Cotas raciais para o serviço público e o mercado de trabalho
Uma política ou ação afirmativa é uma medida especial e temporária que visa eliminar desigualdades
historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de tratamento e de oportunidades. As ações
afirmativas visam influenciar a política, a economia e a cultura de um país ou região, com vistas a não
só diminuir a desvantagem de um grupo étnico ou social como também de valorizá-lo culturalmente.
Elas nasceram na década de 1960 nos EUA, como forma de promover a igualdade entre brancos e
negros. No entendimento de muitos juristas, inclusive dos ministros do STF, numa sociedade crivada
por diferenças, as ações afirmativas garantem a igualdade material, definida pela frase “tratar
desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade”.
No Brasil, elas começaram a ser adotadas no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. O programa
pioneiro foi o lançado pelo Itamaraty: o Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco, órgão
responsável pela formação dos diplomatas. O programa está baseado na concessão de bolsas a
afrodescendentes em cursos preparatórios para o processo de seleção do Instituto. Em nove anos, 17
ex-bolsistas passaram a fazer parte do corpo diplomático.
Em 2011, o Itamaraty deu um passo adiante, criando também uma cota de vagas para negros na
primeira etapa do processo seletivo.
Entre as razões que levaram o Itamaraty a adotar um programa de ação afirmativa está o fato de que
a diplomacia é uma carreira que sofria de uma percepção social elitista; segundo, é uma carreira que
representa o País e houve o entendimento de que essas duas questões deveriam ser enfrentadas. Por
fim, em Durban [durante a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a
Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância], o Itamaraty assumiu o compromisso de promover
ações afirmativas.
Em 2001, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) a Universidade Estadual do Norte
Fluminense (Uenf) criaram cotas para negros nos seus processos seletivos, depois de um primeiro
ano em que o vestibular de ingresso reservou vagas para alunos vindos de escolas públicas. Em 2003,
a Universidade de Brasília (UnB) aprovou a criação das cotas raciais, numa iniciativa inédita entre as
federais. Hoje, essas cotas tornaram-se lei para todas as universidades federais do país.
Para além das cotas, em 2003 foi criada a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
que, desde essa época, vem formulando e articulando políticas públicas afirmativas de promoção da
igualdade racial. Uma de suas conquistas foi a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial.
Embora ainda haja um enorme caminho a ser trilhado, o país tem demonstrado, nos últimos anos,
vontade política para enfrentar o problema da desigualdade racial com ações concretas e ações
afirmativas.
Questão de estatística e de consciência
Isto ocorre tanto pelos números da participação dos negros na sociedade brasileira, quanto pela
consciência cada vez maior de que a nossa desigualdade não é apenas social, é também racial e sem
um recorte específico, não será superada.
Um trabalho realizado pelo Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos (Dieese) de
2010 sobre a inserção do negro no mercado de trabalho mostra que a população negra predomina na
população brasileira, é mais jovem, tem mais filhos, é mais pobre e está mais exposta à mortalidade
por causas externas, especialmente homicídios.
Nos últimos anos, com as políticas compensatórias, houve ascensão social. De acordo com a última
Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD), são negros 80% dos mais de 40 milhões de
brasileiros que subiram à classe C. Nas universidades, eles são 921 mil entre 3,5 milhões de
estudantes. Uma porcentagem pequena se comparada ao total de universitários, mas já grande o
suficiente para fazer diferença no mercado de trabalho. E como este se comporta em relação à
inclusão de negros?
A pesquisa de 2010 do Dieese mostra que os negros predominam no setor agrícola (61,5%), na
construção civil (60,1%), nos serviços domésticos (61,8%) e em atividades mal definidas (73%). Ou
seja, mesmo com o avanço social e educacional, os negros ainda não têm oportunidade de ocupar
posições mais qualificadas em setores de ponta da economia brasileira. Isso acaba por se refletir na
remuneração. Em termos salariais, o rendimento médio do homem negro ainda é metade do
homem branco. A mulher negra está mais embaixo nessa escala: recebe, em média, 30% do salário
do homem branco e metade daquele da mulher branca.
Nas empresas, a pesquisa Ethos-Ibope sobre “Perfil Social, Racial e de Gênero nas 500 maiores
empresas do país”, lançada em 2010, mostra variação positiva na ocupação de cargos por negros e
por negras, mas ainda aquém da participação deles no total da população brasileira.
Nos quadros funcionais, entre 2003 e 2010, a participação de negros ampliou-se de 23,4% para
31,1%. Nos cargos de supervisão, a evolução foi de 13,5% para 25,6%. No âmbito gerencial, a
participação subiu de 8,8% para 13,2%. Entre os executivos, a proporção variou de 2,6% para 5,3%.
Marco nas relações sociais no Brasil
Depois de uma década de políticas voltadas à promoção da igualdade racial, é possível apontar
alguns efeitos positivos, segundo os próprios movimentos negros. Para esses representantes, o
principal resultado é intangível, mas importantíssimo: colocar, definitivamente, a discriminação e o
preconceito na agenda pública, mudando a lógica dos debates que sempre foram no sentido de
criminalizar o racismo, mas não de enfrentá-lo com ações afirmativas. A integração racial ficava por
conta das forças sociais ou das “forças de mercado”, o que não ocorria. A intervenção do Estado é
que está fazendo a diferença, nessa década.
Esse plano do governo federal a ser anunciado em novembro vai buscar aprofundar os efeitos das
políticas afirmativas, por meio da gestão integrada e coordenada das ações em nível federal. Assim, a
cota para negros no serviço público é apenas uma das pontas de um Plano Nacional cujas ações vão
também influenciar a cultura e a educação.
No âmbito do emprego, o plano deve estabelecer a cota de 30% de vagas para negros no Executivo
federal, incluindo os cargos comissionados. Para o setor privado, o Plano deve criar incentivos fiscais
para as empresas que contratarem mais negros (embora o empresário não será obrigado a fazer isso)
e punir aquelas que comprovadamente discriminarem pessoas em razão da cor da pele.
Na cultura, a ideia é incentivar os produtores culturais negros. Na Educação, além da regulamentação
das cotas para as universidades federais, haverá ainda o monitoramento da situação de negros
cotistas depois de formados; oferecimento de auxílio financeiro a cotistas, durante a graduação; e
reserva de parte das bolsas do Ciência Sem Fronteiras, programa do governo federal que financia
estudos no exterior.
Esse plano, ao usar unicamente critérios raciais, é mais cirúrgico que as cotas universitárias, uma vez
que elas se destinam a egressos do sistema público de educação e, apenas depois, faz menção a
negros. Com isso, inaugura uma nova fase nas relações sociais no Brasil, na qual a questão do negro
não ficará mais escondida sob o manto da “democracia racial” e será enfrentada com instrumentos
de uma sociedade democrática.
Qual o papel das empresas?
Em 2010, quando o STF julgava a constitucionalidade das cotas universitárias, o atual presidente
dessa corte, ministro Joaquim Barbosa, escreveu o seguinte, em defesa do papel das empresas na
promoção da igualdade racial:
“A adequação do elenco de profissionais às realidades verificadas na região de operação da
empresa… estimula as unidades empresariais a demonstrar sua preocupação com a diversidade
humana de seus quadros. Isto não significa que uma dada empresa deva ter um percentual fixo de
empregados negros, por exemplo, mas, sim, que esta empresa está demonstrando a preocupação em
criar formas de acesso ao emprego e ascensão profissional para as pessoas não ligadas aos grupos
tradicionalmente hegemônicos em determinadas funções (as mais qualificadas e remuneradas) e
cargos (os hierarquicamente superiores).”
Contribuir para, num espaço de tempo relativamente curto, igualar os direitos de brancos e negros
no país. Pode fazer isso: contratando negros (e não precisa esperar incentivos do governo para agir
assim); criando um ambiente interno propício à tolerância racial, com campanhas que valorizem a
contribuição de todos os grupos sociais e étnicos para o sucesso do negócio; estabelecendo políticas
de promoção interna que agreguem ao mérito a proporção étnica.
O Brasil será um país melhor se for um país mais igual para todos.
16/10/2012
Fonte: Instituto ETHOS
http://www3.ethos.org.br/cedoc/cotas-raciais-para-o-servico-publico-e-o-mercado-detrabalho/#.UJKqHmf8EbA
Acesso em 01.11.2012
Colaboração: Prof. Hilário Domingues Neto
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