DISCURSO DE ABERTURA DO VI COBEON
Lucimar Ramos Ribeiro Gonçalves1
É com imensa satisfação que estamos sediando o VI Congresso Brasileiro de
Enfermagem Obstétrica e Neonatal no Piauí. Agradecemos à ABENFO Nacional e,
em particular a profa. Dra. Maria Antonieta Rubio Tyrrell, pela escolha e confiança
que nos foi depositada.
Foi com grande surpresa que recebermos o convite para que o Piauí sediasse
o VI COBEON. O impulso inicial em não aceitarmos, decorrente, dentre outros
motivos, da grande responsabilidade, foi finalmente suplantado. Reconhecemos que
estamos em desvantagem no que concerne ao número reduzido de sócios da
ABENFO-PI e, não poderíamos desconsiderar a pouca mobilização da categoria
para interferir no modelo de atenção à saúde materna e neonatal, mas lembramos
de que somos a 4ª seccional fundada no País.
Decerto que o nosso Estado, o Piauí, é pouco conhecido e Teresina nossa
capital é a única do Nordeste que não é envolvida pelo Mar Atlântico. Estamos ainda
em desvantagem no que concerne ao número reduzido de sócios da ABENFO – PI e
a pouca mobilização da categoria para interferir no modelo de atenção à saúde
materna e neonatal, apesar de sermos a 4ª seccional fundada no País.
Em contrapartida nosso estado abriga a maior concentração de sítios
arqueológicos das Américas, com cenários pré-históricos que vem atraindo
pesquisadores de todo o mundo e possui o único delta oceânico das Américas.
Também somos referência nas áreas da Educação, Saúde e prestação de Serviços,
além da hospitalidade e calor humano característicos do povo piauiense.
Ao longo destes 12 anos como sócia fundadora da ABENFO-PI e trabalhando
lado a lado com a grande gestora da Enfermagem Obstétrica no Piauí, a Profa. Dra.
Inez Sampaio Nery, todos os esforços foram viabilizados no sentido de melhorar a
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Graduação em Enfermagem e Mestrado em Enfermagem. Atualmente é Professora Adjunta IV da Universidade
Federal do Piauí; Presidente da ABENFO-PI.
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assistência Obstétrica e Neonatal através da qualificação de recursos humanos
nessa área, o que vem a constituir o tema Central das discussões do VI COBEON.
Fazendo uma breve retrospectiva da prática obstétrica e neonatal em nosso
país, cabe aqui relembrarmos que até meados dos anos 50 o parto era considerado
um evento natural e doméstico, assistido quase sempre por parteiras tradicionais.
Contudo, o aumento progressivo das Escolas Médicas Obstétricas no Brasil e a
justificativa de redução de riscos e garantia de segurança, facilitaram intervenções
médicas, tornando o parto hospitalocêntrico.
Com o novo modelo de parto hospitalar então estabelecido, a mulher perdeu
sua autonomia, deixando de ser protagonista do evento para se submeter às regras
e regulamentos de um ambiente frio e longe do ideário de seu contexto familiar. A
tecnologia sobrepôs-se ao poder do corpo, subestimando sua capacidade quando a
obriga a manter-se na posição dorsal com as pernas imobilizadas em detrimento à
superioridade e ao controle masculino.
Durante a graduação vivenciei esse processo de assistência ao parto centrado
no modelo biomédico, e, como eu, todas incorporamos a prática do fazer o parto,
cercada de técnicas intervencionistas, o que fazia crer ser a forma mais correta e a
mais adequada da parturição. As faculdades de medicina continuam preparando os
seus egressos centrados neste modelo, embora as evidências científicas mostrem
que o número de intervenções desnecessárias utilizadas no momento do parto tem
elevado sobremaneira a morbimortalidade materna e neonatal.
No Brasil a morte materna continua alarmante, com índices de 74/100.000
nascidos vivos, bem diferente dos países desenvolvidos, onde esses índices não
ultrapassam o que a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda, ou seja,
uma taxa inferior a 15%. A morte materna no Brasil comove, mas não mobiliza,
porque acomete a uma parcela da população invisível aos nossos olhos, cujo apelo
não é ouvido. A morte é banalizada, subnotificada, e em grande parte dos registros
tem sido notificada como causas indeterminadas ou desconhecidas, quando, na
verdade, 95% desse obituário são decorrentes de causas diretas obstétricas e
plenamente evitáveis.
E isso nos leva a questionar sobre quais outros fatores têm contribuído para
estes elevados índices de mortalidade materna? E a partir desses questionamentos
e reflexões, é importante destacarmos que em nosso país as taxas de cesarianas
estão entre as mais altas do mundo, chegando a mais de 60% nos Hospitais
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Públicos e situando-se entre 80 a 98% nas instituições privadas. Mudar a lógica do
modelo assistencial tem sido meta e proposta do Ministério da Saúde desde 1998,
que, dentre outras medidas, estabeleceu, por meio de portarias, o aumento do valor
do parto normal, incluindo o pagamento para enfermeiras obstetras (Portaria nº
2.815/1998), assegurado por meio da Resolução do COFEN-223/1999.
Outras importantes iniciativas do Ministério da Saúde foram a criação do
Programa de Humanização Pré-Natal e Nascimento (PHPN), por mio das Portarias:
569; 570; 571; 572. Além da criação de Centros de Parto Normal (portaria 985/99) e
o financiamento de Cursos de Especialização para Enfermeiras Obstétricas. Esse
investimento aconteceu em resposta ao uso excessivo da tecnologia, medicalização
e o crescente aumento das cesarianas associada à desumanização da assistência,
bem como da escassez de profissionais habilitados para prestar assistência
humanizada e de qualidade.
O Ministério da Saúde priorizou a qualificação das Enfermeiras Obstetras em
função da sua formação acadêmica para administrar os Centros de Parto Normal
(Casas de parto – Portaria: nº 985, de 05/08/99). Essas ações foram intensificadas
na gestão de 2003 a 2006 através das novas políticas de atenção à saúde da
mulher, tais como: Criação do Pacto Nacional de Redução da Mortalidade Materna
em 2004, realização de 30 Seminários Estaduais de Atenção Obstétrica e Neonatal
Humanizada
e
baseada
em
Evidências
Científicas,
com
457
instituições
participantes, e finalmente a criação da Lei do Acompanhante no 11.108/2005.
É importante ressaltarmos que a implantação dessas ações foi estendida a um
público feminino considerado excludente da nossa sociedade, mulheres lésbicas
e/ou bissexuais, negras, presidiárias, índias e trabalhadoras rurais. Destacamos
também que a elaboração de várias publicações foi realizada em parceria com a
ABENFO Nacional e com outras Organizações não governamentais, com a
finalidade de divulgar conhecimentos sobre a humanização do pré-natal, parto e
nascimento.
E embora as evidências mostrem, de forma generalizada, um diagnóstico
sombrio da saúde materna infantil em nosso país, não podemos deixar de citar e
parabenizar as poucas instituições hospitalares que ganharam o prêmio Galba
Araújo e Casas de Parto Normal (CPN), implantados com este modelo de
humanização, como: Hospital Sofia Feldman em Minas Gerais, CERES em Goiás,
dentre outros, cujos resultados são desafiadores quando nos deparamos com um
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percentual zero nas estatísticas da morbimortalidade materna e infantil. Infelizmente,
não faz parte da nossa cultura divulgarmos as experiências exitosas, seja através da
mídia televisiva ou por meio de revistas de grande circulação, que não destacam em
suas “páginas amarelas” iniciativas como essas.
E aqui cabe um outro questionamento: como nosso Estado se encontra neste
ranque de acontecimentos?
Sabemos que a região Nordeste apresenta os maiores índices relativos à
mortalidade materna e neonatal. E o Piauí, em um parâmetro regional, ocupa o 3º
lugar em mortalidade materna, perdendo apenas para os estados do Maranhão e
Alagoas. A percentual de mortalidade materna em 2007 foi 72,55/100.000, atingindo
86,93/100.000, em 2008. Quanto à mortalidade neonatal, chama atenção para o fato
de que esta passou a ser o principal componente da mortalidade infantil em todo o
Brasil em termos proporcionais a partir dos anos 90 (BRASIL, 2004).
E diante, desses percentuais, que nos insurgem em preocupação e induzem a
reflexões, questionamos como se encontra a Enfermagem Obstétrica no Piauí?
Para responder a essa questão, ressaltamos que em pesquisa realizada pela
professora mestre Aldi Lima, que retrata a história da Enfermagem Obstétrica no
Piauí nas décadas de 50 a 70, período em que foi criada a Maternidade São Vicente,
a primeira do nosso Estado, evidencia-se que as parteiras que faziam atendimento
domiciliar foram transferidas para a referida maternidade e os partos das pacientes
não pagantes eram restritos aos cuidados das parteiras.
A professora Dra. Inez Sampaio Nery foi a primeira Enfermeira Obstetra do
nosso Estado. Estabeleceu-se em Teresina na década de 60, sendo contratada para
organizar o serviço da maternidade, e posteriormente admitida como docente para o
curso de Enfermagem da UFPI. A assistência ao parto até a década 90 era ainda
realizada por parteiras, atendentes de enfermagem, docentes e discentes das áreas
médica e de enfermagem.
Nossa militância na arte do partejar iniciou-se no ano de 2000, quando fui
coordenadora de 03 cursos de especialização em Enfermagem Obstétrica (2000 a
2005), todos financiados pelo Ministério da Saúde, através de convênios firmados
entre a ABENFO-PI e a UFPI. Minha história de vida acadêmica remonta-se à
década anterior quando, por 14 anos, dediquei-me a prestar assistência às mulheres
na área ambulatorial, dentre elas, mulheres portadoras de DST/HIV/AIDS, que foram
sujeito da minha Dissertação de Mestrado, com ações especialmente voltadas para
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a atenção básica de saúde.
Em 2002, obtive o certificado de Enfermeira Obstetra através de concurso de
provas e títulos. Contudo, esse título não preencheu minhas expectativas, pois
emergia forte ímpeto em adquirir experiência prática, do ser parteira. Esse impulso
aconteceu quando se acentuaram os problemas relacionados às práticas de
assistência ao parto, cujo estágio foi interrompido, por dificuldade de acesso ao
campo de estágio, ocasião em que o corpo clínico da maternidade escola
considerou o parto como um ato médico. E, na falta de um posicionamento gerencial
e respeitoso ao convênio firmado entre UFPI/SESAPI/MS, metade do grupo de
alunos da segunda turma de Especialização em Enfermagem Obstétrica foi
impedida de assistir o parto e, assim, de receber o título de especialista, pela
impossibilidade de cumprir a meta de partos preconizados pelo curso.
Objetivando evitar as dificuldades ocorridas anteriormente (com a 2ª turma do
curso de especialização), a ABENFO-PI articulou-se com o Hospital Sofia Feldman,
em Belo Horizonte, referência nacional em Humanização do Parto e Nascimento,
para que os alunos da 3ª turma pudessem realizar estágio no centro de parto normal
intra-hospitalar, oportunidade em que vivenciariam uma experiência exitosa no
desenvolvimento da prática de assistência ao parto humanizado, bem como na
obtenção do quantitativo dos partos preconizados pelo curso. O grupo de discentes
fez uma excelente avaliação, destacando a autonomia das enfermeiras e o
acolhimento recebido por todo o corpo clínico da citada instituição.
Todas as dificuldades, sentimento de discriminação e exclusão mobilizoume na busca do aprender a partejar. Assim, em dezembro de 2004 realizei estágio
no Centro de Parto Normal Dr. David Capistrano em Belo Horizonte e em dezembro
de 2005 fui classificada pela JICA, uma organização não-governamental, para
participar durante 03 meses do Curso de Assistência ao Parto Humanizado nas
casas de parto do Japão, com mais 10 colegas enfermeiras representantes de
outros estados. Esta experiência representou um marco muito importante em minha
vida pessoal e, principalmente, profissional.
Retornei do Japão, cheia de expectativas, com um projeto elaborado e
defendido ao final do curso, com o propósito de introduzir mudanças no centro
obstétrico da Maternidade Escola, todas direcionadas para humanização da
assistência ao parto. Vivenciei uma realidade na qual o centro das atenções era a
parturiente, esta podia escolher livremente a posição em que desejasse parir, tendo
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ao seu lado não só o acompanhante, mas a própria família. Entretanto não
encontrei apoio nem condições favoráveis da instituição para implantar essa
experiência.
Então, prezados senhores e senhoras, diante dessa longa caminhada no
âmbito
da
enfermagem
obstétrica
e
neonatal
nos
restam
outros
novos
questionamentos: Como humanizar a assistência ao parto, se na nossa prática a
mulher não é considerada como sujeito desses direitos?; Como diminuir o número
de partos operatórios, se na rotina diária não conseguimos compartilhar saberes e
prática para realizar um trabalho multiprofissional e muldisciplinar?
O que verificamos no cenário atual é uma assistência fragmentada, em que a
mulher é um ser passivo, cujas necessidades não são atendidas. Observamos
situações de tamanho desconforto para a parturiente cujos direitos humanos e de
cidadã estão distantes de sua concretude.
Além disso, constatamos que as relações são profundamente desiguais entre
as categorias profissionais. A imposição por uma única forma de conhecimento e/ou
de saber ganham força na coibição da atuação das enfermeiras obstetras,
impedindo que o modelo de atenção ao parto reconheça a posição de sujeito da
mulher, suas vivências, sem levar em conta as necessidades emocionais, e culturais
bem como de seus familiares.
Não podemos negar a importância dos avanços científicos, pois vivemos numa
época em que o surgimentos das novas tecnologias cresce acentuadamente no que
diz respeito à utilização de equipamentos de diagnósticos e de terapêutica, o que, de
sobremaneira, tem salvado vidas de muitas mulheres e crianças em situação de
risco. Entretanto, esta tecnologia e equipamentos não devem ser utilizados de forma
indiscriminada, pois a qualidade de vida da maioria das mulheres e recém-nascidos
depende de recursos humanos capacitados que prestem atendimento de forma
humanizada, respeitando sua individualidade e seu corpo, proporcionando à mulher
o direito de conduzir o processo de parturição da melhor forma que lhe convier.
É importante destacar que o bom acompanhamento e a humanização da
assistência não devem ser restritos ao parto em si, mas deve alcançar também todo
o pré-natal e puerpério. A mulher durante o pré-natal precisa estar acompanhada por
familiares, de preferência o cônjuge, para que, inclusive, fique ciente dos seus
direitos e deveres em relação ao seu acompanhamento no momento do parto.
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É inadmissível o não cumprimento das leis neste país. Como se justifica uma
lei ter sido criada há quase 05 anos, e até o presente momento ser desconsiderada
por 95% das instituições públicas e privadas que atendem a mulher? Uma lei que só
traria benefícios para a mulher, pois as evidências científicas comprovam a
importância da presença do acompanhante no momento como este, tão importante
na vida familiar. Além disso, configura-se como um momento de grande fragilidade
em que a mulher está repleta de sentimentos como medo, solidão, angústia,
ansiedade, nervosismo, dentre outros.
Cotidianamente o que se observa é a peregrinação das mulheres em trabalho
de parto à procura de vagas nas maternidades públicas, cuja demora no
atendimento muitas vezes ocasiona um desfecho infeliz para o binômio mãe e filho.
E, este emaranhado de acontecimentos induz a reflexões e questionamentos.
Por que apenas as mulheres menos favorecidas têm que arcar com o ônus das
mazelas da má administração e gerência quando não é garantido a ela um local
para parir? Porque nos nossos serviços não funcionam o sistema de referencia e
contra-referência?
É com grande pesar que presenciamos nos nossos serviços uma lacuna muito
grande na interação da Enfermagem Obstétrica com a parturiente e o neonato. Daí a
perspectiva de que no âmbito das Políticas Públicas em um futuro bem próximo,
esse profissional seja reconhecido e consiga conquistar o seu espaço profissional de
forma ética, legal, e apoiada na resolução do MS/COFEN 223/99 que dispõe da sua
atuação de enfermeira na assistência às mulheres no ciclo gravídico puerperal.
E este futuro pelo qual me referi, tão logo vai se tornar passado, pois, como é
do conhecimento de todos, existe uma grande vontade política do governo federal,
apoiada por nossos gestores estaduais, em diminuir os altos índices de
morbimortalidade materna e neonatal e todos os esforços estão sendo viabilizados
para a concretude dessas metas propostas.
É com muita satisfação e orgulho que agradecemos ao Secretário de Saúde
do Estado do Piauí, aqui presente que compreendeu a importância de investir na
qualificação de Enfermeiras Obstetras, como uma prioridade das metas no programa
de Fortalecimento da Atenção Básica por meio da melhoria dos indicadores
pactuados no Pacto pela Saúde/ Pacto pela Vida com o projeto “O DIREITO DE
NASCER NA MINHA TERRA.
Finalizamos com algumas palavras do Dr. Marcos Leite, quando afirma:
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“Só fazendo funcionar uma nova aliança entre todas essas categorias
profissionais; médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, parteiras tradicionais,
educadores e cientistas sociais, que possuem objetivo comum, porém, papéis
diferenciados, inspirada na paz e equilíbrio como método e meta, conseguiremos
evoluir para um modelo de atenção ao parto e nascimento, onde a vida poderá
florescer e os seres humanos poderão viver no cuidado de uns para os outros,
irradiando justiça, celebrando e perpetuando a paz desde sempre buscada”.
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Discurso da Abertura do VI COBEON - ABENFO