Cotas Raciais:
é essa a solução?
D
RACIAL QUOTAS: IS THIS THE SOLUTION?
ada a enorme iniqüidade do sistema escolar brasileiro,
que afeta as crianças e jovens de baixa renda e, com ainda
maior gravidade, a população negra, são indispensáveis
políticas compensatórias que promovam uma distribuição mais eqüitativa do capital escolar. A proposta de cotas para ingresso nas universidades públicas, entretanto,
é uma medida desaconselhável por diversas razões.
Precisamos reconhecer que os exames vestibulares, ao
contrário do mercado de trabalho, não discriminam os
candidatos por origem étnica, gênero, idade ou deficiência física. As provas
são corrigidas por computador (com exceção da dissertativa) e sempre
anonimamente. O vestibular discrimina, sim, por qualidade da formação
escolar anterior.
Dessa forma, a razão pela qual poucos negros e pobres ingressam na
universidade reside no fato de que a formação que receberam no ensino
fundamental público foi insuficiente para superar as dificuldades associadas
à pobreza. Há uma forte relação (no mundo todo) entre níveis de renda e
de escolarização. Isso não quer dizer que só os ricos ingressem na universidade: a maior parte dos estudantes universitários provém das camadas
médias e médias-baixas. São os níveis mais baixos de renda os prejudicados.
É fácil entender por que isso ocorre e a sua correlação ao nível de escolaridade dos pais. Filhos de pais analfabetos ou que mal completaram a 4.ª
série, e de origem rural recente, ocupam as posições mais mal remuneradas
do mercado de trabalho e constituem a maior parte das camadas mais pobres
da população. Os filhos desses pais vivem num ambiente cultural muito limitado, em cujas casas não existem livros, jornais, revistas, papel para desenhar, lápis de cor, isto é, num ambiente não letrado. O ajustamento à escola,
especialmente para aqueles que não freqüentaram o ensino infantil, é penoso.
A formação dos professores e a pedagogia utilizada na escola são
inteiramente inadequadas para promover o ajustamento dessas crianças à
realidade escolar. Exemplo disso é a prática de mandar os alunos fazer
pesquisas, sem ensiná-los a tanto e sem fornecer-lhes o material adequado. Esse tipo de tarefa supõe que os estudantes terão o auxílio de membros da família e que, nas casas, haverá material relevante. Tarefas como
essa apresentam dificuldades insuperáveis às crianças cujos pais não são
escolarizados, condenando-as ao fracasso. Já o fracasso leva à discriminação por parte dos professores ou à omissão deles – essas crianças são
deixadas de lado. Sem a atenção carinhosa do professor, sem o controle
da discriminação, por parte dos coleguinhas brancos, da qual são vítimas
os estudantes negros (muito mais comum do que se imagina), tal situação não será superada. Soma-se a isso a necessidade de as crianças trabalharem muito cedo para auxiliar no orçamento doméstico.
Impulso, Piracicaba, 17(43): 143-144, 2006
Imp43_miolo_k.pdf 143
Black
EUNICE R. DURHAM
Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas
da Universidade
de São Paulo (USP)
[email protected]
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Não admira que boa parte dessa população sequer complete o ensino fundamental, não tendo, assim, nem a possibilidade formal de fazer
o ensino médio. A cota não servirá para esses casos, que constituem a
grande maioria da população negra e pobre. Essas são as razões básicas
pelas quais negros e pobres não conseguem competir com jovens brancos
(ou mesmo negros) de classe média. Tentar resolver o problema não na
base, na qual ele é criado, mas no ingresso na universidade, corresponde
a oferecer uma aspirina parta à doença que grassa no sistema escolar – é
combater o sintoma, e não tratar as suas causas.
Há ainda outra questão: a escolarização é um processo cumulativo.
Se a formação básica é deficiente, os alunos formam-se, no segundo grau,
sem um conjunto de competências indispensáveis para cursar uma universidade: o domínio da linguagem falada e escrita, incluindo a capacidade
de ler e entender textos complexos e utilizar conceitos, além de uma alfabetização científica e matemática razoável e o conhecimento mínimo da
geografia política e econômica do mundo moderno, assim como da evolução histórica que criou a realidade presente. Por sua vez, a universidade
não está equipada para suprir deficiências críticas no processo de escolarização básica – nem é sua essa tarefa.
É verdade que a situação está melhorando, na medida em que se logrou, há pouco menos de dez anos, universalizar a educação fundamental, com o que aumentou substancialmente o número de jovens pobres
e negros cursando o ensino médio. Embora lentamente, tem crescido o
número de negros que consegue ingressar na universidade – em 2000,
esse montante atingiu 16,9% do total de matrículas.
Assim, a melhoria do ensino público é um objetivo inadiável, mas
capaz de ser realizado só a médio prazo. Por isso mesmo, ações afirmativas para diminuir a desigualdade escolar são necessárias imediatamente.
É preciso, em primeiro lugar, universalizar a prática de oferecer, aos alunos que apresentam déficit de aprendizagem, um acompanhamento especial que lhes permita igualar-se às demais crianças da sua faixa etária.
No que toca ao ensino superior, uma ação afirmativa tão necessária quando viável é oferecer aos alunos com deficiências na sua formação anterior cursos especiais de complementação de estudos, de seis meses a um ano, ou seja,
proporcionar cursos pré-vestibulares gratuitos, sempre que possível nas próprias universidades, aos candidatos de menor renda. Cumpre talvez lembrar que
os alunos de classe média pagam cursinhos particulares para suprir essas mesmas deficiências e, na França, a maioria dos estudantes do ensino médio que almeja a universidade cursa um ano a mais do que os três regulamentares.
Com isso contribuiríamos, e muito, para aumentar a possibilidade
de acesso à universidade por parte de jovens pobres e negros, assegurando que recebam a preparação necessária para cursar o ensino superior.
Dados da autora
Doutora em ciência social (antropologia social)
pela USP. Coordenadora do Conselho Diretor da
Pró-Reitoria de Pesquisa/Núcleo de Pesquisas
sobre Ensino Superior. Autora do livro A Dinâmica
da Cultura: ensaios de antropologia (São Paulo:
Cosac Naify, 2004).
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Imp43_miolo_k.pdf 144
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Impulso, Piracicaba, 17(43): 143-144, 2006
7/22/2006 6:27:17 PM
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