O MANUEL E A MARIA
A descoberta, no bebé, de uma doença associada a uma situação de
deficiência grave deve ser comunicada aos pais com muito cuidado e
sensatez, dado ser um assunto que se reveste do maior significado
emocional. A revelação, aos pais, de que o bebé tem estigmas de uma
doença grave, deve ser feita pelo pediatra, em ambiente de estrita
privacidade, e só após se ter estabelecido um bom vínculo afectivo entre
os pais e o filho, de forma a reduzirem-se as possibilidades de rejeição A
informação deve ser simples e adequada às condições sócio-culturais
dos pais e da família. Sempre que possível, os profissionais devem
enfatizar as capacidades e não as dificuldades das pessoas com
deficiência. O contacto do bebé com a mãe, com o pai, com os irmãos,
com os outros familiares ou amigos, à semelhança do que acontece com
qualquer outro recém-nascido, deve processar-se de uma forma natural.
Mas a realidade é muito estranha. Mesmo quando o pediatra cumpriu, de
uma forma exemplar, todos os preceitos anteriormente mencionados,
informando os pais de uma forma irrepreensível, não é raro que estes
demonstrem uma grande insatisfação pela forma como a notícia foi dada.
Logo após a revelação de que o bebé tem uma doença grave, os pais
experimentam um sentimento de profunda tristeza, angústia e sofrimento.
Em conjunto, de uma forma cúmplice, os pais imaginaram e sonharam,
muito antes de iniciada a gestação, com um bebé saudável, bonito e
muito perfeito. A notícia de que o bebé terá, com toda a probabilidade,
um défice cognitivo (designação preferível, por vários motivos, às
anteriores terminologias de atraso mental e de deficiência mental), ainda
por cima acompanhado de estigmas físicos evidentes e indisfarçáveis,
causa, de um modo geral, um profundo desgosto. É um período
indescritivelmente
difícil
e
os
pais
precisam
de
muito
apoio.
Frequentemente, os pais desejam que o bebé não consiga sobreviver à
infecção, à doença respiratória ou à doença cardíaca (não é raro que
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verbalizem estes sentimentos). Posteriormente, há uma tentativa de
negação do diagnóstico: o bebé é parecido com a mãe ou com o pai ou
com qualquer outro familiar; é mais um dos frequentes enganos médicos,
já que ele não parece apresentar os habituais sinais da doença: é muito
activo, mama com muita força, está muito interessado pelo ambiente
circundante e até já consegue segurar, de forma incipiente, a cabeça
(coisas que os irmãos ou primos só fizeram muito mais tarde).
Mas, infelizmente, os erros médicos relativos a diagnósticos de doenças
graves
são
pouco
frequentes,
e
os
pais,
com
mágoa,
vão-se
consciencializando da veracidade e da inevitabilidade do diagnóstico.
Então, revoltam-se contra tudo e contra todos: contra o pediatra que não
foi humano nem delicado a dar a notícia; contra aquela senhora que, na
maternidade, partilha o mesmo quarto, e que deu à luz um recém-nascido
perfeito, fruto de uma gravidez indesejada e não vigiada; contra a falta de
humanidade e de sensibilidade dos profissionais de saúde, que parecem
mostrar uma total indiferença face à sua tragédia; contra o obstetra que
não conseguiu prever esta situação; contra os amigos que não
conseguem disfarçar um intolerável sentimento de piedade; contra a falta
de condições da maternidade; contra os políticos que não propõem
medidas eficazes para minimizar o sofrimento das pessoas com
deficiência e das respectivas famílias; contra Deus que, sem quaisquer
critérios plausíveis ou perscrutáveis, permite a gestação e o nascimento
de crianças doentes, defeituosas e totalmente desprotegidas. Mas,
lentamente, progressivamente, os pais vão descobrindo que o bebé é,
afinal, como os outros. E começam a achar o bebé bonito. E começam a
encontrar semelhanças físicas com um qualquer familiar. E notam que a
avó começa a gostar muito do bebé e que inventa mil e uma razões para o
pegar ao colo. E notam que os amigos já brincam com o bebé sem ser
por obrigação ou por piedade. E ficam maravilhados com as trocas do
olhar durante os raros períodos de alerta do bebé. E, a todo momento,
tiram fotografias e fazem vídeos. E, quando mais tarde, se dirigem ao
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infantário, todas as educadoras e auxiliares da instituição interrompem o
seu trabalho, de uma forma espontânea, e vêm ver o novo bebé de que já
tinham ouvido falar. E, expondo os habituais argumentos profissionais,
todas as Educadoras disputam, aberta e activamente, a recepção do
bebé. E quando a Directora toma a decisão, a educadora escolhida não
cabe em si de contente, embora a sua colega preterida não consiga
esconder uma lágrima. E os pais, comovidos, formulam a inevitável
pergunta ao pediatra: "- O bebé é um caso bom, não é Sr. Dr.? " A magia
deu-se. Os pais iniciam, agora, um lento processo de aceitação e
começam a sentir-se melhor com o bebé e, tal como os pais das outras
crianças, contam, entusiasmados, a quem quer que seja, as últimas
gracinhas e anotam, escrupulosamente, as mais recentes aquisições do
desenvolvimento.
Compreendem que já não são mais os pais de uma criança deficiente e
que o bebé, antes de tudo, chama-se e responde pelo nome de MANUEL
ou de MARIA. Compreendem que o bebé é uma pessoa com vida própria,
com afectos, com emoções, e que os estigmas físicos da doença
correspondem, tão-somente, a aparências ou a aspectos meramente
superficiais. Compreendem que, para além ou por detrás das aparências
físicas, de um estado de doença, de vulnerabilidade ou de desvantagem,
existe
uma
pessoa,
como
qualquer
outra,
que,
em
dimensões
naturalmente peculiares, sabe rir, sabe chorar, sabe compreender, sabe
sofrer, sabe pensar e sabe amar. Compreendem, em suma, que o bebé
tem uma identidade e descobrem que adoram, até à loucura, o MANUEL
ou a MARIA e que gostam tanto dele ou dela como dos outros filhos.
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O MANUEL E A MARIA A descoberta, no bebé, de uma