A crítica literária e o hipertexto
Luciano Barbosa Justino (UEPB)
Resumo:
Como textualidade aberta e infinita (LANDOW, 2008), o hipertexto exige
um outro conceito de obra de literária, quiçá sua total superação ao
pressupor a passagem do receptor, passivo e estático, para o interagente,
ativo e dinâmico. A crítica literária, neste contexto, precisa redefinir
seus pressupostos para dar conta do que excede a textualidade e a
imanência para alcançar um objeto dinâmico que é tátil, efêmero,
múltiplo e, sobretudo, participativo, só assim poderá dar conta de uma
história determinada, a nossa.
Palavras-chave: crítica literária, teoria da literatura, hipertexto.
Abstract: The hypertext represents a important modification on the
criticism and suggests a new concept of literatura. The new kinds of
readering and involving with the text open several possibilities to the
literary practice.
Key-words: criticism, theory of literature, hypertext.
O desenvolvimento tecnológico e científico contemporâneo tem na expansão
dos processos semióticos um dos seus pilares. Todo período histórico é marcado por
uma ferramenta mnemotécnica que lhe dá suporte sócio-cultural (Cf. DEBRAY,
1995), a modernidade tem no livro e na instituição do letramento sua dominante
cultural. A partir dos anos 90 do século XX, assistimos ao início de uma nova
dominante histórica, marcada por uma nova ciência, na qual as noções de caos e
incerteza viraram signos de positividade, e em cujas máquinas de linguagem
sobressaem maneiras diversas, em alguns aspectos totalmente novas, de se lidar
com os signos e os suportes, em que sobressaem novos processos cognitivas e novas
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relações entre os textos e as culturas. A esse novo tempo Antonio Carlos Xavier
(2009) chamou de a era do hipertexto.
Mas a era do hipertexto está inserida ou representa a culminância de um
processo que se inicia na segunda metade do século XX e que consiste numa
reflexão profunda sobre a validade dos diversos paradigmas da modernidade. No
que diz respeito às artes e às linguagens, a canonização dos modernismos trouxe
consigo uma crise da própria legitimidade das obras artístico-literárias enquanto
tais. A essa irredutível contradição pouco se tratou, e ela está na origem das
questões mais importantes que o debate sobre a relação hipertexto e arte digital
suscitam na literatura e na arte em geral. Canonizar o modernismo é canonizar
aquilo que tem por princípio destruir toda e qualquer canonicidade, colocar no
museu exatamente aquelas obras que tinham na recusa da instituição-museu um
dos seus princípios de sentido, atesta um novo estágio da arte, da literatura e, em
última análise, da relação dos humanos com o sentido. No que diz respeito à
literatura, a anti-poesia e o anti-romance não raro foram erigidos como modelos
maiores de poesia e de romance. Em 1966, naquele que foi talvez seu texto mais
incisivo e violento, Roland Barthes afirmava que “libertamos a obra das coações da
intenção, reencontramos o tremor mitológico dos sentidos. Ao apagar a assinatura
do escritor, a morte fundamenta a verdade da obra, que é enigma” (1997, p.59).
Se a recusa bartheseana da autoria e da crítica tradicional se deve a sua
preferência por um aprofundamento do projeto das vanguardas modernistas em
nova base, esse seu pequeno texto revela a abertura para um outro tempo, a da
própria crise da instituição literária enquanto tal e da crítica em particular.
O hipertexto, não só enquanto linguagem, mas enquanto prática social de
linguagem, encontra nesta mudança de paradigma do conceito de literatura um
espaço ideal tanto para aprofundar a crise quanto para se colocar como alternativa
a ela.
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Se Barthes queria a morte do autor para erigir a obra como lugar da
atividade crítica, o hipertexto põe em xeque tanto a relevância da autoria quanto a
da própria obra, na medida em que implica a multiplicidade das relações entre
textos e leitores. O que se altera não é só a produção, historicamente próxima do
autor, é a circulação dos textos em um novo ambiente e o estatuto assumido por
um leitor que não raro participa da elaboração do texto, a cuja experiência Lopes e
Cabrerizo (2008) chamaram de lectoescritura.
Todo suporte de linguagem implica extensões semióticas e extensões
sensórias. Pode-se dizer que durante séculos, a teoria e a crítica literárias tenham
negligenciado as extensões sensórias do uso mais crítico e criativo da escrita
fonética, a literatura. Mesmo a poesia, sua mais intransigente resistência acabou se
rendendo quando o verso livre subtrai o corpo pelo discurso. O projeto modernista
não é só a constituição da autonomia do texto literário ou, como investigou Pierre
Bourdieu, a lenta e difícil construção de uma autonomia de campo. É sobretudo a
constituição de uma enunciação que se pretende inteira no enunciado, cuja
experiência limite é Le livre de Mallarmé. Não quero com isso dizer que a
literatura, nossa ciência do cotidiano, tenha sido servil a este projeto ideológico da
modernidade, resistiu a ela tanto quanto pôde, o próprio sonho de Mallarmé é
ambíguo na medida em que nele uma utopia hipertextual se mostra a todo
instante, daí já se ter dito mais de uma vez ser ele um poeta pré-informático. A
literatura como o espaço privilegiado do enunciado em detrimento da enunciação
deve-se muito à institucionalização do ensino da literatura como um dos pilares do
letramento. É a esse processo que Dominique Maingueneau chamou de “discurso
constituinte”, o discurso de auto-validação próprio da literatura moderna:
O caráter constituinte de um discurso confere a seus enunciados um
estatuto particular. Mais que de “texto”, e mesmo de “obra”, poderíamos
falar aqui de inscrições, noção que desfaz toda distinção empírica entre
oral e gráfico: inscrever não é forçosamente escrever. Uma inscrição é por
natureza exemplar; ela segue exemplos e dá exemplo. Produzir uma
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inscrição não é tanto falar em seu nome quanto seguir o rastro de um
Outro invisível, que associa os enunciadores-modelo de seu próprio
posicionamento e, para além disso, a presença da fonte que funda o
discurso constituinte: a tradição, a verdade, a beleza... A inscrição é
assim profundamente marcada pelo oxímoro de uma repetiçao
constitutiva, a repetição de um enunciado que se situa numa rede repleta
de outros enunciados (por filiação ou rejeição) e se abre à possibilidade
de uma reatualização. Por sua maneira de situar-se num interdiscurso,
uma inscrição apresenta-se ao tempo como citável. Essa noção de
inscrição supõe, como efeito, uma referência à sua dimensão
“midiológica”, para retomar uma expressão de Debray, a suas
modalidades de suporte e de transporte (MAINGUENEAU, 2006, p. 63)
Noutra perspectiva, mas alcançando para o que se propõe o mesmo resultado,
Pascale Casanova (2002) sugere a ilusão de um espaço encantado, reino da criação
pura:
Esse imenso edifício, esse território percorrido muitas vezes e sempre
ignorado, permaneceu invisível por repousar em uma ficção aceita por
todos os protagonistas do jogo: a fábula de um universo encantado, reino
da criação pura, melhor dos mundos onde se realiza na liberdade e na
igualdade o reinado do universal literário. Foi até mesmo essa ficção,
credo fundador proclamado no mundo inteiro, que ocultou até hoje a
realidade das estruturas do universo literário (CASANOVA, 2002, p. 26);
A experiência hipertextual nos obriga a romper com o conceito de texto e de
textualidade da teoria e da crítica literárias tal qual se constituíram ao longo do
século XX. A história da literatura impressa está diretamente associada ao lugar
ocupado pelo livro nas culturas ocidentais em cuja trajetória a leitura silenciosa
ocupa um lugar central, da qual o conceito de obra literária e os modelos de leitura
a ela direcionados não podem se dissociar. Não obstante alguns pesquisadores
terem mostrado, um tanto metaforicamente, que a prática hipertextual é corrente
na literatura, associando-a às rupturas da narrativa não linear de Cortazar, Borges
ou Osman Lins ou às relações entre textos sempre postas no horizonte de trabalho
da literatura comparada (Cf. LANDOW, 2008; VILLAÇA, 2002), deve-se evitar o risco
de diluir as diferenças entre uma prática substancialmente visual e no mais das
vezes monossemiótica com uma textualidade multissensorial e intersemiótica. De
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um ponto vista textual, é inegável que o hipertexto abre uma crise na crítica de
arte e de literatura ao não mais pressupor o crítico decifrador e ao pôr sob suspeita
um conceito de obra fechada sob o duplo domínio do autor e da instituição
literária.
Diante de uma experiência de linguagem que é sonora, visual e verbal, além
de conectada em rede, o hiperleitor modifica sua relação com o sistema literário,
com os gêneros tradicionais e com as tradições literárias. O hipertexto não
encontra um hiperleitor destituído de qualquer prática de leitura, o leitor de
literatura tem amadurecido um horizonte de expectativa que precisa tanto ser
acionado pela nova textualidade quanto superado por ela (HAYLES, 2009). Embora
não descarte a longa tradição recepcional da literatura impressa, antes estando
situado na continuidade, não numa ruptura radical, com a nova textualidade
literária, o hiperleitor tem em mãos uma criatividade compartilhada e um
conteúdo que não é só recebido para deciframento, precisa ser também criado.
Contudo, penso que a diferença mais importante da atividade literária
hipertextual em relação à literatura impressa se dá em duas outras frentes, que eu
chamaria de cognitiva e política.
A experiência hipertextual traz uma mudança cognitiva importante na
prática de leitura por envolver uma recepção não apenas cerebral, envolve
interações performativas com as palavras que funcionam no espaço da tela como
objetos, possuem texturas, cores, movimentos, sons e não raro exigem ser tocadas.
O hiperleitor não é mais um observador, mas um sujeito inserido em um processo.
A materialidade do hipertexto retira o hiperleitor do domínio sensório da visão, um
efeito do letramento, para inseri-lo num outro ambiente neuronal, emocional e
cognitivo. Como sugeriu Kerckhove (2003), o hiperleitor precisa de uma outra
estratégia cognitiva pois o controle do movimento, que na leitura impressa era
dado fundamentalmente pelo ritmo do próprio olhar, no hipertexto se altera pela
dinâmica que já não é pressuposta por ele exclusivamente, é inerente a uma outra
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temporalidade advinda do caráter cinético do vídeo digital, que aciona uma
experiência em larga medida tátil própria de um estágio que vai além da interação
para dar conta de uma alter-ação, ação com outro (POISSENT, 2009, p. 78). Neste
sentido, a reflexão sobre a literatura eletrônica não pode negligenciar uma
abordagem ecológica, não de uma ecologia da natureza, mas de uma ecologia do
ambiente maquínico e de seus interagentes.
A
alter-ação
implica
uma
nova
dimensão
semiótica
num
meio
necessariamente híbrido como o vídeo digital, exige uma saída do signo
representativo, signo-distância, para uma semiose próxima, textural e tocável. Não
se pode, contudo, compreender a ação de tocar como inerente ao corpo ou a uma
faculdade corporal simples. Na verdade, os usos do corpo são altamente
codificados e estão atrelados ao que há de mais especificamente cultural. Tem-se
que compreender a semiose háptica de estou tratando, com o correlato uso do
corpo e do tocar, como aquilo que há de mais local e situado, culturalmente,
socialmente, afetivamente. Os usos do corpo não podem ser abstraídos, diluídos no
caráter planetário da experiência em rede. O retorno de certa perfomatividade e
de uma poética fática implica uma relação contextualizada no limite daquilo que
há de mais próximo entre o eu e o outro que o constitui na relação e ambos só
interagem na medida em que estão culturalmente situados de uma maneira a um só
tempo nova, própria da especificidade que o hipertexto propicia, e tão antiga
quanto a chegada do homem. Sob este aspecto, uma tal poética aberta pelo
hipertexto e pela literatura eletrônica é um outro lance local num ambiente que
em geral é tratado como globalizante e planetário. Na melhor das hipóteses,
estamos diante de uma globalidade situada num espaço-tempo inalienavelmente
delimitado pela interação.
Este local da literatura hipertextual é o que quero relacionar a uma mudança
de potencial político, pois diz respeito às relações do homem com os objetos
culturais e com os bens materiais, e traz a necessidade de refletirmos sobre os
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substratos ideológicos do conceito de obra de arte como obra prima associada a um
autor-proprietário que não só tem controle sobre os direitos autorais do que
escreve, quanto faculta muito dos seus potenciais de interpretação e uso, dos quais
nem as mais fecundas abordagens literárias, como a teoria da recepção, foram
capazes de sair totalmente. Nas palavras de Erkki Huhtamo:
O tatiloclasmo que veio dominar a instituição do museu, e que em muitos
aspectos ainda hoje é válido, foi uma combinação de fatores-idéias sobre
domínio público e propriedade privada, noções de acesso e educaçao,
hierarquias sociais traduzidas em relações com os objetos, supervisão e
proteção (o museu pôde ser visto como um maquinário ideológico cujo
objetivo era atenuar e amenizar tensões sociais crescentes) (HUHTAMOS,
2009, p. 117).
A alter-ação do sujeito participante, reabilitação de sentidos esquecidos e
necrosados e ação sobre os signos, as linguagens, os suportes e as relações
discursivas, implica uma nova prática crítica capaz de dar conta de uma atividade
que não é lingüística, é sobretudo intersemiótica e política, espaço de uma
ambigüidade criativa e potencialmente transformadora da dinâmica do global e do
local.
Se para Terry Eagleton (2009, p. 15), a função da crítica é “uma explicação
mais cabal da obra literária, o que implica uma atenção inteligente às formas,
estilos e sentidos desta, mas implica também uma concepção dessas formas, estilos
e sentidos como produtos de uma história determinada”, o hipertexto coloca
questões novas que exigem uma outra concepção tanto da literatura quando do
próprio conceito de história, alterando cabalmente a função da crítica literária
enquanto tal para dar conta de uma história determinada, a nossa.
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