As reivindicações populares e as receitas públicas Os vazamentos do dinheiro público por Ladislau Dowbor Para atender às reinvindicações dos que foram à luta por Odilon Guedes Textos publicados originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil - Ano 7 - no 74 - Setembro de 2013 Nº82 | OUTUBRO | 2013 As reivindicações populares e as receitas públicas por Raul Pont As manifestações de junho no Brasil, ainda que difusas e sem direções bem identificadas que lhes garantissem continuidade nas reivindicações, deixaram evidentes que são demandas públicas por mais serviços e de melhor qualidade. Nesse aspecto, portanto, são positivas e revelam prioridades esquecidas ou prestadas de forma insuficiente pelo poder público nas várias instâncias administrativas. A reivindicação mais visível foi a do transporte público através dos jovens estudantes lutando pelo passe livre. Esta já surtiu alguns efeitos: tarifas congeladas ou diminuídas, maior controle do poder público sobre os permissionários dos serviços e até soluções setoriais mais profundas como a proposta do governo Tarso Genro com lei do passe livre intermunicipal para estudantes universitários ou de Institutos Tecnológicos, com critérios de renda familiar para os beneficiados. O programa tem alcance estadual e sua efetivação é complexa, pois fora de regiões metropolitanas, onde as linhas de ônibus já estão sob regulação, grande parte do transporte para as cidades universitárias dá-se por fretamento direto pelos estudantes ou com subsídios pelas Prefeituras. As demais reivindicações reclamam da qualidade e extensão da saúde pública, da falta de recursos para a educação, obras da Copa ou projetos urbanos especulativos com apoio, isenções, benefícios fiscais e até doação de áreas públicas aos investidores privados. São demandas reais e que demonstram que, na maioria dos casos, o poder público favorece os capitalistas em detrimento dos usuários e da qualidade de vida nos centros urbanos. As análises de Ladislau Dowbor e de Odilon Guedes mostram que é possível buscar saídas e apresentar soluções que não sejam as tradicionais lamentações de que “não há recursos”. As reivindicações não foram exclusivas a uma ou outra instância administrativa e os movimentos sociais precisam melhorar também o alvo de suas necessidades. Muitas demandas são de responsabilidade concorrente entre União, Estado e Municípios. Outras são mais precisas, dirigidas. Em especial, o papel regulador, da concessão à fiscalização, que é sempre bem definido do ponto de vista legal. É necessário precisar a responsabilidade (Município, Estado, União) para que as lutas e conquistas sejam dirigidas a quem tem o dever, a obrigação de encaminhar as soluções. 2 Os textos mostram que é necessário aumentar as receitas, combater a sonegação e que aí reside uma fonte de recursos que os gestores poderiam dispor desde que exigissem o cumprimento da lei, não fossem coniventes com os sonegadores. Aqui não se trata apenas de sonegação. Muitas vezes, os pequenos e médios municípios acostumam-se a viver das transferências do Estado e da União. Contentam-se com o retorno do ICMS e do IPVA, pois são automáticos e não dão trabalho para o gestor, assim como o Fundo de Participação dos Municípios, transformam-se na principal fonte de renda. Por menor que seja o núcleo urbano, os impostos municipais sobre propriedade urbana (IPTU) e o imposto sobre serviços (ISSQN) sempre podem dar uma boa contribuição na receita, principalmente o primeiro que é um imposto direto e pode ser mais justo em sua cobrança, pois, também, admite progressividade ao gravar a propriedade. Da mesma forma, o Imposto Territorial Rural que é da União, pode, via convênio, passar para o Município e sempre é uma receita a mais. O que queremos ressaltar aos companheiros vereadores, prefeitos e vices, secretários municipais e dirigentes partidários é que há espaço no próprio município para melhorar a receita local sem que isso seja contraditório com a luta por maior descentralização e maior participação dos Municípios na renda tributária nacional. Há alguns anos, aprovamos no DN do PT a luta pela participação de 20% no bolo tributário nacional disponível para os Municípios. Essa bandeira não foi assumida, unitariamente, pelos gestores municipais do Partido e pelas associações de municípios, mas permanece válida, pois com os novos encargos que os municípios assumiram, o pacto firmado na Constituição de 1988 está defasado com prejuízo aos municípios cujo poder de gravar tributos é muito pequeno. Isso não retira validade dos argumentos anteriores, mas os reforçam diante das tarefas que os governos precisam assumir. Diferente do que dizem os liberais e a predominância da mídia marcada pelo lugar comum de que o Estado deve ser mínimo, o recado das ruas é o oposto. A população quer mais e melhores serviços de educação, de saúde, de transporte, de moradia. Ou seja, as pessoas mobilizaram-se pelo futuro e não para voltar à visão neoliberal do Estado mínimo, desresponsabilizado dos serviços e demandas que a população reivindica. Nossa luta na área tributária no Brasil é inverter a predominância dos impostos no consumo, nos impostos indiretos e regressivos. Tributos diretos como o Imposto de Renda (federal), o Imposto sobre herança e doações (ITCD - estadual), o Imposto sobre Transmissão de Imóveis (ITBI) são instrumentos poderosos para diminuir as desigualdades sociais e dentro de programa de política econômica igualitária. Para isso é necessário utilizar os limites que a legislação federal constrange os Estados e os Municípios, mas, também, lutar para ampliá-los principalmente, nas heranças e doações que permitem alguma justiça social via tributação. Da mesma forma, recuperar o projeto de taxar as grandes fortunas que dormita no Congresso há mais de uma década. A extinção da CPMF é um exemplo de como age a elite brasileira. Um tributo como a CPMF atingia apenas uma parte da população, a mais rica, e com uma alíquota mínima e cobrança simplificada pela movimentação financeira. Constituía uma forma exemplar de tributação com destino definido, ou seja, para reforçar o orçamento da saúde. Este é um caso concreto onde da União aos Municípios teríamos um ganho considerável. Através do SUS, todos os Municípios e Estados seriam beneficiários de uma arrecadação exclusivamente voltada para a saúde, uma das principais reivindicações. Por fim, queremos com essas reflexões e com as contribuições de Dowbor e Guedes estimular o debate nos Municípios para buscarmos saídas em todos os níveis administrativos para fazermos frente às reivindicações das ruas e avançarmos para um novo patamar de conquistas e realizações nos nossos governos. 3 Os vazamentos do dinheiro público Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil - Ano 7 - no 74 - Setembro de 2013 As eleições nos custam R$ 2 bilhões, é até pouca coisa. Mas a manipulação permitida nos custa centenas de bilhões por meio dos mecanismos que se tornaram legais ou de difícil controle judiciário. A deformação do sistema tributário desonera os muito ricos e fragiliza o setor público, reproduzindo a desigualdade por Ladislau Dowbor O Brasil não é pobre. Mas seus recursos são frequentemente mal utilizados, ou desviados, vazando pelas numerosas brechas, legais ou ilegais, quando poderiam ser produtivos. E não se trata de, como sempre, culpar o governo: são articulações públicas e privadas que deformam o processo decisório. Seguir o dinheiro ajuda a entender a dinâmica tanto deste como das deformações políticas. Cada um de nós conhece alguns aspectos e suspeita de outros. Mas vale a pena descrever os principais mecanismos e ver como se articulam. A compra das eleições 4 Os grandes vazamentos não se dão, de forma geral, por meios ilegais, pois são praticados por grupos suficientemente poderosos para adaptar a legalidade aos seus interesses. O ponto de partida, portanto, está na apropriação da máquina que faz as leis. No Brasil, a lei que libera o financiamento das campanhas por interesses privados é de 1997.1 Quanto mais cara é a campanha, mais o processo é dominado por grandes financiamentos corporativos e mais a política se vê colonizada. O resultado é a erosão da democracia e custos muito mais elevados para todos, já que os gastos com as campanhas são repassados para o público por meio dos preços. Nos Estados Unidos, onde um sistema semelhante foi instalado em 2010, Hazel Henderson comenta: “Temos o melhor Congresso que o dinheiro pode comprar”. Os grupos econômicos podem contribuir com até 2% do patrimônio, o que representa muito dinheiro. Os professores Wagner Pralon Mancuso e Bruno Speck, respectivamente da USP e da Unicamp, estudaram os impactos. “Os recursos empresariais ocupam o primeiro lugar entre as fontes de financiamento de campanhas eleitorais brasileiras. Em 2010, por exemplo, corresponderam a 74,4%, mais de R$ 2 bilhões, de todo o dinheiro aplicado nas eleições (dados do Tribunal Superior Eleitoral).”2 O custo das campanhas é até, em termos relativos, um mal menor se comparado aos custos de uma política estruturalmente deformada. Na realidade, é um desencadeador de deformações. A representação desequilibrada gerou um sistema tributário que onera proporcionalmente os mais pobres, levando à reprodução da desigualdade. Criou-se também uma cultura de superfaturamento de obras que a colusão entre políticos e grandes empreiteiras permite. Mais grave ainda, deforma-se o uso final dos recursos, por exemplo, com priorização do transporte individual nas grandes cidades ou do transporte rodoviário para transporte de carga, e assim por diante. E, em termos políticos, o sistema corrói o processo democrático ao gerar uma perda de confiança popular na política em geral. O sistema gerou sua própria legalidade. Em 1997, transformou-se o poder financeiro em direito − o direito de influenciar as leis, às quais seremos todos submetidos. Ético mesmo é reformular o sistema e acompanhar os países que evoluíram para regras do jogo mais inteligentes e limitaram drasticamente o financiamento corporativo das campanhas. A armadilha da dívida pública Acostumamo-nos a que tipicamente 5% de nosso PIB seja desviado via governo para intermediários financeiros, sem que produzam nada. Pelo contrário, desviam-se os recursos do investimento produtivo para a aplicação financeira. Para cobrir os juros sobre a dívida, o governo FHC elevou a carga tributária de 26% para 32% do PIB. De algum lugar tinha de vir o dinheiro. No momento em que Lula assumiu o governo, em 2003, a taxa Selic estava em 24,5%. Em junho de 2002, a dívida pública tinha chegado a 60% do PIB; hoje está mais próxima de 35%, e os juros pagos sobre a dívida baixaram para menos de 10%, mas o estoque da dívida é maior. Foi fácil abrir a torneira, fechá-la é muito mais complicado. Em comparação, a taxa oficial de juros praticada internacionalmente é da ordem de 0,5% a 2%. 5 A partir do governo Lula, o sistema foi sendo gradualmente controlado. Ainda assim, é uma transferência de dinheiro público para não produtores que se conta, como ordem de grandeza, em algo como R$ 150 bilhões por ano. É um sistema legal conseguido por meio do apoio político comprado com dinheiro corporativo e repassado ao consumidor nos preços que paga. Para os grupos que vivem de renda financeira, e não de produção, em vez de ir contra a lei, é mais prático fazer a lei ir ao seu encontro. No braço de ferro que hoje se desenrola, a cada vez que se baixa meio ponto da Selic, o mundo financeiro grita na mídia, todos ameaçam com a inflação, pedem “responsabilidade” ao governo, conseguindo inclusive reverter o processo de baixa. A evolução é resumida por Amir Khair: “A dívida líquida do setor público foi marcadamente influenciada pela Selic. No início do governo FHC estava em 28% do PIB e, mesmo com a megavenda de patrimônio público com privatizações, ao final do governo chegou a 60,4%. A elevada Selic foi a responsável por isso. No final do governo Lula, tinha baixado para 39,2% e em julho estava em 34,9%. Caso a Selic continue caindo, é capaz que ao final do governo Dilma seja possível retornar próximo da que estava no início do governo FHC”.3 Uma monumental transferência de recursos públicos para rentistas que, além de nos custar muito dinheiro, desobriga os bancos de fazer investimentos produtivos que gerariam produto e emprego. É tão mais simples aplicar nos títulos, liquidez total, risco zero. Realizar investimentos produtivos, financiando, por exemplo, uma fábrica de sapatos, envolve análise de projetos, acompanhamento, enfim, atividades que vão além de aplicações financeiras. A manipulação dos juros comerciais Os intermediários financeiros e rentistas não se contentam com a Selic, taxa de juros oficial sobre a dívida pública. Recorrem a um segundo mecanismo, que é a fixação de elevadas taxas de juros ao tomador final por bancos comerciais, mecanismo diferente da taxa Selic, tanto assim é que a Selic baixou radicalmente diante dos 25-30% da fase FHC para os 8,5% atuais, sem que houvesse redução significativa dos juros dos bancos comerciais. Naturalmente, os bancos comerciais, como entidades privadas, afirmam que são livres para praticar os juros que quiserem. A coisa não é assim, por uma razão simples: como trabalham com dinheiro do público, e não deles, devem seguir regras definidas pelo Banco Central, e mesmo um banco privado precisa de uma carta-patente que o autorize a funcionar dentro de certas regras. Estas, naturalmente, vão depender da capacidade de pressão política. Como se trata de dinheiro do público apropriado diretamente pelos intermediários financeiros, sem mediação do governo, poderíamos achar que não é desvio de dinheiro. 6 De certa forma, quando tiram nosso dinheiro sem a ajuda de um político, seria por assim dizer mais limpo. Habilidade de um lado, ingenuidade ou impotência do outro, mas não corrupção. Essencial para nós é que só se podem sustentar no Brasil juros tipicamente dez vezes maiores (dez vezes, não 10% a mais) em relação aos praticados internacionalmente mediante apoio político. E, como durante longo tempo tivemos banqueiros na presidência do Banco Central, montou-se mais um sistema impressionante de legalização do desvio de nosso dinheiro. Essa “ponte” entre o político e o comercial precisa ser explicitada.4 O artigo 170 de nossa Constituição define como princípios da ordem econômica e financeira, entre outros, a função social da propriedade (III) e a livre concorrência (IV). O artigo 173, no parágrafo 4o, estipula que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. O parágrafo 5o é ainda mais explícito: “A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”. Cartel é crime. Lucro exorbitante sem contribuição correspondente produtiva será “reprimido pela lei” com “punições compatíveis”. Estudo do Ipea mostra que a taxa real de juros para pessoa física (descontada a inflação) cobrada pelo HSBC no Brasil é de 63,42%; no Reino Unido, é de 6,6% (no mesmo banco, para a mesma linha de crédito). Para o Santander, as cifras correspondentes são 55,74% e 10,81%. Para o Citibank, são 55,74% e 7,28%. O Itaú cobra sólidos 63,5%. Para pessoa jurídica, área vital porque se trataria de fomento a atividades produtivas, a situação é igualmente absurda. O HSBC, por exemplo, cobra 40,36% no Brasil e 7,86 no Reino Unido.5 No conjunto, trata-se de um desvio de dinheiro da economia real, via uma forma institucional ilegal, que é a “dominação dos mercados, eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos lucros” que a Constituição condena em termos inequívocos. Diante dos números, há alguma dúvida quanto à ilegalidade? Não há notícias de julgamento a esse respeito, e sim de muitas denúncias no Procon, Idec e outras instituições, e milhões de pessoas se debatendo em dificuldades. O Serasa-Experian, hoje empresa multinacional, guardiã da moralidade financeira, decreta que brasileiros passam a ter o nome sujo, ou seja, pune quem não consegue pagar os 238% hoje cobrados no cartão, e não quem os cobra. Os paraísos fiscais Um dos efeitos indiretos da crise mundial é que há um forte avanço recente no estudo dos grandes grupos econômicos e das grandes fortunas. Aliás, o imenso esforço de 7 comunicação destinado a atribuir a crise financeira mundial ao comportamento irresponsável dos pobres, seja nos Estados Unidos ou na Grécia, é patético. Um estudo que sobressai, de autoria do Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica (ETH, na sigla alemã), constatou que 147 corporações, das quais 75% são grupos financeiros, controlam 40% do sistema corporativo mundial. Num círculo um pouco mais aberto, 737 grupos controlam 80%. Nunca houve, na história da humanidade, nada de parecido com esse nível de controle planetário por meio de mecanismos econômicos e financeiros. A apropriação ou no mínimo fragilização das instituições políticas perante esses gigantes tornase hoje fato comprovado.6 Corroborando essa pesquisa, e focando inclusive em grande parte os mesmos bancos, temos hoje outra pesquisa de grande porte, liderada por James Henry, ex-economistachefe da McKinsey, e realizada no quadro da Tax Justice Network. Em termos resumidos, o estoque de recursos aplicados em paraísos fiscais é hoje da ordem de US$ 21 trilhões, um terço do PIB mundial. O Brasil participa generosamente com cerca de US$ 520 bilhões, mais de R$ 1 trilhão, cerca de um quarto do nosso PIB. São dados obtidos por meio de cruzamento de informações dos grandes bancos, do Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês) da Basileia, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, de bancos centrais e de várias instituições de pesquisa ou de controle. Nada de invenções: trata-se no essencial de juntar os dados de forma organizada, com metodologia clara e transparente, e indicações da relativa segurança ou insegurança dos dados a cada passo. Essa peça informativa fazia muita falta, e passamos agora a ver o que acontece com tanto dinheiro ilegal que resulta das várias formas de corrupção.7 A economia trata da alocação racional de recursos. Aqui há pouca racionalidade, a não ser que olhemos da perspectiva dos que deles se apropriam. As eleições nos custam R$ 2 bilhões, é até pouca coisa. Mas a manipulação permitida nos custa centenas de bilhões por meio dos mecanismos que se tornaram legais ou de difícil controle judiciário. A deformação do sistema tributário desonera os muito ricos e fragiliza o setor público, reproduzindo a desigualdade. A irracionalidade das infraestruturas custa bilhões e nos atinge a todos, gerando um país de altos custos. Os cerca de R$ 150 bilhões de juros pagos a rentistas são um desvio radical de dinheiro que poderia ser transformado em investimentos. Os imensos recursos que constituem nossas poupanças depositadas em bancos poderiam servir ao fomento econômico, e não à agiotagem com as taxas de juros praticadas. O escoamento dos recursos gerados para paraísos fiscais, cerca de R$ 1 trilhão acumulados no caso do Brasil, nos priva de recursos necessários ao desenvolvimento, sustenta uma ilegalidade que virou cultura e deforma profundamente tanto o sistema político como o econômico. São as regras do jogo que estão viciadas. 8 Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e professor titular da PUC-SP. É autor de A reprodução social e Democracia economômica - um passeio pelas teorias (contato http:// dowbor.org). 1 O financiamento está baseado na Lei n. 9.504, de 1997: “‘As doações podem ser provenientes de recursos próprios (do candidato); de pessoas físicas, com limite de 10% do valor que declarou de patrimônio no ano anterior no Imposto de Renda; e de pessoas jurídicas, com limite de 2%, correspondente [à declaração] ao ano anterior’, explicou o juiz Marco Antonio Martin Vargas, assessor da Presidência do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo”. Citado por Elaine Patricia da Cruz, “Entenda o financiamento de campanha no Brasil”, Exame, São Paulo, 8 jun. 2010. 2 “Pouquíssimos candidatos conseguem se eleger com pouco ou nenhum dinheiro”, comenta Mancuso, que coordena o projeto de pesquisa “Poder econômico na política: a influência de financiadores eleitorais sobre a atuação parlamentar”. Ver mais em Bruna Romão, Agência USP. Disponível em: <http://mercadoetico.terra. com.br/arquivo/investimento-de-empresas-influencia-sucesso-em-eleicoes/?utm_source=newsletter&utm_ medium=email&utm_campaign=mercado-etico-hoje>. 3 O Estado de S. Paulo, 9 set. 2012. 4 “A corrupção foi frequentemente interpretada de maneira estreita, focando excessivamente o setor público e ignorando o privado. O Banco Mundial tem um approach ainda mais estreito, definindo corrupção como ‘o abuso do serviço público para ganho privado’. Esse foco no setor público como a única arena da corrupção não é apenas arbitrário. É errado e, inclusive, pernicioso.” Tax Justice Network. Disponível em: <www.taxjustice.net/ cms/front_content.php?idcat=100>. 5 Ipea, “Transformações na indústria bancária brasileira e o cenário de crise”, Comunicado da Presidência, abr. 2009, p.15. Disponível em: <www.ipea.gov.br/sites/000/2/pdf/09_04_07_ComunicaPresi_20_Bancos.pdf>. 6 Para uma análise sumária dos resultados da pesquisa do ETH, ver: <http://dowbor.org/2012/02/a-rede-dopoder-corporativo-mundial-7.html/>. 7 “Uma fração significativa da riqueza financeira privada global – segundo nossas estimativas, pelo menos de US$ 21 trilhões a US$ 32 trilhões em 2010 – foi investida praticamente sem impostos através do buraco negro mundial ainda em expansão de mais de oitenta jurisdições offshore sigilosas. Acreditamos que estes sejam números conservadores. Nessa escala, a economia em paraísos fiscais é grande o suficiente para ter vasto impacto nas estimativas de desigualdade de riqueza e renda, e nas estimativas das rendas nacionais e nos níveis de dívida; e – mais importante – ter um impacto negativo bastante significativo nas bases fiscais nacionais de países key source (ou seja, aqueles que têm visto ao longo do tempo fugas de capital privado não registradas).” Tax Justice Net, p.3. Disponível em: <www.taxjustice.net/cms/front_content.php?idcat=148>. 9 Para atender às reinvindicações dos que foram à luta Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil - Ano 7 - no 74 - Setembro de 2013 Levando em consideração somente o que o governo federal teria a receber (R$ 114 bilhões anuais) daria para construir na cidade de São Paulo mais de 375 quilômetros de metrô (a R$ 300 milhões o km) ou 1,14 milhão de casas populares (R$ 100 mil a unidade, incluindo a desapropriação do terreno) ou 57,5 mil creches... por Odilon Guedes As manifestações ocorridas pelo Brasil, que atingiram das grandes capitais até pequenas cidades do interior, foram iniciadas pelo Movimento Passe Livre (MPL) em São Paulo e mobilizaram cerca de 2 milhões de pessoas, principalmente jovens. Elas abriram uma enorme oportunidade para avançar nas transformações que nosso país precisa. É importante destacar que essas lutas já produziram resultados significativos, entre outros, a diminuição das passagens do transporte público nas mais diferentes cidades, o cancelamento do aumento de pedágios em São Paulo, o recuo do governador do Rio de Janeiro em demolir vários equipamentos públicos no entorno do Maracanã. 10 Toda essa luta reflete o enorme descontentamento de amplas parcelas da população com a atual realidade. Apesar de termos o sétimo PIB do planeta ocupamos a 85ª posição no IDH. Na educação, os alunos brasileiros se classificam entre os últimos nos exames da OCDE (Programme for International Student Assessment - Pisa), a saúde está em crise há anos, o transporte coletivo massacra milhões de pessoas diariamente e, a segurança pública, com o homicídio de 50 mil pessoas por ano, deixa qualquer cidadão completamente inseguro. Nas periferias, principalmente das regiões metropolitanas, faltam praças, centros de esporte, lazer e cultura. Quanto mais distante do centro das cidades, maior a ausência de equipamentos sociais. A população em grande parte está abandonada, sem perspectivas para o futuro. Esse contexto tem como pano de fundo a corrupção e as mordomias presentes nos mais diversos níveis de governo e escalões da República. O povo não aguenta mais esse estado de coisas! A única forma de resolver parcela expressiva desses problemas é o investimento de dezenas de bilhões de reais, por longos anos seguidos, nas várias áreas. O jornal Valor Econômico(27 jun. 2013) precisou esse número em manchete: “Demanda das ruas já tem custo de R$ 115 bi por ano” . O que é necessário ser investigado é se existem tais valores. Entre as várias formas existentes para se conseguir recursos uma delas é fazer uma profunda reforma tributária aumentando a tributação direta sobre a renda, a propriedade, a herança e a riqueza. Outra é cobrar a dívida ativa. Cobrar a dívida ativa Uma importante fonte de recursos é a cobrança da dívida ativa. A dívida ativa da União é composta por todos os créditos desse ente, sejam eles de natureza tributária ou não tributária, regularmente inscritos na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), depois de esgotado o prazo fixado para pagamento, pela lei ou por decisão proferida em processo regular. Essa dívida, portanto, está relacionada aos tributos ou não, que deixam de ser pagos pelas empresas e cidadãos à União, como também aos estados e aos municípios. Alguns exemplos: na área federal são dívidas relacionadas ao IR, IPI, INSS, Cofins; na estadual ao ICMS e IPVA; e na municipal ao IPTU, ISS, ITBI, entre outros. O total da dívida que o governo federal tem direito a receber era, em 31 de dezembro de 2012, segundo o balanço da PGFN, de R$ 1,14 trilhão. Os principais devedores são grandes empresas que muitas vezes sonegam o pagamento de tributos propositalmente. Isso ocorre porque, na relação custo- benefício, sabem que essa prática será vantajosa.A cobrança vai levar anos para ser executada, seus advogados vão se utilizar de todo aparato jurídico que postergará o pagamento por anos. E, quando for efetuar o pagamento, se utilizam de programas que permitem parcelar a dívida por longo período, com parte de seu valor sendo abatido. 11 Matéria do jornal Folha de S.Paulo(5 ago. 2013) dá exemplos do que estamos discorrendo. Ela relaciona empresas que devem R$ 1,5 bilhão ao fisco e, ao mesmo tempo, doaram milhões de reais para os mais diversos candidatos à Presidência nas últimas eleições. Mencionam a Bombril, que deve R$ 779,7 milhões; a Copersucar, R$ 147,3 milhões; a Infan, R$ 99,3 milhões; a JBS S/A, R$ 66,0 milhões; a Bracol Holding, R$ 61,7 milhões; a Sana Bárbara Engenharia, R$ 35,9 milhões; a Vega Engenharia Ambiental, R$ 31,0 milhões; a Usina Naviraí, R$ 26,4 milhões; a Iesa, R$ 26,3 milhões; e a Usina Barra, R$ 24,3 milhões. Como vemos, não são valores pequenos que muitas empresas devem no Brasil! Segundo informação contida no site da PGFN, qualquer pessoa pode consultar a Lista de Devedores porque o acesso a esse serviço independe de senha, basta saber o CPF/CNPJ ou o nome do devedor. As empresas devedoras se utilizam do Refis, que é um programa de recuperação fiscal que consiste em um regime opcional de parcelamento de débitos fiscais proposto a pessoas jurídicas com dívidas perante a Secretaria da Receita Federal (SRF), a PGFN e o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Quando a empresa for pagar, o prazo é de até sessenta meses com juros TJLP. Em relação ao crédito rural, se a dívida for liquidada, há uma tabela com várias faixas de descontos. Para os devedores de mais de R$ 200 mil, têm um abatimento de 38% somado a outro fixo de R$ 19,2 mil. Por exemplo, quem deve R$ 1 milhão terá R$ 380 mil somados a R$ 19,2 mil, o que dará um total de R$ 399,2 mil de desconto. Essa prática absurda de sonegação, contrária aos interesses da nação, traz enormes prejuízos para a sociedade porque bilhões de reais que deveriam ser investidos em educação, saúde, infraestrutura deixam de acontecer. Além disso, é uma enorme injustiça para com os cidadãos e empresas, que cumprem em dia suas obrigações com o Estado. Essa situação se repete nos estados e municípios. Em 31 de dezembro de 2012, o estado de São Paulo tinha uma dívida ativa de R$ 226 bilhões; o do Rio de Janeiro, R$ 50,6 bilhões; e o do Rio Grande do Sul, R$ 30,2 bilhões. Em relação a São Paulo, o prí³prio governo considera que 50% dessa dívida é irrecuperável. Em 2012, o governo conseguiu cobrar somente R$ 1,16 bilhão, cerca de 0,5% do total da dívida. Segundo o procurador Rafael Demarchi Costa, “o baixíssimo índice de recuperação traz em si alta possibilidade de risco moral ao não pagamento voluntário por parte dos devedores” . Em relação aos municípios, veja no quadro 1 todas as capitais dos estados brasileiros que tinham dívida ativa registradas. O total das dívidas ativas das capitais dos estados brasileiros, como é possível observar, somava R$ 129,9 bilhões. No Nordeste, a de Salvador, com R$ 12,4 bilhões de dívida ativa que representa 323% da 12 receita orçamentária de 2012, a de Recife, com R$ 5,5 bilhões, e a de Natal, com R$ 1,5 bilhão, ultrapassam mais de 100% da receita orçamentária. No Sudeste, São Paulo, com R$ 55,3 bilhões, e Rio de Janeiro, com R$ 35,7, bilhões também superam os 100% e são as maiores em valores absolutos. No Norte, Manaus, com R$ 3,1 bilhões, também está acima desse percentual. São Luís não apresentou os dados. Além da União, estados e capitais, os municípios brasileiros também têm esse tipo de dívida a receber. Para ilustrar essa situação, apontamos os municípios da região do chamado ABC paulista, que têm uma dívida ativa de R$ 5,1 bilhões, sendo que a de São Bernardo era, em 2012, de R$ 2,4 bilhões e a de Santo André, de R$ 1,2 bilhão. O município de Londrina, no Paraná, tem uma dívida ativa de R$ 1 bilhão, sendo que quinhentos devedores devem R$ 380 milhões, o que dá em média R$ 760 mil para cada um. Esse último dado demonstra que provavelmente não estamos tratando de atrasos de pagamento de IPTU residenciais... Somando a dívida ativa da União, dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul e das capitais chega-se à cifra de R$ 1,577 trilhão. Se a esse valor for somado aos demais estados da federação e municípios, a dívida chegará a valores bem mais elevados. Fazendo-se uma simulação sobre um programa da cobrança da dívida ativa, para que seus valores sejam recuperados em dez anos, apenas o que o governo da União tem direito a receber representaria R$ 114 bilhões de recursos anuais aos cofres federais. No estado de São Paulo, o valor seria de R$ 22,6 bilhões; no Rio de Janeiro, R$ 5 bilhões; e no Rio Grande do Sul, R$ 3 bilhões. Nas capitais, podemos apontar Salvador, R$ 1,2 bilhões; Recife, R$ 550 milhões; Rio de Janeiro, R$ 3,6 bilhões; São Paulo, R$ 5,5 bilhões; Manaus, R$ 313 milhões; Belo Horizonte, R$ 560 milhões; e Porto Alegre, R$ 157 milhões ao ano. É importante lembrar que o Brasil tem 5.560 municípios e grande parte deles têm dívidas a receber. Isso significa que se os tributos fossem pagos em dia poderiam ser feitos os investimentos sociais que falamos ao início e que beneficiariam toda a população. Para efeito comparativo, levando em consideração somente o que o governo federal teria a receber (R$ 114 bilhões anuais) daria para construir na cidade de São Paulo mais de 375 quilômetros de metrô (a R$ 300 milhões o km) ou 1,14 milhão de casas populares (R$ 100 mil a unidade, incluindo a desapropriação do terreno) ou 57,5 mil creches (R$ 2 milhões cada uma). Em relação a obras de infraestrutura, daria para construir 27,5 mil quilômetros de ferrovias como a Nova Transnordestina (a R$ 4 milhões o km), ou ainda 7 usinas hidrelétricas como a de Santo Antonio no Rio Madeira (R$ 16 bilhões cada). É possível e importante fazer esse tipo de comparação em relação a cada estado e cidade da federação adequada aos preços dos investimentos em cada região. Com certeza, a cobrança da dívida ativa resolveria a maioria dos problemas brasileiros. 13 Município UF População Receita Orçamentária (em R$ milhões) Divida ativa Total inscrito (em R$ milhões) Relação div. Ativa Aracaju SE 587.701 1.313,86 849,70 65% Belém PA 1.410.430 2.077,84 1.205,77 58% Belo Horizonte MG 2.395.785 7.260,89 5.594.90 77% Boa Vista RR 296.959 551,34 14,79 3% Campo Grande MS 805.397 2.302.65 1.318,62 57% Cuiabá MT 561.329 1.277,36 311,29 24% Curitiba PR 1.776.761 5.911,55 651,77 11% Florianópolis SC 433.158 1.074,82 366,03 34% Fortaleza CE 2.500.194 4.666,28 1.319,35 28% João Pessoa PB 742.478 1.444,68 4 70,86 33% Macapá AP 415.554 457,96 109,90 24% Maceió AL 953.393 1.482,26 115,51 8% Manaus AM 1.861,838 2,975,56 3.130,58 105% Natal RN 817.590 1.430,28 1.532,19 109% Palmas TO 242.070 651,79 10,31 2% Porto Alegre RS 1.416.714 4.342,73 1,5677,44 36% Porto Velho RO 442.701 977,32 232,81 24% Recife PE 1.555.039 3.547,20 5.529,57 156% Rio Branco AC 348.354 535,04 280,12 52% Rio de Janeiro RJ 6.390.290 19.689,46 35.708,64 181% Salvador BA 2.710.968 3.835,79 12.395,66 323% São Luís MA 1.039.610 1.947,95 0,00 0% São Paulo SP 11.376.685 37.285,29 55.327,84 148% Teresina PI 830.231 1.639,56 709,56 43% Vitória ES 333.162 1.611,84 1.162,69 72% 42.244.39 110.261 129.915,90 Total das capitais 14 118% Em nosso entender, a cobrança da dívida ativa deveria ser abordada e fazer parte da agenda do Movimento Passe Livre, dos milhares de cidadãos e dos diversos movimentos sociais que estão participando das manifestações no Brasil. Exigir a ampla divulgação dos devedores e respectivas dívidas, e que os governos da União, estados e municípios façam um plano para recebê-las no período mais curto possível. Odilon Guedes é economista, mestre em economia pela PUC-SP, é professor das Fa- culdades Oswaldo Cruz. Foi presidente do Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo e vereador na cidade de São Paulo. 15 Publicação do gabinete do deputado estadual Raul Pont - PT/RS - Nº82 Outubro/2013 - (51) 3210.1300 - www.raulpont.com.br