função
articular um ideal de Ciência e não descrever o trabalho científico. Este ideal devia se
pautar em termos metodológicos e não numa reconstrução lógico-semântica das teorias
científicas. Segundo Abrantes (1997), para Popper a principal função da Filosofia da
Ciência era a compreensão do processo de crescimento do conhecimento científico, a
dimensão histórica portanto, se fazia necessária à reflexão filosófica sobre a Ciência.
3. 2 Novos rumos da Filosofia da Ciência no século XX
Na segunda metade do século XX, surgiu um novo tipo de Filosofia da Ciência
que congregava diferentes pontos de vista filosóficos mas, com questões que
asseguravam interfaces comuns entre eles (Kuhn, Lakatos, Laudan, Feyerabend, etc.).
O que caracterizou o movimento dos “globalistas” foi a rejeição da “visão recebida”
(Carnap, Reichenbach, Hempel) e da excessiva valorização da lógica formal como
principal ferramenta para análise da ciência (Popper, Quine) (McGUIRE, 1992). Em seu
lugar, propuseram um detalhado estudo da História da Ciência e o uso de muita
3
Dá-se o nome dedução à operação lógica de se partir de um enunciado geral para se formular ou justificar
enunciados particulares. Contrariamente, o método indutivo pressupõe que se parta da observação de vários casos
75
informação histórica para subsidiar análises e justificar suas teses filosóficas. As
dimensões histórica e temporal da mudança e do desenvolvimento científico passaram
a ser bastante valorizadas.
Outro importante aspecto desta nova abordagem foi a crítica à ortodoxia e à
ênfase na continuidade dos programas de pesquisa e na acumulação do conhecimento
científico. As “teorias globalistas” sobre a ciência e o seu desenvolvimento consideram
que para se descrever como a ciência de fato é feita, devia-se prestar atenção na
História, na Sociologia e na Psicologia e não apenas em seus aspectos racionais e em
sua estrutura lógica. Sob este ponto de vista, considerava-se que as questões de
justificação das teorias estavam relacionadas com as das descobertas (PESSOA
JUNIOR, 1993).
Considera-se como um dos precursores desta abordagem o filósofo francês
Gaston Bachelard, cuja obra de maior repercussão foi o livro “O Novo Espírito
Científico”, publicado em 1934 (BACHELARD, 1996). Outros filósofos que podem ser
considerados como integrantes desta abordagem, alguns pelo menos como
precursores são: Richard J. Blackwell, J. Bronowski, Harold I. Brown, Norwood Russel
Hanson, Michael Polanyi e Stephen Toulmin (ABIMBOLA, 1983; PESSOA JUNIOR,
1993).
Os trabalhos de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend são considerados como
importantes focos de oposição às doutrinas positivistas e ofereceram uma direção
alternativa de investigação. Uma importante conseqüência desta nova opção foi a
aproximação entre a História e a Filosofia da Ciência. Os filósofos que abraçaram esta
nova abordagem, embora ainda estivessem engajados na reconstrução racional do
particulares para se chegar a enunciados gerais ou a generalizações.
76
conhecimento científico priorizaram, nesta reconstrução, a emergência histórica dos
métodos científicos, teorias e ontologias tanto quanto na estrutura formal da
confirmação e explicação dos aspectos teóricos.
3.2.1 Filósofos da ciência que destacamos como críticos
à tradição positivista
Gaston Bachelard (1884-1962) foi um filósofo francês que antes de ser professor
de filosofia na Universidade lecionou Física e Química no nível secundário. Ele
apresentou muitas contribuições no campo da epistemologia através de análises sobre
a ciência e a sua História, construindo uma epistemologia que se nutriu da História. A
pluralidade observada nas suas idéias filosóficas fizeram dele uma grande referência
teórica nas pesquisas e discussões na área da Didática das Ciências e no ensino de
ciências.
Em parte, as suas reflexões decorreram do fato dele ter vivenciado grandes
transformações acontecidas na ciência, que exigiram uma nova interpretação do
conhecimento científico capaz de romper com interpretações tradicionais que se
fundamentavam nas filosofias positivistas. A sua extensa obra abrange desde a
Epistemologia da Ciência Moderna até o campo da poética, incluindo a influência do
imaginário na formação de um novo espírito científico.
Bachelard considerava que todo o conhecimento humano era baseado na
articulação experiência-razão, reconhecendo que a experimentação necessitava do
raciocínio e o próprio ato de raciocinar apoiava-se no fazer empírico. Este pensador
77
costuma ser considerado como representante da tradição racionalista, ficando a sua
epistemologia conhecida como Racionalismo Aplicado ou Racionalismo Dialético.
Comentando sobre este assunto e sobre a diversidade de suas idéias filosóficas
que dificultavam a classificação do seu pensamento, ele assim se coloca:
Racionalista? Tentamos tornar-nos isso, não apenas no conjunto da nossa cultura, mas
nos detalhes de nossos pensamentos, na ordem pormenorizada de nossas imagens
familiares (BACHELARD, 1989, p. 7).
A articulação entre razão e empiria foi muito bem descrita por ele no trecho a
seguir, onde ele apresenta o seu pensamento “racionalista aplicado”:
[...] se pudéssemos então traduzir filosoficamente o duplo movimento que atualmente
anima o pensamento científico, aperceber-nos-íamos de que a alternância do a priori e
do a posteriori é obrigatória, que o empirismo e o racionalismo estão ligados, no
pensamento científico por um estranho laço, tão forte como o que une o prazer à dor.
Com efeito, um deles triunfa dando razão ao outro: o empirismo precisa de ser
compreendido; o racionalismo precisa ser aplicado (BACHELARD, 1991, p.9).
Bachelard (1977) também discutiu o conceito de verdade científica reconhecendo
a importância do erro e considerando a inexistência de uma verdade permanente e
única. Segundo ele, o próprio julgamento do que se imagina ser verídico envolve
diferentes interesses e o momento histórico, constituindo-se numa construção cultural.
Ele reconhece que a ciência busca um discurso verdadeiro, muito embora produzido às
custas de erros. “Verdadeiro sobre fundo de erro, tal é a forma do pensamento
científico” (BACHELARD, 1977, p.61).
78
A relação entre a observação e a interpretação também foi abordada quando ele
reconheceu que o conhecimento prévio interfere na visão de realidade, influenciando na
observação e na aprendizagem;
[...] Com efeito, nós conhecemos contra um conhecimento anterior, destruindo
conhecimentos mal feitos, ultrapassando aquilo que, no próprio espírito, constitui um
obstáculo à espiritualização” (BACHELARD, 1971, p.165).
Muitas outras questões foram discutidas por este filósofo, entre as quais
destacam-se: as distintas naturezas do conhecimento científico e do conhecimento
comum, o desenvolvimento da ciência na História e o seu olhar descontinuísta sobre
esta questão, a origem do conhecimento científico e o modo de produção deste tipo de
conhecimento, entre outros.
Muitos trabalhos desenvolvidos no Brasil têm utilizado a epistemologia
bacherladiana como
fundamentação teórica, sendo Bachelard considerado uma
importante referência filosófica nas reflexões e pesquisas na área de educação em
ciências
(BARBOSA, 1996; BULCÃO, 1999; LOBO, 2002; LOPES, 1990, 1992;
MORTIMER, 1995).
Um outro filósofo que pode ser destacado nesta tendência foi Thomas Kuhn
(1923-1996). Ele foi físico, historiador e professor de História da Ciência, tendo
questionado revolucionariamente, a forma como a ciência “instituída” era considerada,
até o início do século XX e propondo uma nova forma de compreender o seu processo
de produção. Novos conceitos de paradigma, crise e revolução científica passaram a
fazer parte do cotidiano do meio científico e das divulgações relacionadas às ciências
exatas e humanas. O processo de construção da ciência passou a ser mais investigado
79
e as “verdades científicas” foram reconhecidas como provisórias, o que contribuiu para
a desmistificação da ciência.
A construção do conhecimento, considerada como um processo social, foi
caracterizada considerando a sua complexidade aliada à grande inventividade deste
tipo de atividade. A sua arrojada proposta resgatou aspectos históricos e sociológicos
como requisitos para análise da produção do conhecimento e minimizou os aspectos
lógicos e metodológicos. Através de uma abordagem inovadora e propositiva, ele
criticou princípios defendidos pelas escolas positivistas, apresentando uma “visão
consensualista” sobre o conhecimento científico.
Uma importante preocupação dos filósofos da ciência encontra-se relacionada ao
modo como as ciências têm se desenvolvido ao longo do tempo. Alguns consideram
que esta evolução é contínua e outros consideram que o progresso científico é
entremeado por rupturas ou descontinuidades. Thomas Kuhn considerou que o
progresso na ciência não é acumulativo e envolve mudanças de paradigmas
incomensuráveis. A atividade científica é guiada por um determinado paradigma que
fornece uma imagem de natureza, bem como uma imagem de ciência (ABRANTES,
1998). Uma das definições apresentadas por Kuhn para o termo paradigma encontra-se
a seguir:
Considero paradigmas as realizações científicas universalmente reconhecidas que,
durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade
de praticantes de uma ciência (KUHN, 1996, p.13).
Mapeando as principais idéias e conceitos Kuhnianos, Laudan e outros (1993,
p.46) apresentam o termo paradigma relacionando-o com “as suposições diretivas de
80
um campo”. O aprimoramento deste termo incluiu um sentido geral e outro mais restrito.
No geral, ele corresponde aos compromissos de pesquisa de uma comunidade
científica (crenças, valores, e técnicas compartilhados), que se relacionam com a
expressão matriz disciplinar.
Os componentes de uma matriz disciplinar são generalizações simbólicas,
modelos particulares, valores compartilhados e exemplares. Este último componente
está relacionado com um sentido mais restrito do conceito, os exemplares formam o elo
de ligação entre os fenômenos empíricos e as generalizações teóricas. “Exemplares
são problemas concretos com as respectivas soluções” (KUHN, 1977, p.358-59, 368).
De acordo com Kuhn, o desenvolvimento da ciência acontece envolvendo dois
momentos: a ciência normal e a ciência revolucionária. Nos períodos de ciência normal,
a comunidade atua consensualmente dentro de um paradigma que é compartilhado
pelos cientistas.
A existência de mudança acompanhada de muitas controvérsias são indícios que
definem as revoluções científicas. A forma descontínua como acontece a mudança
caracteriza a revolução científica. O período em que ocorre a transformação das
anomalias em regra é caracterizado por observação, novos experimentos e uma
reflexão sistemática. As expectativas, os padrões instrumentais e as teorias
fundamentais são revistos (KUHN, 1977, p. 219).
Qualquer teoria científica é elaborada dentro de uma visão de mundo ou de um
paradigma. As leis científicas, por exemplo, são geralmente produtos deste processo
normal e do próprio paradigma. Os cientistas operam dentro de paradigmas aceitos e
compartilhados que determinam quais os problemas devem ser resolvidos, os
instrumentos usados, as técnicas inferidas e os modelos empregados. Os dados
81
observacionais não permanecem os mesmos de um paradigma para outro, após as
revoluções científicas. Isto acontece porque os paradigmas são considerados
incomensuráveis.
Inicialmente, o conceito de incomensurabilidade expressava a dificuldade de se
comparar os componentes teóricos e padrões de cientificidade, característicos de
paradigmas diferentes, sustentados em racionalidades distintas. Esta idéia inicial foi
muito
criticada
sofrendo
algumas
reelaborações
posteriores
para
garantir
a
possibilidade de comparação de teorias consideradas incomensuráveis e da
comunicação entre cientistas adeptos de paradigmas diferentes (KUHN, 2000).
Dutra (1998) entende que Kuhn defende uma tese construtivista quando
considera que os paradigmas são construídos pelos cientistas, enquadrando-o como
um anti-realista no aspecto epistemológico.
Outro importante crítico do positivismo foi Paul Karl Feyerabend (1924-1994),
considerado um dos mais estimulantes e polêmicos filósofos do século XX. Destacou-se
por criticar a rigidez dos métodos usados na produção científica e a necessidade de um
pluralismo de idéias capazes de promover o progresso. Feyerabend argumentou contra
o domínio de uma única teoria na Ciência e incentivou os cientistas a atuarem de forma
inovadora, “contra-indutivamente”. Ele lembrava que "a ciência é uma das muitas
formas de pensamento desenvolvida pelo homem e não necessariamente a melhor"
(FEYERABEND, 1989, p. 15).
Embora tenha sido muito criticado em função do radicalismo de algumas das
suas posições, uma importante contribuição das suas discussões foi a idéia da não
existência de um único método científico, ou de um conjunto de regras perfeitamente
82
definidas a serem aplicadas mecanicamente para produzir novos conhecimentos; a
pluralidade de métodos na ciência é real e desejável.
Combinando essa observação com a percepção de que a ciência não dispõe de método
especial, chegamos à conclusão de que a separação entre ciência e não ciência não é
apenas artificial, mas perniciosa para o avanço do saber. Se desejamos compreender a
natureza, se desejamos dominar a circunstância física, devemos recorrer a todas as
idéias, todos os métodos e não apenas a um reduzido número deles (FEYERABEND,
1989, p. 462).
Feyerabend contribuiu para o reconhecimento de que tanto a imaginação como o
raciocínio lógico estão presentes na criação científica, considerando que para a
Filosofia da Ciência tanto a descoberta quanto a justificação do conhecimento científico
são importantes. A continuidade das pesquisas aliada à continuidade das críticas, tanto
quanto dos resultados aceitos, passaram a ser questões centrais para a comunidade
científica.
3. 3 Questões epistemológicas e a educação científica
Dando prosseguimento à síntese proposta, destacaremos algumas questões
discutidas no âmbito da epistemologia e consideradas como problemas epistemológicos
com implicações na educação em ciências.
O termo Epistemologia e a expressão Filosofia da Ciência têm sido usados
muitas vezes, como sinônimos. Este termo origina-se dos vocábulos gregos: ‘episteme’
que significa conhecimento e ‘logos’ que designa estudo. Considerando-se a etimologia
da palavra, o seu sentido mais próximo seria o estudo do conhecimento ou estudo da
ciência.
83
Segundo Dutra (1998), o termo epistemologia pode ser utilizado freqüentemente
com o sentido de teoria da ciência e neste caso tem o mesmo significado de Filosofia
da Ciência. Este termo também costuma ser usado para designar uma disciplina
filosófica que trata do conhecimento em geral, tradicionalmente conhecida como Teoria
do Conhecimento. Neste caso, o interesse mais geral está nos aspectos cognitivos do
conhecimento. O significado mais restrito deste termo é aquele adotado comumente
pela tradição francesa.
Muitas são as questões que interessam à epistemologia, entre elas algumas se
destacam como: o conceito de ciência; o trabalho do cientista evolvendo tanto o
contexto das descobertas quanto o da justificação das teorias; o papel da observação e
da interpretação na produção do conhecimento científico; o progresso científico e as
mudanças científicas acontecidas no decorrer da História; o papel da experimentação
na pesquisa científica; a objetividade e subjetividade envolvidas na produção do
conhecimento científico; o status epistemológico das leis e teorias científicas, entre
outras. A consciência da problemática envolvida na produção do conhecimento
científico e das questões anteriormente apresentadas começaram a acontecer entre os
filósofos e alguns cientistas/filósofos no fim do século XIX, ocasionando o
desenvolvimento da Filosofia da Ciência ou da Epistemologia como campo
independente (MONDIN, 1987). Neste campo, uma das questões que tem merecido
muita discussão é o próprio conceito de ciência.
84
3.3.1 A concepção de Ciência
Certamente este é um conceito complexo e que poderia demandar uma
discussão tão fecunda capaz de ocupar todo um livro. Alan Chalmers se propôs ao
desafio de realizar esta discussão, tendo escrito o seu famoso livro: O que é ciência
afinal? um importante exemplar de epistemologia traduzido para a língua portuguesa.
Após uma longa discussão que envolveu quatorze capítulos e duzentos e dezeseis
páginas, Chalmers assim se coloca com relação a sua pergunta inicial:
A estrutura de grande parte dos argumentos desse livro foi de desenvolver relatos do
tipo de coisa que é a Física e testá-los no confronto com a Física real. Diante dessa
consideração sugiro que a pergunta que constitui o título desse livro é enganosa e
arrogante. Ela supõe que exista uma única categoria “ciência” e implica que várias áreas
do conhecimento, a Física, a Biologia, a História, a Sociologia e assim por diante se
encaixem ou não nesta categoria.[...](CHALMERS, 1995, p. 211).
Chalmers reconhece que cada área do conhecimento pode ser analisada por
aquilo que é, não havendo necessidade de uma categoria geral “ciência” que possa
servir de modelo para que outras áreas do conhecimento possam ser julgadas à luz
deste modelo e aclamadas como ciência ou difamadas como não sendo ciência. Ainda
em relação a este assunto, assim ele se coloca adiante:
Cada área do conhecimento deve ser julgada pelos próprios méritos, pela investigação
de seus objetivos, e, em que extensão é capaz de alcançá-los. Mas ainda, os próprios
julgamentos relativos aos objetivos serão relativos à situação social (CHALMERS, 1995,
p. 212).
Deste modo Chalmers (1998) se coloca contra a idéia de um conceito universal e
atemporal de ciência ou do método científico, criticando o uso ilegítimo de concepções
85
de ciência e de método científico. Este filósofo mantém no entanto, a tendência
objetivista dos seus comentários evitando que estes sejam enquadrados em posições
relativistas extremas.
As idéias de Kuhn e Feyerabend contribuiram para a flexibilização dos critérios
de cientificidade, em especial, na delimitação entre ciência e não ciência. A
possibilidade de se usar a cientificidade de forma mais ampla com a aceitação de uma
pluralidade de métodos de pesquisa permitiu o reconhecimento do status científico de
outras ciências e não apenas as naturais.
A ciência é uma das formas de conhecimento produzidas pelo homem no
decorrer da sua história. A ciência é intrinsicamente histórica e este caráter se
manifesta nas representações que o homem faz, inclusive para o próprio conhecimento.
A epistemologia histórica não tem a intenção de estabelecer critérios de demarcação
que visam a exclusão de certos saberes e a legitimação de outros. Neste sentido tornase pouco importante a preocupação das epistemologias positivistas de definir o que é
ciência.
Segundo Morais (1997), a atividade científica de forma paradoxal é ao mesmo
tempo una e divisível. O entendimento da Ciência como uma atividade una, deve ser
considerado a partir da sua finalidade global, que busca fazer a realidade inteligível
visando o seu controle em favor do próprio homem. A possibilidade de divisão do saber
científico parte do objeto específico e da técnica específica; sob este ponto de vista a
ciência pode ser considerada divisível, incluindo os vários campos de investigação
conhecidos.
Na opinião de Granger (1994), três traços característicos distinguem a
investigação científica de outros tipos de investigação: a ciência é visão de uma
86
realidade, a ciência visa objetos para descrever e explicar, não diretamente para agir e
o último traço da visão científica é a preocupação constante com critérios de validação.
Numa perspectiva histórica, Chauí (1997) considera três concepções de ciência
ou ideais de cientificidade: o racionalista, o empirista e o construtivista. Estas
concepções têm como objetivo central a apreensão da realidade que é feita pelo
homem. A ênfase que foi dada à razão ou à experiência, ou a relação entre as mesmas
na produção do conhecimento científico, gerou distintas concepções de Ciência.
A concepção racionalista surge com os gregos e estende-se até o final do século
XVII, tendo a matemática como modelo de racionalidade. Esta concepção considera
que a ciência é um conhecimento racional, dedutivo e demonstrativo e que a realidade
possui uma estrutura matemática. O objeto científico é considerado uma representação
intelectual universal, necessária e verdadeira dos objetos representados, podendo ser
conhecido apenas pelo pensamento. O trabalho experimental é realizado apenas para
verificar e confirmar as demonstrações teóricas.
A concepção empirista, que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do
século XIX, considera a ciência como uma interpretação dos fatos baseada em
observações e experimentos, capazes de estabelecer induções que levarão à definição
do objeto, suas propriedades e leis de funcionamento. A experiência tem como função a
produção de conceitos e a teoria científica resulta das observações e dos experimentos.
O rigor dos métodos experimentais utilizados possibilitará a objetividade pretendida da
investigação.
Chauí (1997) considera que as duas concepções de ciência anteriores possuíam
o mesmo pressuposto, ou seja, consideravam que a teoria científica era uma explicação
e uma representação verdadeira da própria realidade.
87
Uma terceira concepção, a construtivista, que se estabeleceu no século XX,
considera a ciência uma construção de modelos explicativos para a realidade e os seus
fenômenos e não uma representação da própria realidade. Sob este ponto de vista a
idéia que vigora é de um conhecimento aproximativo e corrigível, bem como de uma
verdade aproximada que pode em qualquer momento ser corrigida, modificada ou
abandonada por outra mais adequada à situação e aos fenômenos investigados.
Durante o século XX, em função do enorme sucesso e avanços obtidos através
dos feitos científicos, detectou-se um grande interesse de epistemólogos e sociólogos
em questões relacionadas à natureza da ciência e a sua produção. Tais concepções
têm se modificado desde o positivismo, passando pelo positivismo lógico e chegando
até a posições relativistas extremas.
3.3.2 A relação entre observação e interpretação
Uma das importantes questões debatidas na Filosofia da Ciência é a relação
entre a observação e a interpretação. Uma das principais preocupações de Hanson
(1975) foi discutir esta questão de uma forma inovadora. Ele identificava a
impossibilidade da separação da observação e da interpretação sem que estas fossem
descaracterizadas. Para Hanson, toda observação é carregada de teoria, quando um
cientista observa ele já está interpretando. A idéia principal é que no próprio ato de
observar já acontece a interpretação. Nesta perspectiva a pretensa objetividade da
investigação científica é questionada uma vez que, o conhecimento prévio, as crenças
e as teorias determinam, em grande extensão, o que se percebe. Outros filósofos da
88
ciência também discutiram e defenderam este ponto de vista a exemplo de Kuhn,
Polanyi, Toulmin e Bachelard.
O empirismo-indutivismo, tanto em seus aspectos teóricos quanto na sua prática,
considera que o observador, investigador ou pesquisador pode observar, coletar e
registrar dados ou eventos, objetivamente, sem possuir idéias prévias sobre a
importância relativa dos fenômenos investigados. Uma observação não preconceituosa
é possível pelo uso fiel dos órgãos dos sentidos. A dicotomização do sujeito e do objeto
é um pré-requisito que se faz necessário. A análise dos dados não considera nenhuma
hipótese subjacente para direcionar a observação, admitindo-se que as explicações
envolverão relações e generalizações estabelecidas entre os fatos observados e os
dados coletados.
Na perspectiva construtivista admite-se que a elaboração de teorias pressupõe
que estas precedem a observação, considera-se que as expectativas teóricas
conduzem às observações, determinando o que é percebido. Nesta visão não se
admite a idéia de estruturas mentais rígidas e imutáveis mas, contrariamente, a
possibilidade de que as estruturas mentais passam ser desfeitas e novas estruturas
construídas. Sob esta ótica admite-se que o significado de um acontecimento ou a
apreensão de dados é uma construção do indivíduo.
Popper (2001) considera a importância das hipóteses e conjecturas na
explicação dos problemas investigados, negando a possibilidade de que através de
observações particulares acumuladas e por processos indutivos o homem consiga
atingir leis gerais e teorias. Ele não admite a existência de um processo lógico indutivo
“per si”, no entanto, o caráter inventivo e criativo das hipóteses e conjecturas é
amplamente reconhecido.
89
A dinâmica da criação científica discutida por Popper em relação a certos
aspectos, assemelha-se àquela defendida por Bachelard (1991) que propõe a inversão
da dinâmica característica do raciocínio indutivo com a substituição da ordem vigente:
dos fatos para a teoria, para uma nova ordem, das teorias para os fatos, num processo
que busca a reorganização da experiência em um esquema racional.
Aliás, como neste capítulo preliminar pretendemos definir tão claramente quanto
possível a nossa posição e o nosso objetivo filosófico, devemos acrescentar que em
nossa opinião uma das duas direções metafísicas deve ser sobrevalorizada: a que vai
do racionalismo a experiência. É através deste movimento epistemológico que
tentaremos caracterizar a filosofia da ciência física contemporânea (BACHELARD,
1991b, p.10).
3.3.3 A realidade do mundo e a possibilidade do homem conhecê-la
Embora seja este um problema fundamental da ontologia e da cosmologia desde
a Grécia clássica, consideramos que uma das premissas básicas para o cientista é a
existência de um mundo objetivo exterior ao investigador que busca o seu
conhecimento. Esta premissa básica, no entanto, não impede que se reconheça a
intervenção do cientista no mundo, seja através da observação e análise da realidade,
ou pela interferência no funcionamento do mundo cuja dinâmica se pretende investigar.
Outra importante questão é que esta aproximação do mundo deve acontecer
gradativamente. O reconhecimento da provisoriedade das descrições da realidade e do
mundo é essencial, o que implica em que estas estejam sempre sendo revistas e
aprimoradas.
A relação entre as afirmações da ciência e a realidade ou entre as teorias
científicas e o mundo em que se tem a intenção de aplicá-las é uma importante questão
debatida no âmbito da moderna filosofia da ciência. Duas principais tendências podem
90
ser identificadas em relação a esta questão: de um lado, os realistas científicos, que
consideram que uma teoria científica descreve ou tem como objetivo descrever como o
mundo realmente é, ou seja constitui um relato aproximadamente verdadeiro de como o
mundo é. O conceito de verdade aproximada é utilizado pelos realistas científicos para
explicar o sucesso preditivo de uma teoria (DUTRA, 1998).
Neste caso considera-se que a realidade existe independentemente da nossa
cognição e a aceitação de uma teoria acontece a partir da crença em sua “verdade
aproximada”, as afirmações da ciência são descrições fiéis da realidade. Neste ponto
de vista a idéia aceita é a de verdade como correspondência, ou seja uma teoria é
verdadeira se o que ela diz corresponde ao mundo ou as coisas às quais ela faz
referência (CHALMERS, 1995; DUTRA, 1998).
Em oposição a esta visão encontram-se os anti-realistas que consideram que os
componentes teóricos da ciência não descrevem a realidade, constituindo-se em
instrumentos que possibilitam a relação entre conjuntos de estado de coisas
observáveis, uns com os outros. As teorias seriam bons instrumentos de predição, que
poderiam funcionar bem empiricamente, mesmo não se aproximando da verdade. A
aceitação de uma teoria científica deve levar em conta a sua adequação empírica.
Existem diversas variações possíveis combinando formas de realismo e de antirealismo envolvendo tanto as teorias quanto as entidades inobserváveis envolvidas na
formulação de teorias. A relação entre o realismo sobre as teorias e o realismo sobre
entidades, pode ser objeto de discussões e de novas categorizações; no entanto este é
um assunto mais complexo que pode envolver a interpretação dada à linguagem
científica.
91
Dutra (1998) chama o anti-realismo de teorias de instrumentalismo; neste ponto
de vista as teorias são consideradas como instrumentos ou ferramentas de predição e
sua avaliação não leva em conta o seu valor de verdade. O anti-realismo de entidades
é denominado de nominalismo, uma vez que tais entidades inobserváveis são
consideradas ficções ou fórmulas para se referir a observações, não tendo
correspondência no plano real. O realista científico é aquele que aceita tanto que uma
teoria é um relato que corresponde à realidade quanto que, as entidades relacionadas
existem e são reais. O realismo científico é também conhecido como realismo ingênuo
(MEDEIROS; BEZERRA FILHO, 2000).
Um exemplo desta discussão pode ser encontrado na teoria atômica clássica.
Esta teoria procura descrever a constituição da matéria como um agregado de
partículas (átomos, íons ou moléculas), que originam as diversas substâncias e
materiais conhecidos com as suas distintas propriedades. Incorporando os avanços da
ciência no século XX, esta teoria tornou-se mais sofisticada e passou a postular a
existência de novas partículas constitutivas da matéria (prótons, elétrons e neutrons,
etc.) que não são diretamente observadas. Para o realista científico, se a teoria é
aproximadamente verdadeira, então tais entidades, postuladas e descritas realmente
existem de acordo com o que foi previsto pela teoria. Na interpretação realista aceita-se
que as teorias científicas têm a pretensão de dizer algo acerca da constituição
ontológica do mundo, tomado como objeto de investigação.
Em relação a esta questão, Chalmers (1995) defende um ponto de vista que ele
chama de realismo não representativo, porque não incorpora uma teoria de verdade de
correspondência. Este tipo de realismo não envolve uma distinção em termos de
92
observação e termos teóricos, não sendo, portanto, passível de críticas como aquelas
feitas ao instrumentalismo.
O realismo não representativo é realista em dois sentidos. Em primeiro lugar, envolve a
suposição de que o mundo físico é como é independentemente de nosso
conhecimento dele[....] Em segundo lugar, ele é realista porque envolve a suposição de
que, na medida em que as teorias são aplicáveis ao mundo, são aplicáveis dentro e
fora das situações experimentais. As teorias físicas fazem mais que afirmações a
respeito de correlações entre conjuntos de proposições de observação (CHALMERS,
1995, p.208).
Entre as tendências anti-realistas, destaca-se a de Van Frassen, que considera
que a ciência visa a construção de modelos empiricamente adequados mas que não
precisam ser verdadeiros; portanto, uma teoria científica seria um programa de
construção de modelos adequados empiricamente. Van Frassen é considerado um antirealista de teorias e de entidades, admitindo que a aceitação de uma teoria deve
envolver a crença em sua adequação empírica. Em função do caráter construtivo das
suas idéias sua filosofia é conhecida como empirismo construtivo.
Outra postura encontrada nas discussões sobre este assunto é conhecida como
realismo crítico, que assume a existência do mundo, mas admite que as descrições da
ciência são apenas modelos ou construções metafóricas feitas pelos cientistas
(MATTHEWS, 1994). Esta pode ser considerada uma perspectiva mais aberta da
produção do conhecimento científico que está em consonância com a Filosofia da
Ciência contemporânea.
93
3.3.4 A questão do progresso científico
Uma importante discussão no âmbito da Filosofia da Ciência é a questão do
progresso científico. A imagem da ciência, muito comum na sociedade em alguns meios
acadêmicos, é a de uma atividade que desde o seu início tem evoluído positivamente,
acertando sempre e cada vez mais, porque tem conseguido articular e melhorar o
conhecimento acumulado até os dias atuais.
Esta idéia de ciência tem sido acompanhada de uma visão de mundo como uma
entidade estável que pode ser conhecida e representada de modo exato e preciso.
Estas idéias podem ser consideradas como parte de uma epistemologia popular,
ancorada numa cosmologia ingênua e no senso comum. Apesar da ingenuidade, estas
idéias também são compartilhadas por alguns cientistas e filósofos que procuram
justificá-las através de argumentos críticos favoráveis a tais visões.
Esta imagem de ciência tem constituído a base das concepções “tradicionais” da
ciência, que tentam através de um maior rigor filosófico discutir a questão de progresso
científico dentro de uma perspectiva de acumulação de conhecimento. Nesta
concepção ingênua ou vulgar de ciência imagina-se que o aperfeiçoamento das teorias
pode levar a uma aproximação da verdade, implicando no progresso científico (DUTRA,
1998).
A noção de progresso cumulativo da ciência é encontrada também entre
pensadores mais antigos, bem como entre os da época moderna e mesmo da
contemporaneidade. Alguns filósofos consideram a possibilidade de haver progresso,
mesmo que não seja possível a confirmação de teorias, admitindo uma idéia de
progresso da ciência através de refutações e da eliminação de erros (POPPER, 2001).
94
Na medida em que a teoria resista a provas pormenorizadas e severas, e não seja
suplantada por outra, no curso do progresso científico, poderemos dizer que ela
“comprovou sua qualidade” ou foi “corroborada” pela experiência passada (POPPER,
2001, p.34).
Thomas Kuhn (1994) critica a idéia “tradicional” de progresso científico propondo
a idéia de progresso através de revoluções em oposição ao progresso acumulativo,
defendido pelos relatos indutivistas da ciência. As revoluções científicas postuladas por
Kuhn se opõem tanto ao progresso acumulativo dos empiristas lógicos, quanto ao
progresso através de refutações defendido por Popper (CHALMERS, 1995).
A noção de revolução científica encontra-se relacionada com a idéia de mudança
na ciência, constituindo-se numa abordagem dinâmica dos problemas epistemológicos
da ciência. Este tipo de abordagem leva em conta as atividades científicas e seus
resultados, sempre no decorrer do tempo, considerando-as enquanto processos de
mudanças (DUTRA, 1998).
No trecho a seguir, Kuhn define a sua concepção de progresso científico
caracterizado pelo aumento na capacidade de resolver problemas, não se dirigindo a
um fim determinado; não é um progresso em direção à verdade como na visão
tradicional:
As teorias científicas mais recentes são melhores que as mais antigas, no tocante à
resolução de quebra-cabeças nos contextos freqüentemente diferentes aos quais são
aplicadas. Essa não é uma posição relativista e revela em que sentido sou um crente
convicto do progresso científico (KUHN, 1996, p.252-253).
Laudan (1977) defende a revalorização da racionalidade e considera o progresso
científico como um processo não acumulativo, onde a avaliação de teorias deve
95
acontecer num contexto comparativo que permita aos cientistas decidir entre as
melhores teorias; neste caso o uso do termo ‘melhor’ é feito com o seguinte sentido:
[...] nosso princípio de progresso nos indica que é preferível a teoria que mais se
aproxima a resolver o maior número de problemas empíricos importantes, portanto gera
o menor número de anomalias consideradas como o mesmo que problemas conceituais
(LAUDAN, 1985 apud CUDNAMI, 1997, p.330).
Laudan reconhece a importância da existência e convivência entre teorias rivais
como essencial para que aconteça o progresso na ciência e o desenvolvimento
científico.
[...] o verdadeiro desenvolvimento da ciência se encontra mais próximo do quadro da
coexistência permanente de rivais e da onipresença do debate conceitual que do quadro
da ciência normal do “paradigma” dominante de Kuhn. As confrontações dialéticas são
essenciais para o crescimento e a melhora do conhecimento científico; como a natureza,
as ciências têm presas e garras revolucionárias (LAUDAN, 1985 apud CUDNAMI, 1997,
330).
3.3.5 A Filosofia da Química e a construção de modelos
Mesmo reconhecendo o predomínio da Física como paradigma das ciências
naturais no âmbito das comunidades envolvidas com a História e Filosofia da Ciência, a
Filosofia da Química tem gradativamente emergido contrariando aqueles que defendem
uma visão reducionista sobre este assunto.
Ainda que a Química não tenha recebido a merecida atenção dos filósofos da
Ciência, Scerri (1997) considera importante que se reconheça, dada as suas
especificidades, a necessidade de uma atenção especial da Filosofia para este campo.
96
Um exemplo desta especificidade encontra-se nas visões de predições; na Física elas
estão baseadas em modelos matemáticos que diferem dos modelos químicos
relacionados com aspectos qualitativos da matéria. Tanto a Química quanto a Física
fazem uso de conceitos quantitativos e dinâmicos; na Química, no entanto, muitos
destes conceitos são acompanhados de outros conceitos qualitativos e classificatórios
que são usados, muitas vezes, como meios de representação.
Considerando que a Filosofia da Química é um campo emergente, alguns
pesquisadores têm se dedicado a encontrar aplicações deste tipo de conhecimento na
Educação em Química (ERDURAN, 2001; SCERRI, 2000, 2001). Os modelos e a
modelagem têm sido considerados um importante contexto através do qual aspectos da
epistemologia química podem emergir, possibilitando a discussão destas questões em
salas de aula. O desenvolvimento dos modelos através da História da Química tem sido
uma das preocupações dos estudos realizados por Justi e Gilbert (1999).
Quando se considera o uso dos modelos no ensino, as pesquisas realizadas
apontam a ausência de suporte teórico para que os estudantes compreendam
adequadamente os modelos e a modelagem. O que tem predominado entre os
estudantes é a concepção de modelo como cópia da realidade, em contraposição à
idéia de uma representação aproximada e tentativa (GROSSLIGHT; UNGER; JAY,
1991). Nos livros didáticos muitos modelos apresentados são híbridos e não existe a
preocupação com a diferenciação e caracterização dos diferentes tipos de modelos.
Além disso, os experimentos químicos não são realizados como atividades para
desenvolver, avaliar e revisar os modelos utilizados na Química.
Segundo Erduran (2001), os modelos e a modelagem tiveram um papel
fundamental na ciência química e historicamente tornaram-se cada vez mais
97
importantes na produção deste tipo de conhecimento. No entanto, isto nem sempre é
reconhecido e a excessiva importância concedida à teoria quântica na previsão do
comportamento físico e químico dos elementos tem ocasionado a visão da Química
como uma ciência “reduzida”, cujos modelos podem ser explicados por teorias físicas.
Scerri (2001) considera que esta visão equivocada pode ser em parte atribuída
aos educadores químicos e também aos cientistas que compartilham o reducionismo da
Química, considerando-a, mais especificamente, reduzida à própria Mecânica Quântica.
3.3.6 Modelos e modelagem na Educação Química
O uso de modelos e a modelagem são assuntos muito investigados e de grande
interesse para a Educação em Química, desempenhando um importante papel no
desenvolvimento do conhecimento científico. Este assunto é muito importante para
compreensão de como a ciência é feita e funciona, possibilitando uma melhor
aprendizagem ‘sobre’ a ciência. Alguns pesquisadores inclusive reconhecem a
importância dos estudantes aprenderem a criar os seus próprios modelos (JUSTI;
GILBERT, 2002).
A distinção dos diferentes tipos de modelos é uma importante função da Filosofia
da Química que procura identificar os principais modelos atualmente utilizados nesta
área, bem como aqueles que foram substituídos ao longo do tempo, os chamados
modelos históricos. Embora muitos modelos científicos e didáticos sejam bastante
utilizados na educação química, poucos modelos históricos têm sido adequadamente
caracterizados na literatura (JUSTI; GILBERT, 1999, 2000).
98
A definição de modelos de forma adequada tem sido uma das preocupações de
entidades padronizadoras como a ‘Nacional Science Education Standards’ que
apresenta a seguinte definição:
Modelos são esquemas tentativos ou estruturas que correspondem a objetos reais,
eventos ou classe de eventos, e que tem um poder explanatório. Os modelos ajudam
aos cientistas e engenheiros a entenderem como as coisas funcionam. Modelos
assumem muitas formas, incluindo objetos físicos, projetos, construtos mentais,
equações matemáticas e simulações em computador (NRC 1996 apud ERDURAN,
2001, p.587).
A seguir encontra-se sumarizado vários significados atribuídos aos modelos,
encontrados numa ampla literatura consultada por Justi e Gilbert (2002, p.216):
•
é uma imagem mental produzida para um dado propósito;
•
é compartilhado com outras pessoas, assim um modelo pode ser expresso
através
de
uma
série
de
representações
(material,
verbal,
visual,
matemática);
•
é construído por entidades que podem ser derivadas de objetos específicos,
ou de conceitos formados por abstração através de objetos similares;
•
pode ser construído para um sistema, um evento ou um processo;
•
é usado para explicar o comportamento de um fenômeno podendo possibilitar
previsões e testes tomando-o como base;
•
é aceito como um conhecimento científico em uma dada forma após ser
referendado e aprovado nos meios de divulgação científicos;
•
pode ser modificado ou abandonado quando problemas relacionados ao seu
poder de explicação emergirem;
99
A concepção de modelos científicos como mediadores ou intermediários entre o
sistema teórico pertencente aos domínios mais abstratos do conhecimento científico e o
empírico e concreto presente na experiência sensível é defendida por filósofos como
Bunge (1974).
Galagovsky e Adúriz-Bravo (2001) consideram que no âmbito da epistemologia a
noção de modelo científico tem estado intimamente ligada a de teoria. Na década de
noventa, no entanto, desenvolveram-se muitas teorizações específicas tanto para
modelos quanto para teorias. Estas pesquisas têm sido fundamentadas em estudos
teóricos realizados por pesquisadores em vários campos como: psicologia da
aprendizagem, ciência cognitiva e didática das ciências. Estes estudos passaram a
reconhecer a importância dos modelos para o entendimento da dinâmica das
representações do mundo feitas tanto por cientistas quanto por estudantes (GIERE,
1999, 2004; DEL RE, 1998).
3.4 Implicações das “novas” Filosofias da Ciência para
os currículos das ciências
Na sua prática, a educação em ciência não tem acompanhado as discussões e
as mudanças acontecidas no âmbito da Filosofia da Ciência do último século (XX); no
entanto, as novas tendências observadas neste campo precisam ser incorporadas aos
novos currículos dos cursos das ciências.
Considerando-se esta questão, o planejamento destes currículos deve ser
antecedido de um grande debate envolvendo a escolha dos conteúdos considerados
necessários. Questões importantes relacionadas à estrutura do conhecimento científico,
100
como ele funciona e se modifica, devem estar presentes no planejamento dos
currículos, assegurando assim, através desta dinâmica que o conhecimento científico
em todas as suas dimensões seja legitimamente representado.
A visão compartilhada de que a decisão sobre questões científicas deve
permanecer com a comunidade científica tem implicações para as pessoas que estão
envolvidas com o planejamento dos currículos. Esta visão pressupõe que o
conhecimento adquirido na escola é de responsabilidade dos envolvidos com a
educação científica; cabendo-lhes a decisão sobre que conteúdos são apropriados para
o ensino. Para que estes educadores sejam capazes de assumir adequadamente este
papel através da mediação didática, a sua formação deve envolver além dos conteúdos
básicos das ciências, aqueles da Educação em geral, Filosofia e História das Ciências.
Consideramos que o conhecimento histórico do desenvolvimento de conceitos, leis e
teorias é fundamental e poderá auxiliar o professor no enriquecimento das suas aulas.
Esta deve ser uma responsabilidade assumida conjuntamente pelos Departamentos
dos Institutos Básicos e Escolas de Educação das Universidades.
As ‘novas filosofias’ da ciência asseguram que o conhecimento, crenças e teorias
determinam, em grande extensão, o que se percebe. Nesta perspectiva consideramos
que o conhecimento da Filosofia da Ciência ajudará na capacitação do professor de
Ciências para conhecer melhor a ciência a ser ensinada, contribuindo para melhoria de
sua prática pedagógica. Esta é uma posição que contraria a visão empirista-indutivista
da ciência, comum na educação científica tradicional. De acordo com Cawthron e
Rowell (1978, p.32):
101
O cientista na ciência escolar é apresentado como despersonalizado e a busca
idealizada de uma verdade cuidadosamente empurra para trás a cortina que obscurece
a realidade objetiva, abstraindo a ordem do fluxo, ordem que é diretamente revelada a
ele através de um distintivo método científico (CAWTHRON; ROWELL, 1978, p.32).
Além disso, a imagem da ciência que tem predominado na educação científica
tradicional considera que o conhecimento científico baseia-se em evidências
experimentais sobre os fatos, tendo uma base observacional, não considerando
possíveis especulações. Esta imagem contradiz, como foi visto, as discussões recentes
no âmbito da Filosofia da Ciência, que consideram a ciência como uma complexa
atividade humana, devendo os currículos retratá-la como tal.
Concluindo a síntese feita neste capítulo, defendemos que as reflexões que
constituem as novas filosofias da Ciência do século XX devam ser tomadas como um
guia necessário para as pesquisas e práticas da educação em ciências. Portanto, tornase necessário sistematizar as principais teses defendidas pelos filósofos da ciência
contemporâneos, que possibilitem novas imagens de ciências que vêm se consolidando
nas últimas décadas. A síntese que apresentamos a seguir se apoia em sugestões
oriundas do campo da Didática das Ciências e em artigos de: Campos; Cachapuz
(1997); Cleminson (1990); Duschl e Guitomer (1991); Gil-Pérez (1996); Gil-Pérez et al.
(2002),
entre outros, que sugerem aspectos consensuais para nortear a educação
“sobre” ciências:
1. o conhecimento científico nunca deve ser considerado como “verdade absoluta” e os
erros são importantes elementos para reflexão, portanto, este tipo de conhecimento
deve ser reconhecido como temporário e produzido por tentativas;
2. as descobertas científicas acontecem em um dado contexto histórico e a História da
Ciência é importante para a compreensão desta contextualização;
102
3. as observações não existem dicotomizadas das teorias que guiam e dão significado
a estas observações explicando e interpretando o mundo de forma tentativa; o
reconhecimento do papel das hipóteses na produção do conhecimento científico é
necessário e desejável;
4. o novo conhecimento na ciência é produzido por ação criativa aliada aos métodos
da investigação científica, não tendo um caráter impessoal, objetivo e livre de
problemas. O pluralismo metodológico é dependente do contexto envolvido na
produção do conhecimento científico, não existindo um único método capaz de
produzir este tipo de conhecimento;
5. o reconhecimento do caráter social e coletivo do desenvolvimento científico é
essencial para que a ciência seja reconhecida também como uma atividade
relacionada à sociedade e à tecnologia;
6. a aquisição de um novo conhecimento é problemática e complexa; o abandono de
um conhecimento que tenha sido falseado geralmente ocorre com dificuldade;
7. os cientistas são parte do mundo que eles investigam, devendo constantemente
submeter os seus resultados à certificação da comunidade científica;
8. o reconhecimento da presença de posições conflitantes no seio do desenvolvimento
das ciências é um elemento importante para a desmistificação da ciência e da sua
construção, que não deve ser vista como uma seqüência de contribuições lineares e
cumulativas.
CAPÍTULO 4
CONCEPÇÕES SOBRE A NATUREZA
DA CIÊNCIA (CNC)
104
4 CONCEPÇÕES SOBRE A NATUREZA DA CIÊNCIA(CNC)
Para entender as concepções epistemológicas dos nossos alunos optamos por
fazer uma revisão de estudos envolvendo concepções sobre a natureza da ciência,
porque muitas investigações realizadas na última década em diferentes países,
identificaram que um dos obstáculos para a concretização de mudanças curriculares e
renovação da educação são concepções epistemológicas pouco adequadas e, algumas
vezes ingênuas, adquiridas por estudantes e professores de ciências (BECKER, 1993;
GIL-PÉREZ et al., 2001; MALDANER, 2000; SCHNETZLER, 2002b).
A educação escolar tradicional, ao lado da mídia, tem contribuído para o
predomínio de uma visão dogmática e preconceituosa das Ciências, que tem resultado
do desconhecimento histórico e metodológico do processo de produção do
conhecimento científico.
O atual modelo de formação docente tem sido responsabilizado pela ausência de
discussões sobre a Filosofia da Ciência durante a formação inicial do professor, bem
como na formação continuada. Este modelo adotado na maior parte das Universidades,
consiste de um currículo com cerca de setenta por cento de disciplinas de conteúdos
específicos e trinta por cento de disciplinas pedagógicas, cursadas em paralelo e de
modo desarticulado. Esta concepção de currículo durante muito tempo constituiu a base
de quase todos os cursos universitários de formação docente na área de ciências e se
fundamenta no modelo da racionalidade técnica. “ A racionalidade técnica é uma
epistemologia da prática derivada da filosofia positivista, construída nas próprias
fundações da universidade moderna, dedicada à pesquisa.” (SHILS, 1978, p.194).
105
Esse
modelo
teve
origem
nas
universidades,
a
partir
de
idéias
de
educadores/pesquisadores e considera que o professor deve se comportar como um
técnico, que aplica teorias, leis e regras elaboradas a partir do conhecimento científico
academicamente produzido e legitimado, para resolver problemas numa perspectiva
essencialmente instrumental. O conhecimento teórico sólido é pré-requisito para que
aconteça a solução dos problemas práticos detectados.
A racionalidade técnica tem como base uma visão objetivista da relação do
sujeito que busca o conhecimento com a realidade a ser conhecida. Considera-se que
todo o conhecimento profissional tem uma base factual (MALDANER, 2000; SCHÓN,
2000).
Nesse modelo, a formação profissional costuma envolver um conjunto de
disciplinas específicas e outro de disciplinas pedagógicas de forma dicotomizada,
formação em blocos, onde ‘as pedagógicas’ vão fornecer ferramentas para a ação do
professor na sua prática. As disciplinas de Metodologia e Prática de Ensino oferecidas
pelas Faculdades de Educação têm a função de concretizar a articulação teoria/prática.
Nesta etapa da formação o futuro professor busca, de um modo geral, receitas e
modelos já elaborados que possam ser utilizados sem uma construção interativa que o
envolva, bem como ao seu formador. A formação pedagógica e a específica seguem
em paralelo e, a necessária articulação entre os dois campos encontra-se quase
totalmente ausente. A construção da autonomia do professor na sua ‘práxis’ não é
priorizada.
Refletindo sobre este assunto, Kinchelloe (1997) considera que os professores
não buscam caminhos alternativos de ver e muitas vezes não estão interessados em
encontrar novos meios de conceitualizar conhecimento e pedagogia. O que predomina
106
nas disciplinas de prática de ensino é a procura por ‘receitas’ para a transmissão de
informações, bem como para o uso da disciplina em sala de aula.
A aplicação dos conhecimentos e habilidades adquiridas acontece nos estágios
onde se espera que o futuro professor finalmente coloque em prática tudo o que
aprendeu. Neste momento a sua ação efetiva passa a ser supervisionada e avaliada.
Ao licenciando cabe fazer as devidas articulações entre o que ele aprendeu nos
Institutos Básicos e nas Faculdades de Educação, solitariamente. Não é previsto
nenhum apoio posterior para as suas ações pedagógicas e possíveis conflitos que se
fazem presentes, em especial, no início do seu exercício profissional (BEJARANO;
CARVALHO, 2003).
Uma outra questão é que os conteúdos curriculares encontram-se distantes das
situações concretas e dos contextos do aluno. Os problemas abordados nos cursos
fazem parte de situações idealizadas e não apresentam muita utilidade para a vida
cotidiana. A pesquisa acadêmica passa a ser questionada já que não atinge as
necessidades do professor na sua futura prática. O conhecimento recebido na
Universidade parece ser inútil porque não pode ser utilizado para resolver problemas
concretos que, em geral, possuem uma estrutura caótica e indeterminada (SCHON,
1992). Configura-se o distanciamento entre a teoria e a prática e a dicotomia ideal/real.
Existe o reconhecimento de que as crenças e convicções dos professores são
adquiridas durante a formação e constata-se que grande parte dos currículos dos
cursos de licenciaturas na área de ciências, não possuem disciplinas específicas que
discutam os pressupostos epistemológicos das ciências e do seu ensino. Nas
disciplinas de conteúdo específico, estas questões também não costumam ser
abordadas, seja pela grande quantidade de assuntos técnicos e científicos específicos
107
bem como pela pouca capacidade de parte dos professores/formadores de discutir
estes assuntos.
Considera-se que a incorporação no currículo de um maior conteúdo de História,
Filosofia e Sociologia da Ciência pode facilitar a mudança de concepções simplistas
sobre a ciência para posições mais relativistas e contextualizadas sobre este tipo de
conhecimento (HODSON, 1985; LUFFIEGO et al., 1994).
A visão do aluno sobre a natureza da ciência é em grande parte influenciada pelo
modo como os manuais apresentam a ciência, tanto na Universidade quanto no níveis
fundamental e médio. Uma abordagem ahistórica e acrítica dos conteúdos científicos
tem predominado (LOPES, 1990, 1992). A seleção dos conteúdos tem priorizado os
conceitos como ponto de partida, ignorando-se que estes são sínteses de um processo
histórico.
A comunidade científica e o seu papel na construção e validação dos avanços
científicos têm uma importância secundária. O método científico, quando discutido, é
apresentado como uma seqüência de etapas pré-estabelecidas que possibilitam aos
cientistas fazer grandes descobertas. Esta é uma deformação que transmite uma visão
rígida e infalível do método científico (GIL-PÉREZ et al., 2001).
Um dos caminhos para se reverter esta situação deve envolver os processos de
mediação pedagógica associados à seleção e à organização do conhecimento escolar,
os mecanismos de transformação do saber científico em saber didático, ou seja, a
transposição ou mediação didática (LOPES, 1992, 1997). Esta seleção deve pressupor
uma clara definição dos objetivos e metas a serem atingidas, mantendo a importante
função de socialização do conhecimento que cabe à escola.
108
Uma outra questão é o desconhecimento de muitos professores e alunos da
existência de distintos conhecimentos envolvidos no processo de ensino e
aprendizagem (cotidiano, escolar, científico etc.). O julgamento da validade destes
conhecimentos envolve diferentes critérios que dependem dos contextos: cultural,
histórico e social.
O conhecimento científico não deve ser excessivamente valorizado e
considerado como uma forma superior de conhecimento, diferenciado com critérios
racionais e universais do que não é científico. A relação entre o conhecimento científico
e o conhecimento cotidiano é uma das preocupações de Lopes (1998), em seu ponto
de vista
[...] o conhecimento científico é epistemologicamente superior para explicar/resolver uma
série de questões, mas não é capaz de dar conta de toda a existência humana. Existem
racionalidades outras, diferentes das racionalidades do conhecimento científico, com as
quais precisamos aprender a dialogar (LOPES, 1998, p.44).
Precisamos valorizar na ação pedagógica, a pluralidade de saberes e as diversas
formas de interpretação do mundo. As diferenças precisam ser resgatadas e a
homogeneização questionada. A convivência de múltiplos saberes é necessária e
desejável. “[...] assumir a diversidade supõe reconhecer o direito à diferença como um
enriquecimento educativo e social” (IMBÉRNON, 2000, p.82).
Muitas pesquisas atuais no campo da Didática das Ciências têm trabalhado com
a idéia de professor-reflexivo (SCHNETZLER, 2002a; SCHÓN, 2000). Estes estudos
consideram que a investigação e reflexão sobre a prática docente é um dos
componentes essenciais ao processo formativo, devendo passar a ser uma précondição para uma melhor atuação docente no âmbito do seu exercício profissional. Os
109
resultados das pesquisas apontam que os programas de formação inicial e continuada
devem priorizar algumas necessidades básicas, tais como:
•
domínio dos conteúdos científicos específicos que devem ser ensinados
em seus aspectos epistemológicos e históricos e articulados com os contextos social,
econômico e político;
•
questionamento e possível superação das visões simplistas sobre o
processo pedagógico, em geral centradas no modelo de ‘transmissão-recepção’ e na
concepção empirista-positivista de Ciência;
•
planejamento de atividades de ensino, incluindo o seu desenvolvimento e
avaliação, que considerem as idéias dos alunos e a construção e reconstrução destas
idéias;
•
uso da prática pedagógica como objeto de investigação/reflexão/ação, o
que deve acontecer considerando a articulação teoria/prática (SCHNETZLER, 2002a).
4.1 Concepções sobre a natureza da ciência: o difícil consenso
dos significados
O progresso da ciência nos últimos dois séculos é inquestionável devido a sua
grande visibilidade e as conseqüências sociais, no entanto, a descrição da natureza da
ciência ainda não é feita precisamente e de forma inquestionável. Esta situação já era
reconhecida há quase quarenta anos por Herron (1969) e não se modificou
substancialmente.
110
Muitos investigadores têm reconhecido a ausência de consenso no âmbito da
Filosofia e da Sociologia da Ciência em relação à imagem mais adequada da
investigação científica e do crescimento do conhecimento científico. O caráter complexo
e dinâmico que caracteriza a atividade científica justifica esta situação e não causa
surpresa à comunidade científica. O reconhecimento deste fato, no entanto, não impede
a aceitação de algum consenso sobre certos aspectos da natureza da ciência que
podem ser norteadores da educação em ciências (McCOMAS; ALMAZROA; CLOUGH,
1998; LEDERMAN, 1992).
No significado da expressão natureza da ciência encontram-se idéias situadas
em diferentes domínios como: Filosofia, História, Sociologia e a Psicologia. Considerase que este tipo de conhecimento transcende às ciências naturais na direção da
filosofia, das ciências cognitivas e sociais, constituindo-se num metaconhecimento
(MEDEIROS; BEZERRA FILHO, 2000).
Lederman (1992) localiza esta expressão no âmbito da epistemologia como uma
forma de conhecimento que inclui valores e crenças inerentes ao próprio
desenvolvimento do conhecimento científico. Neste sentido, as concepções sobre a
natureza da ciência são concepções de natureza epistemológica.
Encontros
internacionais
sobre
Educação
em
Ciências
têm
produzido
documentos com recomendações sobre esta temática, ficando acordado que na
ausência de consenso sobre uma determinada questão, devem ser apresentadas
diversas visões evitando-se assim uma possível doutrinação (VASQUÉZ ALONSO;
MASSANARO-MAS, 1999; McCOMAS; ALMAZROA; CLOUGH, 1998).
No Editorial da revista Science & Education, Matthews (1997) lembrava que o
objetivo de se discutir a natureza da ciência no âmbito da educação científica não é a
111
doutrinação, mas a apresentação de razões e argumentos que possibilitem a aceitação
de determinada posição em detrimento de outras, levando-se em conta o atual estágio
das discussões.
Para Abd-El-Khalick e Lederman (2000), as mudanças na forma de se
conceitualizar a natureza da ciência, durante o último século, refletem os inúmeros
debates e alguns consensos presentes nos diversos campos envolvidos como a
Filosofia, a Sociologia e a História da Ciências e têm exercido influência na educação
em ciências.
Da grande ênfase atribuída ao método científico e suas etapas que marcou a
década de sessenta passou-se, na década seguinte, ao reconhecimento das
características do conhecimento científico ainda pouco exploradas, a exemplo do seu
caráter provisório, público, histórico e sujeito a regras e valores que lhe conferem
consistência interna.
O grande desenvolvimento de pesquisas na área da psicologia aplicada à
aquisição do conhecimento ou à cognição científica verificado na década de oitenta,
ocasionou o reconhecimento da influência de outros fatores nas explicações sobre o
desenvolvimento do conhecimento científico.
A década de noventa foi marcada por tentativas de sistematização desta questão
e algumas iniciativas foram implementadas para que fosse possível o delineamento de
um adequado entendimento da natureza da ciência. O projeto Science for All American
(AAAS - Ciências para Todos, 1993, 1995) elegeu três pontos essenciais para a
implementação de um adequado entendimento sobre a natureza da ciência na
atualidade:
1) a ciência não pode fornecer respostas para todas as perguntas;
112
2) mesmo reconhecendo que a investigação científica tem uma base lógica e
empírica, não se deve esquecer que ela envolve a imaginação e a
criatividade;
3) é importante o reconhecimento dos aspectos social e político que caracteriza
a ciência.
Entidades como National Science Education Standards (ERDURAN, 2001) tem
enfatizado outras questões como a interação entre crenças pessoais, sociais e culturais
na geração do conhecimento científico, além da necessidade de valorização do
ceticismo e da comunicação aberta neste processo.
McComas; Almazroa; Clough (1998) apresentam uma visão aceitável do
significado da natureza da ciência, destacando alguns aspectos considerados
consensuais que emergiram das discussões acontecidas no VIII Encontro Internacional
de Educação em Ciências. No Quadro 1, a seguir, estão sintetizados os principais
pontos destacados por estes pesquisadores.
113
QUADRO 1 - Aspectos da natureza da ciência considerados consensuais
O conhecimento científico enquanto durável tem um caráter tentativo
O conhecimento científico apoia-se fortemente, mas não completamente, na observação,
evidência experimental, argumentos racionais e ceticismo
Não existe um único modo de se fazer ciência (não existe um único método científico)
A ciência é uma tentativa de se explicar os fenômenos naturais
Leis e teorias assumem diferentes papéis na ciência, entretanto os estudantes devem
considerar que as teorias não se tornam leis mesmo com evidências adicionais
Pessoas de todas as culturas contribuem para a ciência
Um novo conhecimento deve ser comunicado clara e abertamente
Os cientistas necessitam de registros precisos, críticas e reprodutibilidade
As observações são dependentes das teorias
Os cientistas são criativos
A História da Ciência revela um caráter tanto evolucionário quanto revolucionário
A ciência é parte das tradições sociais e culturais
A ciência e a tecnologia se influenciam mutuamente
As idéias científicas são afetadas por seu meio social e histórico
Os aspectos consensuais anteriormente definidos podem ser incorporados na
formação científica através de abordagens didáticas implícitas ou explícitas. Neste
último caso configura-se uma abordagem dentro do contexto do conteúdo da ciência e
das atividades científicas, envolvendo elementos da História e Filosofia da Ciência.
A implementação dos dois tipos de abordagens na educação científica tem sido
sugerida por diferentes pesquisadores como Abd-El-Khalick; Lederman (2000), Duschl
(1988), Lederman (1986, 1992), Matthews (1994), Robinson (1969)
entre outros.
Considera-se que o conhecimento da dinâmica da produção científica possibilitará a
professores e estudantes uma maior compreensão do conhecimento científico ensinado
114
nas escolas (conhecimento escolar), tornando-os mais aptos à argumentação e a crítica
de questões relacionadas à atividade científica.
Uma importante meta a ser atingida na formação na área das ciências é o
reconhecimento de que o conhecimento escolar é fruto de um processo complexo que
busca a superação de dicotomias entre objetivo e subjetivo, o racional e o espontâneo,
o absoluto e o relativo, entre outras.
4. 2 Concepções sobre a natureza da ciência: uma retrospectiva histórica
A preocupação relativa ao entendimento dos estudantes sobre a ciência e a sua
natureza remonta ao início do século XX. Ainda que nessa época não fosse claro o
significado da expressão natureza da ciência, já fazia parte dos objetivos da educação
científica a discussão de alguns elementos que caracterizavam a ciência e a atividade
dos cientistas (McCOMAS; ALMAZROA; CLOUGH, 1998).
Lederman (1992) relata que algumas associações científicas como o The Central
Association of Science and Mathematics Teachers, desde 1907, já enfatizava a
importância da presença de discussões sobre o método científico e o processo da
ciência na educação em ciência.
No início do século XX, importantes educadores como Dewey (1995)
consideravam que o entendimento do método científico era mais importante do que a
própria aquisição do conhecimento científico. Neste período, aceitava-se que o
entendimento adequado da natureza da ciência era possível através de uma maior
ênfase na compreensão e utilização do método científico no ensino de ciência.
115
Na década de trinta, em artigo que defendia a importância da História da
Química para o Ensino de Química, Jaffe (1938) demonstrava a sua preocupação com
esta questão, explicitando em seu livro New World of Chemistry alguns objetivos
relativos à natureza da ciência como: a importância do julgamento de experimentos, a
necessidade do abandono de uma teoria à luz de novas evidências e do
reconhecimento de que as leis podiam não ser verdades definitivas.
Na revisão de literatura percebe-se que a preocupação com a inclusão desta
temática na educação científica era defendida por muitos cientistas, educadores e/ou
filósofos que também consideravam importante a utilização de uma abordagem
histórica na educação em ciência ou uma maior aproximação entre as ciências e as
humanidades.
Como
precursores
desta
abordagem
temos
dois
importantes
educadores: o químico James Bryant Conant e o biólogo Joseph Jackson Schwab.
Conant (1951) defendia que todos os estudantes deviam entender as táticas e
estratégias da ciência e foi um dos pioneiros na valorização de uma educação científica
com ênfase no entendimento da construção da ciência, priorizando, para tanto, uma
abordagem histórica. Esta era uma questão defendida também por Schwab (1964 apud
RODRÍGUEZ; NIAZ 2002) que, como filósofo e educador em ciências, considerava de
grande importância uma maior aproximação entre as ciências e as humanidades,
reconhecendo que o ensino de ciência tinha se constituído numa “retórica das
conclusões” ignorando o complexo processo de construção da ciência e suas
conseqüências sociais.
A explicitação formal do que hoje é conhecido como ‘natureza da ciência’ por de
uma sociedade científica só aconteceu na segunda metade do século XX. A forma
116
como esta questão foi apresentada pela entidade americana, National Society for the
Study of Education pode ser vista a seguir:
Existem dois principais objetivos do ensino de ciências: um é o conhecimento, e o outro
é o empreendimento. Dos cursos de ciência os alunos devem adquirir um útil comando
dos conceitos e princípios da ciência. A ciência é mais do que uma coleção de fatos
isolados e sortidos[...] Um estudante deve aprender alguma coisa sobre o caráter do
conhecimento científico, como ele tem sido desenvolvido e como ele é usado (HURD,
1960 apud McCOMAS; ALMAZROA; CLOUGH, 1998, p.511)
Entre as décadas de sessenta e setenta, esta temática foi considerada como um
dos principais objetivos do ensino de ciências, devendo ser incorporada na formação
científica. Alguns projetos curriculares foram desenvolvidos para que os cursos de
ciência incluíssem em seus programas, tanto os produtos da ciência quanto o seu
processo. A importância da História da Ciência para auxiliar na compreensão de como o
cientista adquire o conhecimento passou a ser reconhecida e alguns projetos com este
enfoque se destacaram como: History of Science Cases (KLOPFER; COOLEY, 1963),
Harvard Project Physics (RUTHERFORD; HOLTON; WALTON, 1970) e Biological
Sciences Curriculum Studies (SCHWAB, 1962 apud RODRIGUEZ; NIAZ, 2002).
Neste período, alguns livros publicados defendiam a inclusão de elementos da
natureza da ciência nos currículos de ciências. Dois destes livros foram destacados por
McComas; Almazroa e Clough (1998): The Nature of Science de Robinson (1969) que
apresenta alguns conteúdos de Filosofia da Ciência necessários a uma formação inicial
e Concepts of Science Education: a Philosophical Analysis de Martin (1972 apud
MCCOMAS; ALMAZROA; CLOUGH 1998), que reafirmava argumentos já apresentados
por Robinson apoiando questões relativas à inclusão deste assunto na educação.
Posteriormente, Michael Matthews escreveu o importante livro Science Teaching - The
117
Role of History and Philosophy of Science (1994) que apresenta muitos argumentos
para a inclusão da natureza da ciência na educação científica, sendo considerado um
livro de referência sobre esta temática.
Matthews (1994; 1997) considera que as questões sobre a natureza da ciência
se relacionam, também, com muitos aspectos da educação atual a exemplo do
multiculturalismo, da controvérsia criacionismo/evolucinismo, da relação entre o
feminismo e a educação em ciências, da relação entre ciência e religião, da questão da
preservação ambiental e o desenvolvimento da ciência. Apesar das louváveis iniciativas
no campo da divulgação científica e do grande interesse que este assunto tem
despertado entre os pesquisadores, nos últimos cinqüenta anos poucas mudanças
efetivas aconteceram no sentido da implementação de currículos que priorizem esta
temática.
Nas últimas duas décadas do século XX esta situação despertou um maior
interesse e alguns encontros científicos aconteceram com objetivo de investigar e
encontrar meios de integrar a História e a Filosofia da Ciência na Educação. Estes
encontros foram realizados em diferentes países e tiveram a participação de
educadores, historiadores, filósofos e sociólogos.
A criação de periódicos priorizando a articulação da História, Filosofia, Sociologia
e o Ensino de Ciências é outra importante iniciativa que tem contribuído para melhorar
a formação inicial e continuada do professor de ciências, proporcionando também,
meios de divulgação das pesquisas nesta área. O Science and Education é um destes
periódicos que têm suprido esta importante lacuna na formação superior, conseguindo
apresentar artigos que articulam conteúdos de diferentes áreas, além de idéias situadas
na interseção de diversos campos do conhecimento.
118
Nas últimas duas décadas do século XX, importantes organizações, em
diferentes países defendem a incorporação da natureza da ciência no conhecimento
escolar. De forma mais ou menos explícita, esta temática tem estado presente em
muitos documentos oficiais e não oficiais que devem nortear as reconstruções dos
currículos dos cursos de ciências, fazendo parte das reformas educacionais propostas.
No Brasil, tentativas para esta concretização podem ser encontradas em documentos
oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Química (BRASIL, 2001).
4.3 A compreensão da natureza da ciência possibilitando
a alfabetização científica
A necessidade da compreensão dos pressupostos, valores, objetivos, metas e
limitações da ciência tem sido defendida por muitos educadores da atualidade. Tais
questões são reconhecidas como essenciais para que uma “alfabetização científica”
seja possível. Segundo Bauer (1994 apud EPSTEIN 2002), a alfabetização científica
(scientific literacy) deve incorporar três componentes culturais: o conhecimento razoável
de determinados conceitos e temas de importância científica; uma introdução à
compreensão da natureza da ciência e a consciência da sua importância na sociedade
e na cultura.
Reconhecemos que o uso da expressão “alfabetização científica” tem sido
questionado por alguns educadores e pesquisadores, considerando-se que ela
incorporaria uma visão reducionista; no entanto, esta expressão é amplamente usada
na literatura da área da Educação em Ciências. A nossa opção pelo seu uso é
119
decorrente de considerar que ela satisfaz aos propósitos deste estudo, e por não dispor
de uma palavra mais adequada à substituição.
No Brasil, o professor Áttico Chassot, pioneiro na militância da educação
química, tem se destacado na defesa da necessidade deste tipo de alfabetização em
todos os níveis de ensino, tendo escrito o livro “Alfabetização científica: questões e
desafios para a Educação” publicado no ano 2000. Segundo o autor “a alfabetização
científica pode ser considerada como uma das dimensões para potencializar
alternativas que privilegiam uma educação mais comprometida” (CHASSOT, 2003,
p.29).
Segundo Chassot (2000) a “alfabetização científica” envolve o conjunto de
conhecimentos que capacitariam os indivíduos a fazer uma leitura do mundo. Esta
expressão é empregada tendo como pressuposto que a ciência é uma linguagem que
pode ser utilizada para facilitar a leitura da natureza ou do mundo natural (CHASSOT,
1993, p.37). Este professor considera o mundo natural como tudo aquilo que constitui a
natureza, o inorgânico e orgânico, excluindo o sobrenatural ou o espiritual. Sob este
ponto de vista, o fazer científico inclui a elaboração de um conjunto de conhecimentos
metodicamente adquiridos e a descrição da natureza numa linguagem específica, a
linguagem científica. Fazer alfabetização científica é possibilitar o entendimento ou a
utilização desta linguagem e a própria inclusão social, através da tomada de
consciência de se estar fazendo parte do mundo.
Este professor reconhece que a alfabetização científica é atualmente
apresentada como uma linha de investigação emergente na Didática das Ciências.
Numa perspectiva mais ampla inclui-se neste tipo de investigação o conhecimento dos
fazeres cotidianos da ciência, da linguagem científica e da decodificação das crenças
120
que nela se agregam (AGUILAR, 1999, apud CHASSOT, 2003, p.30). Uma outra
tendência
detectada
na
literatura
considera
a
alfabetização
científica
como
possibilitadora de uma avaliação mais crítica do conhecimento veiculado, ajudando a
fazer correções em ensinamentos relacionados à ciência, julgados
distorcidos ou
equivocados (PUIGCERVER; SANS, 2002).
Mesmo em países como os Estados Unidos, detectou-se um baixo nível de
cultura científica entre os alunos do nível secundário, motivando a elaboração e
implementação de projetos como o Projeto 2061, que tem a pretensão de incrementar a
alfabetização científica, favorecendo o exercício da cidadania.
4.4 As pesquisas sobre concepções sobre a natureza da ciência
Como visto anteriormente, o objetivo de se promover as discussões sobre a
natureza da ciência e sua inclusão na educação já era explicitado por educadores
desde o início do século XX; no entanto, as pesquisas sobre este tema só começaram a
acontecer durante a segunda metade desse século.
Três importantes revisões sobre pesquisas envolvendo as CNC foram
encontradas na literatura consultada. Alguns artigos com este enfoque se destacam: o
de Lederman (1992) apresenta uma importante e abrangente revisão sobre este
assunto, destacando-se pelo maior número de resultados de pesquisa apresentados;
Kouladis e Ogborn (1995) revisaram vinte e quatro trabalhos realizados entre 1954 e
1991, enfatizando os pressupostos filosóficos das pesquisas identificadas e Pórlan e
Riviero (1998 apud HARRES 1999), o mais recente deles, que teve uma maior
preocupação com os pressupostos metodológicos utilizados nas investigações citadas.
121
No Brasil, um importante trabalho de revisão de pesquisas sobre as concepções
de professores sobre a natureza da ciência e suas implicações sobre o ensino foi
realizado por Harres (1999), que sintetizou os resultados das três revisões
anteriormente citadas, comparando-as entre si e, também, com investigações mais
recentes, destacando as implicações dos resultados destes trabalhos no ensino de
ciências.
Outro artigo de revisão mais recente, de Abd-El-Khalick e Lederman (2000) teve
como principal objetivo avaliar a efetividade das várias tentativas realizadas para
melhorar as concepções da natureza da ciência de professores em serviço ou em
formação, através de abordagens instrucionais implícitas ou explícitas. No primeiro tipo
de abordagem (implícita) utilizou-se atividades de aprendizagem orientadas sob a forma
de investigação, priorizando-se o engajamento dos estudantes nestas atividades, não
existindo qualquer referência direta à natureza da ciência. No segundo tipo de
abordagem (explícita), prioriza-se a utilização de conteúdos relacionados a aspectos da
natureza da ciência de forma direta e explícita através de leituras que tratam deste
tema ou incorporando-se ao ensino elementos da História e Filosofia da Ciência. As
leituras e discussões travadas possibilitaram a incorporação de concepções sobre a
natureza da ciência em consonância com a Filosofia da Ciência contemporânea.
As conclusões apresentadas nas investigações apontam que as pesquisas
realizadas adotando abordagens explícitas foram mais bem sucedidas do que aquelas
que adotaram abordagens implícitas, quando o principal objetivo pretendido era o
aprendizado de questões epistemológicas subjascentes ao ‘conhecimento escolar’.
122
De acordo com Lederman (1992), as pesquisas desenvolvidas sobre as
concepções sobre a natureza da ciência (CNC) se subdividiram em quatro linhas
distintas de investigação:
1) o levantamento das concepções dos estudantes;
2) o desenvolvimento, uso e avaliação de currículos planejados para melhorar
as CNC dos estudantes;
3) o levantamento e avaliação das CNC dos professores;
4) a identificação das relações entre as CNC dos professores, as práticas
pedagógicas e as concepções dos estudantes.
Os estudos iniciais sobre o levantamento das concepções dos professores e
alunos possibilitaram a percepção da necessidade do desdobramento das linhas de
investigação inicialmente adotadas, para que fosse possível articulá-las com os
currículos e as práticas pedagógicas. A transferência das crenças ou concepções dos
professores para o discurso e ações em sala de aula é uma questão ainda aberta a
investigações. Existem pesquisas que admitem esta influência e outras que apresentam
dúvidas quanto a esta questão. Hodson (1985) considera que a hipótese de uma
relação direta entre visões filosóficas e crenças sobre como ensinar Ciências não é
sustentada empíricamente.
Lederman e Zeidler (1987), trabalhando com dezoito professores secundários,
levantaram dúvidas sobre a existência de relação direta entre as convicções filosóficas
destes professores e a sua prática pedagógica. Os autores consideraram que o
comportamento do professor em sala de aula sofre a influência de diversos fatores
como: currículo, políticas administrativas, materiais instrucionais, bem como pela sua
concepção de ciência.
123
O resultado de uma pesquisa exploratória realizada por Becker (1994) apontou
que a epistemologia predominante entre os professores brasileiros do nível médio é a
empirista, segundo ele, talvez por ser aquela que mais se aproxima do senso comum.
Este pesquisador observou que mesmo docentes com posições aprioristas/inatistas ou
que se aproximam de uma postura interacionista não conseguem superar totalmente a
epistemologia empirista.
Entre aqueles que defendem a relação entre concepções filosóficas e
pedagógicas alguns trabalhos são citados na literatura como: Cronin-Jones (1991),
Dillon et al. (1994), Lorsbach et al. (1992), Mitchner e Anderson (1989), Tobin e Espinet
(1989).
Em estudo de revisão sobre os instrumentos elaborados para se ter acesso às
concepções da natureza da ciência nas quatro últimas décadas do século XX,
Lederman, Wade e Bell (1998) identificam o “Science Attitude Questionnaire” como o
mais antigo instrumento construído e utilizado para este fim por Wilson (1954). Nesta
pesquisa, o principal objetivo era validar o instrumento elaborado para ter acesso às
atitudes sobre a ciência dos estudantes. Nas primeiras investigações realizadas não
havia ainda uma nítida diferenciação nas pesquisas entre atitudes científicas, atitude
para com a ciência e concepções sobre a natureza da ciência e sobre conhecimento
científico.
Muitos dos instrumentos elaborados foram questionados quanto a sua validade
porque priorizavam uma ou mais idéias que não se enquadravam na compreensão que
se tinha, naquele contexto, do significado da natureza da ciência. Um outro aspecto
destacado foi o predomínio da utilização de metodologias de pesquisa quantitativa em
relação às qualitativas.
124
Lederman, Wade e Bell (1998) apontam causas para baixa validade de alguns
desses instrumentos como: o predomínio da preocupação com o levantamento de
destrezas e habilidades do estudante para se engajar no processo da ciência; a maior
ênfase em aspectos afetivos relacionados à ciência e aos cientistas, que no próprio
conhecimento; a valorização dos aspectos da ciência como uma instituição e a pouca
atenção dada às características epistemológicas do conhecimento científico.
QUADRO 2
Instrumentos para levantamento de concepções sobre a natureza da ciência (CNC)
DATA
1954
1958
1959
1961
1962
1966
1966
1967
1968
1968
1969
1970
1974
1975
1975
1976
1978
1980
1981
1982
1989
1990
1992
1995
1996
INSTRUMENTO
Science Attitude Questionnaire
Facts About Science Test (FAST)
Science Attitude Scale
Test on Understanding Science
(TOUS)
Processes of Science Test
Inventory of Science Attitudes,
Interests and Appreciations
Science Process Inventory (SPI)
Wisconsin Inventory of Science
Processes (WISP)
Science support scale
Nature of Science Scale (NOSS)
Tests on the Social Aspects of
Science (TSAS)
Science Attitude Inventory (SAI)
Science Inventory (SI)
Nature of science test (NOST)
Views of science test (VOST)
Nature of Scientific Knowledge
Scale (NSKS)
Test of Science-Related Attitudes
(TOSRA)
Test of Enquiry Skills (TOES)
Conception of Scientific theories
test (COST)
Language of Science (LOS)
Views on Science-TechnologySociety (VOSTS)
Nature of science survey
Modified Nature of Scientific
Knowledge Scale (MNSKS)
Critical Incidents
Philosophy of Science Survey
AUTOR
Wilson
Stice
Allen
Cooley & Klopfer
BSCS
Swan
Welch
Literacy Research Center
Schwirian
Kimball
Korth
Moore & Sutman
Hungerford & Walding
Rubba
Hillis
Rubba
Fraser
Fraser
Cotham & Smith
Ogunniyi
Aikenhead, Fleming & Ryan
Lederman & O’Malley
Meichtry
Nott & Wellington
Alters
125
No quadro 2, na página anterior, extraído do artigo de Lederman, Wade e Bell
(1998), apresenta os principais instrumentos elaborados desde 1954, que foram ou
ainda são utilizados nas pesquisas nesta área, seus respectivos autores e o ano em
que foram elaborados.
No início da década de oitenta, com raras exceções, estes instrumentos tinham
como objetivo classificar e mensurar o entendimento das perguntas formuladas e, em
alguns casos obtinha-se ‘scores’ padronizados. Priorizava-se a utilização de
instrumentos com escolhas direcionadas como: questionários com duas opções
(concordo ou não concordo) e com outros formatos, incluindo os tipos múltipla escolha
ou Likert.
As criticas a esses instrumentos consideravam a questão da sua validade, bem
como as ambigüidades detectadas na aplicação dos mesmos, pressupondo-se que os
investigados compreendiam as questões apresentadas da mesma maneira que seus
criadores. Um outro problema é que a visão obtida através destes instrumentos foi
considerada artificial, refletindo a visão do próprio pesquisador, construída pelo
instrumento, ao invés de uma fiel representação dos sujeitos que respondiam aos
mesmos (ABD-EL-KHALICK; LEDERMAN, 2000).
Existe o reconhecimento de que os resultados obtidos através de questionários
sobre a natureza da ciência são simplificados enquanto que, nas entrevistas, obtêm-se
manifestações mais ricas e frutíferas. Com a intensificação das pesquisas nesta área
houve uma diversificação nos tipos de instrumentos, passando-se a utilizar questões
abertas
e
mecanismos
para
validação
dos
itens
selecionados.
Apesar
do
126
aprimoramento destes instrumentos, ainda havia uma pequena preocupação em se
promover uma visão expandida das crenças individuais identificadas.
As perspectivas apontadas por Lederman, Wade e Bell (1998) sobre as
pesquisas nesta área, reconhecem a necessidade de utilização de mais de uma técnica
para os levantamentos das concepções epistemológicas, possibilitando a obtenção de
uma visão mais detalhada das idéias de cada indivíduo. A combinação de técnicas
quantitativas e qualitativas permitiria a compilação de dados de diversas fontes. Neste
caso, é de grande importância a descrição adequada das informações coletadas e de
como foram analisadas para se chegar aos resultados descritos. Os autores
consideram que as observações realizadas nos trabalhos de campo não têm sido
adequadamente descritas em grande parte dos estudos.
4.4.1 Concepções sobre a natureza da ciência dos estudantes
De um modo geral, os estudos realizados sobre as CNC dos estudantes tiveram
as seguintes preocupações: ajudar na aprendizagem do conteúdo específico da ciência,
possibilitar o entendimento da dinâmica da ciência, melhorar o interesse pela ciência,
ajudar na tomada de decisões que envolvam o conhecimento científico e de uma
participação mais efetiva nas questões sociais, ajudar na compreensão do processo de
construção do conhecimento pelo estudante e nas relações estabelecidas neste
processo.
Como foi visto anteriormente, a investigação realizada por Wilson (1954) é
considerada pioneira neste tipo de estudo. Ele trabalhou com uma amostragem de 43
estudantes, identificando nos sujeitos atitudes negativas relacionadas à ciência. As
127
idéias predominantes entre os investigados eram do conhecimento científico como
absoluto e os cientistas como aqueles que buscavam descobrir as leis naturais e o
conhecimento verdadeiro.
Segundo Lederman (1992), três anos após a primeira iniciativa foi realizada uma
nova pesquisa por Mead e Metraux (1957) com uma amostra aleatória de estudantes,
mas representativa em relação a gênero, idade, distribuição geográfica e status sócioeconômico. Mesmo constituindo-se numa das primeiras investigações realizadas sobre
este assunto, a opção não usual por uma abordagem qualitativa de pesquisa foi
adotada e os resultados encontrados estavam de acordo com aqueles obtidos
anteriormente por Wilson.
Nas décadas de sessenta e setenta, muitos estudos foram realizados para
levantamento de CNC utilizando-se diferentes modelos de questionários e através de
abordagem de pesquisa quantitativa. Um dos instrumentos amplamente utilizado foi o
Test on Understanding Science (TOUS), desenvolvido por Cooley e Klopfer em 1961.
Nesse período, as conclusões das pesquisas estavam de acordo com os primeiros
estudos, apontando a existência de concepções ingênuas sobre a natureza da ciência
tanto dos estudantes quanto de professores. Estes resultados foram atribuídos à
existência de lacunas na formação científica que estão relacionadas de forma mais
específica aos seguintes aspectos:
a) o desconhecimento do papel desempenhado pela criatividade na construção
do conhecimento científico;
b) a não distinção entre hipóteses, leis e teorias;
c) a pouca compreensão da relação entre experimentação, modelos e teorias e
o conceito de verdade científica;
128
d) uma visão não ampliada dos interesses da ciência, restringindo-se a idéia
reducionista de que a ciência prioriza a coleção e classificação dos fatos;
e) o desconhecimento da complexidade envolvida na explicação científica;
f) a pouca valorização da inter-relação e interdependência entre diversos ramos
da ciência.
O resultado anterior foi referendado por várias investigações realizadas nas
décadas seguintes: (AIKENHEAD, 1973; LEDERMAN; O’MALLEY, 1990; RUBBA;
HORNER; SMITH, 1981).
A identificação de concepções ingênuas sobre a natureza da ciência é um
indicativo de que os currículos não têm sido eficientes para implementar este tipo de
conhecimento, sugerindo a necessidade de novas pesquisas para investigação desta
questão. Segundo Lederman (1992), os estudos empíricos têm apontado que mesmo
após a formação inicial, os estudantes ainda mantêm concepções consideradas
inadequadas; portanto a ineficiência dos currículos para modificar a situação anterior é
uma realidade na educação em ciências.
Outra questão problemática e aberta à pesquisa, refere-se às divergências sobre
em que medida as convicções e crenças dos professores interferem ou são transferidas
para a prática pedagógica. Muitos pesquisadores reconhecem a complexidade
envolvida nesta questão e a dificuldade de se chegar a uma posição definitiva sobre o
assunto.
Abdl-el-Khalick e Lederman (2000) lembram que as pesquisas sobre CNC e os
estudos relacionados sobre o assunto devem considerar que tanto o conhecimento
científico como as concepções epistemológicas são históricas e possuem um caráter
tentativo. As concepções hoje consideradas consensuais tanto pelos educadores em
129
ciência quanto pelas organizações educacionais, não são ‘inerentemente’ melhores do
que aquelas adotadas nas décadas de sessenta e setenta. A contextualização histórica
de tais concepções deve considerar o pensamento sistemático sobre o conhecimento
científico e as suas práticas predominantes no período em que se situam.
Como foi visto anteriormente existem dois tipos de abordagens pedagógicas para
se introduzir conteúdos sobre a natureza da ciência no processo ensino/aprendizagem:
a implícita e a explícita. No primeiro tipo assume-se que na dinâmica adotada,
mensagens implícitas são comunicadas e que a construção deste tipo de conhecimento
acontece naturalmente, como conseqüência do engajamento no processo pedagógico.
Os trabalhos possibilitam o engajamento do aluno em atividades investigativas,
incluindo instruções sobre a prática científica. Na abordagem explícita, os objetivos e
materiais instrucionais são direcionados para aumentar a compreensão da natureza da
ciência incluindo conteúdos epistemológicos. As atividades são planejadas com
investigações e exemplos históricos que possibilitem discussões, reflexões guiadas e
questionamentos específicos sobre o assunto.
Como o nosso estudo teve como objetivo empregar elementos da História da
Química e da Filosofia da Ciência para intervir nas concepções epistemológicas dos
nossos alunos, optamos por fazer uma revisão da literatura sobre trabalhos realizados
com este enfoque. Consideramos que, investigações que utilizaram abordagens
explícitas eram as que nos interessavam porque a literatura aponta que abordagens
utilizando a História e Filosofia da Ciência e instrução direta sobre a natureza da ciência
foram mais bem sucedidas (ABD-El-KHALICK; LEDERMAN, 2000).
130
4.4.2 A influência de abordagens de ensino explícitas nas concepções
sobre a natureza da ciência
Na revisão de literatura realizada, percebemos que tanto os estudos que
adotaram uma abordagem explícita para intervir nas CNC dos estudantes quanto
aqueles de abordagem implícita, na sua maior parte, usaram metodologias de pesquisa
quantitativa.
Carey e Stauss (1968) investigaram se professores em formação para atuar no
nível médio, poderiam melhorar as suas CNC com um curso direcionado (Science
Methods Courses) e integrado na própria formação. A metodologia de levantamento
destas concepções aplicou pré-testes e pós-testes num grupo de dezessete
estudantes. Eles foram introduzidos ao assunto através de leituras e discussões de
artigos e livros contendo conteúdos de História e Filosofia da Ciência relacionados aos
tópicos específicos em estudo. Durante o curso, nas diversas atividades realizadas, os
participantes foram motivados a avaliar se estas atividades e os assuntos discutidos
estavam compatíveis com as imagens sobre a ciência apresentadas no curso. Os
resultados deste estudo apontaram que houve ganhos significativos no entendimento
de CNC quando comparados os ‘scores’ de pré-testes e pós-testes aplicados. Estes
pesquisadores foram os primeiros a apresentar evidências obtidas através de estudos
empíricos, que davam sustentação à tese de que a História e a Filosofia da Ciência
poderiam contribuir para melhorar a compreensão da natureza da ciência na formação
de professores.
Em outro estudo realizado na Universidade de Tulsa, Jones (1969) investigou se
estudantes de um curso superior de formação plena em ensino de Física
131
compreendiam melhor a ciência e os cientistas que estudantes inscritos em cursos mais
específicos, com orientação profissionalizante. Três destes cursos com esta orientação
foram escolhidos para estudo.
No curso de formação plena foi realizado um trabalho empírico procurando dar
uma maior ênfase aos conteúdos relacionados ao desenvolvimento histórico, à Filosofia
da Ciência e aos aspectos sociais relacionados à ciência. O levantamento das CNC foi
realizado através de questionário do tipo TOUS (Test on Understanding Science) usado
na forma de pré-testes e pós-testes, sendo formado um grupo de controle específico
para comparação dos resultados. As diferenças entre os resultados obtidos no grupo
experimental e no de controle foram significativas, indicando um melhor rendimento nos
scores obtidos para o grupo experimental.
Lavach (1969) trabalhou com professores em serviço, utilizando um programa de
ciência historicamente orientado e desenvolvido por ele, tendo como objetivo discutir o
entendimento da ciência, dos cientistas, do empreendimento científico e dos objetivos e
metas da ciência. O mesmo instrumento (TOUS) foi usado para levantamento das
concepções tanto no grupo experimental quanto no de controle. No entanto, este
estudo parece ter cometido alguns equívocos metodológicos pois não foi aplicado préteste no grupo de controle e os procedimentos empíricos não foram explicitados para
que pudessem ser comparados com aqueles do grupo experimental. Apesar dos
problemas, os resultados deste estudo apontaram que houve ganho no entendimento
de CNC pelos professores participantes do grupo experimental.
No mesmo ano do trabalho de Lavach, outro estudo foi realizado por Olstad
(1969) na Universidade de Washington, através do curso intitulado Science in the
Elementary School, direcionado para melhorar a formação de professores e contendo
132
vários tópicos como: natureza da ciência e seus métodos, modelos na ciência, a força
social da ciência e processos indutivos e dedutivos. Estes tópicos e suas implicações
metodológicas em termos de equipamentos, materiais curriculares e avaliação foram
também explorados. Priorizou-se nas atividades realizadas em cada encontro, questões
como: geração de modelos, interpretação de dados, planejamento de experimentos e
pensamento indutivo. Os resultados obtidos através do questionário (TOUS) apontaram
um razoável ganho na compreensão da natureza da ciência refletido nas diferenças dos
scores obtidos nos pré e pós-testes.
Na década de setenta, utilizando-se abordagem explícita, destaca-se nas
revisões de literatura, o trabalho de Billeh e Hasan (1975). Estes pesquisadores fizeram
uso de discussões diretas sobre aspectos da natureza da ciência em grupos de
professores de Química, Física e Biologia. Trabalhou-se com grupo de controle e com a
utilização do questionário NOST (Nature of Science Test) criado por Rubba (Quadro 2).
A metodologia utilizada priorizou nos grupos experimentais, leituras com temas
específicos como: o conceito de ciência, conhecimento científico e senso comum,
ciência e tecnologia, a arte da investigação científica, natureza do conhecimento
científico (características, teorias científicas e modelos), crescimento e desenvolvimento
do conhecimento científico, aspectos sociológicos da ciência.
As diferenças
encontradas nos scores dos pré-testes e pós-testes dos grupos experimentais foram
significativas e, embora não tenham sido tão altas, foram maiores que as do grupo de
controle. Neste artigo não foi especificado se os investigados fizeram leituras com
conteúdos de História e Filosofia da Ciência durante o curso. A conclusão dos
pesquisadores é que a instrução formal e direta sobre a natureza da ciência contribuiu
para um significativo ganho no entendimento deste tema.
133
Dois instrumentos para diagnóstico de concepções foram utilizados por Ogunniyi
(1983) num estudo realizado na Nigéria. Ele levantou questões sobre o entendimento
da linguagem utilizada na ciência e questões sobre a sua natureza. Os questionários
utilizados foram: NOSS (Nature of Science Scale) e LOS (Language of Science). Este
pesquisador planejou um curso que incluiu vários tópicos como: origem do pensamento
científico, o significado de revolução científica e suas conseqüências, a natureza da
investigação científica, a base epistemológica da ciência, ciência e superstição,
características das sociedades científicas e alfabetização científica. As discussões eram
alimentadas pelas leituras previamente acordadas e as novas leituras sugeridas no
processo. Os resultados dos scores dos pré e pós-testes revelaram uma significativa
melhora, porém, os valores da pontuação obtida através dos dois instrumentos foi
inferior ao desejável, indicando que o entendimento da natureza e da linguagem da
ciência ainda não tinha sido satisfatório.
Defendendo o uso de uma abordagem explícita para ajudar o professor a
desenvolver uma melhor compreensão da natureza da ciência, Akindehin (1988)
idealizou o curso Introductory Science Teacher Education (ISTE) para futuros
professores de ciência do nível secundário. Este curso era formado por nove unidades
que incluíam leituras, discussões e aulas de laboratório. O planejamento de cada
unidade aconteceu na seguinte seqüência:
1) introduziu os estudantes na natureza do conhecimento e nos diferentes tipos
de conhecimento;
2) discutiu vários aspectos do empreendimento científico e das disciplinas
científicas;
134
3) apresentou um modelo de investigação científica que incluía a geração e
definição de problemas, a geração de hipóteses, modelos, teorias, sistemas
lógicos e matemáticos, a criatividade na investigação científica;
4) discutiu um caso específico de investigação científica e do modelo de
investigação em questão;
5) discutiu aspectos da história do conhecimento;
6) trabalhou sobre a prática da investigação científica em diferentes campos;
7) investigou um dado fenômeno natural e as várias possibilidade de explicá-lo;
8) debateu e refletiu sobre as atitudes dos participantes frente à ciência;
9) discutiu sobre os aspectos humanos do trabalho científico.
O autor considerou que o resultado desta investigação foi positivo, muito embora
não tenha apresentado claramente os scores dos pré e pós-testes aplicados através do
questionário NOSS (Nature of Science Scale ) para serem comparados.
Analisando os vários trabalhos revisados por Abd-El-Khalick e Lederman (2000)
que utilizaram uma abordagem explícita, percebe-se que a maior parte deles usou
metodologias quantitativas com levantamentos realizados através de diferentes tipos de
questionários aplicados antes e após o trabalho experimental. Os scores dos pré e póstestes foram comparados nos grupos experimentais e também nos de controle. Uma
exceção que se destaca é o trabalho de Shapiro (1996) que é mais recente e optou
pela utilização de uma metodologia qualitativa e interpretativa. Este trabalho foi um
‘estudo de caso’ realizado com professores em formação inicial, para atuarem no nível
secundário, tendo como objetivo examinar o seu pensamento sobre a natureza da
investigação científica e como esta idéia se modificou a partir do envolvimento de cada
sujeito na pesquisa. As informações foram coletadas durante os quatro anos do curso e
135
em função da maior duração da pesquisa puderam ser refinadas. Várias fontes de
dados foram usadas como: entrevistas, gravações das discussões, registros dos
estudantes, reflexões realizadas a partir das investigações feitas pelos alunos, registros
das observações do pesquisador. As entrevistas foram analisadas em conjunto com
outros materiais gerados durante o estudo.
No início do curso os alunos registraram a sua concepção de ciência e no final
eles voltaram a refletir sobre suas concepções iniciais para verificar possíveis
modificações ocorridas após a participação na pesquisa. As mudanças detectadas
foram codificadas e organizadas em categorias. Estas categorias foram agrupadas em
temas de mudanças sobre a natureza das investigações em ciência, decorrente do
envolvimento de cada indivíduo nas pesquisas, identificando-se doze temas relativos às
mudanças. As mais significativas envolveram a apreciação da complexidade do
processo de planejamento e condução da investigação científica e percepção da
ciência como um empreendimento coletivo. O principal objetivo do trabalho foi levar os
estudantes à reflexão sobre a sua própria experiência relacionando-a com suas idéias.
Durante as entrevistas realizadas, os estudantes foram bastante estimulados a refletir
sobre suas concepções prévias e tentar identificar possíveis modificações influenciadas
pelo trabalho de pesquisa.
A implementação de inovações curriculares tem sido um dos caminhos para se
desenvolver um conhecimento mais amplo sobre a ciência. Algumas tentativas foram
realizadas para incluir nos currículos novas estratégias de ensino que pudessem
contribuir para uma melhor formação relativa à natureza da ciência. Matthews (1990),
por exemplo, planejou um curso em História e Filosofia da Ciência para aumentar o
interesse de professores australianos sobre este assunto, buscando através destes
136
conteúdos melhorar o ensino de ciências. Uma tentativa mais recente para
implementação de um curso de educação em ciências, com ênfase em aspectos da
natureza da ciência foi realizada por Eichinger, Abell e Dagher (1997). Neste artigo eles
descreveram a experiência de planejamento e execução deste curso que foi ministrado
com êxito para estudantes de graduação em duas universidade americanas.
Um dos objetivos que se pretende alcançar com modificações curriculares é
intervir nas concepções dos alunos (de ciência, de ensino etc.). Alguns dos estudos
anteriormente citados detectaram que o processo de formação dos docentes nem
sempre consegue promover as mudanças nestas concepções que são imprescindíveis,
para que possíveis intervenções curriculares sejam efetivas.
4.4.3 Algumas pesquisas sobre concepções sobre a natureza da ciência
(CNC) publicadas no Brasil entre 1995-2005
Para verificar o estágio de desenvolvimento das pesquisas sobre a natureza da
ciência no Brasil, com ênfase na área de Química, fizemos um levantamento, não
exaustivo, das publicações realizadas sobre este tema em alguns periódicos da área de
Educação em Ciências e Ensino de Química. Os periódicos examinados foram:
Química Nova na Escola (1995-2004); Investigações em Ensino de Ciências (19962004), Ciência & Educação (1999-2005). Buscamos esta informação também nos anais
dos cinco últimos Encontros Nacionais de Ensino de Química (ENEQ) realizados no
período de 1996 a 2004.
137
No levantamento realizado percebe-se o pequeno número de publicações,
constatando-se que este tema ainda é pouco explorado nas pesquisas na área de
Educação em Ciências e na Química, em particular.
Guerra (1996) realizou um levantamento de concepções de ciência e de
conhecimento científico com estudantes de graduação em Biologia e estudantes do
magistério de um colégio estadual que cursavam a disciplina Metodologia do Ensino de
Ciências. Para tal levantamento foram formuladas duas questões que constituíram a
base da pesquisa: 1) Na sua concepção, o que é ciência? 2) Explique como se obtém o
conhecimento científico.
Após esta primeira fase de diagnóstico, a pesquisadora realizou uma análise
conjunta das concepções relativas a este assunto, que estavam subjacentes, tanto na
fala dos alunos quanto no programa didático, tentando estabelecer relações destas
concepções com a metodologia e prática de ensino. A análise dos resultados obtidos
revelou a dificuldade de modificações das concepções e representações dos
estudantes, consideradas como um reflexo da própria formação docente adotada. A
necessidade de se conhecer as concepções dos estudantes foi reconhecida como
fundamental para a construção de novos conhecimentos a partir daqueles já existentes.
Com o propósito de examinar as convicções filosóficas que dão suporte aos
comportamentos de alguns professores de Física no contexto de um laboratório,
Medeiros e Bezerra Filho (2000) entrevistaram professores de Instrumentação para o
Ensino de Física em duas Universidades Federais e professores de Física do ensino
médio que tinham cursado esta disciplina na graduação. Foram formuladas algumas
questões para se levantar as concepções da natureza da ciência destes professores.
Os resultados da pesquisa revelaram a existência de diferentes perspectivas sobre o
138
tema, no entanto, predominaram posições indutivistas e realistas ingênuas. Os autores
reconhecem que a transferência das convicções dos professores para a prática em sala
de aula é ainda uma questão indefinida e que deve continuar sendo objeto de
investigações.
Peixoto, Marcondes e Esperidião (2002) durante um curso de formação de
professores de Química para o ensino médio desenvolveram atividades para fomentar
reflexões sobre a natureza da ciência e sua importância na formação da cidadania.
Estas atividades foram incluídas na disciplina de Prática e Metodologia do Ensino de
Química e durante seis aulas foram realizadas atividades diversificadas que tiveram
uma boa aceitação pelos estudantes. Mesmo considerando a ausência de consenso
total sobre a influências destas concepções na prática docente, o objetivo do trabalho
era detectar possíveis mudanças curriculares ou metodológicas, nos trabalhos didáticos
realizados posteriormente pelos futuros professores. As conclusões apresentadas
apontaram a ausência da influência das discussões e do trabalho realizado no
planejamento feito pelos estudantes para suas aulas. As autoras justificaram os
resultados obtidos considerando que o pouco tempo utilizado para o trabalho realizado
não foi suficiente para que mudanças mais concretas pudessem ser percebidas.
Kosminsky e Giordan (2002) levantaram algumas concepções sobre ciência e
atuação do cientista em uma escola particular paulistana entre estudantes na faixa
etária de 15 a 18 anos. As concepções foram coletadas através de respostas escritas e
desenhos de alunos voluntários, que os fizeram anonimamente. Foram feitas algumas
observações em aulas de Física e Química, breves debates sobre o assunto e para
subsidiar o trabalho foram apresentadas as três questões seguintes aos estudantes:
1) para que servem as expressões numéricas e fórmulas usadas em Ciências?
139
2) a natureza obedece às leis das ciências?;
3) o que é ciência?
Os resultados apresentados a partir da análise dos registros e respostas dos
estudantes revelaram visões reducionistas e escolarizadas sobre a natureza da ciência
e pouca compreensão da estrutura da ciência e do seu funcionamento. Estes
resultados foram atribuídos ao enfoque adotado nos materiais didáticos sobre o assunto
e a influência dos veículos de comunicação sobre a comunidade estudantil. Uma das
conclusões apresentadas pelos autores é que:
o desconhecimento sobre como pensam e agem os cientistas impede a aproximação
dos alunos da cultura científica. Conseqüência imediata desse impedimento é a tentativa
de transferência acrítica de valores prezados pela cultura científica para os estudantes
(KOMINSKY; GIORDAN, 2002, p.17).
Estes pesquisadores consideram que somente pesquisas mais aprofundadas e
com objetivos específicos poderão levar a respostas conclusivas sobre a importância da
inclusão nos currículos desta temática e o quanto esta aproximação pode contribuir
para a realização de projetos educacionais nas escolas que tenham como meta tal
inclusão.
Na revista Investigações em Ensino de Ciências, identificamos um trabalho de
Dumrauf (2001) que analisa uma experiência didática de ensino de Física no nível
universitário na Argentina. Este estudo teve como objetivo identificar as imagens de
ciência dos docentes na tentativa de encontrar relações entre estas e as práticas
docentes. Existe o reconhecimento de que esta é uma questão controvertida, não
havendo ainda consenso na comunidade envolvida com a Educação em Ciências. A
autora reconhece que os estudos mais recentes sobre este assunto consideram a
140
grande complexidade das relações entre as interpretações dos docentes sobre a
natureza da ciência e as suas práticas didáticas.
Na Química Nova na Escola foi publicado um estudo realizado em Portugal, por
Paixão e Cachapuz (2003) com o intuito de detectar as mudanças na prática de Ensino
de Química através da formação dos professores em História e Filosofia das Ciências
dentro de um programa de formação de professores. Este programa foi desenvolvido
em três fases articuladas de modo a desenvolver práticas de ensino de Química mais
inovadoras. Na primeira fase construiu-se e validou-se o instrumento de análise, na
segunda fase aconteceram as sessões de formação com ênfase na História e Filosofia
da Ciência e na terceira fase, os professores implementaram uma prática de ensino
orientada pela planificação anteriormente realizada. Os perfis dos professores antes e
depois da formação indicaram uma evolução positiva, de uma perspectiva realista
ingênua para um realismo mais crítico e contextual. Percebeu-se também, uma
melhoria na própria organização do processo de ensino e aprendizagem.
Teixeira (2003) realizou uma pesquisa com estudantes do curso de Licenciatura
em Física da Universidade Estadual de Feira da Santana (UEFS), na Bahia, visando
detectar a influência de uma abordagem que incorporou elementos da História e
Filosofia da Ciência no ensino de Ciências, abordagem contextual, nas concepções
sobre a natureza da ciência destes estudantes. A pesquisa foi realizada através de um
estudo de caso numa disciplina de Fundamentos de Física durante um semestre letivo.
Os resultados desta pesquisa apontaram que apesar da existência de um foco de
resistência à mudança parece ter havido um amadurecimento dos estudantes na
compreensão de aspectos da natureza da ciência, influenciado pela abordagem
141
diferenciada utilizada durante as aulas da disciplina. (TEIXEIRA; EL-HANI; FREIRE
JUNIOR, 2001).
Santos e Novaes (2004), realizaram uma pesquisa para levantar as imagens de
ciências em licenciandos de Química e Biologia, visando comparar os padrões de
resposta dos calouros e formandos. Aplicou-se um questionário tipo “lápis e papel” com
trinta questões em turmas de ambos os cursos. Os aspectos contemplados nos
questionários foram: controle sócio-político da pesquisa científica e tecnológica,
neutralidade ideológica da ciência e da tecnologia, objetividade como qualidade para o
cientista, opiniões de caráter epistemológico sobre a natureza da ciência e do
conhecimento científico como meio para resolução de problemas sociais. Segundo os
autores foram encontradas pequenas variações entre as respostas dos calouros e
formandos, que se distribuíram em diversas categorias, revelando um ecletismo em seu
perfil epistemológico e a pouca efetividade dos cursos de formação de professores para
fornecerem concepções mais adequadas sobre os temas investigados.
Rezende e Queiróz (2004), levantaram as visões de estudantes do Curso de
Bacharelado em Química do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, em
São Carlos, sobre as atividades desempenhadas pelos cientistas. A pesquisa foi
realizada com quarenta e sete estudantes que participaram de um mini-curso realizado
nessa Universidade, onde se formulou uma questão específica para o levantamento
das concepções. Os resultados indicaram que a visão predominante entre os
estudantes foi a do cientista como um empreendedor e não a imagem de “sabe-tudo”.
Os autores atribuíram este resultado à estrutura do currículo do curso de Química, que
possibilitou discussões e atividades que levaram a uma imagem mais adequada do
cientista.
142
Lobo
(2004),
realizou
um
trabalho
de
levantamento
das
concepções
epistemológicas e pedagógicas de professores e estudantes do curso de licenciatura
em Química da Universidade Federal da Bahia com o objetivo de explicar estas
concepções, estabelecer suas relações com o currículo instituído e encontrar elementos
para a superação de obstáculos resultantes de um modelo de formação docente
calcado na racionalidade técnica. O trabalho utilizou-se da epistemologia bachelardiana
para fundamentar as análises e discussões realizadas. Os resultados referendaram a
idéia da existência de relação entre as concepções dos professores, suas práticas e as
concepções dos discentes, condicionadas pela cultura curricular tecnicista de tradição
filosófica empírico-positivista.
El-Hani; Tavares e Rocha (2004), relatam a transformação de concepções
epistemológicas de estudantes de Biologia possibilitada pela utilização de uma proposta
explícita de ensino sobre História e Filosofia da Ciência. O teste da proposta foi feito por
meio de uma abordagem de pesquisa quali-quantitativa. Os dados foram coletados em
uma turma de uma disciplina de História e Filosofia das Ciências, de um curso de
bacharelado em Ciências Biológicas da UFBA. Foi aplicado um questionário aberto do
tipo VNOS-C (Views of Nature of Science - Form C), no início e final da disciplina. Em
termos gerais, a proposta revelou uma evolução das visões sobre a natureza da ciência
de todos os alunos que responderam ao questionário em ambas as etapas, revelandose mais eficaz em alguns aspectos do que outros.
Em artigo recente, Acevedo e outros (2005) discutem os mitos da Didática das
Ciências acerca dos motivos para incluir a natureza da ciência no ensino de ciências.
Estes pesquisadores consideram que um destes mitos seria a suposta relação entre a
prática docente e as crenças sobre a natureza da ciência e o outro seria a convicção
143
que o conhecimento sobre a natureza da ciência possibilitaria um maior discernimento
na tomada de decisões cívicas em questões tecnocientíficas de interesse social.
Segundo os autores, o exame de investigações procedentes da própria Didática das
Ciências não sustentam estes mitos, revelando uma maior complexidade da
problemática abordada. Entretanto, eles reconhecem que, atualmente, o sistema de
valores majoritariamente partilhado na Didática das Ciências faz crer que é bom ensinar
algo sobre a natureza da ciência e apontam razões para justificar esta decisão.
A revisão que apresentamos neste capítulo demonstra que os resultados das
pesquisas sobre concepções da natureza da ciência apresentam alguns consensos e
disensos. Um aspecto consensual é a importância do uso da História e da Filosofia da
Ciência no aprimoramento das concepções sobre a natureza da ciência dos alunos e
professores, em especial através de estratégias de formação que fazem uso de
abordagens explícitas, que têm se mostrado mais eficientes. Investigações empíricas
para avaliar a influência do uso deste tipo de abordagem na formação inicial ainda são
necessárias, para que se obtenha dados concretos sobre a sua maior ou menor
eficácia. Estas informações são importantes para justificar a incorporação desta
dimensão nos currículos escolares e o reconhecimento da sua importância na
alfabetização científica dos alunos.
CAPÍTULO 5
DELINEAMENTOS METODOLÓGICOS
145
5 DELINEAMENTOS METODOLÓGICOS
A nossa tese teve três focos de investigação: as concepções sobre a natureza da
ciência dos alunos, a aprendizagem de conceitos químicos e os livros didáticos.
Considerando as diferentes questões investigadas tivemos necessidade de utilizar uma
diversidade de recursos metodológicos nas várias etapas:
¾ a pesquisa histórica para elaboração dos materiais didáticos;
¾ a pesquisa didática envolvendo as concepções sobre a natureza da ciência;
¾ a pesquisa didática sobre a aprendizagem de conceitos;
¾ a análise dos livros didáticos.
Neste capítulo tentaremos reunir e descrever os principais aspectos relacionados
a metodologia utilizada em cada parte, com exceção da metodologia de análise dos
livros didáticos, que será contemplada especificamente nos capítulos 7 e 9. Como a
nossa pesquisa aconteceu em etapas distintas, isso implicou no uso de diferentes
recursos para o levantamento de dados. A primeira etapa foi da pesquisa histórica,
necessária para que fossem elaborados materiais didáticos, na forma de textos, com
conteúdos específicos em História e Filosofia da Ciência.
5.1 Algumas informações metodológicas sobre a pesquisa histórica
Nesta etapa realizamos pesquisa bibliográfica através de consulta, principalmente
a fontes secundárias. A abordagem histórica utilizada na elaboração da pesquisa evitou
priorizar o internalismo ou externalismo; múltiplos enfoques foram adotados para que a
História da Ciência pudesse ser compreendida nos diversos aspectos que a
146
caracterizam. Os produtos da nossa pesquisa histórica encontram-se no capítulo 6 e no
anexo A.
Não tivemos a pretensão de fazer um estudo original em História da Ciência,
exclusivamente com fontes primárias, uma vez que, o nosso objetivo era elaborar
materiais didáticos com conteúdos de História e Filosofia da Ciência. Na escolha das
fontes secundárias optamos por nos apoiar em trabalhos de historiadores da Ciência
bem conceituados no âmbito da História da Ciência e da Química em particular. A
elaboração desses textos teve como objetivo a sua utilização posterior na disciplina,
dando subsídio às discussões em sala de aula que aconteceram durante a investigação
didática e possibilitando, também, as análises dos livros de Química Geral (capítulos 7 e
9).
5.2 A metodologia da investigação didática
Neste capítulo apresentaremos os delineamentos gerais da metodologia que foi
utilizada na duas partes da investigação didática envolvendo, tanto as concepções sobre
a natureza da ciência dos alunos (capítulo 8) quanto a avaliação da influência da
contextualização histórica de um conceito químico na sua aprendizagem (capítulo 9).
Tomamos como premissa o fato da pesquisa sobre o ensino das ciências considerar a
complexidade que caracteriza o cotidiano escolar. O pesquisador, enquanto sujeito
imerso nas relações sociais, deve se inserir no processo visando explicitá-lo, elucidá-lo
sem interromper o seu movimento e considerando os múltiplos significados que vão
sendo conferidos às relações que se fazem presentes (BURNHAM, 1998, p.41).
147
5.2.1 Tipo de abordagem da pesquisa, o contexto e os sujeitos
Considerando a problemática inicial, a nossa investigação didática foi inserida
dentro de uma abordagem de pesquisa qualitativa. Este tipo de pesquisa prioriza as
descrições, a investigação da percepção das pessoas envolvidas no processo
educacional e a interpretação dos resultados. As técnicas de pesquisa utilizadas na
abordagem qualitativa têm suas raízes nos estudos realizados em áreas como a
Sociologia, a Antropologia e a Psicologia. Posteriormente elas passaram a ser adotadas
também nas investigações no campo da educação (BOGDAN; BLIKEN, 1994).
De acordo com Triviños (1987), a investigação da pesquisa qualitativa costuma
se apoiar numa fundamentação teórica geral, o que requer uma revisão aprofundada da
literatura em torno do assunto investigado, no entanto, a imersão na teoria vai
acontecendo no processo e à medida em que as necessidades são criadas. O
pesquisador que adota o enfoque qualitativo tem ampla liberdade teórico-metodológica
para realizar o estudo, respeitando as condições de exigência de um trabalho científico.
O tipo de pesquisa qualitativa adotado nesta investigação foi o estudo de caso
observacional, considerado como uma “categoria típica” de pesquisa qualitativa
(TIVIÑOS, 1987, p.135). Neste tipo de investigação, a observação participante é a
principal técnica de coleta de informações.
O estudo realizado teve um caráter “exploratório”. De acordo com Triviños (1987,
p.109) “os estudos exploratórios permitem ao investigador aumentar a sua experiência
em torno de um determinado problema”. Uma pesquisa com estas características
costuma ser realizada quando se tem como principal finalidade desenvolver, esclarecer
e modificar conceitos e idéias com a intenção de formular problemas mais precisos ou
148
hipóteses a serem pesquisadas. No final da investigação haverá um maior
esclarecimento sobre o assunto estudado e procedimentos mais sistematizados que
poderão servir para a realização de outras pesquisas semelhantes (GIL, 1987).
Na pesquisa qualitativa a amostra selecionada deve ser pequena, o que está de
acordo com a fundamentação teórica de natureza fenomenológica; o tamanho da
amostra é decidido intencionalmente, levando-se em conta os objetivos da pesquisa e a
facilidade de acesso aos sujeitos que são considerados essenciais à pesquisa
(TRIVIÑOS, 1987).
A nossa investigação foi realizada na disciplina História da Química, onde
exercemos a função de professora e atuamos também na categoria “observador como
participante” (LUDKE; ANDRÉ, 1986). Neste tipo de participação, o observador não
oculta os seus objetivos de pesquisa dos sujeitos envolvidos, revelando o que pretende
tendo em vista a questão ética, que se encontra subjacente à investigação.
Na primeira aula todos os alunos receberam um formulário para preencher, nele
comunicávamos sobre a realização do trabalho de pesquisa na disciplina e
perguntávamos se cada aluno gostaria de participar do trabalho. Todos concordaram em
participar. Em seguida, informamos aos alunos a natureza confidencial do material que
seria obtido no levantamento de dados e disponibilizamos para todos os alunos um
termo de compromisso que oficializava este compromisso (ANEXOS B e C). Tentamos
fazer contato com a comissão de ética da UFBA mas, apesar de termos feito duas
tentativas, não conseguimos localizar os membros da comissão. Fomos informados que
essa comissão naquele momento estava com problemas na sua composição.
A disciplina escolhida, História da Química (QUI-040), faz parte do Curso de
Química da Universidade Federal da Bahia; sendo obrigatória apenas para os alunos
149
que escolhem o Curso de Licenciatura em Química desta Universidade e optativa para o
bacharelado. Durante todo o trabalho em sala de aula, dois professores estiveram
presentes, incluindo a pesquisadora, uma vez que, esta disciplina é ministrada desde
1990 por esses professores.
O desenvolvimento da pesquisa aconteceu durante dois semestres letivos
consecutivos 2004.1 e 2005.1, tendo como sujeitos da pesquisa os alunos da disciplina
anteriormente citada. O segundo semestre de 2004 foi cancelado em função da greve
que aconteceu na UFBA naquele período, portanto, o semestre 2005.1 foi consecutivo a
2004.1.
O ‘trabalho de campo’, que se constituiu numa investigação didática, foi realizado
em situação real da sala de aula e os instrumentos de coleta de dados foram aplicados
durante os períodos letivos da disciplina História da Química. Todos os alunos
matriculados foram sujeitos da investigação, uma vez que, o módulo da disciplina é
pequeno (15 alunos), justificando a não utilização de técnicas de amostragem para o
levantamento de dados.
As aulas da disciplina aconteceram em um dia da semana, durante três horas
consecutivas e envolveram dezesseis semanas letivas. As aulas foram planejadas
envolvendo diferentes etapas. A estratégia didática utilizada para as duas partes da
investigação será resumida a seguir.
Inicialmente (primeira etapa) realizamos o levantamento das concepções prévias
relacionadas aos conteúdos da Filosofia da Ciência que seriam priorizados na aula
subseqüente, usando pequenos questionários, questões problematizadoras, resumidas
no Quadro 3. Neste momento os alunos tomavam conhecimento do planejamento feito
150
para o próximo encontro, sendo informados sobre quais leituras dariam subsídio às
discussões. Os textos eram disponibilizados para serem fotocopiados e lidos.
Na aula seguinte (segunda etapa), acontecia a discussão dos assuntos que
faziam parte do planejamento daquela aula. Estas discussões eram subsidiadas pelas
leituras prévias indicadas no planejamento de cada semana. Neste momento, tanto os
alunos quanto os professores se colocavam sobre o assunto priorizando os objetivos
definidos para aquela aula.
Na terceira etapa os alunos se reuniam em equipes e voltavam a discutir as
questões problematizadoras, previamente formuladas, as quais já tinham sido
respondidas na aula anterior (levantamento prévio). Após a discussão, ao final da aula,
eles voltavam a responder, individualmente, as mesmas questões já respondidas no
levantamento prévio. O nosso objetivo era detectar em que medida as informações
fornecidas durante a aula através das discussões e utilizando novas estratégias
pedagógicas, tinham possibilitado algum ganho no conhecimento epistemológico dos
alunos.
Em algumas aulas usamos também filmes como recurso didático para ilustrar
alguns conteúdos que estavam sendo abordados. Este recurso no entanto, tem sido
usado tradicionalmente na disciplina. Tivemos a pretensão de ajudar os alunos na
reflexão tanto sobre suas concepções epistemológicas quanto sobre alguns conceitos
químicos. Utilizamos 13 aulas (cerca de 80%) do curso para realizar a parte da pesquisa
envolvendo as concepções sobre a natureza da ciência e, nas três últimas aulas
trabalhamos a aprendizagem de conceitos químicos.
No primeiro semestre de 2004 realizamos uma primeira etapa da investigação,
que funcionou, principalmente, como um estudo piloto possibilitando um aprimoramento
151
dos instrumentos utilizados para o levantamento de dados. Como visto anteriormente,
este foi considerado um semestre atípico porque aconteceu uma greve na UFBA com
duração de quase noventa dias, o que atrasou o planejamento delineado. Inicialmente
foram matriculados dez alunos na disciplina e após a greve, apenas oito alunos
prosseguiram no curso. Os alunos que trancaram a disciplina apresentaram justificativas
pessoais para o trancamento, no entanto, um fato importante a ser registrado é que no
semestre seguinte, 2005.1, tivemos quinze alunos matriculados, embora somente
quatorze tenham cursado efetivamente a disciplina. Houve apenas um abandono,
justificado pela ocorrência de fatores não previstos, de início, que impossibilitaram este
aluno de cursar a disciplina.
Embora a disciplina História da Química fosse obrigatória apenas para alunos de
Licenciatura, haviam alunos do Bacharelado matriculados, dois em 2004.1 e dois em
2005.1. No semestre 2004.1 contamos também com um aluno especial, que já era
graduado em Licenciatura em Ciências e que cursou todo o semestre letivo. Outro ponto
a ser destacado foram as justificativas apresentadas para cursar a disciplina. A maior
parte dos alunos considerava o conteúdo da disciplina importante para a sua formação e
tinha interesse em conhecer mais sobre a História da Química; alguns alunos (05)
explicitaram que ouviram falar que a disciplina era interessante ou tratava do assunto da
química de uma forma diferenciada das outras disciplinas do currículo.
5.2.2 O levantamento de dados: questões prévias
O trabalho didático realizado teve como objetivo responder às perguntas
explicitadas na “Introdução” desta tese (p. 23). Utilizamos uma abordagem de ensino
152
direcionada e contextualizada, que priorizou o referencial da História e Filosofia da
Ciência no processo. Levamos em conta a constatação de Matthews (1994) que a
epistemologia dos nossos alunos é comumente constituída informalmente, uma vez que,
não encontra o respaldo adequado nos cursos de formação inicial.
A disciplina que se constituiu no “locus” da investigação, História da Química (QUI
040), podia ser cursada a partir do quarto semestre do curso de Licenciatura em
Química. Esta disciplina deveria ser cursada antes das Metodologias de Ensino I e II. Os
alunos matriculados nos semestres 2004.1 e 2005.1 estavam cursando entre o sexto e o
último semestre do curso; a variação detectada na semestralização era decorrente do
andamento do aluno no curso.
A escolha desta disciplina para implementação da proposta de pesquisa decorreu
tanto pelo fato de atuarmos como professora quanto por considerarmos que era um
espaço adequado para inserção das questões sobre o processo de construção do
conhecimento científico e da sua natureza. Além disso, como professora desta
disciplina, cada vez mais sentimos a necessidade de uma maior aproximação entre os
conhecimentos específicos de História da Química e conteúdos relacionadas à Filosofia
da Ciência.
Para identificar as concepções sobre a natureza da ciência e o conhecimento
prévio dos alunos ao ensino, utilizamos questionários com perguntas abertas, que foram
denominadas de questões problematizadoras (Quadro 3). Como será visto no capítulo 9,
um dos propósitos da nossa investigação era também, avaliar em que medida a
contextualização histórica de um conceito científico, incluindo o conhecimento da sua
gênese e historicidade, poderia contribuir para uma aprendizagem mais significativa
deste conceito.
153
A análise da pesquisa didática foi conduzida sob um enfoque interpretativo
(MOREIRA, 1990, p.34). Neste tipo de análise o pesquisador narra o que fez e a sua
narrativa se concentra não nos procedimentos, mas nos resultados, levando-se em
conta a dinâmica das relações estabelecidas. Suas asserções dependem da sua
interpretação e só serão validadas por outros pesquisadores que concordem com a
interpretação proposta. A narrativa utilizada deve ser enriquecida com elementos
obtidos no levantamento de dados, a exemplo de trechos de entrevistas que deverão ser
mesclados com comentários interpretativos que darão suporte à análise realizada,
contribuindo assim, para a credibilidade da pesquisa.
Considerando-se
a
complexidade
envolvida
no
processo
educacional,
reconhecemos que a contribuição da História e Filosofia da Ciência no processo de
ensino e aprendizagem da Ciência é um assunto controvertido e que tem gerado
debates na comunidade científica, como já foi apresentado no Capítulo 2. Esta situação
justifica a necessidade de um maior número de investigações empíricas sobre tal
questão para que resultados mais conclusivos possam ser obtidos.
Neste estudo usamos diferentes técnicas e instrumentos para levantamento de
dados, a exemplo de observação participante, questionários e entrevistas. A aplicação
dos instrumentos para levantamento de dados aconteceu no decorrer dos semestres
letivos: primeiros semestres de 2004 e 2005. Os questionários utilizados foram
elaborados antes do início do semestre 2004.1 e validados por pelo menos dois
especialistas na área. Os professores que contribuíram nesta parte do trabalho foram:
Edilson F. Moradillo, Maria Bernadette de Mello Cunha e
José Luis de Paula. Os
questionários de levantamento das concepções sobre a natureza da ciência contaram
154
com a colaboração dos professores Edilson e Bernadette e os questionários do
levantamento conceitual com Edilson e José Luís.
Nesta pesquisa levantamos concepções prévias dos alunos sobre a natureza da
ciência, bem como, os significados de alguns conceitos químicos relacionados ao tema
gerador selecionado. Durante a disciplina tivemos a pretensão de refletir sobre certas
concepções epistemológicas consideradas pouco adequadas, introduzindo novas idéias
ancoradas em outros referenciais fundamentados na Filosofia da Ciência produzida no
século XX. Estes conteúdos não faziam parte da abordagem tradicional da disciplina
que, em seu programa, priorizava conteúdos específicos relacionados às diferentes
etapas da História da Química, numa abordagem cronológica.
Como visto na Introdução, a nossa problemática inicial incluía, também, avaliar se
a compreensão de um conceito químico através da sua contextualização histórica
poderia contribuir para uma aprendizagem mais significativa deste conceito. Escolhemos
o conceito de quantidade de matéria e para atingir este objetivo, elaboramos um
texto/artigo (ANEXO A) sobre a história dos conceitos de quantidade de matéria e mol,
que foi utilizado como material didático. A nossa investigação portanto, fez uso de
materiais didáticos especificamente elaborados pela pesquisadora, que serviram como
‘referências’ que fundamentaram o trabalho na disciplina e as discussões em sala.
5.2.3 Procedimentos para coleta de dados, técnicas e instrumentos
Como foi dito anteriormente, nossa investigação aconteceu na disciplina História
da Química, onde atuamos como professora e observadora participante. A observação
155
envolvida neste tipo de pesquisa pode ter um caráter não sistemático, menos rígido,
embora o pesquisador possa previamente estabelecer algumas questões a serem
observadas. Na atuação do pesquisador são obtidos registros descritivos de cada aula
sobre os acontecimentos e detalhes relevantes percebidos.
Utilizamos para o registro dos encontros um “protocolo de registro”, para
sistematizar as observações realizadas e foram feitas gravações para registrar as
discussões entre os alunos, nas equipes. A parte descritiva contemplou as respostas
dos alunos às questões problematizadoras, os registros das interações dos sujeitos nas
equipes, os diálogos, o contexto da sala de aula, as atividades realizadas e o próprio
comportamento do observador (LUDKE; ANDRÉ, 1986). Durante o curso procuramos
registrar os principais fatos observados nas aulas durante a realização das discussões
de forma ampliada, ou seja, envolvendo os professores e os alunos.
Nesta pesquisa (nas duas partes da investigação didática) usamos uma dinâmica
de sala de aula onde, após a discussão ampliada com a participação de toda a turma e
dos professores, os alunos se reuniam em pequenos grupos (equipes) para discussão
das questões problematizadoras, previamente respondidas. Os subsídios para estas
discussões eram fornecidos por leituras de textos selecionados, anteriormente
indicados, seguida de uma ampla discussão das questões propostas para cada aula.
(Quadro 3).
Teóricos e pesquisadores da área de Educação têm reconhecido a importância
da socialização e do trabalho em grupo para o desenvolvimento cognitivo do indivíduo.
Durante todo o semestre trabalhamos com três equipes E1, E2 e E3. A composição das
equipes foi mantida, embora o número de alunos em cada equipe tenha variado em
função da freqüência às aulas. Os alunos foram identificados com a letra A e um
156
número, que variou de 1 a 14 para a turma de 2005.1 e de 1 a 8 para a turma de 2004.1,
em função do número total de alunos que freqüentou as turmas naqueles semestres.
Esta identificação foi mantida em todo o trabalho.
A necessidade de aprofundamento das observações realizadas e o levantamento
de concepções e conceitos prévios dos alunos foi possibilitada pela utilização, nas duas
partes da investigação didática, de diferentes instrumentos de coleta de dados:
questionários, gravações das discussões e das entrevistas.
O uso de questionários abertos teve o objetivo de permitir aos estudantes
revelarem a sua própria opinião, sem ter que escolher entre visões já pré-estabelecidas
que eventualmente poderiam não corresponder exatamente a sua visão. Este tipo de
instrumento também permite que os sujeitos/alunos justifiquem cada uma das suas
posições.
Entre os tópicos que foram mapeados estavam: o conceito de ciência; a questão
da metodologia científica; o papel das teorias, leis e da experimentação; a
provisoriedade das teorias e a relação entre modelo e realidade, entre outros.
Nos capítulos 7 e 9 analisamos também, livros didáticos utilizados na disciplina
de Química Geral (ANEXOS E e F), em relação à apresentação da teoria atômica
daltoniana e de alguns conceitos como: quantidade de matéria e mol. A nossa intenção
era avaliar como estes conteúdos são abordados nestes manuais.
Para minimizar os possíveis equívocos na interpretação das respostas dos
questionários foram realizadas também, algumas entrevistas no final do período letivo,
com a intenção de aprofundar o levantamento pretendido e ajudar no processo de
interpretação das respostas aos questionários. Durante toda a pesquisa, utilizando
protocolo de entrevista apropriado (ANEXO G), entrevistamos 06 alunos já formados e
157
11 alunos que participaram do trabalho na disciplina, incluindo os dois semestres. As
entrevistas tiveram como foco as concepções sobre a natureza da ciência.
A abordagem de pesquisa qualitativa tem na entrevista ao lado da observação um
dos mais importantes instrumentos de coleta de dados. Ludke e André (1986)
consideram que este tipo de técnica permite o aprofundamento de pontos levantados
por outros meios de coleta que têm um alcance mais superficial; outra vantagem citada
é a relação de interação que se cria entre entrevistado e entrevistador.
O tipo de entrevista que utilizamos possibilitou maior flexibilidade no processo e
autonomia no percurso. Optamos pela entrevista semi-estruturada que aconteceu a
partir de um esquema básico com algumas categorias previamente definidas, porém,
mantendo a flexibilidade do entrevistador para realização de adaptações necessárias ao
percurso da entrevista. Bogdan e Biklen (1994) chamam atenção para o fato de que este
tipo de entrevista permite obter dados comparáveis entre vários sujeitos. As entrevistas,
bem como os momentos de discussões nas equipes foram gravadas em áudio e depois
transcritas, após a negociação para obtenção de autorização prévia dos entrevistados.
Nas entrevistas os estudantes foram estimulados a explanar sobre temas teóricos
já abordados nos questionários e outros que julgamos necessários. Neste momento
podiam explicar, reafirmar, ou mesmo contradizer opiniões previamente registradas.
5.2.4 Análise dos dados
Os dados coletados foram analisados através de um enfoque qualitativo e
interpretativo. Nesta análise visamos a objetivação dos dados levantados utilizando a
158
técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 1977; MORAES, 1999). O nosso corpus de
análise era formado pelo conjunto das respostas aos questionários, as transcrições das
entrevistas, os registros de observação e anotações das aulas. O foco da análise foram
os registros obtidos no semestre 2005.1, embora os trechos de gravações nas equipes
dos alunos do semestre 2004. 1 tenham sido utilizados, em pequena extensão, para
ilustrar a análise e interpretação dos dados de algumas categorias epistemológicas.
Numa primeira etapa efetuamos um recorte dos conteúdos em elementos,
processo de unitarização que Moraes (1999) denomina de etapa de desmontagem do
texto. As nossas unidades de análise foram as concepções dos estudantes sobre os
tópicos abordados (cada resposta dada no questionário).
O processo seguinte, a categorização, envolveu a comparação entre as unidades
previamente definidas para realizar o agrupamento de ‘elementos’ semelhantes. Na
definição das categorias analíticas utilizamos o modelo misto. De acordo com Laville e
Dionne (1999), neste modelo algumas categorias são selecionadas no início, baseadas
no referencial teórico utilizado, mas o pesquisador pode modificá-las em função do que
a análise indicar. As categorias definidas “ a priori” nortearam também, as dimensões
epistemológicas de análise selecionadas para as entrevistas semi-estruturadas.
Na análise dos questionários foram estabelecidas categorias de classificação das
respostas para cada questão, categorias emergentes (MORAES, 1999). Os dados
descritivos coletados foram analisados comparativamente. Os resultados obtidos nesta
etapa nortearam a análise das entrevistas e a seleção de alguns trechos de falas dos
alunos gravadas, que foram citados durante as narrativas.
Considerando o caráter exploratório do nosso estudo, buscamos identificar novas
categorias emergentes das respostas dos alunos que refletissem concepções mais
159
“elaboradas” adquiridas no processo de ensino, além de toda a dinâmica interativa
adotada. Os dados obtidos nos levantamentos através de questionários foram
submetidos à avaliação crítica de outros pesquisadores da área (professores Edilson F.
Moradillo e José Luis de P. Silva). Esta etapa teve o objetivo de comprovar a
confiabilidade dos resultados. O rigor e a credibilidade deste tipo de pesquisa depende
da sua validade interna que é considerada de grande importância.
Como esta pesquisa foi um estudo de caso com uma amostragem pequena, os
dados produzidos não possibilitam que se faça generalizações estatísticas, estendendose os resultados além da sua validade específica. As características mais importantes
do caso estudado podem ser comparadas com resultados obtidos para outros grupos,
em estudos similares, o que limita a validade externa obtida.
Como pesquisa qualitativa que acontece em ambiente natural, busca-se capturar
o significado que os sujeitos atribuem a objetos e eventos num dado contexto cultural,
vivenciado no momento da pesquisa, não existindo a pretensão da reconstituição, o que
restringe a fidedignidade.
CAPÍTULO 6
CONTROVÉRSIAS SOBRE O ATOMISMO NO
SÉCULO XIX
161
6 CONTROVÉRSIAS SOBRE O ATOMISMO NO SÉCULO XIX
Neste capítulo apresentaremos o resultado da pesquisa histórica sobre o tema
central destacado nesse trabalho (História do atomismo no século XIX) e que nos
possibilitou a elaboração do material didático utilizado para subsidiar as discussões
com os nossos alunos relacionadas à natureza da ciência. Consideramos que a
discussão da presença de posições conflitantes no seio do desenvolvimento científico é
um elemento importante para a desmistificação da ciência, ajudando na compreensão
da sua natureza.
6.1 A relevância do tema escolhido
Embora nos últimos anos, livros e artigos tenham sido escritos abordando e
discutindo vários aspectos relacionados com as controvérsias acontecidas no século
XIX entre atomistas e anti-atomistas, este é um tema desconhecido de grande parte
dos estudantes e professores das ciências naturais. Uma evidência para esta afirmação
pode ser encontrada na ausência desta questão nos livros didáticos de Química Geral
onde o atomismo de Dalton é apresentado.
A abordagem da História da Ciência na educação científica tradicional tem
ocorrido geralmente de um modo dogmático, existindo pouco espaço para que
controvérsias
científicas
sejam
apresentadas
ou
discutidas.
As
controvérsias
relacionadas com a aceitação do atomismo ao longo do século XIX desempenharam
um importante papel na consolidação do conceito de átomo na Física e na Química do
162
século XX. A identificação de altos e baixos do atomismo, não estava relacionada
apenas à interpretação dos fatos ou à ausência de evidências para a existência de
átomos, envolvia múltiplos aspectos: ontológicos, metodológicos e epistemológicos.
Investigando esta questão, Nye (1976) identificou as dificuldades da comunidade
científica para perceber a profundidade das dúvidas existentes relacionadas, também,
aos aspectos epistemológicos e metodológicos subjacentes aos debates sobre a
possível realidade do átomo:
O que muitas vezes tem sido omitido nas análises sobre os ásperos debates (sobre o
atomismo) é que a crise na comunidade científica do século passado (século XIX) não
concerniu apenas a evidência e a interpretação, mas também, a metodologia científica e
a epistemologia. Em questão não estavam apenas a teoria atômica mas o objetivo e a
estrutura da teoria física (NYE, 1976, p.246). (Tradução nossa)
Durante o século XIX, a idéia de átomo foi considerada por grande parte da
comunidade científica como uma hipótese fundamental para a interpretação de práticas
da química quantitativa. As dúvidas e especulações sobre a realidade dos átomos
eram, em parte, de ordem filosófica e não envolviam aspectos científicos da questão.
Um grande desafio precisava ser enfrentado para tornar a hipótese atômica aceitável,
adaptá-la no âmbito de duas dimensões: a macroscópica e a microscópica.
Na comunidade científica do século XIX aconteceram momentos de ceticismo
frente ao atomismo e suas implicações e momentos de confiança na hipótese atômica.
Este assunto tem sido investigado por historiadores da ciência a exemplo de Alan J.
Rocke (1978, 1984), Antonio Augusto Passos Videira (1993, 1994, 1997a, 1997b),
Bernadette Bensaude-Vincent e Isabelle Stengers (1992, 1997), Carlos A. L. Filgueiras
163
(2004), Gerd Buschdal (1960), Mary Jo Nye (1976; 1984; 1996; 1997), Ricardo Ferreira
(1987), William Brock e David Knight (1965), William Brock (1992).
Tomando como referência os autores anteriormente citados, este estudo
histórico foi realizado através de consulta a estas e outras fontes secundárias, tendo em
vista responder a questões mais gerais e outras mais específicas formuladas para
nortear a nossa pesquisa histórica que se fez necessária para a elaboração do material
didático produzido, a exemplo de:
1) Quando surgiu o atomismo e qual o seu significado? Como se modificou o
pensamento atomista?
1.1) Como aconteceu a recepção às idéias de Dalton pela comunidade científica na
primeira metade do século XIX?
1.2) Em que aspectos diferiam o atomismo químico do físico?
2) Quais os argumentos dos atomistas e anti-atomistas? Qual a coerência, consistência,
plausibilidade e aplicabilidade desses argumentos?
2.1) Qual a diferença entre o atomismo e o equivalentismo?
2.2) Qual a relação existente entre o energeticismo e os anti-atomistas?
3) Que condições (filosófica, científica e técnica) permitiram a ampla aceitação do
atomismo?
3.1) Movimentos filosóficos como o positivismo, o romantismo e a “naturphilosophie”
teriam influenciado na aceitação do atomismo no século XIX?
3.2) Qual a contribuição de Jean Perrin para a aceitação, em definitivo, da hipótese
atômica?
Este episódio da História da Ciência ilustra a dificuldade de cientistas e filósofos
de submeterem certas “imagens de natureza” à comprovação empírica. Tais imagens
164
incluem “os constituintes que são considerados últimos ou essenciais da realidade,
suas modalidades de interação, bem como os processos fundamentais dos quais
participam” (ABRANTES, 1998, p.10).
6.2 A visão corpuscular da matéria: uma concepção gestada
na antigüidade
A constituição da matéria faz parte das primeiras especulações filosóficas do
homem; inúmeras concepções surgiram em contextos variados e em diferentes épocas
e culturas. A idéia de átomo, portanto, é muito antiga, podendo ser localizada na Grécia
Antiga, no século V a.C., quando foram propostas duas visões opostas sobre a
constituição da matéria: a descontinuista, também conhecida como visão corpuscular
da matéria e as teorias que admitiam a continuidade da matéria e a possibilidade da
sua divisão até o infinito.
Segundo Abrantes (1998), várias imagens de natureza e de ciência estiveram
presentes na antigüidade, entre elas, a imagem dos atomistas e diferentes imagens dos
continuistas, que destacaremos a de Aristóteles. A tensão entre imagens de natureza
mutuamente incompatíveis foi um fator positivo que contribuiu para o desenvolvimento
científico e filosófico nos diversos períodos da história, culminando com o
desenvolvimento da teoria atômica clássica no século XIX.
Embora a palavra átomo tenha sido introduzida pelos gregos e a teoria atômica
de Leucipo e Demócrito tenha se constituído num marco histórico, distintas teorias
atômicas foram propostas até o século XX. As primeiras idéias atomistas foram uma
resposta especulativa a algumas observações da natureza apresentadas por filósofos
165
que pertenciam a Escola Eleática1 e consideravam a matéria contínua e a inexistência
do movimento.
Os
primeiros
atomistas
gregos
postularam
a
existência
de
partículas
homogêneas, eternas, invariáveis e impenetráveis, os átomos, que se moviam no vazio.
As diferenças nas propriedades geométricas e mecânicas dos átomos explicavam a
pluralidade das coisas. O mundo era concebido como matéria em movimento, com
choques, incerteza e caos. As mudanças percebidas decorriam da associação e
dissociação de átomos, considerados como os primeiros princípios constituintes da
matéria.
Assim como Leucipo, também Demócrito, seu discípulo, dizia que o cheio e o vazio são
os princípios, sendo um existente e o outro não existente. Pois os átomos são a matéria
das coisas, e todo o resto se segue de suas diferenças. Estas são três: forma,
movimento e ordem (SIMPLÍCIO (?) apud BORNHEIM, 1993, p.126).
Mesmo não sendo possível a visualização dos átomos diretamente pelos
sentidos ou, indiretamente, através de instrumentos, o atomismo foi brilhantemente
concebido na antigüidade grega, plena de imaginação e criatividade. Outros filósofos
como Epicuro (341 - 270 a.C.) e Lucrécio Caro (95 -55 a.C.) foram também atomistas e
ampliaram, em alguns aspectos, a idéia original concebida por Leucipo (490 – 420 a.C.)
e desenvolvida por Demócrito (460 – 370 a.C.). Neste período ainda não existia uma
separação nítida entre o conhecimento científico e o filosófico.
Mesmo que as contribuições filosóficas e literárias legadas por Epicuro e
Lucrécio em relação ao atomismo sejam reconhecidas, tais idéias, predominantemente
mecânicas e materialistas, não conseguiram frutificar no período medieval em função
1
A escola eleática foi uma escola filosófica que se preocupava sobretudo com questões do mundo material, cujos representantes
166
do predomínio de uma visão teológica de mundo. Neste período algumas teorias
corpusculares foram até mesmo consideradas heréticas. A hipótese atômica
enquadrava-se numa visão materialista de mundo, tornando-se um ponto de vista
controvertido para muitos filósofos da antigüidade e medievais.
Na antigüidade, o mais importante defensor da continuidade da matéria foi
Aristóteles, que admitia como objetos do conhecimento a forma, a essência, o real. Ele
imaginava o mundo ordenado, submetido a uma hierarquia com um lugar natural para
todas as coisas. Os sentidos seriam a fonte do conhecimento, sendo a substância uma
categoria fundamental do ser, hierarquicamente superior às demais categorias. A
natureza seria plena de força vital, uma imagem organicista de natureza.
Aristóteles (384 – 322 a.C.) e os peripatéticos2 contestavam a concepção
atomista, devido a sua natureza materialista (FILGUEIRAS, 2004). Em oposição
defendiam a continuidade da matéria considerando-a formada por um número limitado
de princípios/elementos: terra, água, ar e fogo. Aristóteles defendia a subdivisão da
matéria sem um limite definido expressando o seu ponto de vista em uma das suas
obras, “Sobre os céus”: “[...] um contínuo (continuum) é o que é divisível em partes
sempre capazes de subdivisão, e um corpo é o que é de todo modo divisível”
(ARISTÓTELES,1952 apud MIERZECKI, 1991, p.96). (Tradução nossa)
Comentando sobre as idéias de Leucipo e Demócrito relativas à composição da
matéria, Aristóteles escreveu no seu livro “Sobre a Geração e a Corrupção” “Demócrito
e Leucipo dizem que existem corpos indivisíveis, infinitos tanto em número quanto na
foram os filósofos Parmênides e Zenão,
2
O termo peripatético origina-se do vocábulo grego “peripatein”, que é categorizado como verbo e significa
caminhar. Este termo é comumente utilizado para designar os filósofos seguidores de Aristóteles.
167
variedade de suas formas, dos quais tudo mais é composto” (ARISTÓTELES,1952
apud MIERZECKI, 1991, p.93). (Tradução nossa)
Um outro ponto de divergência entre os atomistas e Aristóteles referia-se à
existência do vácuo. Os atomistas acreditavam que os átomos existiam e se
movimentavam no espaço vazio, já Aristóteles argumentava que o movimento podia
acontecer somente em um meio material. Como eram observadas muitas mudanças e
diversos tipos de movimento na natureza, sua conclusão é que o vazio não deveria
existir no Universo.
O conflito envolvendo estes dois pontos de vista tinha uma natureza ontológica e
epistemológica; buscava-se responder a um questionamento global sobre a natureza e
sobre o homem. Algumas categorias conceituais estiveram presentes nessas
discussões: um/múltiplo; contínuo/descontínuo; ser/não ser. A tensão entre as
diferentes explicações das qualidades da matéria e das suas transformações
acompanhou as ciências naturais até os séculos XVIII e XIX e as divergências
observadas contribuíram para o desenvolvimento da Química e da Física clássicas.
6.3 As visões continuistas e descontinuistas: do século XIV ao XVII
O pensamento aristotélico sobre a continuidade da matéria teve uma grande
difusão na Idade Média e no Renascimento, no entanto, alguns filósofos comentadores
de Aristóteles associaram à teoria dos quatro elementos conceitos atomísticos. Em
parte de sua obra, Aristóteles deixou aberta a possibilidade de uma interpretação que
foi desenvolvida por vários pensadores medievais e ficou conhecida como “a teoria dos
minima naturalia”. De acordo com esta teoria os “minima naturalia” eram as menores
168
partes das substâncias que conservavam as suas propriedades, o limite “teórico” da
divisibilidade de cada substância (BELLO; SÁNCHEZ; RAMÓN, 2003; MAAR, 1999).
As primeiras tentativas de relacionar os “minima naturalia” com as propriedades
físicas e químicas das substâncias foi realizada por alguns filósofos averroístas3. Esta
articulação era imprescindível para que os mínima fossem considerados entidades
físicas e não puramente filosóficas. Esta idéia foi retomada posteriormente pelo filósofo
natural Daniel Sennert (1572-1637).
Até o fim do século XVII, a estrutura discreta da matéria era considerada como
uma hipótese, sem uma base empírica que lhe desse sustentação. Apesar disto, a
visão corpuscular, mesmo como um pensamento marginal se aplicava melhor a uma
abordagem quantitativa, enquanto a visão aristotélica era usada para uma descrição
qualitativa dos fenômenos. Com o desenvolvimento dos métodos quantitativos, a
concepção corpuscular tornou-se cada vez mais necessária adquirindo uma maior
importância. Filósofos como Angelo Sala (1578-1637), Daniel Sennert e Joachim
Jungius (1587-1657) passaram a interpretar fatos empíricos usando “átomos” ou
“mínimos” iniciando um processo de abertura na direção de um atomismo científico. As
transformações e fenômenos percebidos foram relacionados às diferenças quantitativas
existentes entre o tamanho, a forma e a massa dos átomos e suas combinações.
6.4. A filosofia mecânica
Nos séculos XVI e XVII começou a emergir uma nova filosofia da natureza, a
3
Os filósofos averroístas eram seguidores do árabe Averróis (1126-1198) que era um aristotélico.
169
“Filosofia Mecânica ou Mecanicista”, que se constituía numa importante alternativa à
visão de mundo aristotélica que ainda era dominante no século XVI. Em parte este
movimento estava relacionado com o ressurgimento do atomismo grego e foi
responsável pela “revolução científica” acontecida neste período (TAMNY, 1990).
O atomismo foi retomado e difundido pelo filósofo francês Pierre Gassendi (15921655) e adotado por ‘personalidades’ como Robert Boyle (1627-1691) e Isaac Newton
(1642-1727) que eram, em alguma extensão, partidários da filosofia mecânica. Os
filósofos mecanicistas consideravam que os corpos eram formados por entidades não
diretamente acessíveis aos sentidos, os átomos e/ou corpúsculos; tais partículas eram
as últimas causas e explicavam todos os fenômenos.
A Filosofia Mecânica não constituía um único pensamento. Todos os filósofos
mecanicistas eram corpuscularistas, embora alguns não fossem atomistas. As
propriedades consideradas fundamentais variavam de um filósofo para outro. Enquanto
alguns destes filósofos consideravam sua visão como tendo uma correspondência no
plano real, outros tinham o seu ponto de vista como uma hipótese consistente com a
experiência (TAMNY, 1990).
As qualidades percebidas nos corpos eram explicadas por um pequeno número
de propriedades atribuídas às menores partes constituintes dos objetos percebidos.
Embora os átomos não fossem diretamente visualizados, considerava-se que eles eram
os constituintes dos corpos macroscópicos. A diversidade de explicações apresentadas
pelos filósofos mecanicistas considerava as diferenças quantitativas superando, neste
aspecto, o aristotelismo que fazia uso de explicações qualitativas (TAMNY, 1990). No
século XVII, como resultado de uma nova abordagem metodológica, a tendência à
170
quantificação, à medida e à precisão tornou-se cada vez mais importante para a
explicação dos fenômenos.
Os estudos sobre a natureza do calor impulsionaram o retorno da idéia de
descontinuidade do mundo material; o calor passou a ser considerado como
manifestação do movimento atômico. Descartes e Boyle, entre outros, explicavam o
calor e o frio a partir de uma única propriedade real, o movimento. A intensidade do frio
ou calor estava relacionada com a extensão deste tipo de movimento.
A idéia de que a matéria numa escala microscópica era corpuscular e composta
de pequenas partículas, sustentava a hipótese de Newton sobre as propriedades dos
gases. Ele demonstrou, na proposição 23 do livro II do “Principia”, que um gás era
constituído de pequenas partículas que se repeliam umas em relação às outras, por
uma força que aumentava na proporção que diminuía a distância entre elas (NYE,
1996, p.29).
As evidências para esta suposição começaram a aparecer quando em 1738,
Daniel Bernoulli (1700 – 1782) propôs a primeira teoria cinética dos gases. Este estudo
teve um tratamento matemático satisfatório um século depois, quando James Clerk
Maxwell (1831 – 1879) aplicou a teoria estatística adequada para explicar o movimento
aleatório das partículas que formavam os gases (BARBEROUSSE, 1997; HARMAN,
1982). O desenvolvimento da teoria cinética dos gases transformaria a idéia de átomo
num conceito teoricamente definido e capaz de articular fenômenos químicos com
algumas áreas da Física como a termodinâmica e a mecânica.
Newton aderiu à visão de que todos os fenômenos poderiam ser explicados com
relação ao tamanho, forma, número e movimento das partículas que formavam os
171
corpos. Ele definiu os corpúsculos indivisíveis na questão trinta e um do seu livro
Óptica, baseando-se em pressupostos teológico e teleológico:
Consideradas todas essas coisas, parece-me provável que no princípio Deus formou a
matéria em partículas sólidas, maciças, duras, impenetráveis, móveis, de tais tamanhos
e formas, e com tais outras propriedades, e em tal proporção em relação ao espaço,
como as que conduziriam mais ao fim para o qual Ele as formou; e que essas partículas
sendo sólidas, são incomparavelmente mais duras do que quaisquer corpos porosos
que delas se componham e mesmo tão duras a ponto de nunca se consumir ou partir-se
em pedaços, pois nenhum poder ordinário é capaz de dividir o que o próprio Deus fez
uno na primeira criação [...] (NEWTON, 1996, p. 290).
A este pensamento fundamental da filosofia mecanicista Newton adicionou um
outro importante fator, o poder ou força exercida por estes corpúsculos. Posteriormente
ele postulou que a força que agia entre tais partículas variava inversamente com o
quadrado da distância entre elas (NYE, 1996, p. 29).
Segundo Purrington (1997, p.114), Newton mencionou a palavra átomo muito
raramente em suas obras e pouco do seu trabalho dependeu do uso desta visão; no
entanto, estudos sobre a constituição elementar das substâncias desenvolvidos
posteriormente foram influenciados pela tradição newtoniana. Sobre esta influência
disseminou-se a filosofia corpuscular, o que justifica a ligação entre Newton, Boyle e o
atomismo no século XIX. Muitos químicos pesquisadores nos séculos XVIII e XIX
admitiam a visão corpuscular da matéria defendida por Newton.
O pensamento newtoniano, no entanto, não teve uma única recepção nas
comunidades ou diferentes grupos científicos neste período, refletindo a existência de
duas tradições distintas que estiveram presentes no desenvolvimento das ciências da
natureza: a matemática e a experimental (KUHN, 1977, p.70). O primeiro tipo de
tradição encontrava-se representado principalmente no grupo de ciências chamadas
172
clássicas formado pela Astronomia, Harmonia, Matemática, Óptica e a Estática. Estes
campos se desenvolveram desde a antigüidade, utilizando-se de pouca observação
refinada e em menor escala a experimentação.
O segundo tipo de tradição começou a se desenvolver ao fim do período
medieval com a elaboração de regras para o estabelecimento de conclusões sólidas a
partir
de
observação
e
experimentação.
Este
novo
movimento,
tipicamente
experimental, originou um gênero diferente de ciência empírica que conferia um novo
papel e estatuto ao experimento. Estas ciências passaram a ser conhecidas como
baconianas e desde a sua origem até o século XIX mantiveram-se separadas do grupo
das ciências clássicas, conhecidas também como matemáticas.
As ciências baconianas eram consideradas como “filosofia experimental”, tendo
recebido na França o nome de “Physique Experimentale”. A Química, que sempre se
destacou por sua tradição técnica fazia parte deste último grupo. Os programas de
pesquisa desenvolvidos no século XVIII foram influenciados pelo pensamento
newtoniano que se articulava com estas tradições.
Newton compartilhava com Boyle algumas idéias sobre a composição das
substâncias, imaginadas como contendo elementos químicos combinados em uma
estrutura complexa e em cuja composição incluía partículas de diferentes formas,
tamanhos e natureza e com o poder de exercer forças. Esta última sugestão, aliada à
defesa da existência de um meio etéreo onde estariam mergulhados os corpúsculos,
ocasionou muitas especulações e debates no século XVIII.
Importantes cientistas como Antoine Laurent Lavoisier (1743 – 1794), Claude
Louis Berthollet (1748 – 1822)
e Pierre Simon de Laplace (1749 – 1827) foram
influenciados pelas idéias de Newton que estabeleciam relação entre as propriedades
173
da matéria e a existência de partículas no seu interior, que interagiam através forças de
atração e repulsão. Admitia-se ainda que, fluidos imponderáveis como o calórico,
estariam também envolvidos neste processo.
Nos séculos XVII e XVIII, o raciocínio científico admitia a formulação de
hipóteses que deviam ser confirmadas pela experimentação. As concepções
descontinuístas que envolviam átomos, moléculas ou corpúsculos encontraram
dificuldades para se enquadrar na tradição “baconiana”. A interpretação dos fenômenos
naturais através da filosofia mecanicista ainda era uma aproximação em função da
impossibilidade de se chegar as “causas últimas”. Neste período tais explicações
envolviam concepções filosóficas.
Dois tipos de programas de pesquisa desenvolvidos no século XVIII tomaram
como modelo as duas importantes obras de Newton: o “Principia” e a “Óptica”. Um
grupo interessado numa Física mais geral, tendo o Princípia como modelo, estudava as
propriedades universais dos corpos fazendo uso de uma metodologia mais abstrata e
matematizada. Uma outra linha de investigação, a “Física Especial”, investigava as
propriedades particulares dos corpos através de uma metodologia empírica, qualitativa
e especulativa seguindo pressupostos contidos no livro “Óptica” (ABRANTES, 1998).
Estas idéias influenciaram vários químicos, que tentaram quantificar as forças de
afinidade visando trazer uma maior precisão para a Química e aproximá-la da Física e
da Matemática. Na Química, este ponto de vista se manifestou nas teorias sobre as
afinidades químicas e na Física, com a chamada “visão astronômica da natureza”4 que
integrava o programa da Escola Laplaciana (ROCKE, 1984, p.2).
4
Esta foi a denominação dada pelo historiador Merz para as propostas da Societé d’Arcueil (grupo formado por
Laplace, Berthollet e colaboradores) sobre a constituição da matéria.
174
Laplace se destacou por estabelecer uma conexão entre a “Física Geral” e a
“Física Especial”5, criticando o caráter muito abstrato da primeira e tentando
matematizar a segunda. O seu interesse pela Física Especial se acentua no período de
1805 a 1827 quando, sob a sua liderança se constituiu a Escola Laplaciana que reuniu
jovens pesquisadores e ficou conhecida como Societé d’Arcueil (ABRANTES,1998).
Entre os componentes desta escola estava Berthollet, que influenciado pelo
trabalho de Lavoisier, desenvolveu uma teoria das afinidades químicas, tratando-as
como uma manifestação de forças atrativas supostamente de natureza gravitacional
que agiriam ao nível molecular. As teorias sobre as afinidades químicas foram muito
importantes neste período, sendo utilizadas por importantes cientistas como Berthollet e
François Etienne Geoffroy (1672 – 1731).
Apesar da aceitação da visão corpuscular da matéria (apoiada na autoridade de
Newton), o atomismo era um ponto de vista ainda pouco produtivo no século XVIII,
porque poucas observações empíricas eram explicadas por esta teoria, que carecia de
melhor estruturação. Uma exceção foi a teoria cinética de Daniel Bernoulli que explicou
as propriedades dos gases usando a concepção atomista (PURRINGTON, 1997).
A mais importante tentativa para desenvolver o atomismo químico antes do
século XIX foi feita pelo químico irlandês William Higgins (1766-1825) em 1789. Este
cientista publicou num livro pontos de vista favoráveis e contra a “teoria do flogisto”6.
Ele retomou idéias atomistas para defender o seu pensamento, contrário a esta teoria.
5
Esta classificação feita por Abrantes (1998) baseia-se na diferença entre os objetos de investigação da Física.
Teoria proposta por Georg E. Stahl(1660-1734) na segunda metade do século XVII, para explicar importantes
fenômenos como: combustão, calcinação, respiração, fermentação, etc.
6
175
Especulando sobre combinações químicas, Higgins antecipou conceitos
primitivos relacionados à valência, energia de ligação e a lei das proporções múltiplas.
Ele utilizou muita especulação e pouca informação para propor seu sistema teórico antiflogista, não tendo utilizado ainda a idéia de ‘peso atômico’. Neste período a Química
Analítica ainda era muito pouco desenvolvida e os conceitos de Higgins despertaram
pouca atenção, não encontrando um ambiente favorável para prosperar (IHDE, 1984;
LEICESTER; KLICKSTEIN, 1971).
Na segunda metade do século XVIII, surgiram importantes evidências para o
retorno de idéias atomistas: as primeiras leis que tentavam explicar quantitativamente
as combinações químicas e os estudos de estequiometria química. A complexidade dos
fenômenos químicos e o desenvolvimento de novas áreas de pesquisa, a exemplo da
Química Orgânica, deram origem a um novo perfil de ciência dotada de certa autonomia
e que necessitava de novos conceitos e explicações mais adequadas aos seus próprios
problemas.
Uma alternativa possível foi o atomismo daltoniano, que abandonou explicações
envolvendo forças e afinidades e propôs um sistema de quantificação baseado nos
pesos relativos dos átomos. John Dalton (1766-1844) se destacou por ter determinado
pioneiramente estes pesos, consolidando a importante relação entre o conceito de
átomo e o de elemento químico.
Os pesos atômicos7 determinados por Dalton e a sua divulgação no meio
científico ajudaram a química a adquirir um ‘status’ superior, de ciência exata. A cada
elemento químico foi associado uma grandeza quantitativa que podia ser mensurada: o
7
Estamos usando o termo peso atômico que era usado na época, embora, atualmente, a IUPAC (International Union
of Pure and Applied Chemistry) recomende para designar esta grandeza o nome massa atômica
176
peso relativo de seus átomos. Nas primeiras determinações e durante o século XIX , o
peso atômico era um número relativo, um número que indicava uma relação de peso.
Apenas com os trabalhos realizados pelos atomistas, no início do século XX, estes
pesos relativos passaram a ser absolutos.
6.5 A possível origem do atomismo daltoniano
A origem da hipótese atômica de Dalton é um episódio que tem demandado
muita discussão pelos historiadores da Química, principalmente nas últimas décadas
(ROSCOE; HARDEN, 1896 apud FERREIRA, 1987). As principais questões discutidas
são: a influência dos estudos relativos à estequiometria8 química e dos trabalhos de
Jeremias Benjamin Richter (1762 – 1807) e Joseph Louis Proust (1754 – 1826) na
formulação desta hipótese e na seqüência das suas principais idéias.
Embora várias versões tenham sido propostas, Nash (1956) considera que
nenhuma delas é completamente satisfatória em função de três principais dificuldades:
1) o próprio Dalton apresentou três explicações mutuamente contraditórias para a
origem da sua teoria, nenhuma delas totalmente coerente com informações disponíveis
em fontes diferentes; 2) o seu principal trabalho que introduziu a teoria atômica sofreu
alterações entre a
apresentação pública e a publicação, para adaptá-lo a novos
resultados empíricos obtidos; assim, a versão sobre a origem da sua teoria não pode se
basear apenas na seqüência de suas idéias e das datas que aparecem nos
documentos; 3) os registros obtidos das anotações de Dalton e dos seus trabalhos são
8
A palavra estequiometria vem do grego “stoicheion”, que significa elemento, e diz respeito à medição e cálculo das
quantidades de elementos presentes nos compostos e reações químicas.
177
fragmentários; muitas datas estão ausentes e parte dos documentos foi destruída
durante a Segunda Guerra Mundial.
Alguns cientistas do século XIX, inclusive contemporâneos do próprio Dalton,
divulgaram a versão que Dalton retomou à hipótese atômica após a realização de
trabalhos experimentais envolvendo combinações químicas de gases, que os levaram
também à descoberta da lei das proporções múltiplas, o que teria antecedido à sua
teoria. Esta é considerada uma versão indutivista que admite que ele partiu dos
resultados experimentais para chegar às generalizações teóricas. Este ponto de vista
foi defendido, principalmente, no período onde o pensamento positivista era muito
influente sobre os cientistas. De acordo com Rocke (1984, p.27): “ Essa versão estava
totalmente de acordo com o então prevalecente ‘modelo vitoriano’ de ciência heróica.”
Esta versão tem sido, contemporaneamente, discutida por alguns historiadores da
ciência que a questionam (FERREIRA, 1987; GUERLAC, 1961; NASH, 1956;
PARTINGTON, 1962; ROSCOE; HARDEN, 1986 apud FERREIRA, 1987; THACKRAY,
1966).
Nash (1956) argumenta sobre a importância que teve o estudo sobre as
solubilidades dos gases para a determinação dos pesos relativos dos átomos realizada
por Dalton. Guerlac (1961) questiona a idéia que admitia que o trabalho de J. B. Richter
não teria influenciado na formulação da hipótese atômica daltoniana. Partington (1962)
tem escrito sobre o longo caminho que levou Dalton ao seu trabalho teórico,
reconhecendo a sua complexidade e os inúmeros problemas envolvidos com a
reconstrução histórica.
Em um artigo onde se discute este assunto, Thackray (1966) apresenta
argumentos que mostram que as dúvidas sobre a origem das idéias atomistas de
178
Dalton foram resolvidas, criticando a aceitação de uma visão empirista indutivista.
Segundo este autor, a grande parte dos químicos que aceitava a tradição newtoniana já
aceitava também a idéia que partículas químicas diferentes tinham pesos diferentes.
Esta crença, que era partilhada por Dalton, bem como os seus estudos sobre a
solubilidade de gases em água que estavam relacionados com o seu interesse no
campo da meteorologia, o levaram a propor a sua primeira lei da mistura gasosa. Esta
lei foi formulada em 1801 e antecedeu a sua teoria.
Com a intenção de explicar as diferentes solubilidades dos diversos gases na
água, Dalton intuitivamente retoma a hipótese atômica. A originalidade do seu trabalho
decorreu do seu sistema para cálculo dos pesos atômicos relativos, fundamentado em
idéias que ele claramente delineou e que davam sustentação à sua hipótese inicial.
O aprimoramento de suas idéias aconteceu através da sua aproximação com o
conhecimento empírico já existente sobre as medidas das quantidades relativas das
substâncias que entravam em combinação, em especial, a lei dos equivalentes ou dos
números proporcionais de Richter. Para Thacckray (1966), parece provável que Dalton
tenha conhecido o trabalho de Richter somente em 1807 através do seu contato com
Thomas Thomson (1773-1852), quando as suas idéias já estavam bem estabelecidas.
Os primeiros cálculos de pesos atômicos realizados pela primeira vez na história
da Química em 1803, tiveram a função de dar suporte a suas idéias teóricas sobre o
comportamento físico dos gases (THACKRAY, 1966). Gradualmente, Dalton percebeu a
grande importância destas idéias, embora, o seu trabalho incluindo a tabela de pesos
atômicos na forma em que foi inicialmente publicada, não tenha despertado interesse
de grande parte da comunidade química. O programa atômico de Dalton forneceu uma
racionalidade para a lei da composição constante, explicando também a lei dos
179
equivalentes de Richter. A sua hipótese atômica teve como conseqüência os trabalhos
realizados entre 1807-1808 que o levaram a propor a lei das proporções múltiplas, que
foi dedutivamente prevista a partir das suas idéias teóricas.
De acordo com Partington (1962), a primeira referência à hipótese atômica
encontra-se no trabalho “Theory of absortion of gases by water” apresentado por Dalton
em 21 de outubro de 1803 à Sociedade Literária e Filosófica (Literary and Philosophical
Society). Neste trabalho aparece a sua tabela dos pesos atômicos relativos das “últimas
partículas” dos corpos gasosos e outros elementos. A inovação proposta por Dalton e
expressa nesta Tabela incorporava as leis de combinação química da matéria que, ao
mesmo tempo que lhes fornecia a fundamentação empírica, eram racionalmente
compreendidas. A novidade contida na sua proposta teórica a valorizava diante da
comunidade científica.
A formulação da hipótese atômica valorizou o uso de explicações racionais para
os fenômenos químicos. Muitos cientistas da primeira metade do século XIX não
partilhavam da crença na realidade dos átomos, mesmo utilizando teorias e um sistema
conceitual que pressupunham a aceitação do conceito de átomo ou da teoria atômica
de Dalton. Apesar de muitas resistências que se fizeram presentes ao longo deste
século, grande parte dos progressos da Química dependeram direta ou indiretamente
do atomismo ou a este foram agregados.
180
6.6 O atomismo daltoniano: iniciando um longo debate
As idéias que levaram Dalton a propor a sua hipótese atômica foram
interpretadas a partir de uma visão fortemente empiricista que foi largamente aceita no
século XIX e ainda hoje é observada em alguns livros didáticos. Uma outra questão é o
caminho indutivista proposto para o seu trabalho ou, uma interpretação puramente
dedutiva da hipótese atômica, considerando-a originária de problemas de Química
Analítica. Contrariamente, o “contexto da descoberta” de Dalton teve um percurso muito
mais indireto e com forte contribuição da intuição. Neste episódio torna-se de grande
importância distinguir entre a ‘ciência privada’, ou seja, como o cientista pensa o
problema tentando resolvê-lo em sua própria mente e um outro aspecto da atividade
científica, como as idéias são divulgadas, sendo aceitas ou rejeitadas pela comunidade
científica, a ciência pública (ROCKE, 1984).
Esta questão está relacionada com a distinção entre os dois contextos: da
descoberta e da justificação ou justificativa, preocupação que teria sido sistematizada
por Reichenbach, filósofo de orientação neo-positivista (LOSEE, 1998). A discussão
apresentada por ele sobre esta questão teve como objetivo distinguir o “sistema do
conhecimento” e os “métodos de aquisição de conhecimento”, tendo como pressuposto
a dicotomização dos dois contextos.
A crítica à separação entre os dois contextos e a não inclusão no âmbito
filosófico do contexto da descoberta que aconteceu em meados do século XX,
acompanhou as críticas ao empirismo lógico. Alguns autores, a exemplo de Kuhn,
Lakatos, Feyerabend passaram a defender o envolvimento do contexto da descoberta
no contexto da justificação.
181
Kuhn (1996) questionou a distinção entre o contexto da descoberta e da
justificação, considerando de grande relevância para a Filosofia da Ciência os detalhes
de como um avanço científico é obtido.
Feyerabend (1985) é um dos filósofos da ciência que questionou posições
ortodoxas assumidas em relação à distinção entre os dois contextos, reconhecendo o
conflito que geralmente está presente entre a descoberta e a justificativa. Ao admitir a
possibilidade de que os dois contextos sejam identificados, ele defende a possibilidade
da articulação entre eles, atribuindo a mesma importância a ambos.
A historiografia da ciência contemporânea reconhece a complexidade envolvida
no contexto da descoberta científica e a possibilidade de interferência de fatores
acientíficos e não racionais neste processo. A compreensão dos fatores psicológicos,
sociológicos, culturais etc. que levam à proposição de uma teoria científica e dos
procedimentos e negociações para a sua comprovação e validação são questões
fundamentais no estudo de qualquer episódio da História da Ciência, adquirindo uma
maior importância no estudo de controvérsias científicas.
Os primeiros trabalhos de Dalton envolveram estudos da atmosfera, já que ele
sempre demonstrou grande interesse por meteorologia e pela física do estado gasoso.
Em 1793, ele publicou o trabalho “Meteorological Observations and Essays” e, na
década seguinte, prosseguiu estudando misturas gasosas e absorção de gases em
água; tais estudos o levaram a propor a “lei das pressões parciais dos gases” e
antecederam a sua hipótese atômica.
A teoria sobre mistura gasosa proposta por Dalton teve uma ampla divulgação e
recebeu críticas de importantes químicos de diferentes países como: o escocês Thomas
Thomson, o inglês William Henry (1774 – 1836) e o francês Claude L. Berthollet.
182
Para defender as suas idéias e aprimorá-las, Dalton retoma a hipótese atômica.
Isto aconteceu através de dois caminhos: investigando métodos analíticos de
determinação das proporções de combinação de gases para formar compostos e
estendendo sua teoria para explicar a dissolução de gases na água (ROCKE, 1984).
Dalton acreditava que a absorção de gases na água era um processo físico não
envolvendo afinidade química e que dependia dos pesos relativos das partículas que
formavam cada gás. No trabalho em que publica estas idéias, em novembro de 1805, a
sua tabela de pesos atômicos relativos é apresentada oficialmente à comunidade
científica.
Por que a água não recebe um volume semelhante de cada tipo de gás? Considerei
devidamente essa questão e, embora não seja capaz de me satisfazer completamente,
estou quase persuadido de que essa circunstância depende do peso e do número das
partículas últimas dos diversos gases: aqueles cujas partículas são mais leves e simples
são os menos absorvíveis; os outros, mais, à medida em que aumentam de peso e de
complexidade.9 Uma investigação sobre os pesos relativos das partículas últimas dos
corpos é um assunto, até onde eu sei, inteiramente novo. Eu venho, ultimamente,
empreendendo essa investigação com notável sucesso. O fundamento não pode aqui ser
discutido neste trabalho, mas vou apenas anexar os resultados, até o ponto em que
parecem verificados por meus experimentos:[...] (Tradução nossa)
(DALTON, 1805 apud LEICESTER; KLICKSTEIN, 1952, p. 209)
Para determinar os pesos atômicos ou das “últimas partículas”, de modo
inovador, Dalton fez combinar os elementos cujos pesos queria determinar com um
elemento de referência, o hidrogênio, escolhido como padrão, ao qual atribuiu como
peso a unidade. A sua maior dificuldade foi ter que assumir arbitrariamente o número
de átomos de cada elemento envolvido na combinação. Dalton utiliza o termo “última
9
Nesse ponto Dalton inseriu uma nota de rodapé onde afirmava que experimentos subseqüentes tornavam esta
conjetura menos provável.
183
partícula” para se referir tanto aos átomos quanto as moléculas. Neste período, os
termos partícula, corpúsculo ou mesmo molécula eram preferidos à palavra átomo.
Ele adotou a “regra da simplicidade”, considerando que somente um átomo de
cada elemento deveria participar da combinação. Quando existisse um único tipo de
composto formado por dois elementos diferentes este seria binário. Esta regra, segundo
Dalton, resultava de circunstâncias físicas, uma vez que, um menor número de átomos
numa substância composta teria uma maior estabilidade mecânica. Qualquer outro
composto que envolvesse os mesmos elementos combinados deveria ter proporções
distintas 1:2 ou 1:3 ou outra, sempre envolvendo números inteiros e pequenos.
Nye (1996) considera que embora alguns químicos modernos vejam Dalton
como sucessor de Lavoisier, o seu trabalho está mais relacionado com as idéias de
personagens do século XVII, a exemplo de Newton e Boyle. As explicações
introduzidas por Dalton sobre o comportamento dos gases na atmosfera contrariavam
algumas idéias de Lavoisier e da Escola Francesa sobre este assunto, que considerava
que o vapor d’água e os gases nitrogênio e oxigênio encontravam-se combinados
quimicamente na atmosfera. Apesar disto, Dalton adotou como ponto de partida para
suas determinações quantitativas dos pesos atômicos, a tabela contendo trinta e três
elementos que havia sido proposta por Lavoisier no seu Traité Élémentaire de Chimie
(1789), aprimorando o conceito de elemento de Lavoisier e fornecendo-lhe uma base
ontológica.
Mesmo reconhecendo a influência da filosofia mecanicista newtoniana no
pensamento de Dalton, Bensaude-Vincent e Stengers (1992) consideram que o átomo
daltoniano não é um herdeiro dos átomos antigos, nem dos corpúsculos newtonianos; é
184
inventado e explorado noutro contexto. Os átomos daltonianos constituíam-se em
unidades mínimas de combinação da matéria.
Dalton imaginava que as “últimas partículas” possuíam forma esférica e pesos
diferentes e que constituiriam a menor quantidade de uma substância que ainda
preservava as suas propriedades. Cada átomo estaria arrodeado de uma atmosfera de
calor formada de uma substância material fluida, extremamente rarefeita, capaz de
penetrar ou escapar de todo e qualquer lugar do espaço, chamada “calórico”10.
O calórico era fortemente atraído pela matéria e auto-repulsivo, no entanto,
Dalton admitiu, por princípio, que somente átomos idênticos se repeliam. Em seu livro
publicado em 1808, o seu ponto de vista sobre esta questão foi assim apresentado:
“Cada átomo de ambos ou de todos os gases de uma mistura era o centro de repulsão
para as partículas próximas do mesmo tipo, ignorando aquelas de outro tipo.”
(DALTON, 1808 apud CONANT; NASH, 1957, p. 226).
Para explicar o fato da atmosfera não se separar em camadas de diferentes
composições químicas e densidades e visando explicar a independência das pressões
de diferentes gases que compunham as misturas gasosas, Dalton abandona a idéia
original de Lavoisier que admitia uma repulsão universal dos calóricos e postula que só
haveria repulsão entre átomos de um mesmo elemento. Estas conjecturas justificariam
a não estratificação dos gases e a independência das pressões gasosas11 (NYE, 1996).
10
Até a segunda metade do século XIX coexistiam duas teorias sobre a natureza do calor: a teoria do calórico e a
idéia de calor como movimento das partículas constituintes da matéria. Dalton conhecia as duas teorias.
11
A independência das pressões dos componentes de uma mistura gasosa foi posteriormente generalizada
constituindo a lei das pressões parciais de Dalton: a pressão total de uma mistura gasosa é igual a soma das pressões
parciais dos seus constituintes.
185
Uma das grandes contribuições de Dalton à Química do século XIX foi o
desenvolvimento de um novo simbolismo para representação dos átomos e de suas
combinações. Os átomos daltonianos eram representados através de círculos, traços e
pontos e para as substâncias compostas ele combinava símbolos usados para os
átomos elementares. Para Nye (1996), a concepção de átomo de Dalton bem como a
sua representação possuía elementos do seu senso comum e componentes de um
realismo ingênuo.
Antes mesmo de Dalton publicar em 1808 a primeira parte do seu importante
livro “New System of Chemical Philosophy”, o escocês Thomas Thomson, influente
professor em Glasgow, iniciou a divulgação dessas idéias através da terceira edição do
seu importante livro, que foi traduzido rapidamente para o Francês como “Systéme de
Chimie” tendo introduzido o atomismo daltoniano na França.
As idéias de Dalton rapidamente se difundiram em revistas e livros científicos da
época, suscitando algum acolhimento e também muitas críticas. O grande problema foi
a sua ousadia ao penetrar na realidade dos constituintes elementares da matéria,
quando introduziu o conceito de peso atômico e, além disto, utilizou regras arbitrárias
para determinação destes pesos.
Neste período vários estudos já aconteciam envolvendo a estequiometria
química. Dalton tomou conhecimento da regra de Proust que sugeria que a combinação
em peso dos elementos acontecia segundo proporções definidas. Para estabelecer as
suas regras de combinação, ele levou em consideração o conhecimento já existente
sobre as proporções de combinações químicas.
186
Análise química e síntese não vão além da separação de partículas umas das outras,
e da sua reunião. Nem a criação ou destruição da matéria está ao alcance do agente
químico[...]. Em toda a investigação química justamente tem sido considerado um
importante objetivo para averiguação, os pesos relativos das unidades que constituem
um composto. Mas, infelizmente, a investigação tem terminado aqui; entretanto a partir
dos pesos relativos em massa, os pesos relativos das ‘últimas partículas’ ou átomos
dos corpos podem ter sido inferidos, dos quais seu número e peso em vários outros
compostos apareceriam, de forma a ajudar e guiar investigações futuras e a corrigir
seus resultados [...]. (Tradução nossa)
(DALTON,1808, p.123 apud MIERZECKI, 1991, p. 114 –5)
A oposição da comunidade química à hipótese atômica de Dalton esteve também
relacionada com a dificuldade de diferenciar adequadamente os conceitos de átomo e
molécula, inclusive pelo próprio Dalton.
6.7 A hipótese de Avogadro: possibilitando a relação entre o atomismo
daltoniano e a lei de Gay-Lussac
Em 1808, o químico francês Louis Joseph Gay-Lussac (1778 – 1850) enunciou
uma lei empírica sobre a relação dos volumes dos reagentes gasosos em uma reação
química12. Esta lei foi publicada em 1809, e apresentada a “Sociedade de Arcueil” por
Gay-Lussac, discípulo e amigo de Berthollet, uma vez que, ambos faziam parte desta
sociedade:
gases [. . .]combinam-se entre si em proporções muito simples, e a contração de volume
que eles experimentam durante a combinação também segue uma lei regular.
Compostos de substâncias gasosas umas com as outras são sempre formados nas
razões mais simples (nas proporções mais simples) e de forma que quando um dos
termos é representado pela unidade, o outro é 1 ou 2 ou no máximo 3 [...]. (Tradução
nossa)
(GAY LUSSAC, 1809 apud PARTINGTON, 1962, p.79)
12
Esta lei, conhecida como lei das combinações volumétricas de Gay-Lussac, é comumente formulada como: “os
volumes de gases que reagem uns com os outros ou são produzidos em uma reação química estão relacionados entre
si através de números inteiros e pequenos”.
187
Gay-Lussac não interpretou a sua lei usando as idéias atomistas já que ele e
Dalton não compartilhavam das mesmas idéias. Ele foi um grande experimentalista com
formação na École Polytechnique de Paris, tendo realizado grandes contribuições tanto
para a ciência pura quanto para a tecnologia industrial. O seu trabalho enquadrava-se
numa tradição empirista, comum no início do século XIX, que valorizava a medida de
propriedades mensuráveis a exemplo de volumes e equivalentes e depreciava a
aceitação de entidades não visíveis e hipotéticas como os átomos.
No trecho que se segue Thomas Thomson referindo-se aos opositores da teoria
atômica, deixa transparecer o comprometimento filosófico de alguns desses cientistas
(Davy, Wollaston), reconhecendo, no entanto, a dificuldade de utilização do atomismo e
das entidades hipotéticas na explicação de fatos e resultados experimentais:
A única alteração que ele [Davy] fez foi substituir proporções pela palavra átomo de
Dalton. Dr. Wollaston substituiu-a pelo termo equivalente. O objetivo destas
substituições foi evitar todo o comprometimento teórico. De fato, estes termos:
proporção, equivalente, são mais convenientes que o termo átomo; e a menos que
adotemos as hipóteses que Dalton apresentou, principalmente que as últimas partículas
dos corpos são átomos incapazes de divisões adicionais e que as combinações
químicas consistem na união destes átomos uns com os outros, nós perdemos toda a
nova luz que a teoria atômica lançou sobre a Química, trazendo nossas noções de volta
à obscuridade dos dias de Bergman e de Berthollet (THOMSON, 1830 apud NIAZ,
2001, p.247).
As divergências entre Dalton e Gay-Lussac revelam que o comprometimento de
alguns cientistas com questões filosóficas, políticas, econômicas ou culturais podem
interferir na postura científica adotada, dificultando até mesmo a aceitação de novos
conhecimentos científicos.
O trabalho de Gay-Lussac sobre a combinação gasosa serviu de base para que
o químico italiano Amedeo Avogadro de Quarenga (1776 – 1856) formulasse em 1811,
188
duas importantes hipóteses. Partindo dos resultados experimentais de Gay-Lussac, ele
questionou a possibilidade de interpretá-los usando a posição de Dalton sobre este
assunto que relacionava o volume dos gases e o números de moléculas nele contido,
em uma mesma condição de temperatura e pressão.
Neste trabalho, Avogadro introduziu as suas próprias idéias sobre a constituição
de moléculas. Ao escrever o seu texto original em francês, preferiu usar o termo
molécula em lugar de átomo para discutir o seu ponto de vista. Os dois termos eram
usados no início do século XIX, embora os significados atribuídos fossem diferentes
dos atuais (BELLO; SÁNCHEZ; RAMÓN, 2003). Na sua hipótese mais conhecida, ele
admitia que volumes iguais de gases diferentes nas mesmas condições de temperatura
e pressão continham o mesmo número de moléculas:
A primeira hipótese que se apresenta a esse respeito, e que parece mesmo a única
admissível, é supor que o número de moléculas integrantes num gás qualquer, é sempre
o mesmo a volumes iguais, ou é sempre proporcional aos volumes[...] (Tradução nossa)
(AVOGADRO, 1811 apud LEICESTER; KLICKSTEIN, 1952, p. 232).
Admitindo que as relações moleculares seriam iguais às relações de densidade
gasosa correspondentes e que podiam ser medidas empiricamente, Avogadro tentou
conciliar as idéias de Dalton e o trabalho de Gay-Lussac, não tendo sido bem sucedido
neste seu empreendimento. A aceitação desta hipótese implicava na diferenciação
entre os conceitos de átomo e molécula, o que se mostrou difícil de acontecer neste
período. A hipótese “mesmo volume-mesmo número” foi proposta também de modo
independente por André Marie Ampère (1775 – 1836) em 1814.
Considerando esta hipótese, Avogadro propôs um método para “determinar
facilmente as massas relativas das moléculas de substâncias que podiam passar para o
189
estado gasoso e o número relativo destas moléculas nas combinações”. Se volumes
iguais de gases contêm igual número de partículas, a relação entre as densidades dos
gases devia ser igual a relação entre as massas destas partículas. Avogadro usou esta
sua hipótese para estimar o número de átomos que formavam os diferentes compostos.
Aplicando as suas idéias no estudo de combinações químicas Avogadro
encontrou resultados que contradiziam aqueles obtidos por Dalton, a partir da sua regra
da máxima simplicidade. Ele questionou estas regras considerando-as “suposições
arbitrárias” recomendando que estas fossem substituídas, através do uso do raciocínio
fundamentado nas suas hipóteses.
Complementando a sua idéia, numa segunda hipótese Avogadro sugeriu que
substâncias simples pudessem ser formadas por moléculas poliatômicas.
[...] Mas um meio de explicar fatos deste tipo, em conformidade com a nossa hipótese se
apresenta de modo bastante natural. A saber, vamos supor que as moléculas
constituintes13 de qualquer gás simples não são formadas de uma molécula elementar
solitária, mas são feitas de um certo número dessas moléculas elementares, unidas por
atração para formar uma molécula única. E mais, supomos também que, quando
moléculas destas substâncias vão se combinar com moléculas de uma outra, para
formar a molécula de um composto, a molécula integral que se deveria formar se quebra
em duas ou mais partes... compostas da metade ou da quarta parte, etc...., do número
de moléculas elementares que formavam a molécula constituinte da segunda
substância. Assim sendo, o número de moléculas integrais do composto se torna o
dobro ou o quádruplo, etc...do que seria, caso houvesse a quebra da molécula integral e
passa a ser exatamente o número que é necessário para satisfazer o volume do gás
resultante (Tradução nossa)
(AVOGADRO, 1811, p.58 apud LEICESTER; KLICKSTEIN, 1952, p. 232).
13
O termo “molécula constituinte” foi usado por Avogadro para se referir às moléculas de substâncias elementares
(simples) e “molécula integral” referia-se a molécula de uma substância composta. O termo “molécula elementar”
era empregado para o átomo.
190
Esta segunda hipótese encontrou forte oposição, tanto de Dalton quanto de
Berzélius, que imaginavam que átomos iguais se repeliam, o que tornava impossível a
existência de partículas formadas pela combinação de átomos idênticos.
A importância das hipóteses de Avogadro só foi reconhecida em 1860
(BENSAUDE-VINCENT,
1997).
Caso
este
reconhecimento
tivesse
acontecido
imediatamente após a sua formulação, a distinção entre os conceitos de átomo e
molécula possivelmente teria acontecido anteriormente, antecipando a compreensão
das implicações do atomismo. Uma das causas da dificuldade de acolhimento do
trabalho de Dalton foi o seu não reconhecimento da importância e necessidade de
articulação das suas idéias atomistas com as contribuições de Gay-Lussac e Avogadro.
6.8 O atomismo na Física e na Química: pontos de vista diferentes
no século XIX
Embora a Química e a Física sejam hoje campos do conhecimento muito
próximos, no século XIX os interesses destas duas ciências eram, de certa forma,
distintos e mais específicos. Estas diferenças podem ser identificadas, por exemplo,
pelo modo como a teoria atômica clássica era usada neste período pelos físicos e
químicos.
A concepção de átomo que vigorava nas duas comunidades científicas não era
única. Muitas discussões sobre as vantagens e desvantagens destas concepções foram
travadas em vários encontros acontecidos no século XIX, a exemplo do Congresso
Internacional de Karlsruhe em 1860 e encontros como da London Chemical Society em
191
1869, da Académie des Sciences de Paris em 1877 e o de Lubeck na Alemanha em
1895.
Na Química, a idéia de átomo estava relacionada com a existência de elementos
químicos que seriam compostos de partículas que não podiam mais ser decompostas.
Edificada sobre bases empíricas (métodos químicos, analogias químicas, lei dos
calores específicos, isomorfismo), a teoria atômica tinha aceitação entre os químicos
devido a sua utilidade na determinação das fórmulas moleculares, possibilitando a
representação e quantificação das transformações químicas (NYE, 1996).
O átomo químico caracterizava-se por ter um único peso e grande parte da
química prática quantitativa fazia uso dos pesos atômicos. O influente e respeitado
químico Jöns Jacob Berzelius (1770 – 1848) usava a concepção atômica, tendo
determinado pesos atômicos que tinham credibilidade no mundo científico. Ele
considerava o átomo como uma entidade hipotética, visto que não era objeto de
inspeção direta; no seu livro “Lehrbüch der Chemie” apresentou o seu ponto de vista
reconhecendo o caráter hermético da hipótese atômica:
Isto é apenas uma hipótese e provavelmente permanecerá assim; porém, ela segue
elegantemente a partir dos fatos; e por outro lado, quando assumido ser fato, ela fornece
direções para importantes conclusões, como uma teoria que é completamente provada.
(Tradução nossa)
(BERZELIUS, 1843 apud BUCHDAHL,1960).
Em 1867, comentando sobre esta questão, outro importante químico August
Kekulé (1829 – 1896) expõe o seu modo químico de pensar, fazendo distinção entre a
menor porção da textura da matéria, o “átomo físico” e o “átomo químico” que, na
função de unidade química devia ser considerado como muito necessário a esta
ciência:
192
Eu não hesito em dizer que, de um ponto de vista filosófico, eu não acredito na
existência real de átomos, tomando a palavra no seu significado literal de partículas
indivisíveis de matéria. Eu prefiro esperar que nós possamos algum dia encontrar,
para o que nós agora chamamos átomos, uma explicação mecânico-matemática para
o peso atômico, a atomicidade e numerosas outras propriedades dos chamados
átomos. Como químico, porém, eu recomendo a suposição de átomos, não apenas
como recomendável, mas como absolutamente necessária à química. Eu irei até mais
longe, e declaro minha crença de que átomos químicos existem, de modo que o termo
seja compreendido para denotar aquelas partículas da matéria que não possam ser
submetidas a divisões posteriores em metamorfoses químicas. Deverá o progresso da
ciência levar à uma teoria da constituição de átomos químicos, importante tal como um
conhecimento poderia ser para a filosofia geral da matéria, isto seria apenas uma
pequena alteração na própria química. O átomo químico permanecerá sempre a
unidade química (Tradução nossa)
(KEKULÉ,1867 apud MIERZECKI, 1991, p.129).
Alguns químicos contudo, apresentaram um comportamento controvertido sobre
o atomismo como Jean Baptiste André Dumas (1800-1884), influente químico francês,
que inicialmente aceitou as idéias de Dalton mas, posteriormente, passou a desconfiar
da sua validade em função das dificuldades operacionais encontradas, quando passou
a utilizar o atomismo daltoniano na interpretação dos seus resultados empíricos. No
trecho a seguir extraído de uma publicação feita em 1836 ele manifesta o seu ponto de
vista sobre esta teoria:
O que nos resta da excursão ambiciosa que nos permitimos na região dos átomos?
Nada ou pelo menos nada de necessário. O que nos resta é a convicção de que a
química se perdeu aí, como sempre quando abandonando a experiência, quis
caminhar sem guia através das trevas. Com a experiência à mão encontrareis os
equivalentes de Wenzel, os equivalentes de Mitscherlich, mas procurareis em vão os
átomos tal como a vossa imaginação os sonhou [...]. Se eu fosse o mestre, apagaria a
palavra átomo da ciência, persuadido que ele vai mais longe que a experiência; e na
química nunca devemos ir mais longe que a experiência. (Tradução nossa)
(DUMAS, 1836 apud BENSAUDE-VINCENT; KOUNELIS, 1991, p.142).
Usando a hipótese de Avogadro e assumindo a existência de espécies
diatômicas, Dumas determinou as densidades do vapor de certas substâncias
193
elementares para calcular os seus pesos atômicos. Os resultados obtidos revelaram
curiosas anomalias para o mercúrio, enxofre e fósforo14.
Os pesos atômicos calculados não correspondiam aos valores obtidos por
pesquisadores conceituados como Berzelius. As dificuldades encontradas levaram
Dumas a pensar que era impossível determinar o número real de átomos envolvidos
numa reação química. Ele passou a duvidar da existência do átomo como uma partícula
real, aceitando apenas o seu caráter lógico, imaginando os átomos apenas como
construtos hipotéticos.
Segundo Buchdahl (1960), os questionamentos de Dumas sobre o atomismo
químico se apresentavam no nível fenomenológico. O uso do termo átomo era muito
mais perigoso do que os termos volume ou equivalente, em função de suas implicações
teóricas não serem objeto de verificação empírica imediata ou não estarem de acordo
com o corpo de conhecimento químico e físico que vigorava naquele período. Embora o
átomo fizesse parte do discurso científico vigente, esta entidade encontrava dificuldade
para adquirir o estatuto de realidade.
Rocke (1978) considera que os conflitos sobre o atomismo principalmente na
Química, não decorreram de divergências envolvendo aspectos científicos ou
metafísicos da questão mas de dificuldades semânticas principalmente do fracasso em
se definir precisamente certos termos. Durante as duas primeiras décadas do século
XIX, os químicos tinham a sua disposição um certo número de princípios e regras para
determinar os pesos atômicos mas, na linguagem da estequiometria química percebiase divergências relacionadas aos diferentes termos usados como: átomos, equivalente
e proporções.
14
Hoje sabemos que estas espécies químicas são poliatômicas: P4, S6, Hg(n)
194
Na Física a idéia de átomo decorreu inicialmente da teoria dinâmica do calor que
foi retomada e muito debatida na primeira metade do século XIX. Os átomos eram
imaginados como partículas inelásticas ou pontos inerciais, submetidos a forças
atrativas e repulsivas que agiam tanto dentro dos átomos como no meio entre as
partículas.
Esta estrutura discreta do mundo microscópico era utilizada para descrever
outros fenômenos como a luz. Modelos mecânicos, considerando átomos como pontos,
eram usados para descrever também o éter, um fluido imponderável que alguns
cientistas presumiam que era também composto de tais corpos, átomos de éter.
O atomismo na Física era uma hipótese que despertava grande oposição em
virtude de se apoiar em suposições mecânicas sobre a natureza íntima das
substâncias. Um outro impasse estava relacionado, como veremos posteriormente, a
aspectos epistemológicos desta questão, debatida na comunidade científica sob forte
influência de escolas de pensamento originadas na França, no século XVIII, mas ainda
influentes no cenário científico do século XIX.
Evidências que apontavam para uma identidade envolvendo os dois tipos de
atomismo foram se acumulando durante o século XIX, levando a um conceito de átomo
comum à Química e à Física. No entanto, a oposição ao atomismo que aconteceu neste
período ignorava estas singularidades dos dois pontos de vista e o ataque ao atomismo
físico por associação era estendido ao químico (ROCKE, 1984).
195
6.9 A física francesa no século XIX: questões epistemológicas subjacentes
No início do século XIX, a física francesa era bastante respeitada em vários
países; nomes como o de Laplace mereciam grande reverência e alta credibilidade. As
idéias de grupos de cientistas franceses repercutiam em outros países europeus. Na
França se desenvolveram dois tipos de propostas metodológicas de investigação
científica que tiveram como questão central a explicação sobre constituição atômica da
matéria (VIDEIRA, 1993).
Uma primeira proposta era defendida pela escola laplaciana que teve como
grandes representantes Laplace e Siméon Denis Poisson (1781-1840). Estes cientistas
consideravam importante incorporar às teorias, hipóteses sobre a constituição dos
átomos. Estas idéias incorporavam elementos que podiam ser enquadrados dentro de
uma concepção realista e ficaram conhecidas como visão astronômica ou molecular da
natureza porque procuravam aplicar aos fenômenos microscópicos a teoria da
gravitação de Newton, que explicava precisamente fenômenos macroscópicos.
Laplace e Poisson preocupavam-se com o vínculo entre a linguagem matemática
utilizada nas teorias e a física subjacente, inclusive os mecanismos específicos dos
fenômenos e os modelos mecânicos usados. A matemática era vista como um
instrumento capaz de provocar o encadeamento dos fatos, não possuindo qualquer
potencial heurístico (ABRANTES, 1998, p.168).
Em relação a este assunto, no trecho a seguir extraído do seu Traité de
Mécanique (1811), Poisson critica a teoria de Fourier explicitando o seu ponto de vista:
196
A aplicação da análise matemática a questões de Física é baseada, em cada caso, num
certo número de leis obtidas a partir da observação ou, na sua ausência, em hipóteses
que se deseja verificar. O cálculo matemático não tem nenhuma participação nessas
suposições. Ele serve somente para desenvolver suas conseqüências na maior medida
possível e, consequentemente, ele oferece o melhor método para comparar teorias com
resultados experimentais, de todos os pontos de vista.
(ARNOLD, 1983 apud ABRANTES, 1998, p.168).
Outra escola francesa negava qualquer afirmação ou mesmo especulação sobre
a realidade dos átomos, possíveis constituintes da matéria. Esta visão “fenomenológica”
era defendida pelo matemático francês Jean Baptiste Joseph Fourier (1768-1830) e
colaboradores, para quem os átomos ou as possíveis forças existentes entre eles não
possuíam qualquer valor cognitivo, pois não eram passíveis de observação. A mecânica
analítica ou racional do século XVIII era o modelo que inspirava este grupo de
investigadores (VIDEIRA, 1993).
Os adeptos destas idéias defendiam que o verdadeiro objetivo de uma teoria
física era procurar reduzir os problemas físicos à análise matemática; não haveria
necessidade, portanto, da formulação de hipóteses relativas à constituição dos corpos
ou de modelos atômicos e mecânicos. Caberia a uma boa teoria científica descrever o
que era sensorialmente observado; os conceitos teóricos seriam fictícios e teriam
utilidade por facilitarem os cálculos matemáticos.
O pensamento científico francês influenciou, também, um grupo de físicos
britânicos que defendiam uma proposta diferenciada, uma vez que, recusavam a idéia
de reduzir a física à análise matemática; faziam parte deste grupo cientistas como
James Clerk Maxwell (1831-1879) e William Thomson (1824-1907). Eles defendiam o
uso cauteloso de hipóteses moleculares e de modelos mecânicos, que deveriam ter um
conteúdo físico obtido a partir da experiência. Sob este aspecto, as teorias físicas não
197
eram reproduções exatas dos fenômenos da natureza, mas representações destes
fenômenos. Este pensamento admitia que as teorias deveriam ser compreendidas
como instrumentos que permitissem aos cientistas fazerem relações e previsões sobre
manifestações de fenômenos naturais observáveis.
A determinação do estatuto de uma teoria científica e a redefinição de uma teoria
física implicava na necessidade de se debater questões mais amplas como o conceito
de teoria científica e seus objetivos, o meio que ela dispõe para alcançar seus objetivos,
o papel das hipóteses e da experimentação, a separação entre ciência e metafísica
(VIDEIRA,1997b). As divergências entre as comunidades científicas sobre o papel que
a matemática deveria desempenhar na Física e sobre o verdadeiro papel das
hipóteses, das teorias e dos modelos mecânicos eram preocupações manifestadas
pelos físicos do século XIX.
6.10 Atomismo e Equivalentismo: convergências e divergências
O “atomismo químico” começou a se concretizar em 1808 com a publicação da
primeira edição da obra de Dalton: New System of Chemical Philosophy. De acordo
com Brock (1992), neste livro de 916 páginas, apenas um capítulo contendo cinco
páginas foi dedicado a esse tema que se tornou tão importante para a História. Em
1810, Dalton publicou a segunda parte desse livro que foi paginada como continuação
do anterior e a terceira parte, preparada como um segundo volume só foi publicada em
198
1827. Mesmo assim, o seu projeto ficou incompleto, uma vez que, ele não publicou a
parte final prometida que seria sobre “compostos complexos”15.
Entre 1810 e 1814, as idéias de Dalton passaram a ser amplamente discutidas.
Importantes químicos como Humpry B. Davy, Thomas Thomson, William H. Wollaston e
Jöns J. Berzelius propuseram pesos atômicos alternativos aqueles que tinham sido
determinados por Dalton.
O atomismo químico fundamentava-se na idéia de que os corpos eram formados
por um conjunto de átomos homogêneos; átomos de elementos diferentes possuíam
massas distintas. A base conceitual do atomismo químico era a relação entre as leis de
combinações químicas, os pesos atômicos relativos determinados e o esquema teórico
utilizado para explicá-los. Na realidade, como não era possível se obter informações
microscópicas sobre as características dos compostos químicos, a certeza sobre o
número de átomos destes compostos não era ainda possível. Esta era uma questão
central para o cálculo de pesos atômicos, portanto, os valores desses não podiam ser
conhecidos com precisão.
Uma importante lei de combinação química, conhecida como “Lei de Richter” é a
das proporções equivalentes ou dos números proporcionais. Richter fez uso de
quantidades equivalentes, embora nunca tenha usado este nome explicitamente. O
título do seu trabalho “Stoichiometry” foi assim justificado por ele:
Desde que a parte matemática da química diz respeito na maior parte a corpos
elementos que não podem ser decompostos, e nos ensina como determinar
relações quantitativas entre eles, eu não poderia inventar para esta disciplina
ciência um nome mais conciso e apto que a palavra estequiométrico, proveniente
15
ou
as
da
de
O termo composto complexo passou a designar posteriormente, a partir do trabalho de Werner (1893), uma classe
de compostos de coordenação.
199
‘stocheion’, que em grego significa algo que não pode ser posteriormente dividido, na
medida em que significa encontrar relações quantitativas (p. XXIX). Esta razão é
baseada na seguinte observação: dois sais neutros que se decompõem um no outro
formam combinações neutras novamente. A conclusão direta que eu derivei a partir
disto não poderia ser outra a não ser aquela (que enuncia) que relações quantitativas
definidas têm que existir entre as partes constituintes de sais neutros. (Tradução
nossa)
(RICHTER, 1792, p.3 apud MIERZECKI, 1991, p.106-7).
A lei dos equivalentes pode ser expressa de forma simplificada como: “ o peso
de dois elementos que reagem com um peso definido de um terceiro elemento, reagirão
entre si de acordo com razões de números inteiros e pequenos. Para todas as reações
químicas podem ser obtidos empiricamente valores numéricos dos pesos equivalentes
que correspondem às proporções dos pesos de combinação relativos das substâncias
envolvidas.
Esta definição de equivalente de um elemento químico pressupõe três
importantes características: são calculados empiricamente e obtidos diretamente dos
dados analíticos; os pesos equivalentes dependem do composto analisado e a maioria
dos elementos admite diferentes valores calculados para um mesmo elemento; os
pesos equivalentes de um dado elemento podem ser numericamente iguais ao peso
atômico ou a submúltiplos destes.
O termo equivalente, que já havia sido introduzido no século XVIII por Henry
Cavendish (1731-1810), foi retomado por J. B. Richter e popularizado por William Hyde
Wollaston (1766-1828) em um importante artigo publicado em 1814, “A synoptic scale of
chemical elements”. Ele usou este conceito de modo inovador propondo um único
equivalente para cada elemento (ROCKE, 1984).
As quantidades calculadas por Wollaston eram operacionalmente idênticas aos
pesos atômicos e obtidas diretamente como pesos de combinações químicas ou pesos
200
proporcionais. Ele usou como padrão para os cálculos o elemento oxigênio que teve
arbitrariamente atribuído ao seu peso equivalente o valor de cem. Diferentes elementos
foram usados como padrão para estes cálculos por outros investigadores e o valor
atribuído variava conforme o investigador.
Em suas publicações iniciais Wollaston se mostrou fortemente atomista, no
entanto,
considerava
que
a
teoria
atômica
de
Dalton
postulava
entidades
desnecessárias cujos pesos eram arbitrariamente obtidos e cujos arranjos eram
inacessíveis. Lentamente, Wollaston percebeu que deveria distinguir entre os dados
empíricos obtidos das leis de combinações químicas e os modelos que poderiam ser
utilizados nas explicações destes dados (BROCK; KNIGHT, 1965).
Os estudos realizados por Wollaston o levaram a se afastar do atomismo
daltoniano e a propor a substituição dos pesos atômicos por pesos equivalentes nos
cálculos químicos. O conceito de equivalente químico proposto exibia todas as
características do peso atômico, a exemplo da invariância, do mesmo modo de
determinação sob o ponto de vista operacional e da sua utilização para deduzir
fórmulas e pesos moleculares.
No entanto, existia uma diferença ontológica entre os dois tipos de pesos:
atômicos de Dalton e os equivalentes de Wollaston. Dalton fez determinações de pesos
a partir de fórmulas que embora tivessem sido propostas arbitrariamente eram
consideradas como sendo muito prováveis. Wollaston, por outro lado, considerava as
suas fórmulas como uma convenção, que obedecia a critérios de simplicidade e
conveniência, mas que não implicavam em correspondência no âmbito da realidade
molecular.
201
Rocke (1984) considera que estes dois pontos de vista representam posições de
conflito entre realistas e convencionalistas no âmbito do atomismo químico. Este
historiador considera que estes dois grupos tinham muito em comum já que definiram
pesos invariantes para os elementos químicos, visando explicar os dados empíricos
obtidos nas combinações. Outra idéia compartilhada era a crença na existência de
unidades de construção da matéria e a utilização desta idéia para explicar a formação
dos compostos; portanto ambos eram químicos que aceitavam uma visão corpuscular
da matéria.
Comentando sobre esta questão, Goodman (1969) registra a crítica feita por
August Comte (1798-1857) sobre o trabalho de Wollaston publicado em 1814. Comte
considerava que a troca de átomos para equivalentes implicava não mais do que em
um mero artifício de linguagem, no entanto idéias corpuscularistas eram identificadas
nos dois pontos de vista. “O químico deixava escapar uma análise perspicaz e
sucumbia a uma substituição lingüística”(COMTE, 1842 apud GOODMAN, 1969, p.45),
quando a hipótese atômica estava em questão.
Na primeira metade do século XIX, os termos equivalente de Wollaston e peso
atômico de Dalton foram usados muitas vezes como sinônimos. O importante químico
Humphrey Davy (1778-1829) preferiu usar o termo “números proporcionais” e Berzelius
usou o termo “volumes proporcionais” com a mesma significação dos outros dois.
Através do trabalho de Wollaston que tinha maior prestígio acadêmico do que Dalton,
Berzelius tomou conhecimento do atomismo daltoniano. Considerando as idéias
atomistas, ele realizou inúmeras análises químicas tanto para determinar as massas
atômicas de cada elemento quanto para obter valores para esta grandeza com maior
exatidão.
202
Entre 1808 e 1860, os químicos utilizaram indiferentemente os termos átomos,
equivalentes e proporções e discutiam, também, questões metafísicas relativas à
divisibilidade da matéria. Os debates envolvendo atomistas e equivalentistas estiveram
presente nos principais países da Europa. Este período é chamado por alguns
historiadores da Química, a exemplo de Papp e Prelat (1950) de “intervalo
equivalentista”, caracterizando-se pelo uso do peso equivalente ou equivalente químico
como suporte experimental na interpretação quantitativa das reações químicas e na
menor valorização dos pesos atômicos.
Segundo Bensaude-Vincent e Stengers (1992, p.164), “o retrocesso sobre os
equivalentes foi acompanhado de uma desconfiança em relação aos métodos físicos e
de um abandono categórico das pretensões realistas na química”.
Um encontro internacional parecia ser o local ideal para se tentar estabelecer um
acordo sobre as divergências conceituais em questão. Assim foi programado um dos
mais importantes encontros de químicos, o primeiro congresso internacional científico
desta área.
6.11 O congresso de Karlsruhe e a procura de entendimento
Este encontro aconteceu no mês de setembro de 1860 em Karlsruhe, Alemanha,
com a presença de cento e vinte e nove químicos pertencentes a doze países. O
principal objetivo era encontrar uma posição consensual de uma comunidade em
expansão.
As divergências entre atomistas e equivalentistas se agravou com o crescimento
das investigações em Química Orgânica. As teorias usadas para explicar a formação de
203
compostos orgânicos admitia uma arquitetura molecular fixa, onde era possível a troca
de um átomo por outro ou por um grupo de átomos, o radical. Apesar das dúvidas sobre
a realidade dos átomos, alguns químicos orgânicos tentavam fazer representações dos
compostos conferindo-lhes uma dimensão espacial e sugerindo sua realidade.
Neste período, uma parte da comunidade dos químicos, em especial os
orgânicos, já utilizava a notação baseada na hipótese de Avogadro que considerava
possível a existência de moléculas formadas por átomos iguais. Esta possibilidade não
estava de acordo com a teoria dualista desenvolvida por Berzelius que considerava que
as combinações químicas aconteciam entre átomos ou grupos de átomos de naturezas
e cargas opostas; os constituintes atômicos das moléculas eram mantidos juntos por
forças de natureza elétrica (teoria dualista).
As divergências teóricas também foram acompanhadas do uso de diferentes
sistemas de medidas das massas, entre eles os pesos atômicos de Berzelius (C=12;
O=16), o sistema francês de pesos atômicos (C=3, O=8) e o dos equivalentes adotados
por Wollaston e Gmelin (C=6, O=8) (BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992).
A confusão nos valores utilizados dos pesos atômicos ou equivalentes era
acompanhada de divergências nas notações utilizadas para as fórmulas químicas e nas
definições discordantes de vários termos da linguagem química. Um mesmo composto
como o ácido acético podia ser escrito utilizando-se dezenove fórmulas químicas
diferentes, o que não era surpreendente no contexto da época.
Duas outras importantes questões foram colocadas para serem debatidas.
Primeiro a diferença dos conceitos de átomo e molécula; este entendimento poderia
esclarecer o fato das moléculas poderem se dividir em reações químicas. Outra questão
204
era a discussão sobre a necessidade de se buscar uma convergência entre o atomismo
químico e o físico.
A idéia do encontro partiu de August Kekulé que planejou trazer para serem
debatidos importantes aspectos da química daquele período. Para realização do evento
ele contou, em especial, com a ajuda do francês Charles Adolphe Wurtz (1817-1884) e
do alemão Karl Weltzien professor da Escola Politécnica de Karlsruhe.
Wurtz foi um dos grandes defensores do atomismo na França onde se opunha às
idéias do influente Marcelin Pierre Eugène Berthelot (1827 – 1907) com o qual travou
grandes debates. A ascendência de fatores políticos e sociais nos rumos da ciência é
evidente neste episódio. Berthelot se destacou também como político tendo ocupado
importantes cargos públicos a exemplo de Ministro da Instrução Pública, em 1886. A
sua presença no governo possibilitou a sua ação no sentido de afastar os atomistas que
ocupavam alguns postos importantes no meio governamental e a adoção da notação
equivalentista na França, até mesmo no tempo em que os físicos já se ocupavam com a
caracterização do elétron (PIGEARD, 1997).
Em 1869, nas publicações da importante revista de divulgação científica “Le
Bulletin” da Sociedade Química de Paris, registrava-se 25 estrangeiros e 23 franceses
que utilizavam a notação equivalentista contra 191 estrangeiros e 22 franceses que
utilizavam a notação atomista. Dos 22 atomistas, metade deles (onze) eram alunos de
Wurtz (PIGEARD, 1997, p.64).
Na circular que foi enviada aos congressistas foram delineados os principais
objetivos deste encontro:
205
O grande desenvolvimento que teve a química nesses últimos anos e as divergências
manifestadas nas opiniões teóricas, tornaram oportuno e útil a realização de um
congresso, tendo como objetivo a discussão de algumas questões importantes do ponto
de vista dos progressos futuros da ciência.Tal assembléia não saberia tomar résoluções
ou déliberações obrigatórias para todos, mas, através de uma discussão livre e
aprofundada, ela poderia acabar com certos mal-entendidos e facilitar um entendimento
comum, a respeito de alguns dos seguintes pontos:
™
Definição de noções químicas importantes, como as que são exprimidas pelas
palavras: átomo, molécula, equivalente, atômico, básico.
™
Exame da questão dos equivalentes e das fórmulas químicas.
™
Estabelecimento de uma notação e de uma nomenclatura uniforme
(Tradução nossa)
(NYE, 1984, p.633-634).
Durante o evento predominaram as rivalidades entre os congressistas de
diferentes nacionalidades e a dificuldade de entendimento. Os químicos franceses
adotaram uma atitude conservadora na defesa do equivalentismo e os químicos
alemães mostraram-se mais abertos e progressistas. Bensaude-Vicent (1997)
considera que o Congresso de Karlsruhe marcou a bifurcação da química alemã e da
francesa que optaram por percursos teóricos diferenciados. A opção dos alemães pelo
atomismo facilitou o desenvolvimento da química estrutural e dos estudos de
estereoquímica, base da construção de um império industrial que se apoiou na
exploração da arquitetura molecular dos compostos orgânicos.
O uso da ciência pura e aplicada para a fabricação de artefatos, no
desenvolvimento de técnicas mais elaboradas e na própria organização de atividades
humanas consolidou a utilização da moderna tecnologia com base científica que se
apoia em conhecimentos e instrumentos criados pela pesquisa. Esta maior
aproximação entre ciência e tecnologia foi um dos importantes legados do século XIX;
a interação entre o cientista e o industrial tornou-se cada vez mais evidente e
planejada. A incorporação da ciência ao sistema produtivo foi um dos pilares de
sustentação da revolução industrial, especialmente na sua segunda fase.
206
A participação do químico italiano Stanislao Cannizzarro (1826-1910) no
encontro de Karlsruhe foi decisiva para que antigas dúvidas fossem resolvidas. Ao final
do Congresso, distribuiu-se entre os participantes, um artigo de sua autoria “Sunto di
um Corso di Filosofia Chimica”. Este artigo trazia esclarecimentos sobre a diferença
entre os conceitos de átomo e molécula, tendo retomado as idéias de Avogadro
necessárias para que esta distinção acontecesse. Um outro aspecto foi a sua defesa da
importância do peso atômico como propriedade fundamental para os cálculos
estequiométricos.
Após este evento ainda aconteceram várias tentativas para se chegar a um
acordo sobre a definição dos pesos atômicos e a sua notação; no entanto discussões
ainda ocorreram, pois alguns ilustres anti-atomistas como Marcelin Berthelot, mesmo
diante de evidências em favor da hipótese atômica, recusavam a existência de átomos
e continuaram fazendo uso das fórmulas obtidas com base nos pesos equivalentes.
Esta grande resistência foi responsável pelo fato da notação atomista ter encontrado
dificuldades de ser aceita na França e incorporada ao ensino de química nesse país.
Os átomos se fizeram presentes nos manuais escolares franceses a partir de
1894; no entanto até o ano de 1930, estes manuais ainda usavam a designação
hipótese atômica e não teoria atômica (PIGEARD, 1997, p.65). Muitos livros
apresentavam o átomo como um termo “cômodo” que possibilitava uma linguagem útil
para exprimir diversos resultados experimentais, no entanto a existência dos átomos
não era reconhecida.
O atomismo continuou sendo uma importante questão que mobilizou outros
importantes encontros envolvendo a comunidade de químicos e físicos ainda no século
207
XIX como o da Chemical Society de Londres em 1869, o da Academie des Sciences de
Paris em 1889, o Encontro de Genève em 1892, a Conferência de Luebeck em 1895.
Uma importante conseqüência do encontro de Karlshure foi a ascensão da teoria
da valência, que levaria a uma transformação no conceito de equivalente químico. A
descoberta de que os átomos tinham definidas e limitadas capacidades de combinação
com outros átomos, parecia indicar que o poder de combinação estava de algum modo
localizado em diferentes partes do átomo. Esta hipótese originou especulações sobre a
possibilidade de uma estrutura interna subatômica contendo regiões onde se
localizavam o poder e a força do átomo (ROCKE, 1984).
A hipótese de átomos contendo agregações de subátomos monovalentes foi
apresentada; esta concepção promoveu uma visualização conveniente da valência e da
equivalência. A valência seria o número de subátomos em um átomo, sua atomicidade
e o equivalente seria o peso de um subátomo (ROCKE, 1984). A definição de
equivalente passou a ser “o peso atômico dividido pela valência”; uma forma utilizada
pelos livros didáticos de química para apresentarem esta definição até recentemente.
Outra importante conseqüência do Congresso de Karlsruhe (1860) foi a lei
periódica dos elementos químicos. O próprio Dimitr Ivanovich Mendeleev (1834 – 1907)
reconheceu que as duas definições de átomo e molécula, ‘votadas’ no primeiro dia do
Congresso, foram as mensagens principais deste encontro que preparou o terreno da
sua descoberta e proporcionou a sua principal conseqüência: a tabela periódica
(BENSAUDE-VINCENT, 1997).
Os congressistas não tinham a intenção de se pronunciar sobre a existência dos
átomos ou das moléculas. O átomo era considerado uma hipótese indispensável para
208
se fazer a Química, no entanto, o seu “status” como uma entidade física nos compostos
era considerada uma questão metafísica cuja discussão não era de interesse imediato.
Em Karlsruhe não se observou um enfrentamento entre equivalentistas idealistas
ou positivistas e atomistas realistas. Aceitava-se consensualmente que os átomos e as
moléculas eram absolutamente necessários à Química, mesmo considerando-os como
hipotéticos. Nesta ocasião, o objetivo dos químicos era se posicionar defendendo o seu
ponto de vista que era diferente dos físicos. A reação contra o realismo ingênuo dos
modelos mecânicos do átomo, uma atitude convencionalista ou instrumentalista viria a
acontecer posteriormente (BENSAUDE-VINCENT, 1997).
Em meados do século XIX, a Química já tinha adquirido uma identidade que a
distinguia de outros campos experimentais, em parte devido à influência da teoria
atômica de Dalton sobre as investigações químicas e da maior atenção dada à química
orgânica e seus compostos. Conceitos químicos específicos, que se diferenciavam de
conceitos usados em outras ciências físicas foram formulados.
6.12 O programa atomista: fomentando discussões epistemológicas
A influência dos debates entre continuístas e atomistas esteve presente na
História das Ciências Naturais, a Física e a Química desde a antigüidade grega. Nestes
debates observa-se que os cientistas foram também motivados por princípios
metafísicos, muito embora nem sempre os reconheça como tais. Tais princípios se
manifestaram, por exemplo, na forma de certas hipóteses formuladas que muitas vezes
não eram empiricamente testáveis.
209
A hipótese atômica foi uma das mais desafiadoras e importantes entre as que
surgiram na história da humanidade. No século XIX, esta hipótese assumiu diferentes
funções ou papéis, em um mesmo momento ou em ocasiões variadas, envolvendo
diversas comunidades que a compartilhavam.
Examinando esta questão no período correspondente à segunda metade do
século XIX, Nye (1976) detectou os seguintes papéis para a hipótese atômica: um
primeiro papel de hipótese heurística, que não tem uma existência verificável, mas
capaz de sugerir novos experimentos, novas observações e informações que devem se
articular com o seu programa de pesquisa. Neste papel ela foi meramente um
instrumento ou ferramenta. No desenvolvimento da química orgânica este foi o principal
papel desempenhado pela hipótese atômica.
Uma segunda possibilidade é a hipótese funcionar como um dispositivo histórico
ou pedagógico, ou seja, desempenhar um papel expositivo ou exemplar; neste caso a
sua comprovação empírica não é particularmente importante. No século XIX, a hipótese
atômica, principalmente para a comunidade química, assumiu este papel e estimulou
pesquisas que visavam inclusive a sua contestação.
A terceira opção é a hipótese assumir um papel realista, adquirindo uma
importância existencial ou real e podendo ser verificada experimentalmente, seja de
modo direto ou indireto. Este foi o mais importante papel que a hipótese atômica
almejou no século XIX.
No debate envolvendo o atomismo, muitas críticas foram colocadas quanto ao
papel desempenhado pela hipótese atômica, considerada pelo importante físico Henri
Poincaré (1854-1962) como uma hipótese indiferente, que não cabia ser validada nem
invalidada (NYE, 1976).
210
No século XIX, existiam três alternativas disponíveis para substituir o programa
atômico: o uso de conceitos decorrentes de uma abordagem homogênea e contínua da
matéria como era feito na hidrodinâmica; o uso dos equivalentes e volumes
proporcionais como uma alternativa quantitativa de uma Química pautada numa
metodologia positivista e o estabelecimento de leis da Físico-Química fundamentadas
na energia. Esta última alternativa se desenvolveu com grande sofisticação a partir de
1860 (NYE, 1976).
As idéias de átomo e molécula eram necessárias tanto às teorias físicas quanto
às químicas; não era possível, no entanto, medidas diretas de grandezas como: peso,
comprimento e número de átomos em um certo volume. Esta dificuldade foi usada para
justificar a não aceitação da realidade dos átomos pelos anti-atomistas. As informações
possíveis de serem obtidas sobre os átomos e as moléculas eram relativas e baseadas
em medidas estatísticas. O átomo ainda carecia de provas empíricas para adquirir uma
maior credibilidade.
6.13 Alternativas ao atomismo na Física
Na segunda metade do século XIX, a visão mecanicista de mundo esteve sobre
ataque e o atomismo físico, como parte constitutiva da mecânica clássica também era
muito criticado. Duas promissoras alternativas de investigação se apresentavam na
Física para substituí-la. Uma delas fundamentava-se na Teoria Eletromagnética de
Maxwell, que relacionava eletricidade, magnetismo e luz através de equações
matemáticas. Dentro desta visão, alguns teóricos inferiam que a realidade física era
constituída do éter eletromagnético e de partículas elétricas que podiam ser redutíveis
211
para as propriedades do éter. A concepção de éter da Física contribuiu muito mais para
a divisão do que para a unificação dos problemas da Física e da Química (NYE, 1996,
p. 50).
A concepção dinamicista da matéria inerente à visão eletromagnética do mundo
e as pesquisas que ela suscitou, influenciaram importantes cientistas como William
Thomson (1824-1907), conhecido como Lord Kelvin, e a sua teoria dos “átomos
turbilhões” que incluía um modelo de átomos “vórtex”. Este modelo baseava-se na
idéia do engenheiro escocês William John Macquorn Rankine (1820 – 1872) que, em
um trabalho publicado em 1850, delineou a sua concepção de átomo:
Cada átomo da matéria consiste de um núcleo, ou ponto central, envolvido por uma
atmosfera elástica que está retida na sua posição por forças atrativas, e a elasticidade
devida ao calor surge da força centrífuga destas atmosferas, revolvendo ou oscilando ao
redor de seus núcleos ou pontos centrais. (Tradução nossa)
(RANKINE, 1850 apud LAIDLER, 1993, p.140).
Em 1867, W. Thomson desenvolveu uma teoria baseada nos trabalhos de
Helmholtz relativos aos movimentos em turbilhão nos fluidos homogêneos e
incompressíveis e na dinâmica do éter; os átomos eram concebidos como um tipo
especial de movimento rotatório (vortical modes) de um fluido primitivo e perfeito
geralmente identificado com o éter homogêneo que preenchia todo o espaço; a matéria
seria apenas o “modo de movimento”. O átomo resultante apresentava-se como uma
espécie de turbilhão tubular formando um anel (SILLIMAN, 1963).
Thomson reconhecia na sua teoria um aprofundamento da teoria cinética dos
gases, capaz de explicar fenômenos relacionados com a elasticidade e a
espectroscopia. Esta teoria foi desenvolvida posteriormente pela escola de físicos-
212
matemáticos britânicos que tentaram ampliá-la para explicar também problemas
químicos como afinidade e dissociação. Os químicos, no entanto, não deram muita
atenção a essa teoria, considerando-a muito especulativa. Em 1895, o programa
“vortex” já estava em degenerescência tendo sido abandonado pela maioria dos físicos.
A visão eletromagnética de mundo entrou em declínio no início do século XX com o
surgimento de teorias competidoras mais eficazes (KRAGH, 1999).
6.14 O energeticismo
Na segunda metade do século XIX, identificava-se duas principais orientações da
corrente fenomenológica: o energeticismo e a fenomenologia de fundamento físicomatemático16. Ambas as orientações condenavam o emprego de hipóteses arbitrárias e
de entidades não observáveis como impulsionadoras ou constituintes de teorias. Os
fenomenologistas não admitiam que uma teoria física pretendesse explicar a realidade,
o que implicaria em um desvelamento das essências e tal procedimento não poderia
ser submetido ao controle da experiência (VIDEIRA, 1994, 1997b).
Um importante representante da filosofia anti-mecanicista foi Ernst Mach (18381916), cujas idéias fundamentavam-se em princípios positivistas, muito difundidos neste
período; nos países de língua germânica esta escola filosófica tornou-se conhecida
como empiro-criticismo.
16
Videira atribui esta denominação a Boltzmann. Os termos fenomenologista e fenomenólogo são utilizados por este
autor como sinônimos, neste trabalho, mesmo ele reconhecendo que a segunda denominação é comumente usada
para identificar os adeptos da tese do filósofo E. Husserl. A minha opção foi pelo uso do termo fenomenologista.
213
Segundo Nye (1984), Mach que além de físico foi historiador e filósofo era um
“fenomenologista”, cujas idéias exerceram grande influência tanto na geração de físicos
mais jovens, incluindo Max Carl Ernst Planck (1858 – 1947) e Albert Einstein (1879 1955), como nos princípios que fundamentavam o positivismo lógico do Círculo de
Viena. Na passagem do século XIX para o XX, Mach debatia sobre a possível realidade
dos átomos com Planck defendendo a idéia de se considerar os átomos meramente
como símbolos para representação dos fenômenos; a existência destas entidades
como partículas que tivessem uma existência real não era admitida, uma atitude
convencionalista (MATTHEWS, 1994).
Uma segunda importante linha de investigação que se constituiu como
alternativa ao atomismo foi o energeticismo ou energismo, fundamentado no conceito
de energia e em alguns princípios. Este novo programa de pesquisa originou-se com o
desenvolvimento da termodinâmica, considerada como uma teoria fundamental que não
necessitava de explicações mecânicas e de apelo à existência de entidades não
visualizadas.
Esta visão ficou também conhecida como “A energética das transformações
químicas” e foi parte de um movimento de reação de cientistas adeptos do neoromantismo contra o positivismo e sua influência na ciência. Os partidários deste
movimento colocavam-se contra uma visão materialista do mundo e foram influenciados
pela epistemologia idealista de Kant que na ciência originou uma série de idéias que
ficaram conhecidas como “Naturphilosophie”. Esta denominação foi introduzida em
1799 pelo filósofo Friedrich Schelling que, sobre forte influência do movimento
214
romântico, defendia uma ontologia antimaterialista de forças ativas e polaridades, além
de uma visão organicista e unificada da natureza.
Embora o energeticismo apresentasse características progressistas, criticando o
monopólio de uma visão mecânica do mundo e o uso de modelos mecânicos na Física,
paradoxalmente possuía certas características de um movimento conservador, não
aceitando a desafiadora hipótese atômica.
Os energeticistas contestavam o uso de hipóteses especulativas na ciência ou, a
crença na existência de forças que agiriam entre os átomos, mas que não eram
possíveis de serem comprovadas experimentalmente. Um outro aspecto era a
valorização da energia, ela regeria os fenômenos físicos e podia ser mensurada; os
processos naturais eram considerados como transformações de energia. A energia
representava a vitalidade e liberdade e a matéria, a inércia e o determinismo (NYE,
1996, p.111).
Ostwald foi um importante representante do energeticismo na Alemanha, grande
estudioso e pesquisador em Físico-Química que recebeu um prêmio Nobel em 1909.
Durante a sua vida tornou-se gradativamente interessado na “Naturphilosophie”, escola
filosófica que influenciou as suas idéias sobre a energia. O pensamento filosófico desta
“escola” teve considerável influência sobre os fisicalistas newtonianos que defendiam a
ênfase nas forças e nos mecanismos dinâmicos. O fisicalismo e a epistemologia
dinamista ressurgiram com grande vigor na Europa com o surgimento da
“Naturphilosophie” (ROCKE, 1984).
O pensamento idealista defendia a unidade das forças da natureza e exaltava a
“força viva” confrontando-se com as idéias do atomismo materialista e a visão
mecanicista dos fenômenos e da natureza. Na Alemanha, onde existiam muitos
215
adeptos da “Naturphilosophie”, o atomismo físico era geralmente evitado e criticado por
sua ênfase no materialismo, mas o atomismo químico era aceito com entusiasmo por
grande parte dos químicos. Alguns cientistas foram influenciados por estas idéias e
apresentavam uma inclinação dinamicista como H. Davy e Michael Faraday (1791 –
1867).
A ciência empírica era menosprezada por não ir além da mera observação;
evidenciando-se uma visão anti-mecanicista da natureza. Os fenômenos naturais
estariam interligados e poderiam ser correlacionados por uma lei fundamental, a ser
descoberta pelo próprio intelecto. O conceito de energia poderia articular vários
fenômenos observados e justificar tudo o que antes era explicado por outros conceitos
como o de matéria e o de força.
Só a energia se encontra sem exceção em todos os fenômenos naturais conhecidos ou,
em outras palavras, todos os fenômenos naturais podem classificar-se no conceito de
energia. Assim, este conceito é adequado, sobretudo, para constituir a solução completa
do problema encerrado no conceito de substância e não completamente resolvido pelo
conceito de matéria (OSTWALD,1902).
O grande interesse de Ostwald era aplicar a termodinâmica à Química e
reinterpretá-la, tomando como base o conceito de energia. Segundo Holt (1970, p.387) “
para Ostwald, moléculas, átomos e íons eram somente ficções matemáticas para
explicar as operações de energia”. Suas idéias deram sustentação ao debate travado
entre energeticistas e atomistas que tinha também uma natureza epistemológica. A
divergência decorria das diferentes interpretações sobre o papel de uma teoria física e
da própria ciência. Os argumentos de natureza epistemológica e ontológica que foram
216
usados pelos energeticistas tiveram uma maior importância entre estes cientistas do
que aqueles considerados como científicos.
Os energeticistas Wilhelm Ostwald (1853 – 1932), Georg Helm (1851-1923) e o
francês Pierre Duhem (1861 – 1916) consideravam que cabia à ciência a descrição dos
fatos e do que era sensorialmente observado. Para o outro grupo de atomistas como o
austríaco Ludwig Boltzmann (1844 – 1906) e o francês Jean Baptiste Perrin (1870 –
1942), o principal era conseguir ultrapassar a aparência do que era observado fazendo
uso do pensamento teórico, “explicar o visível complicado pelo invisível simples”
(PERRIN, 1913 apud BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 2001, p.298).
Ostwald apresentou as suas principais idéias no artigo “La Déroute de
L’atomisme Contemporain” publicado numa importante revista francesa (OLIVEIRA,
1993). Ele defendia a supremacia da energia, que podia ser verificada empiricamente
em lugar de uma interpretação mecânica e corpuscular da natureza, sujeita a hipóteses
não comprovadas e a modelos. Apresentou ainda críticas ao conceito de massa e
matéria, ao conceito de força e de irreversibilidade.
Em 1904, durante uma conferência em Londres (Faraday Lecture), Ostwald
defendeu o seu ponto de vista:
É possível deduzir a partir dos princípios da dinâmica química todas as leis
estequiométricas. [...]. O que nós chamamos matéria é apenas um complexo de
energias que nós encontramos juntas no mesmo lugar. Nós estamos ainda
perfeitamente livres, se nós quisermos, supor ou que a energia preenche o espaço
homogeneamente, ou de uma forma periódica ou granulada; a última suposição seria
substituída pela hipótese atômica. A decisão entre estas possibilidades é uma questão
puramente experimental. Evidentemente existe um grande número de fatos – e eu incluo
os fatos químicos entre eles – que podem ser completamente descritos por uma
distribuição homogênea ou não periódica de energia no espaço. Se existem fatos que
não podem ser descritos sem a suposição periódica, eu não ouso decidir pelo desejo do
conhecimento; eu apenas me limito a dizer que não conheço nenhum. (Tradução nossa)
(OSTWALD,1904 apud MIERZECKI, 1991, p.147).
217
A massa era considerada como um conceito pobre para ser usado na
representação de todos os fenômenos apesar da sua articulação com outros conceitos
importantes. A energia seria a invariante geral governando todas as forças físicas e a
energética seria uma teoria superior porque não dependia de hipóteses especulativas.
A idéia de conceitos unificadores também estava relacionada com a influência
sobre alguns cientistas do positivismo comtiano. Esta corrente filosófica defendia a
importância de uma ciência unificada e a necessidade de uma metodologia empírica e
não metafísica para estabelecer o verdadeiro conhecimento das coisas e dos
processos. As críticas ao atomismo consideravam que os átomos não eram capazes de
se constituir em um tema unificador para todas as ciências, ao passo que a energia era
um conceito comum a todos os fenômenos.
Ė necessário dizer que, a ausência de hipótese fornece à energética uma unidade do
método desconhecida, até o presente: unidade que não é menos importante para o
ensino e a inteligência da ciência do que ela é do ponto de vista filosófico. Para dar um
só exemplo, todas as equações que ligam um ao outro, dois ou vários fenômenos de
espécies diferentes, são, necessariamente, equações entre quantidades de energia; não
poderia haver outras porque, fora o tempo e o espaço, a energia é única grandeza
comum a todas as ordens de fenômenos. (Tradução nossa)
(OSTWALD, 1895 apud BENSAUDE-VINCENT; KOUNELIS, 1991, p.221).
Segundo os energeticistas uma vantagem da termodinâmica sobre o atomismo
era a sua fundamentação empírica manifestada nas medidas de perda e ganho de
calor. Mach considerava que medidas do calor de combustão davam uma idéia muito
mais clara da estabilidade química do que a representação pictórica de moléculas em
interações químicas. O energeticismo, assim como o atomismo era considerado apenas
como uma estrutura auxiliar para caracterizar a matéria (HOLT, 1970).
218
Alguns anti-atomistas como Ostwald e Berthelot reconheciam a “termodinâmica
empírica ou fenomenológica” como um instrumento promissor para o desenvolvimento
de leis fundamentais da dinâmica química, tornando desnecessário as explicações
baseadas no atomismo (NYE, 1984, p.xxii).
Um outro aspecto do conflito localizava-se no plano ideológico, envolvendo a
possibilidade da falência da ciência. Os energeticistas defendiam um poder limitado das
teorias científicas; o método físico-matemático poderia ser o caminho para livrar a
ciência de imagens e hipóteses. Os atomistas defendiam o uso da ciência para se
chegar ao conhecimento da natureza, identificando-se mais com uma concepção
realista (VIDEIRA, 1993).
Antiatomistas como o austríaco E. Mach e o americano J.B. Stallo consideravam
que o conceito de átomo não era adequado para ensinar ou demonstrar o
conhecimento científico. O caráter expositivo da hipótese atômica era o foco deste
debate; esta era uma preocupação que ecoava também na América, como pode ser
visto no trecho abaixo escrito pelo cientista Stallo.
[...] o átomo pode não ser um cubo ou esferóide ‘oblato’ para propósitos físicos, e uma
esfera para propósitos químicos. E um grupo de átomos constantes pode não ser um
agregado de massas estendidas e absolutamente inertes e impenetráveis ou repelidas,
e um sistema de meros centros de força como parte de um imã ou de uma Clamond
batter... Se a física como uma ciência [sic] não está para cair em ulterior descrédito, é
hora de evocar alguma ordem a partir da confusão que prevalece entre os primeiros
princípios, teorias e definições da física teórica. (Tradução nossa)
(STALLO, 1960 apud NYE, 1984,p.xxv).
219
6.15 A emergência da Físico-Química
Em alguns livros de História da Ciência (IHDE, 1984; LAIDLER, 1993) certos
acontecimentos
que
ocorreram
no
ano
de
1887
são
relacionados
com
o
estabelecimento da Físico-Química. O lançamento da revista “Zeitschrift für
Physikalische Chemie”, considerado o primeiro jornal dedicado exclusivamente a
publicações deste assunto; a edição do primeiro volume do livro “Zeitschrift”, de Svante
A. Arrhenius (1859-1927) contendo o seu polêmico trabalho da dissociação eletrolítica e
o importante artigo de Jacobus H. van’t Hoff (1852-1911) sobre a termodinâmica de
soluções que lhe conferiu um Prêmio Nobel. Ao lado de Arrhenius e van’t Hoff, Ostwald
contribuiu para o reconhecimento da Físico-Química como uma nova sub-área da
Química tendo sido considerado além do seu fundador, o seu mais importante
organizador e divulgador.
O reconhecimento da Físico-Química como um campo independente foi
conseqüência da mudança de atitude detectada neste período, em relação às
investigações neste campo, que já alcançava uma certa maturidade. A publicação de
um jornal específico da área: Zeitschrift für physikalische Chemie, permitiu a
comunicação entre fisico-químicos de vários países e a consolidação deste campo de
investigação.
A possibilidade que a definição da Físico-Química pudesse ter sido motivada
também pelas disputas entre atomistas e anti-atomistas é uma conjectura que estamos
levantando e que necessitaria de uma investigação posterior. O grande interesse
manifestado por alguns cientistas em demarcar de modo autônomo esta sub-área de
220
estudo, poderia estar relacionado com as divergências que envolveram atomistas e
anti-atomistas neste período.
Comentando sobre o surgimento do energeticismo Bensaude-Vincent e Stengers
(1992, p.294) assim escreveram: “Ao programa de uma ciência da arquitetura da
matéria, Duhem e Ostwald opõem um contra-programa de uma “energética” das
transformações químicas”. O energeticismo que se constitui na última década do século
XIX, pode ter desempenhado um papel heurístico impulsionador do surgimento de
programas de pesquisa capazes de ampliar e aprimorar os conhecimentos neste campo
emergente.
De acordo com Brock (1992, p.336), o programa da “Química-Física ou FísicoQuímica” encontrou forte oposição inicialmente. Na Alemanha, esta hostilidade estava
relacionada com as pretensões de Ostwald em conferir um lugar de destaque a esta
nova “sub-área” da Química, o que representava uma grande ameaça ao poder e
prestígio dos químicos orgânicos neste país. As discussões envolveram químicos de
várias nacionalidades a exemplo de Henry Armstrong (1848-1937) um químico orgânico
inglês, reputado membro da Sociedade Química de Londres que muitas vezes atacou
Ostwald, Arrhenius e van’t Hoff , como pode ser visto a seguir:
O caso é que desde a intrusão da doutrina de Arrhenius se tem produzido uma cisão da
química nas escolas ou, melhor dizendo, se tem agregado um novo tipo de trabalhador
nesta profissão: gente sem conhecimento das técnicas de laboratório e com domínio
matemático suficiente para deixar-se levar por maus-caminhos, por coincidências
sinuosas; pessoas sem capacidade alguma de crítica, e menos ainda para formular uma
interpretação química. O caso é que os físico-químicos não usam nunca seus olhos e, o
que é mais lamentável, carecem de cultura química. É essencial arrancar a raiz deste
elemento físico e regressar aos nossos laboratórios. (Tradução nossa)
(ARMSTRONG, 1936 apud BROCK, 1992, p. 337).
221
Armstrong manifestou-se publicamente muitas vezes contra a “escola dos físicoquímicos” e a sua oposição envolvia aspectos sociais e filosóficos e não puramente
científicos. Um aprofundamento na investigação desta questão poderia esclarecer se as
ações desenvolvidas na tentativa de delimitação de territórios poderiam ter contribuído
para a demarcação da Físico-Química neste período.
Alguns historiadores da ciência reconhecem que a distinção entre a Física e a
Química, sob alguns aspectos, não é tão nítida e tem sofrido variações com o passar
dos anos. Laidler (1993, p.5) considera que, atualmente a Físico-Química não pode ser
precisamente definida. Esta distinção tem acontecido mais no âmbito da conveniência
administrativa.
Comentando sobre o desenvolvimento da Físico-Química em uma palestra
proferida na Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade de São Paulo, o
importante químico brasileiro Simão Mathias apresentou o seguinte comentário sobre
esta questão:
É difícil imaginar uma linha divisória entre a Matemática e a Física. É impossível fazê-lo
no caso da Física e da Química. A divisão entre estes dois ramos da ciência é
necessariamente artificial e arbitrária e tem variado com o desenvolvimento histórico de
ambos. Um exame deste desenvolvimento, a partir da época de Dalton, revela que estas
duas ciências se tem influenciado mutuamente e que a linha divisória, hoje vagamente
perceptível é frequentemente cruzada de ambos os lados (MATHIAS, 1957).
A Físico-Química tem se expandido e se misturado, ou mesmo fundido com
outras disciplinas científicas, levando alguns pesquisadores a questionar sua separação
como uma disciplina autônoma. Este ponto de vista foi expresso por Gilbert N. Lewis
(1875-1946) no trecho a seguir, escrito nas primeiras décadas do século XX; muito
embora sua opinião sobre este assunto tenha se modificado posteriormente:
222
O fato é que a físico-química não mais existe. Os homens que têm sido chamados
físico-químicos têm desenvolvido um grande número de métodos úteis..., e como as
aplicações desses métodos se tornaram mais numerosas, fica cada vez mais difícil
aderir à nossa velha classificação. (Tradução nossa)
(LEWIS, 192_ apud LAIDLER, 1993, p.6).
6.16 Energeticistas x atomistas: debatendo sobre o atomismo
Um importante debate entre atomismo e energeticismo foi travado no Encontro
de Lubeck em 1895, através de críticas feitas pelo atomista Boltzmann aos antiatomistas Ostwald e Mach. Os energeticistas foram acusados de dogmáticos por
pretenderem chegar à realidade última da natureza defendendo a energia como
categoria fundamental e definitiva. Para fundamentar as suas críticas Boltzmann
apoiava-se em dois argumentos: a defesa da mecânica como uma ciência distinta e que
não tinha pretensões de desencantar a natureza e a provisoriedade das teorias
científicas e da visão de mundo subjacente a elas (RODRÍGUEZ, 1986).
O grande interesse de Boltzmann era encontrar explicação para a aparente
homogeneidade da matéria percebida a nível macroscópico e a sua descontinuidade
interna a nível microscópico. Seus estudos sobre a teoria cinética e a termodinâmica
foram fundamentais para ajudá-lo na compreensão destas questões. Entre suas
principais preocupações no campo científico estavam a defesa do atomismo, da
concepção das teorias científicas como uma imagem da realidade e a defesa de uma
visão mecanicista da natureza.
As pesquisas de Boltzmann levaram-no a propor explicações baseadas em leis
mecânicas aplicadas ao domínio microscópico das moléculas, para explicar fenômenos
macroscópicos relacionados ao calor. Uma outra importante contribuição foi sua
223
descrição mecânica do segundo princípio da termodinâmica. Ele introduziu uma
explicação probabilística da entropia, que apresentava uma conciliação da segunda lei
da termodinâmica com a reversibilidade das leis da mecânica. O trabalho de Boltzmann
teria reconduzido a termodinâmica à mecânica, eliminando a contradição entre
processos mecânicos reversíveis e processos termodinâmicos irreversíveis através da
relação entre a entropia de um sistema (S) e o seu estado de probabilidade (W).
Os estudos de Boltzmann apresentaram um tratamento mecânico original que
contribuiu para o aparecimento de uma nova tradição de pesquisa, a mecânica
estatística. Esta nova área de estudo tem a mecânica como teoria fundamental e apoiase na hipótese atômico/molecular que, neste período, encontrava oposição na
comunidade científica dos físicos. As explicações de natureza estatística introduzidas
na Física gerou problemas; a possibilidade de se contestar as certezas e trabalhar no
campo das probabilidades parecia ser um fato ameaçador que chocava muitos
contemporâneos de Boltzmann (BARBEROUSSE, 1997).
De acordo com Brush (1968 apud ODÓN, 1986), concepções atomísticas
diferentes influenciaram Boltzmann durante o seu processo de formação. Existia um
atomismo primitivo que dominava os livros textos em período anterior a 1860,
explicando diferentes fenômenos como eletricidade, calor, magnetismo, gravidade em
função de classes de átomos; átomos de éter e átomos de matéria. Um segundo tipo
era o atomismo dos seus mestres da Universidade de Viena, que admitia a realidade
dos átomos. Este ponto de vista foi muito criticado pelos “fenomenologistas” e parece
não ter sido defendido por Boltzmann. Existiu ainda um terceiro tipo de atomismo
compartilhado pelo grupo anglo-saxão formado por Maxwell, Faraday, William Thomson
incluído nas teorias do dinamismo físico. Este último ponto de vista parece ter sido o
224
que mais influenciou o trabalho de Boltzmann, uma vez que admitia a possibilidade das
hipóteses serem modificadas de acordo com os resultados experimentais.
O atomismo desempenhou no trabalho de Boltzmann um papel heurístico,
inspirando a sua enorme criatividade e metodológico, fundamentando hipóteses úteis
para a construção de novas teorias e conceitos. Ele defendeu a impossibilidade de
construção de uma ciência sem imagens porque as próprias teorias científicas seriam
imagens da realidade.
O papel das imagens na construção do conhecimento científico foi um ponto de
grande polêmica entre Boltzmann e Mach. Este último considerava a teoria como uma
tradução da experiência, e demonstrando um empirismo exacerbado não aceitava a
hipótese atômica. Boltzmann, ao contrário, defendia
uma maior liberdade de
pensamento e do uso da criatividade, o que possibilitaria a capacidade heurística da
atividade científica. Apesar dos novos argumentos utilizados por Boltzmann,
fundamentados na mecânica estatística, a hipótese atômica não encontrou de imediato
a unanimidade desejada.
No ataque de Ostwald contra o atomismo e o mecanicismo foram usados uma
mistura de argumentos pertencentes a diferentes níveis de uma teoria: epistemológico,
ontológico e científico; esta confusão se manifestava inclusive no seu discurso científico
(VIDEIRA, 1994).
No fim do século XIX a posição de Ostwald sobre o atomismo já era
considerada obsoleta entre a maioria dos físicos e químicos. Cientistas e filósofos não
aceitavam a idéia do conceito de matéria ser subordinado ao conceito de energia. No
entanto, dois aspectos da “energética” defendidos por Ostwald têm resistido ao tempo,
constituindo-se em importante legado à ciência: a sua formulação da segunda lei da
225
Termodinâmica como a impossibilidade do “moto perpétuo” do segundo tipo, e a sua
insistência sobre a necessidade de se empregar a energia livre (função de Gibbs e
Helmholtz), em vez do calor de reação, como um critério para a previsibilidade da
espontaneidade química e da medida da posição de equilíbrio de reações químicas
(GILLISPIE, 1980).
6.17 A constante de Avogadro
A realidade dos átomos esteve em debate ao longo de todo o século XIX. Em
grande parte, a resistência à consideração dos átomos e moléculas como reais estava
relacionada com a impossibilidade de observação direta e a inexistência de meios que
permitissem esta observação, mesmo indireta.
A concepção espacial de átomos e moléculas tornou-se cada vez mais
importante com o desenvolvimento da química orgânica. O uso de diferentes teorias e
conceitos como: radicais, tipos, substituição, levaram à teoria da valência e à
representação gráfica das ligações químicas. Representações bidimensionais foram
propostas para explicar compostos orgânicos alifáticos e aromáticos; outras
representações mais sofisticadas em três dimensões passaram a ser usadas para
justificar certos fenômenos como a isomeria óptica. Todos estes avanços, no entanto,
não foram considerados como provas suficientes para a hipótese atômica, que
continuava sendo debatida nos encontros científicos.
A aceitação da existência dos átomos aconteceu, principalmente, a partir de
duas importantes contribuições: os trabalhos feitos no início do século XX por Jean
Perrin, que levaram à determinação mais precisa da constante de Avogadro (NA) e os
226
estudos envolvendo a ionização de gases em tubos de descargas realizados por
Joseph John Thomson (1856-1940), que culminaram com a descoberta do elétron,
levantando a possibilidade de um átomo divisível.
No primeiro caso, os estudos teóricos e empíricos envolvendo a teoria
cinética/molecular e o movimento browniano foram fundamentais. No segundo caso, a
revolução industrial acontecida no século XIX, os avanços tecnológicos e os novos
instrumentos desenvolvidos a partir das pesquisas envolvendo a eletricidade
(espectrômetros, tubos de descarga de gases) contribuíram para que experimentos
cruciais acontecessem e permitissem o aprofundamento das investigações desta
desafiante partícula: o átomo.
No século XX, uma maior aproximação da ciência e da técnica e um aumento na
sofisticação dos instrumentos tecnológicos produzidos possibilitaram o desenvolvimento
de três importantes técnicas de microscopia capazes de fornecer resolução em escala
atômica: a Microscopia Iônica de Campo, a Microscopia Eletrônica de Alta Resolução e
a Microscopia de Tunelamento e Varredura. As imagens obtidas através destas
técnicas evidenciam a presença dos átomos individualmente legitimando a frase que é
hoje comumente formulada, tanto no meio científico ou jornalístico especializado, de
que “é possível ‘ver’ os átomos” (CASTILHO, 2003).
6.18 O trabalho de Jean Perrin e a aceitação da realidade atômica
Jean Perrin foi um importante professor de Físico-Química na Faculdade de
Ciências da Universidade de Paris que percebeu a importância de se encontrar
evidências experimentais que tivessem credibilidade nos meios científicos sobre a
227
realidade dos átomos e moléculas. Ele assumiu como principal objetivo definir, usando
procedimento empírico confiável, o valor de NA (constante de Avogadro) que aparecia
em vários estudos cinéticos, mas que não possuía um valor consensualmente aceito.
Propostas para o valor desta grandeza já haviam sido feitas por Joseph Loschmidt
(1821-1895), Rudolf Clausius (1822-1888) e Johannes Diderick van der Waals (18371923) que obtiveram resultados diferentes, embora próximos, através de estudos
envolvendo a teoria cinética dos gases.
A investigação do movimento browniano foi o ponto de partida para o
esclarecimento desta questão. O movimento de partículas coloidais ou na forma de
suspensões grosseiras em um líquido era um tema de grande interesse neste período,
principalmente após a descoberta do microscópio ótico. A idéia que este movimento
fosse ocasionado por colisões moleculares não encontrava provas experimentais ou
teóricas até o início do século XX. Entre 1905 e 1910 surgiram vários estudos teóricos e
experimentais sobre o assunto; o principal objetivo era elaborar modelos teóricos que
pudessem ser submetidos a teste empírico. Neste contexto apareceu o trabalho de
Perrin que testou um modelo teórico para este tipo de movimento com o intuito de
explicar os seus resultados experimentais.
De 1905 até 1912 Perrin realizou investigações sobre suspensões coloidais
(emulsões) de partículas visíveis ao microscópio na forma de grãos (goma-guta e
almécega) em líquidos. Ele estudou três fenômenos: a distribuição vertical de partículas
coloidais depois que elas alcançavam o equilíbrio (esta correspondia à distribuição de
Laplace de partículas do ar sob influência da gravidade); o deslocamento translacional
das partículas e a rotação das partículas. Os procedimentos experimentais foram
complicados e realizados com precisão, necessitando de uma separação das partículas
228
com raios idênticos por centrifugação fracionada. Esta técnica foi desenvolvida por ele
para esta investigação. Perrin determinou as densidades, os volumes e os raios das
partículas e estudou o movimento de rotação destas partículas, tendo realizado muitas
fotografias das partículas durante a realização do seu trabalho (NYE, 1997).
Um dos principais objetivos de Perrin era determinar experimentalmente o valor
da constante de Avogadro (NA) utilizando equações da teoria cinética dos gases e
medidas obtidas para as grandezas: densidade dos grãos, massa, número de grãos por
unidade de volume de água, a pressão exercida por um grão numa certa temperatura.
Seus experimentos com as emulsões conseguiram conjugar a teoria do movimento
browniano (Einstein e Smoluchowski) e o modelo osmótico de Van’t Hoff que tinha
aplicado as leis dos gases a soluções diluídas. Os experimentos realizados variando a
natureza do líquido usado na preparação da suspensão dos grãos, o volume dos grãos
e a tempertaura conduziram a valores convergentes de NA.
A equação de distribuição de grãos dava condições de determinar o número de
Avogadro, desde que fosse estudado um número suficiente de grãos. O principal
objetivo de Perrin era encontrar a ligação indispensável entre as massas na escala
macroscópica e as massas moleculares (OLIVEIRA, 1993).
Foram determinados treze valores do número de Avogadro (N) compreendidos
entre 6,0 x 1023 e 7,5 x 1023 (NYE, 1997). Cada um dos valores foi obtido usando
procedimento empírico diferente e a partir de diversos fenômenos como: viscosidade de
gases, deslocamento de íons em água, brilho do azul do céu, energia do infravermelho
da radiação do corpo negro, medidas direta da carga de um íon em meio gasoso e
cargas de corpos radioativos. Segundo Chagas (2003), o ponto alto do trabalho de
Perrin foi a convergência dos números obtidos a partir de treze equações relativas a
229
diferentes tipos de fenômenos, mas que legitimavam a realidade molecular tendo como
invariante a constante de Avogadro (NA).
Comentando sobre os resultados obtidos, Perrin se colocou brilhantemente em
seu livro “Les atomes” defendendo a realidade dos átomos:
Penso, ele diz, que é impossivel a um espírito livre de todo preconceito, de refletir sobre
a extrema diversidade dos fenômenos que convergem dessa maneira para o mesmo
resultado, sem ficar impressionado, e acho que, por consequência, será dificil defender
com argumentos racionais, uma posição hostil em relação as hipóteses moleculares.
(Tradução nossa)
(PERRIN, 1913 apud NYE, 1997, p.13).
Grande parte das suas idéias ficaram registradas nesta obra “Les Atomes”,
importante livro editado na “Nova Coleção Científica”, dirigido a um público não
especializado e publicado em 1913 (CHAGAS, 2003; NYE, 1997). Nele é apresentado
detalhadamente o seu trabalho empírico que se baseou também em estudos teóricos
sobre o movimento browniano.
Em
1905,
utilizando
raciocínio
estatístico,
Einstein
havia
explicado
qualitativamente a dependência do valor do deslocamento de uma partícula
macroscópica suspensa em um líquido em um certo período de tempo. Esse
deslocamento resultava do movimento browniano, tendo sido explicado como colisão
caótica de moléculas do líquido com as macropartículas. Esta teoria ficou conhecida
como “Teoria da flutuação” e foi desenvolvida depois por Marian Smoluchowski (1872 –
1917), pesquisador polonês que derivou uma fórmula que explicava o movimento
browniano (MIERZECKI, 1991).
O trabalho de Perrin contribuiu para solucionar a interminável controvérsia sobre
o atomismo que marcou o século XIX. Em reconhecimento ao seu trabalho foi-lhe
concedido o prêmio Nobel de Física no ano de 1926. Perrin acreditava numa Física
230
realista e seu trabalho levou à aceitação, em definitivo, da teoria atômica; o átomo
estava sendo aceito como uma ‘entidade’ que possuía uma subestrutura que caberia
ser investigada. No campo empírico, novos instrumentos como tubos de vácuo,
ultramicroscópico aliados a novas descobertas e técnicas como a espectroscopia e a
radiotividade deram um novo vigor ao programa atomista.
As idéias de Perrin promoveram a aceitação do atomismo de modo amplo
inclusive por Ostwald, que em 1909 reconheceu publicamente que os argumentos
empíricos em favor da hipótese atômica não podiam ser recusados (BARBEROUSSE,
1997). Ele passou a reconhecer o mérito desta hipótese e a necessidade que se
restabelecesse a confiança na representação atômica e corpuscular da matéria.
Percebendo a importância do seu trabalho, Perrin se coloca no trecho a seguir
ratificando a importância da teoria atômica: “Esse resultado confere à realidade
molecular uma probabilidade próxima da certeza…A teoria atômica triunfou” (PERRIN,
1913, apud BENSAUDE-VINCENT; KOUNELIS, 1991, p.299).
De acordo com Nye (1976), para a maior parte da comunidade científica os
debates sobre o atomismo começaram a ser resolvidos em 1911, o ano da primeira
“Conferência Solvay” e abriu um amplo programa de pesquisa, a Teoria Quântica, que
tem sido frutífero até a atualidade, colocando novos problemas a serem investigados e
fomentando novos campos de investigação e programas de pesquisa. Neste período a
termodinâmica clássica estava sendo transformada por uma nova teoria da
descontinuidade da energia: a Teoria Quântica; simultaneamente, tanto a Física como a
Química clássicas estavam sendo transformadas ao incorporar as idéias da
descontinuidade da matéria e da energia. O caráter estatístico e probabilístico das
novas teorias era considerado revolucionário.
231
Após este encontro, alguns problemas da Física e da Química passaram a ser
pensados e resolvidos de uma mesma forma. O átomo não era apenas um princípio de
unificação, mas passava a ser aceito de forma unânime como uma entidade científica.
O diâmetro de um átomo e o número de partículas em um dado volume de matéria já
podiam ser determinados. Perrin promoveu a aceitação da determinação do número
absoluto de átomos contidos num dado peso de substância e o cálculo do peso
absoluto de um átomo de uma substância qualquer.
A teoria atômico-molecular de Perrin incorporou elementos da tradição
eletromagnética e da termodinâmica, além da visão mecanicista de mundo. Numa
tentativa de obter o reconhecimento dos energeticistas para a realidade molecular,
Perrin reconhece o duplo triunfo dos dois campos: “Não se tratará, é claro, de opor uma
a outra essas duas grandes disciplinas, assim a união da atomística à energética
consagrará o duplo triunfo das duas”. (PERRIN, 1909 apud
BENSAUDE-VICENT;
KOUNELIS, 1991, p. 237).
6. 19 Conclusão
A formulação da teoria atômica de Dalton veio dar legitimidade tanto a uma nova
maneira de praticar a Química quanto às leis de combinações químicas obtidas
empiricamente. O paradigma daltoniano explicou a ampla generalidade dos resultados
empíricos obtidos e sugeriu novas experiências, a exemplo do trabalho posteriormente
desenvolvido por Gay Lussac sobre a combinação de gases.
Um exemplo utilizado por Kuhn para ilustrar os seus conceitos, segundo ele
“talvez o exemplo mais completo de uma revolução científica” foi o trabalho de Dalton
232
contido em parte no seu livro: “Novo Sistema de Filosofia Química” (KUHN, 1996,
p.169).
Durante o século XVIII, a teoria das afinidades químicas era usada nas
explicações das interações químicas, fundamentando o paradigma amplamente
utilizado na concepção e análise dos experimentos químicos. Esta teoria no entanto,
apresentava dificuldades no campo conceitual relacionada às explicações fornecidas
para a diferença entre mistura e composto. Neste período não era possível distinguir as
misturas dos compostos utilizando-se testes operacionais.
O desenvolvimento da química experimental levou à formulação de leis que
introduziram novas explicações quantitativas para as combinações químicas, a exemplo
da lei dos equivalentes químicos e da lei das proporções definidas.
Um dos indícios de que o paradigma das afinidades estava em crise foi a
importante controvérsia entre Proust e Berthollet. O primeiro sustentava que todas as
reações químicas ocorriam segundo proporções fixas, enquanto que, o segundo
negava este fato admitindo combinações em proporções que podiam variar de acordo
com as quantidades das substâncias reagentes (BROCK, 1992). No cerne do debate
encontrava-se a compreensão dos conceitos de mistura e substancia composta, “onde
Berthollet via um composto que podia variar segundo proporções, Proust via apenas
uma mistura física” (KUHN, 1996, p.168).
Dalton apresentou explicações inovadoras fundamentadas em um novo
paradigma distinto daquele utilizado pelos químicos daquele período. Embora suas
idéias tenham enfrentado dificuldades para se impor no meio acadêmico, sua teoria
permitia a compreensão da diferença entre mistura e composto de modo mais eficaz do
que o sugerido por Proust, além de ter implicações mais amplas.
233
A visão de mundo introduzida por Dalton pressupunha uma maneira diferente de
se compreender as reações químicas; os novos cálculos estequiométricos realizados
passaram a ser orientados pelo novo paradigma. Os pesos atômicos determinados por
Dalton conferiram à Química o status de ciência exata, ratificando o seu caráter
quantitativo. A análise do trabalho de Dalton feita por Kuhn teve como objetivo resgatar
o seu caráter revolucionário. A aplicação à Química de conceitos tradicionalmente
usados na Física e nos estudos de meteorologia introduziu profundas mudanças na
interpretação dos fenômenos químicos.
O principal mérito de Dalton foi retomar conceitos antigos e submetê-los a uma
reelaboração à luz de uma nova racionalidade; novas questões foram formuladas e
novas conclusões apresentadas. Dentro do paradigma daltoniano, novas redes
conceituais se estabeleceram. Os conceitos científicos adquirem seus significados à luz
do contexto em que são formulados ou reelaborados.
As controvérsias científicas sobre o atomismo no século XIX ficaram registradas
nos debates travados em reuniões científicas, artigos e livros, revelando a existência de
dois tipos de atomismo: o primeiro, o atomismo químico, que se constituiu na base
conceitual que justificava a atribuição dos pesos elementares relativos e as fórmulas
moleculares, tornou-se gradativamente aceito pela comunidade química durante este
século; o segundo tipo, o atomismo físico, revelou-se muito controvertido em função de
defender a natureza mecanicista última de todas as substâncias. Os dois tipos de
atomismo estavam intimamente relacionados e o próprio Dalton defendeu idéias que
se enquadravam nos dois tipos de atomismo, embora não fosse este o comportamento
da maior parte dos químicos.
234
Na segunda metade do século XIX, a identidade destes dois pontos de vista foi
se tornando cada vez mais clara e a unificação dos dois tipos de atomismo aconteceu
no início de século XX, ao tempo em que os físicos começaram a admitir um átomo
estruturado, iniciando a exploração da sua estrutura.
As profundas modificações introduzidas na Física influenciaram decisivamente
os rumos do atomismo no século XX. Os novos conhecimentos gerados pelo
desenvolvimento da teoria cinética dos gases e pela nova física quântica foram
fundamentais neste processo e na consolidação dessa teoria. Nesta fase, novas teorias
formuladas com sólida fundamentação matemática e empírica possibilitaram a
aceitação da realidade atômica.
A velha hipótese atômica foi revigorada quando se percebeu a credibilidade do
átomo e de sua representação através de um único modelo aceito pelos físicos e
químicos. Novas propriedades detectadas empiricamente através de experimentos e
novos instrumentos apontavam para uma subestrutura eletrificada do átomo e
direcionaram físicos e químicos para uma nova teoria atômica. A unificação de uma
grande variedade de fenômenos químicos foi possível graças a idéia de átomo
estruturado e do reconhecimento da complexidade molecular.
O átomo maciço e indivisível estava dando lugar a um novo átomo vazio e
dividido. O átomo de
J.J Thomson e Ernest Rutherford (1871 –1937) tornou-se o
princípio de unificação da Física e da Química e levou, no atual contexto, à rejeição do
conceito de textura contínua da matéria (NYE, 1984, p.xxvii).
O novo programa atomista superou o energeticismo como importante alternativa
de pesquisa e incorporou não somente a teoria atômica clássica, mas também, muitas
idéias e algumas exigências dos anti-atomistas do século XIX. O átomo não poderia
235
ficar restrito aos fundamentos científicos e epistemológicos da mecânica
clássica.
Neste contexto não era mais possível aceitá-lo apenas como uma partícula material
maciça e indivisível.
Comentando sobre o átomo da Física Moderna, Bachelard (1991, p. 131) lembra
a importância de se evocar a história das suas imagens, segundo ele “[...]o átomo é
exatamente a soma das críticas a que se submete a sua imagem primeira.”
A aceitação da hipótese atômica por atomistas e antiatomistas, no decorrer do
século XX, revela a posição consensual adotada inclusive em relação a sua
continuidade na ciência sob o ponto de vista ontológico. Nos debates acontecidos ainda
no século XIX é possível perceber-se a preocupação com a natureza e objetivos da
investigação científica incluindo a articulação de critérios empíricos, bem como de outra
natureza, inclusive metafísicos.
Alguns atomistas defenderam suas idéias com grande entusiasmo e mantiveram
uma posição não dogmática exemplar. O pensamento de Perrin, por exemplo,
antecipava certas idéias que foram posteriormente desenvolvidas por epistemólogos
como Gaston Bachelard (1884-1962) que defendia a necessidade de se ultrapassar as
aparências e o observável de imediato, as impressões primeiras, no processo de
construção do conhecimento. Comentando sobre a complexidade da filosofia química
Bachelard escreveu:
Assim, sobre esta noção de peso atômico, podemos seguir uma evolução de filosofia
química, filosofia que acede lentamente ao realismo preciso graças à organização
racional de uma experiência comparativa essencialmente complexa. Basta acompanhar
esta evolução que conduz a um realismo científico para ver como eram inertes as teses
de um realismo imediato sempre pronto a alinhar todo o seu saber a partir de uma
experiência particular. Através das suas múltiplas técnicas e das suas teorias cada vez
mais racionais a química contemporânea determina um verdadeiro “espectro filosófico”,
236
que apresenta os diversos matizes de uma filosofia primitivamente tão simples como o
realismo (BACHELARD, 1990, p.113).
O caráter provisório do conhecimento científico é visível no estudo de episódios
de controvérsias científicas, bem como a grande necessidade de articulação entre os
cientistas para que teorias consensuais fossem adotadas.
O conceito de realidade também esteve envolvido nesta disputa. De acordo com
Videira (1997a, p. 74) “no caso do átomo, falar da sua realidade somente é possível, se
a realidade é compreendida como objetividade, aqui usada na acepção de algo que
pode fazer parte de uma teoria física matematizada e testável empiricamente.”
Percebe-se na complexidade que caracteriza a história do atomismo no século
XIX, que os argumentos usados pelos anti-atomistas eram não somente científicos mas,
epistemológicos e ontológicos. Uma grande preocupação era definir o papel das teorias
científicas na ciência, bem como, o papel que a matemática e as hipóteses
desempenhavam na construção das teorias. Estas questões estão presentes nos
debates travados entre personagens que defendiam pontos de vistas variados:
fenomenologistas ou fenomenistas, convencionalistas, positivistas, realistas etc.
Consideramos que este tema possibilitará discussões sobre o papel da
experimentação na validação de teorias e sua provisoriedade, o “status” cognitivo dos
modelos na Química, a diferença entre leis e teorias, o papel da criatividade e
subjetividade envolvidos no processo de produção científica, entre outros.
CAPÍTULO 7
A HISTÓRIA DA CIÊNCIA NOS LIVROS DIDÁTICOS
DE QUÍMICA: O ATOMISMO NO SÉCULO XIX
238
7 HISTÓRIA DA CIÊNCIA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE QUÍMICA:
O ATOMISMO NO SÉCULO XIX
7.1 Algumas informações preliminares
Neste capítulo apresentamos os resultados da análise de livros didáticos de
Química Geral, em relação ao modo de apresentação da hipótese atômica daltoniana e
suas implicações. Esta parte da nossa pesquisa teve como objetivo identificar nos
manuais, a abordagem de apresentação da teoria atômica no século XIX, sua relação
com as leis de combinação químicas e a hipótese de Avogadro, além das dificuldades
enfrentadas por esta teoria naquele período.
Usamos critérios fundamentados na História e Filosofia da Ciência para avaliar a
forma como estes conteúdos encontram-se presentes nestes manuais e o resultado da
mediação didática adotada para este assunto que tem chegado aos alunos. A
metodologia utilizada foi semelhante àquela adotada por Niaz (2001) e Rodriguez e
Niaz (2002), em pesquisas realizadas na Venezuela e envolveu a análise de conteúdo
de livros didáticos selecionados usando categorias definidas ‘a priori’, fundamentadas
no material histórico elaborado (Capítulo 6). A opção pela análise de conteúdo levou em
conta a sua adequação e este tipo de trabalho. (LEITE, 2002; MORAES, 1999;
TRIVIÑOS, 1987)
Foram consultados dezesseis livros didáticos de Química Geral usados no
terceiro grau, com edições compreendidas entre os anos de 1973 e 2005. Não foram
usados critérios estatísticos para escolha dos livros. Os manuais foram selecionados
considerando a sua indicação na bibliografia básica das disciplinas de Química Geral
239
do Departamento de Química Geral e Inorgânica da UFBA (DQGI) e a maior
disponibilidade para consulta na biblioteca do Instituto de Química da UFBA (BSQ).
Os critérios de análise foram definidos previamente, tomando como base os
conteúdos obtidos da pesquisa histórica sobre o atomismo no século XIX. A História da
Química foi tomada como principal referencial de análise. A definição desses critérios
pretendeu identificar o modo de apresentação de alguns conteúdos fundamentais e
aspectos conceituais, contidos nos livros e relacionados ao tema histórico investigado.
A definição destes critérios levou em conta os seguintes aspectos:
1.
a apresentação da hipótese atômica de Dalton e sua origem;
2.
a relação que é estabelecida entre a lei de Gay-Lussac e a teoria atômica
de Dalton;
3.
a articulação feita entre a lei de Gay-Lussac, a hipótese de Avogadro e a
teoria atômica de Dalton;
4.
a apresentação da(s) hipótese(s) de Avogadro;
5.
a abordagem da questão envolvendo as dificuldades enfrentadas para
aceitação do atomismo naquele período.
No século XIX surgiram importantes conceitos relacionados à teoria atômicamolecular e ao mesmo tempo, esta teoria ainda enfrentava forte oposição (Capítulo 6).
O conhecimento da existência de controvérsias para a consolidação da teoria atômica
de Dalton e das dificuldades enfrentadas por esta teoria torna-se importante, para que a
visão dos alunos sobre este assunto não seja equivocada ou distorcida.
7. 2 Definição de critérios e categorias de análise:
240
•
PRIMEIRO CRITÉRIO: apresentação da hipótese atômica e sua possível origem
Para o primeiro critério foram definidas seis categorias: a, b, c, d, e, f
a)
a teoria atômica de Dalton explicou as duas leis de combinaçõs químicas:
lei da conservação da massa (Lavoisier) e a lei das proporções definidas ou
composição constante (Proust);
b)
a teoria atômica foi proposta antes da lei das proporções múltiplas.
Utilizando a sua teoria atômica Dalton deduziu a lei das proporções múltiplas;
c)
a teoria atômica de Dalton possibilitou a compreensão das leis de
combinação químicas: Conservação da Massa, Proporções Definidas, Proporções
Múltiplas; Proporções Equivalentes;
d)
a teoria atômica de Dalton se baseou nas relações de peso determinadas
experimentalmente ajudando a entender as leis de combinações químicas
e)
as dificuldades para precisar as origens da teoria atômica de Dalton são
mencionadas
f)
Dalton chegou à teoria atômica com base nas observações realizadas no
laboratório ou em seus estudos experimentais
•
SEGUNDO CRITÉRIO: articulação entre a lei de Gay-Lussac e a teoria atômica de
Dalton.
Para o segundo critério foram definidas três categorias: a, b, c
a)
As divergências entre Gay-Lussac e Dalton são mencionadas;
b)
Faz-se alguma articulação entre a lei proposta por Gay-Lussac e a
importância da teoria atômica de Dalton para a sua explicação;
c)
nenhum dos argumentos anteriores (a ou b) são apresentados
241
•
TERCEIRO CRITÉRIO: relação estabelecida entre a lei de combinação volumétrica
de Gay-Lussac, a hipótese de Avogadro e a teoria atômica de Dalton.
Para o terceiro critério foram definidas quatro categorias: a, b, c, d
a)
a lei de Gay-Lussac foi explicada pela hipótese de Avogadro;
b)
a lei de Gay-Lussac e a hipótese de Avogadro são apresentadas e
relacionadas à teoria atômica de Dalton e sua consolidação;
c)
a lei de Gay-Lussac e a hipótese de Avogadro são apresentadas no
capítulo de estudo dos gases sem articulação destas com a teoria atômica de Dalton;
d)
•
a hipótese da Avogadro resolveu o impasse entre Gay-Lussac e Dalton.
QUARTO CRITÉRIO: apresentação da(s) hipótese(s) de Avogadro.
Para o quarto critério foram definidas cinco categorias: a, b, c, d, e
a)
a aceitação da hipótese de Avogadro e do conceito de molécula contribuiu
para resolver problemas detectados nos cálculos de pesos atômicos;
b)
são apresentadas duas hipóteses de Avogadro, incluindo aquela em que
ele propõe a existência de moléculas poliatômicas de gases ‘elementares’(substâncias
simples);
c)
é apresentada uma única hipótese1 de Avogadro (Vαn) destacando-se a
sua importância para a compreensão da Lei de Gay-Lussac;
d)
a segunda hipótese de Avogadro é mencionada de modo equivocado;
e)
é apresentada uma única hipótese de Avogadro antes da lei de Gay-
Lussac.
1
A primeira hipótese de Avogadro é também denominada lei ou princípio de Avogadro nos livros de Química Geral.
242
•
QUINTO CRITÉRIO: abordagem das dificuldades enfrentadas para a aceitação
do atomismo no século XIX.
Para o quinto critério foram definidas três categorias: a, b, c
a)
estas dificuldades não são mencionadas;
b)
o atomismo daltoniano é apresentado como uma teoria vencedora e sem
conflitos;
c)
menciona-se superficialmente as polêmicas entre partidários e adversários
da teoria atômica.
7.3 Os resultados obtidos
Os resultados obtidos estão resumidos na Tabela 1 a seguir. Para cada critério
buscamos identificar nos livros, a presença das diferentes categorias de análise
definidas previamente. Em um mesmo livro poderia ser identificada mais de uma
categoria. A legenda a seguir foi utilizada na composição da Tabela 1 (página 243):
Legenda: A simbologia CN foi utilizada para explicitar e numerar os critérios de
análise, onde C= critério utilizado para análise e N= número do critério
243
Tabela 1 - Resultado da análise dos livros didáticos fundamentada na história do
atomismo no século XIX
Legenda: CN
LIVROS
Brady e Humiston
2a. ed./ 1986 – vol.1
Brady et al.
3a. ed./ 2002 – vol.1
Brown et al.
7a. ed./ 1999
Brown et al.
9a. ed./ 2005
Bueno et al.
1978
Chang
5a. ed./ 1994
Garritz e Chamizo
2002
Kotz e Treichel
4a. ed./ 2002 – vol.1
Quagliano e Vallarino
1973
Mahan e Myers
4a. ed. 1993
Masterton et al.
6a. ed./ 1990
Russel
2a. ed./ 1994
Rozenberg
1973
Rozenberg
1a. ed/ 2002
Slabaugh e Parsons
2a. ed./ 1982
Sienko e Plane
7a. ed./ 1976
C= critério utilizado para análise e N= número do critério
C1
C2
C3
C4
C5
1a
1b
1f
1a
1b
2c
3c
4c
5a
5b
2c
3c
4c
5a
2c
3a
3c
4c
5a
2c
3a
3c
4c
5a
2c
3a
3b
3c
4c
5a
4c
5a
3a
3b
3d
3a
3c
4a
4b
4d
4c
5a
1a
1b
1f
1a
1b
1f
1a
1c
1f
1c
1d
2c
2a
2b
1a
1b
1d
1f
1c
2c
2c
3c
4e
5a
1b
1c
1d
1f
1a
1b
1a
2a
2b
3b
3d
4a
4c
5a
2a
2b
2c
3d
4a
4c
4c
5a
4a
4c
5c
4a
4c
5c
4a
4c
4c
5a
1d
1e
1f
1d
1e
1f
1a
1a
1b
1f
2a
2b
2a
2b
2a
2b
2c
3a
3c
3a
3b
3d
3a
3b
3a
3d
3a
3c
5a
5a
5a
Obs: Os livros que possuíam três autores ou mais, optamos por colocar nas tabelas o
sobrenome do primeiro autor e a expressão et al., em função do pequeno espaço disponível.
244
7.4 Analisando e discutindo os resultados
Muitas explicações têm sido apresentadas sobre as possíveis origens da teoria
atômica e como Dalton chegou a esta teoria. A literatura reconhece a complexidade
envolvida na reconstrução histórica deste episódio, como foi visto no Capítulo 6.
Uma visão indutivista ou em alguns casos puramente dedutivista da origem da
hipótese atômica de Dalton tem sido questionada, uma vez que, em ambos os casos
transmite-se uma visão distorcida dos fatos, ignorando-se a complexidade envolvida no
real contexto desta descoberta. Estes aspectos têm sido discutidos por cientistas e
historiadores no século XX que reconhecem o envolvimento de outros fatores, inclusive
a forte participação da intuição neste processo. A teoria daltoniana foi fruto da
combinação de intuição teórica e das suas observações realizadas durante seus
estudos sobre os gases e a atmosfera (FILGUEIRAS, 2004).
Por outro lado, não se percebe uma adequada contextualização histórica na
apresentação das leis de combinações químicas nos livros de Química Geral. Nem
todos os livros apresentam estas leis no capítulo que introduz a teoria atômica de
Dalton. Consideramos que a discussão destas leis deveria acontecer de forma
articulada com a origem da teoria atômica de Dalton e o processo de sua consolidação,
o que não tem acontecido de forma satisfatória.
Analisando os livros didáticos em relação ao primeiro critério estabelecido
(Tabela 1) percebemos que, a maioria dos livros apresenta a teoria atômica de Dalton
como tendo sido aquela que explicou ou se baseou nas principais lei de combinação
química (Lavoisier, Proust, Richter). Os trechos dos livros de Kotz e Treichel (2002) e
Russel (1994) a seguir, ilustram esta afirmação:
245
Kotz e Treichel, 2002, v.1 (p.42)
“As idéias de John Dalton foram aceitas pela comunidade científica porque elas
ajudavam os cientistas a entenderem duas leis científicas importantes que já eram
conhecidas: a lei da conservação da matéria e a lei da composição constante.”
Russel, 1994, v.1, (p.207)
“Em 1803, John Dalton, acreditando nas leis de conservação da massa e da
composição definida, propôs uma teoria que explicava estas e outras generalizações
químicas. De fato, Dalton ressuscitou o conceito grego da existência de átomos e foi
capaz de sustentar este conceito com evidências experimentais que ele e outros
obtiveram.” (Grifo nosso)
Grande parte dos livros didáticos de Química Geral, introduz o atomismo
filosófico dos gregos Leucipo e Demócrito (sec. V a.C.) e apresentam, em seguida, o
atomismo daltoniano (séc. XIX). Não existe a preocupação de informar, minimamente,
sobre o que aconteceu com o atomismo neste longo intervalo de tempo. Alguns livros,
como o Russel (1994), utilizam termos como “ressuscitou”, para se referir a retomada
do atomismo feita por Dalton, passando uma idéia equivocada que o atomismo esteve
‘morto’ por quase dois mil anos.
Uma parte desses livros (56,25%) explicita que Dalton chegou à teoria atômica
com base nas observações realizadas no laboratório, ou em seus estudos
experimentais. A ênfase na obtenção da teoria a partir de observações ou experimentos
reforça uma imagem empirista e indutivista da ciência. Nos dois trechos do livro de
Brown et al. (1999); (2005), em suas duas edições, podemos identificar esta visão:
246
Brown et al., 1999 (p.24)
“Dalton imaginou a sua teoria para explicar diversas observações experimentais.
Suas concepções eram tão fundamentais que sua proposta permaneceu intacta, na
essência, até os dias de hoje.”
Brown et al., 2005 (p.32)
“Dalton chegou à sua conclusão sobre átomos com base nas observações
químicas no universo macroscópico do laboratório.”
Embora muitos historiadores reconheçam o caráter controvertido da origem da
teoria atômica de Dalton (Capítulo 6) existe atualmente, uma visão consensual de que a
proposta teórica de Dalton sobre o atomismo, aconteceu para justificar os resultados de
suas pesquisas envolvendo estudos da atmosfera e de solubilidade de gases em água.
Esses estudos o levaram a formular a lei das pressões parciais dos gases e a primeira
teoria de mistura gasosa. No entanto, Dalton não partiu de análises químicas para
chegar a sua teoria, mas se voltou a elas, pois as suas idéias envolviam também
possíveis explicações das leis de combinações químicas. Sua teoria passou a fornecer
uma racionalidade para a lei das proporções constantes, explicando também, a lei dos
equivalentes químicos de Richter.
Outro ponto consensual é que Dalton deduziu a lei das proporções múltiplas após
a proposição da sua teoria; este fato só aparece em (50,0%) dos livros analisados.
Nestes livros destaca-se a importância do dedutivismo na ciência quando afirma que a
teoria de Dalton levou à dedução da lei das proporções múltiplas. Entretanto, alguns
livros apresentam esta lei como sendo fruto da aplicação do método científico,
247
transmitindo a idéia que existe um método científico que possibilita as grandes
descobertas científicas.
Brady et al., 2002, v.1 (p. 35)
“A descoberta da lei das proporções múltiplas é um belo exemplo da aplicação do
método científico”. (Grifo nosso)
Em apenas um único livro (ROZEMBERG, 1982; 2002), em suas duas edições, o
que representa (12,5 %) do total dos livros analisados, encontramos referência às
dificuldades dos historiadores em precisar a origem da teoria atômica daltoniana: “Entre
os historiadores existe alguma divergência quanto às circunstâncias que teriam levado
à sua formulação” (ROZENBERG, 1982, p. 53). Este livro dedica o seu primeiro capítulo
à História da Química e apresenta algumas informações históricas específicas nos
demais capítulos.
Avaliando a relação entre a lei de Gay-Lussac e a teoria atômica de Dalton
percebe-se que muitos livros apresentam a lei de Gay-Lussac no capítulo de gases,
não existindo a preocupação de articulação desta lei com a teoria atômica de Dalton, no
contexto em que foi formulada. Em alguns destes livros (37,5%) existe a tentativa de
relacionar esta lei com a teoria atômica; contudo, a ênfase é na falta de entendimento
entre Gay-Lussac e Dalton ou na possibilidade da teoria atômica de Dalton ter
explicado a lei de Gay-Lussac. A pesquisa histórica reconhece que esta articulação é
muito complexa, porque naquela época houve dificuldade para ser percebida pelos
próprios envolvidos (BENSAUDE-VINCENT, 1997).
248
A lei de Gay-Lussac foi proposta para explicar resultados de experimentos
obtidos através de reações entre gases. Esta lei foi publicada em 1808, porém Dalton
não a reconheceu como importante para ajudar na consolidação de sua teoria que,
contrariamente, sempre questionou a sua validade. Os resultados obtidos por GayLussac eram diferentes daqueles encontrados por Dalton; ele determinou uma taxa de
2:1 para a combinação do gases oxigênio com hidrogênio na formação da água,
enquanto Dalton havia proposto a proporção de 1:1. Esta lei foi bem recebida por uma
parte da comunidade científica, a exemplo de Berzélius que se baseou na mesma para
determinar a fórmula da água, H2O e a da amônia NH3. Estes resultados não foram
aceitos por Dalton que imaginava a água como HO e a amônia como NH.
(PARTINGTON, 1962; IHDE, 1984; BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992).
Posteriormente, Gay-Lussac reconheceu a importância do trabalho de Dalton e o
fato de seus estudos poderem dar sustentação à teoria atômica, ainda assim,
manifestou um comportamento ambíguo não valorizando a teoria de Dalton. A falta de
entendimento entre Gay-Lussac e Dalton exemplifica a influência de fatores externos na
dinâmica da ciência incluindo componentes de natureza política e filosófica e não
puramente científico (NYE, 1984; 1997; KUHN, 1996).
O exame da relação entre a lei de Gay-Lussac, a hipótese de Avogadro e a teoria
atômica de Dalton ratifica a tendência já detectada nos livros didáticos de não
articulação dos fatos e descontextualização histórica. Mais da metade dos livros
(56,25%) apresenta a lei da Gay-Lussac e a hipótese de Avogadro no capítulo de
Gases. Não existe a preocupação de relacionar adequadamente essas leis com a teoria
atômica de Dalton e os debates acontecidos sobre esta teoria na primeira metade do
século XIX. Quando algum tipo de relação é feita, predomina a ênfase de que a
249
hipótese de Avogadro explicou a lei de Gay-Lussac (62,5%) ou resolveu o impasse
entre Gay-Lussac e Dalton (37,5%). Apenas cinco livros se detêm mais nesta questão,
relacionando a lei de Gay-Lussac e a hipótese de Avogadro com a consolidação da
teoria atômica no século XIX e a necessidade de diferenciação entre os conceitos de
átomo e molécula naquele período.
A apresentação da hipótese de Avogadro nos livros didáticos é um assunto que
demanda grande interesse pois, em sua maioria, está muito distante da Química
presente no século XIX. A grande parte dos livros apresenta uma única hipótese de
Avogadro, que é na verdade a primeira de suas duas principais hipóteses. Estes
manuais apresentam esta hipótese usando comumente a seguinte frase: “volumes
iguais de gases diferentes, medidos nas mesmas condições de pressão e temperatura,
contém o mesmo número de moléculas”. A ênfase na apresentação desta hipótese é
dada na sua importância para a compreensão da lei de combinações volumétricas de
Gay-Lussac (68,75%).
Alguns livros, como Mahan e Myers (1993), destacam o fato da hipótese
(primeira) de Avogadro só ter sido aceita em 1860, aproximadamente cinqüenta anos
após a sua formulação e após o Congresso Internacional de Química de Karlshure, na
Alemanha. As causas para a não aceitação da hipótese de Avogadro no entanto, não
são priorizadas. Na apresentação deste episódio registra-se apenas a sua contribuição
para que os valores consensuais relativos aos pesos atômicos fossem acordados.
Nesse período, os químicos enfrentaram muitas dificuldades para encontrar um sistema
de pesos atômicos satisfatório (TOLENTINO; ROCHA-FILHO, 1994). O reconhecimento
da importância das hipóteses de Avogadro também foi fundamental para que
acontecesse a diferenciação entre os conceitos de átomo e molécula naquele período.
250
As leis de Avogadro estavam parcialmente baseadas nas investigações
realizadas por Gay-Lussac, que o teriam levado à lei de combinações de volumes
gasosos. Avogadro considerava que, como Gay-Lussac havia mostrado que “as
combinações dos gases têm lugar sempre segundo relações muito simples em volume”,
se fazia necessário admitir, também, a existência de “relações muito simples entre os
volumes das substâncias gasosas e o número de moléculas simples ou compostas que
as formavam” (BELLO; SANCHÈZ; RAMÓN, 2003, p.150).
Avogadro utilizou exemplos estudados por Gay-Lussac mostrando que as
dúvidas desapareciam caso se admitisse que as moléculas envolvidas nas reações
estudadas podiam ser quebradas em meia molécula, supondo a existência de
moléculas poliatômicas. Ele não usava o termo átomo e sim meia molécula ou seja, o
termo molécula integrante referia-se às moléculas compostas, e o termo molécula
constituinte era usado para as moléculas dos gases elementares (substâncias simples),
formados por um mesmo tipo de átomo (PAPP; PRELAT, 1950; IHDE, 1984; NYE,
1996).
Alguns livros quando tentam articular a lei de Gay-Lussac e a hipótese de
Avogadro com a teoria atômica, o fazem de maneira confusa. Um argumento
apresentado é que Dalton não tinha entendido as contribuições de Gay-Lussac e
Avogadro porque não aceitava a existência de moléculas diatômicas. Em um desses
livros são apresentadas duas hipóteses de Avogadro; no entanto, a forma como a
segunda hipótese é enunciada não está de acordo com os registros históricos e com a
hipótese originalmente formulada (Capítulo 6, p.189).
251
Garritz e Chamizo, 2002 (p.201)
“A relação existente entre os volumes de combinação e as fórmulas corretas dos
produtos formados foi estabelecida pelo italiano Amadeo Avogadro. As suas hipóteses
podem ser enunciadas assim:
1. Dois gases que ocupam o mesmo volume, nas mesmas condições de
temperatura e pressão, contêm o mesmo número de moléculas.
2. Certos elementos formam moléculas diatômicas, pois dois de seus átomos
formam agregados estáveis.”
Na sua segunda hipótese, Avogadro admitia que as moléculas dos gases
poderiam ter qualquer grau de molecularidade: [...] A saber, vamos supor que as
moléculas constituintes de qualquer gás simples não são formadas de uma molécula
elementar solitária, mas são feitas de um certo número dessas moléculas elementares,
unidas por atração para formar uma molécula única (AVOGADRO, 1811, apud
LEICESTER; KLICKSTEIN, 1952, p.232).(Grifo nosso)
Em relação às dificuldades enfrentadas pelo atomismo no século XIX, percebe-se
que a maior parte dos livros (87,5%) não aborda esta questão mesmo de forma
superficial, ignorando os debates e disputas existentes entre os atomistas e antiatomistas naquele período. Predomina nos manuais a apresentação dos resultados da
ciência de forma descontextualizada e algumas vezes distorcida ou equivocada.
Na maioria dos livros, o “atomismo daltoniano” é apresentado como uma teoria
vencedora (naquele período) e que não enfrentou conflitos durante o século XIX,
mesmo que este fato esteja apenas implícito nos textos. No entanto, em pelo menos
252
dois manuais este ponto de vista encontra-se bastante explícito, como podemos
observar nos trechos a seguir:
.
Brady e Humiston, 1986, v.1 (p.18)
“A teoria atômica de Dalton obteve tanto sucesso na explicação das leis da
Química, que foi aceita quase que imediatamente” (Grifo nosso)
Kotz e Treichel, 2002, v.1 (p.42)
“Embora somente em 1860 se tenha estabelecido um conjunto consistente de
massas relativas dos átomos, a idéia de Dalton, de que as massas dos átomos eram
cruciais para a química quantitativa, foi aceita a partir do início do século XIX.” (Grifo
nosso).
Apenas um livro (ROZEMBERG, 1982; 2002), nas suas duas edições, menciona
a existência de polêmicas entre partidários e adversários da teoria atômica no século
XIX, embora não aprofunde a questão:
Rozenberg, 2002 (p. 46)
“O século XIX com o aparecimento dos trabalhos de John Dalton assistiu ao
triunfo definitivo dos atomistas sobre os partidários do contínuo.”...
Percebe-se que disputas como as que envolveram equivalentistas e atomistas ou
energeticistas e atomistas só têm valor histórico, pois não estão presentes nos livros e
não são utilizadas minimamente para fins didáticos.
253
Constatamos a ênfase na figura de Dalton como o grande mentor da teoria
atômica moderna com bases científicas, na maioria dos livros analisados, reforçando
uma imagem individualista e elitista do cientista e do seu trabalho. Não existe a
preocupação em se destacar outros cientistas, que também contribuíram neste
processo, ajudando no progresso da ciência. Os trechos dos livros selecionados a
seguir apresentam indícios desta constatação.
Chang, 1998 (p.37)
“Foi em boa parte devido ao discernimento de Dalton que a Química pode
progredir muito no século XIX.”
Sienko e Plane, 1976 (p.26)
“A teoria de Dalton permitiu responder a muitas das perguntas levantadas pelas
observações da época. O átomo simples, indivisível, desprovido de estrutura, podia
explicar todas as observações a respeito das relações ponderais nas reações
químicas.” (Grifo nosso)
Garritz e Chamizo, 2002 (p.193)
“O primeiro que formalizou, do ponto de vista quantitativo, que os átomos tinham
de existir foi Dalton[...]” (Grifo nosso)
Nos manuais didáticos predomina uma visão linear e acumulativa da história do
atomismo a partir do século XIX; uma teoria gradativamente aprimorada que se tornou
254
pronta no século XX, gerando os inúmeros modelos propostos para tentar representar a
desafiante ‘entidade’: o átomo.
Os trechos dos livros analisados citados anteriormente revelam, de certa forma, o
modo como a teoria atômica de Dalton é apresentada nos livros didáticos de Química
do terceiro grau, contribuindo para que a visão recebida sobre o assunto seja
desprovida de historicidade.
Observamos que existe uma grande distância entre as conclusões dos
historiadores da ciência e as informações históricas transmitidas nos livros didáticos ou
na imagem de ciência possibilitada por esses manuais. Este é uma fato preocupante,
uma vez que, os livros didáticos constituem-se nas principais ferramentas que
fundamentam o trabalho didático da maior parte dos professores.
Os pesquisadores do campo da Didática das Ciências têm procurado caminhos
que aproximem a História da Ciência e a Didática da Ciência, afim de possibilitar o
diálogo entre os dois campos que, certamente, poderá trazer benefícios mútuos.
Consideramos que avaliações sobre a abordagem feita pelos livros didáticos de
certos acontecimentos históricos poderão ajudar a melhorar a qualidade desses
manuais, numa perspectiva mais contextualizada, tomando-se como referencial de
análise o contexto sócio-histórico investigado.
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Oki, Maria da Conceicao Parte 1 - RI UFBA