ROGER SCRUTON E A DENÚNCIA TARDIA DA MODERNIDADE
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OU SCRUTON VERSUS RORTY: crítica ao the great swindle
Paulo Ghiraldelli Jr2
1.
A arte e a cultura em geral devem cultuar a ‘originalidade’, têm de promover a
‘transgressão’ e, enfim, ‘abrir novos caminhos’. Há quem diga o contrário?
O filósofo conservador britânico Roger Scruton diz que isso tudo, hoje, tornouse cliché. O kitsch teria substituído a arte. A boa arte tinha como objetivo a
“autoconsciência da sociedade” e a emergência de “sentimentos profundos” a respeito
da realidade. O kitsch, por sua vez, nada é senão produto de uma cumplicidade entre
autor e consumidor (a “vítima”) buscando substituir a vida real. Tratar-se-ia de um
produto da “razão instrumental” destinado ao comércio e, assim sendo, substituiria os
“sentimentos verdadeiros”, aqueles oriundos da “alta cultura”, da “cultura verdadeira”.
Nossas instituições de ensino e de cultura deveriam continuar a trabalhar segundo o que
os alemães chamaram de Bildung, o cultivo do que se faz no caminho do que nos torna
cultos, a cultura. Mas essas instituições estão se desviando de tudo que é “verdadeiro” e
adotando para tudo “o falso”. Segundo os adjetivos de Scruton: true é substituído por
fake.
Scruton cita Aristóteles para dizer que a cultura depende de contemplação
advinda do ócio e remete a outros filósofos para dar base ao seu ataque à cultura do
kitsch, procurando manter uma distinção rígida entre “verdadeiro” e “falso”. Ecoa aí
certo kantismo conservador, típico de Scruton. Mas, mas de um modo geral, para saber
de crítica semelhante vinda de matrizes distintas, poderíamos abrir a internet e escutar
uma rádio do passado transmitindo falas de Theodor Adorno e Hanna Arendt. Estes, por
sua vez, ecoaram Nietzsche, isso sem contar uma enorme gama de pensadores de vários
calibres, descontentes com o progresso da civilização e desconfiados da aliança entre
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Aeon Magazine, 2012
Paulo Ghiraldelli Jr., 55, filósofo, escritor e professor da UFRRJ. Contato: http://ghiraldelli.pro.br
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tecnologia e democracia de massas. Em outras palavras: salvo no estilo, a reclamação
de Scruton, ainda que tenha lá sua legitimidade, é daquelas que podemos considerar
como o que pouco tem de novidade. Já ouvimos isso durante bastante tempo e, em
alguns casos, como o de Arendt, de uma maneira mais sofisticada e mais arguta.
Todavia, não é isso que vejo como problemático em Scruton.
O que me incomoda na reclamação de Scruton é que o seu conservadorismo o
faz fustigar certos filósofos não por aquilo que eles merecem e, sim, pelo que não
fizeram. Três deles estão na mira de Scruton: Marx, Foucault e Rorty. Ele os culpa por
terem impulsionado a filosofia, de certo modo, a alimentar o “fake”, à medida que
criticaram a cultura em geral ou, de certo modo, a alta cultura. Segundo Scruton, a
“crítica da ideologia”, utilizada por Marx, buscou colocar a alta cultura como “cultura
burguesa”, atrelando-a a defeitos de classe, e então a destituindo de seu pretenso
universalismo e, portanto, de sua legitimidade. O modo de Foucault olhar as narrativas
em geral, ensinando todos a verem antes quem pronuncia o discurso do que
propriamente o seu conteúdo, fez da cultura sempre alguma coisa que é mecanismo de
poder, tornando-a também carente da legitimidade até então desfrutada. Por fim, Rorty,
ao destituir a própria consideração para com a verdade, tomando-a como o que é útil,
abriu definitivamente espaço para o falso.
Não creio que Scruton esteja errado no que disse de Marx e Foucault, ainda
que eu não o endosse no que talvez seja sua condenação a tais pensadores de um modo
mais totalizado que o necessário. Marx e Foucault falaram o que tinham de falar. Suas
críticas, apesar de datadas, nos deram dimensões da cultura que até então tínhamos
tocado apenas de modo leve. Mas, em relação a Rorty, ainda que Scruton não o chame
de pensador “fake”, mas de autor que favoreceu a hegemonia atual do “fake”, há uma
posição muito infeliz.
O próprio Rorty respondeu a críticos parecidos com Scruton. Um de seus
melhores textos veio de uma defesa assim, em resposta a uma crítica de Searle, quando
este disse que autores como Kuhn, Derrida, Foucault, Rorty e outros “pós-modernos”
foram os que causaram o fim da avaliação objetiva nas provas universitárias, e que
haviam ajudado na deterioração do ensino superior americano (esse texto de Rorty está,
entre outros lugares, no terceiro volume de seus Philosophical Papers, e há uma
tradução em português, pela Manole). Não vou repetir aqui os argumentos de Rorty a
Searle. Já fiz isso em outros lugares, no sentido de esclarecer situações confusas criadas
por textos parecidos com o de Scruton. Aqui, meu caminho será outro. Vou tentar
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 2, 2013
mostrar que Scruton toma um Rorty culpado de algo que ele nunca fez. Vou procurar
mostrar, sem excesso de argumentos técnicos, que essa maneira de tomar Rorty como
um relativista banal caberia para um aluno qualquer de primeiro ano de ciências sociais
ou filosofia, ou daqueles professores com viseiras eternas, moldadas por partidos, mas
não a alguém do calibre de Scruton.
2.
Scruton acredita que Rorty (como Foucault e Marx) “fixou-se contra a verdade
objetiva”, “dando uma variedade de argumentos para pensar que a verdade é uma coisa
negociável, que o que importa no final é de que lado você está”. Scruton diz que esse
tipo de coisa abriu espaço para o que veio depois em favor de uma cultura de privilégio
do “fake”.
Ora, se Scruton reclama da verdade objetiva e ele próprio toma Rorty apenas
pelas consequências que outros tiraram de seus estudos, como quem quer acreditar que,
afinal, o kitsch foi legitimado por alguma coisa dita pelo filósofo pragmatista, ele está
abraçando o que denunciou. Um conservador como Scruton, preocupado com a verdade
objetiva, deveria ir menos pelos supostos efeitos e mais pelo que Rorty disse, vindo dos
seus livros, além disso, não deveria, sem uma pesquisa sociológica relativamente
quantitativa, pôr sobre os ombros de Rorty aquilo que venceu e se legitimou, talvez, por
outros mecanismos. Não vou tocar nesse segundo ponto, pois eu mesmo não tenho essa
sociologia nas mãos, embora não desconheça autores que evocariam outros elementos
para dizer o que Scruton disse, e não a obra de Rorty. Mas vou tocar, sim, no primeiro
ponto, discordando: Rorty não disse para as pessoas que a verdade não existe ou que a
verdade objetiva é pouca coisa ou não importa. Muito menos Rorty disse, em um
sentido banal, como Scruton coloca, que a verdade é algo negociável. Sempre esteve
longe de Rorty achar que “o que importa no final é de que lado você está”. Talvez fosse
mais correto dizer, para ser justo com Rorty, que a negociação em torno dos enunciados
que afirmamos como verdadeiros é uma prática da qual nenhum homem de ciência pode
fugir.
O que Rorty fez foi considerar algo que em geral os filósofos da cultura, ao
desprezarem certos aspectos técnicos que surgiram com a filosofia metafísica enquanto
associada à filosofia da linguagem, deixam de lado e, então, com facilidade deslizam
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para a crítica fácil dos que foram chamados, ao menos no final do século XX, de pósmodernos. Destaco dois pontos. Em primeiro lugar, Rorty teve, ele próprio, de enfrentar
o problema da verdade enquanto um problema filosófico específico no século XX (neste
tópico 2). Em segundo lugar, Rorty teve de considerar, no campo específico da cultura
americana, o papel da religião e o modo como as igrejas utilizam o termo “verdade”
(tópico 3). Assim, não foi por uma idiossincrasia que Rorty escreveu o que escreveu a
respeito da verdade. Não foi como um militante que gostaria de ver a alta cultura se
deteriorar que Rorty se dedicou ao tema da verdade, se é que alguém que se dispusesse
a falar contra a verdade objetiva estivesse já de imediato criando caminhos para a
entrada da cultura “fake”.
A questão toda de Rorty quanto à verdade é uma que, no que concerne aos
limites que tenho aqui neste texto, pode ser posta da seguinte maneira: a noção de
verdade vinda da Teoria da Verdade como Correspondência está na berlinda (e escapar
dela optando pela noção de verdade que emerge da Teoria da Verdade como Coerência
não tem se mostrado algo sem críticas). Rorty nunca conseguiu esquecer sua formação
parcialmente analítica, em que tal questão importava muito – especialmente em filosofia
da ciência, um campo que para boa parte dos professores sempre esteve cruzado com a
filosofia analítica, principalmente nos Estados Unidos. Muito menos Rorty poderia
evitar seu apego à tradição americana que produziu a ele próprio, ou seja, o
pragmatismo de James e Dewey, que duelou com Russell exatamente nesse campo da
noção de verdade. Scruton não é alemão ou brasileiro ou francês. É britânico. Ele sabe
de tudo isso. O que o faz saltar tais coisas é o seu conservadorismo. Ele parece precisar,
por conta de sua posição na direita política, alinhar Marx, Foucault e Rorty, de modo a
dizer que foram tais plebeus que atacaram a alta cultura ao atacar a verdade e, portanto,
automaticamente, elevar o “fake”.
O certo é que quem ataca as noções tradicionais de verdade não
necessariamente eleva o “fake”. Nem mesmo dá caminho para tal. Esse tipo de
entendimento é o do senso comum, e Scruton não deveria assumi-lo assim tão
facilmente. O que Rorty fez ao ver que as noções tradicionais de verdade estavam na
berlinda, foi simplesmente apoiar a filosofia da linguagem, em suas soluções técnicas,
para escapar do problema. Ele tomou então, mais radicalmente, os trabalhos de Donald
Davidson, exatamente para saltar para fora das falhas das teorias tradicionais da verdade
e, ao mesmo tempo, não ter de suportar os que poderiam chamá-lo de relativista, de um
modo pouco qualificado.
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Qual o problema das noções tradicionais de verdade? Qual o problema
específico com a Teoria Correspondentista? Ora, o problema é que quando eu digo que
“O Pitoko está deitado no chão” (p), e ele, Pitoko, está deitado no chão, eu chamo a
sentença p de verdadeira, mas o que eu estou dizendo, quando me afasto da questão da
percepção (de questões psicológicas e de certo modo epistemológicas), quando fico
somente com a frase e a sua lógica, isso tudo ganha uma fórmula de enunciação que
parece não se sustentar. Ei-la:
S: “O Pitoko está deitado no chão” (p) é verdadeira se e somente se o Pitoko
está deitado no chão (p). Ou então:
S1: p é verdadeira se e somente se p, em que p é o que eu chamo de o fato
indicado por p.
Ora, mas o que é o fato? É algo não linguístico? O que é o fato senão aquilo
que se sabe a se ter “O Pitoko está deitado no chão”? Não há como dizer que p é outra
coisa que não p se estamos tratando de p como um enunciado verdadeiro. De modo que
dizer o verdadeiro é dizer o fato, mas ao perguntar o que é fato não conseguimos obter
outra coisa senão a resposta: é o que é verdadeiro. Assim, ao falarmos “fato” para
apontar para o não linguístico, para que este possa corresponder ao que é linguístico,
que é “O Pitoko está deitado no chão”, não estamos fazendo outra coisa senão
entrarmos em um círculo. Assim, a Teoria da Correspondência não explica o que é a
correspondência e o que é dizer a verdade. Sendo circular, dizer que essa teoria explica
algo é realmente desrespeitar a filosofia. Em filosofia como em ciência não temos o
costume de ouvir sem desconfiança as explicações circulares.
Desse modo, no linguajar comum, cansamos de usar da noção de
correspondência para pensar na verdade (ou, ao menos, em um primeiro momento,
assim nos parece), e isso parece funcionar, mas do ponto de vista filosófico, um simples
exercício – como este acima – diz que há anos estivemos caminhando no uso de alguma
coisa obscura. Rorty nunca falou para as pessoas pararem de usar essa noção de
verdade, mas, como filósofo, ele teve de levar a sério esse problema da Teoria da
Verdade como Correspondência, ou seja, dela ser uma explicação circular.
Outras teorias também trouxeram problemas. E então, Rorty resolveu usar de
seu pragmatismo para pensar a verdade de um modo em que os problemas filosóficos
tradicionais não aparecessem. Ele ouviu James e Dewey, como também o segundo
Wittgenstein e Davidson, para seguir a linguagem e, então, estudar não A Verdade, mas
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os usos do verdadeiro em nossa linguagem. O que Rorty viu foi que expressões como “é
verdade” ou “é verdadeiro”, do modo que a utilizamos, podem ser mantidas sem que
tenhamos de nos referir à noção de correspondência. Portanto, se a Teoria da Verdade
como Correspondência é falha, temos outra maneira de continuar usando “é verdade” se
descrevermos nossa linguagem de outra maneira. Pelos usos de “é verdade” ou “é
verdadeiro”, chegamos a situações em que a correspondência não precisa ser evocada.
Rorty colocou três situações que, segundo ele, cobrem todo o espectro em que o “é
verdadeiro” aparece e dispensa a correspondência. Esses são os três casos.
- Usamos “verdadeiro” para aplaudir alguém ou uma situação. Nesse caso,
falamos que algo é verdadeiro à medida que falaríamos que é bom ou nobre, ou útil, etc.
- Usamos “verdadeiro” para dizer coisas que foram endossadas por outros.
Nesse caso, falamos: “‘Tudo é água’ é verdadeiro para Tales, mas não para
Anaximandro. Ou então: “É verdade que ‘a escravidão é um crime’ para mim, mas meu
tataravô nunca a viu como um crime”.
- Usamos “verdadeiro” como sinal de advertência. Nesse caso, temos: “‘Os
cães foram domesticados por nós há muito tempo’ é verdadeiro para os biólogos, mas
não é verdadeiro para os antropólogos”.
Ora, dos três casos, só o terceiro parece trazer algum problema. Esse problema
é o seguinte: se digo “é verdadeiro” como alguma coisa que é uma advertência, há quem
fale que, neste momento, entra aí, sim, a noção de verdade objetiva associada à noção
de correspondência. Um dos filósofos que disse isso, contra Rorty, foi Habermas. Em
uma polêmica de mais de trinta anos, com vários textos trocados, Habermas sempre
insistiu que quem admoesta o outro com a verdade tem em mente uma noção de “é
verdadeiro” como algo que é atemporal e que serve para qualquer audiência. Assim, a
advertência só seria advertência porque quem a pronuncia não está colocando geografia
e história para medir o “é verdadeiro”, mas lidando com a noção de verdade no seu
sentido substancial e forte. Penso que as respostas de Rorty admitem essa consideração,
em parte. Mas só em parte! Porque tal pessoa, que faz tal coisa, não precisaria fazer
assim, ou seja, não precisaria estar pensando dessa maneira, como quem tem na mão
uma verdade universal e objetiva, e ainda assim a advertência continuaria válida.
Portanto, em termos de descrever a prática do usuário da linguagem, o uso da verdade
como advertência pode ser o uso de quem está dizendo algo desse tipo: “verdade, mas
não para os seres galácticos de Alfa Centauro”. Uma descrição assim manteria o uso,
sua validade e, enfim, evitaria a noção de correspondência, problemática em nível
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filosófico.
Não vejo aí, por conta da argumentação de Rorty, qualquer afirmação no
sentido de endossar o “mais vale o lado que se está”. Não vejo aí nada que abra espaço
para que o kitsch possa imperar na cultura. Não consigo entender no que é que uma
solução filosófica como esta estaria comprometendo Rorty com aqueles que promovem
obras de arte que não podem mais causar “sentimentos profundos e reais”. Menos ainda
vejo Rorty comprometido com os que pedem ousadia e tudo mais, mas como clichês.
Explico novamente a questão do uso de advertência.
Dizer coisas como “é verdadeiro aqui e agora, mas talvez não para lá e depois”
não é o mesmo que dizer “é verdadeiro aqui e agora, mas talvez não para qualquer lá e
qualquer depois”. A advertência é a seguinte: “olha meu camarada, o que você diz é
verdade mesmo, para o grupo que o escuta, sendo este o grupo em que você nasceu e o
grupo que é da sua geração”. Isso não é o mesmo que dizer o seguinte: “olha meu
camarada, o que você diz é verdade mesmo, mas única e exclusivamente para o grupo
no qual você nasceu e para as pessoas deste grupo da sua geração”. A advertência não é
uma que implique em tamanha particularização, em tão profunda restrição, algo que, no
seu oposto, acolhesse “a verdade universal é X, de modo algum a sua verdade, que é
necessariamente particular”.
Posso ser surpreendido por um grupo cultural em que homens de 55 anos
comem um animal que o meu grupo de homens de 55 anos considera sagrado. Então, eu
e pessoas do meu grupo avisamos os membros do grupo que nos surpreendeu que eles
estão fazendo algo que é um pecado. Dizemos para eles: “é verdade que comer esse
animal é um pecado”. Nós os advertimos. Nossa frase pode ser substituída por uma
outra forma de explícita advertência, sem perder qualquer função: “é verdade que comer
esse animal é um pecado para nós e para mulheres de nossa cultura, também com 55
anos”. Eles não precisam entender o nosso aviso como sendo um que traduziriam assim:
“é verdade que comer tal animal é pecado para esses dois grupos, mas nós podemos
continuar comendo tais animais porque esses dois grupos não são significativos em todo
o cosmos”. Não! Não precisamos ser interpretados assim. Podemos ser levados a sério.
Nossa advertência os fará pensar. Mesmo que só nós tenhamos aquele animal como
sagrado enquanto todo o resto do mundo come aquele animal sem qualquer culpa, nossa
advertência ainda estará válida para ser considerada para quem ela foi dirigida. A
advertência continua forte uma vez que a fizemos: “Olha, meu caro, você está em
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pecado, eu não, e não adianta você me desconsiderar e considerar todos os outros
grupos da Terra, porque ainda assim minha advertência está aqui, e você vai acabar
pensando sobre ela”. Não necessariamente quem usa o termo “verdadeiro” em um
contexto de advertência precisaria estar de posse de um sentido universal de verdade.
Essa exposição Scruton, como Searle no passado, parece não entender. Não sei
o quanto, no debate entre Habermas e Rorty, o primeiro cedeu ao segundo. O debate
entre eles não chega a evoluir para essa argumentação que eu detalhei no último
parágrafo, em que introduzo a minha explicação para alguém que viesse com a objeção
de Habermas a Rorty. Tudo indica que, nesse ponto, eles mantiveram essa divergência e
preferiram deslocar o debate para outros pontos. Talvez essa divergência de Habermas
para com Rorty é a que poderia estar na cabeça de Scruton, para que ele tivesse alguma
razão contra Rorty. Ele poderia simplesmente não estar interessado em raciocinar sobre
o assunto e, dessa maneira, não chegaria ao argumento que utilizei no parágrafo
anterior. Mas, pela minha argumentação aqui, penso que posições como as de Scruton e
Habermas, na indisposição contra Rorty, não precisam se manter.
Só os filósofos pensam em verdade objetiva e universal como a única verdade
forte o suficiente para fazer alguém considerar frases contendo “é verdadeiro” como
alguma coisa capaz de ser levada a sério. De modo algum as pessoas (tão inteligentes
quanto os filósofos), em seu cotidiano, tomam as coisas assim. Qualquer frase contendo
“é verdadeiro” é levada a sério, sim, se estiver sendo tomada em um dos três sentidos
apontados por Rorty, no seu mapeamento do uso cotidiano – o único uso que nos
interessa. E a frase de advertência também não precisa ter o “é verdade” ou o “é
verdadeiro” aludindo ao objetivo e universal para ser levada a sério. Nós a levamos a
sério porque se trata de uma advertência e que, então, forçará os mais curiosos, os mais
afeitos a pedir justificativas, a dizer: “mas do que está falando, explique mais”. Ou
assim: “vocês estão dizendo que o animal que comemos é sagrado e, portanto, que é
verdade que pecamos quando o comemos, mas o que os faz afirmar que ele é sagrado, o
que vocês sabem que nós não sabemos que os fazem falar isso desse animal?”
Dizer que se fizermos tal pergunta já estamos abrindo um caminho para que
venha tudo a ser “fake” e então ser desprestigiado, ou que com isso abrimos as porteiras
para o kitsch e para uma cultura que leva as pessoas a não terem mais a cultura como
autoconsciência é algo no mínimo exagerado. Scruton não é um exagerado no bom
sentido, no sentido weberiano. Ele força a barra.
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3.
O segundo ponto é quanto à religião. Nesse caso, Rorty entende que a maneira
técnica com a qual ele lida com o tema da verdade facilita sua exposição diante de
incômodos sociais, especialmente os que o fundamentalismo religioso põe e repõe.
A noção de verdade enquanto o que é sustentado pela Teoria da
Correspondência é uma noção dita substantiva, que em geral é facilmente inflacionada
metafisicamente. Ela corrobora certo isomorfismo. Uma situação em que linguagem e
mundo podem ser tomados como isomorfos, onde o gancho entre o linguístico e o nãolinguístico pode se dar por meio da correspondência, é um prato cheio para a metafísica.
O velho ideal grego de que o Logos do universo esteja também preso no peito do
homem, uma vez que este está no universo e parece ser predestinado a compreendê-lo,
nunca saiu da cabeça não só de filósofos antigos, mas também e talvez principalmente
dos medievais. Muitos modernos repetiram isso, depois, quando vieram a desenvolver a
ciência experimental e então viram na matemática aquilo que os medievais enxergaram
na lógica. “A natureza fala por meio da matemática” ou “Deus é um grande
matemático” foram frases que os modernos repetiram encantados, principalmente à
medida que a matemática lhes parecia uma expressão própria da razão finita. O eco do
Evangelho de João nunca foi desprezível: “no princípio era o Logos”. Deus criou o
mundo à medida que falava da Criação. Exercia a linguagem de modo que o mundo
nunca foi outra coisa senão a linguagem de Deus ou sua lógica ou, em termos mais
populares, algo com a regularidade captável pela matemática do homem. Assim, para os
intelectuais religiosos, nunca foi muito difícil imaginar que se chegamos a alguma
verdade em matemática – campo no qual o contingente e mutável parece não ter lugar –
poderíamos estar muito próximos do tipo de verdade que a religião espera ter em mãos:
a verdade objetiva e universal, o que equivale ao ponto metafísico, a pedra absoluta.
Esses passos deram a vários intelectuais o espaço para poder, somente com
metafísica, falar em “Verdade” antes que em “verdadeiro”, e assim fazer o nome
“Verdade”, ao indicar algo absoluto, se por como sinônimo de “Deus”. No campo
metafísico poder-se-ia dizer como o Mundo Realmente É, e tendo permissão para assim
se pronunciar tudo estaria aberto para o caminho de se ter aquilo que se não é Deus, é
seu produto direto mais próximo.
Poder deslocar a Teoria da Verdade como Correspondência e, ao mesmo tempo,
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fornecer uma descrição filosófica de como a verdade atua em nossa linguagem,
seguindo o rastro do uso, para Rorty, veio a se constituir em uma boa vitória. Deu-lhe
força para preferir narrativas iluministas, deixando as narrativas metafísicas e religiosas
para outros.
Ora, será que foi essa a parte do discurso rortiano que, então, teria incomodado
Scruton, diferentemente do que incomodou Searle ou Habermas? Eu até poderia dizer
que sim, uma vez que Searle ou Habermas teriam ficado em divergência com Rorty
quanto às questões técnicas já aludidas, não quanto à posição de Rorty diante da
religião, enquanto que o conservadorismo de Scruton o deslocaria para um tipo de
divergência diferente. Mas Scruton, neste artigo analisado, não vai adiante. Ele limita
sua questão ao elo entre desprestígio da verdade objetiva e prestígio do “fake”, e deste
prestígio último para o enaltecimento do kitsch como ponto de chegada da cultura
“fake”.
O artigo de Scruton discorre sobre efeitos de uma cultura “fake” e ele,
realmente, anuncia algo interessante. Ele lembra que os modernistas fizeram o que
fizeram – a arte de tipo Warhol – como alguma coisa consciente, e isso teve seu valor
humano, mas que repetir isso, como se repete agora, integrado ao processo de venda, é o
“fake”. Ora, posso concordar com isso. Mas as bases sobre as quais ele põe sua crítica,
chamando Marx, Foucault e principalmente Rorty para que eles possam ser culpados
pelo que eles não tiveram culpa, isso é obra exclusiva do conservadorismo de Scruton.
Ele deveria deixar de lado essa necessidade de ser de direita em tudo, e pensar
que gente da classe social dele talvez tenha, por meio de financiamentos muito mal
direcionados e através do Estado privatizado em favor do lixo cultural, contribuído
muito mais decisivamente para que a cultura atual tenha abocanhado mais coisa ruim do
que o necessário em cada lugar. Caso ele fosse por essa via, ele se surpreenderia em
encontrar mais culpa das coisas estarem como estão entre aqueles que ele imagina que,
por estarem próximo a ele, estão em defesa da alta cultura. Às vezes, tenho a impressão
que não estão.
A democracia de massas e todo o processo de democratização e popularização
que passamos entre os séculos XIX e XXI podem ter uma enorme responsabilidade pelo
que Scruton detecta que ocorre no coração humano, na curtição do fake, digamos assim.
Todavia, dizer que os teóricos não conservadores – Marx, Foucault e Rorty à frente – ao
descreverem esses processos deram guarida ao que ocorreu de ruim nesses mesmos
processos é, a meu ver, um escorregão. No caso de Marx e Foucault, um escorregão
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com justificativas, talvez a “crítica da ideologia” e a “teoria do poder” de ambos,
respectivamente, tenha feito ataques não alvissareiros às bases de legitimidade da
cultura. Quanto a Rorty, não poderia dizer o mesmo.
O pragmatismo, ao caminhar pela estrada da desinflação das teorias de
verdade, nunca me pareceu ser um voluntarioso membro de um partido de uma
“revolução cultural” contra a alta cultura. O pragmatismo me parece, ao fazer o que fez
e faz, inclusive e principalmente com Rorty, um produto natural do período que
Nietzsche qualificou como o pós-positivismo, a época em que não temos mais que ser
crentes ou ateus, justamente porque “Deus está morto”. Quando James e Wittgenstein
nos abriram caminho para lidarmos com a verdade a partir do uso, que foi o que Rorty
seguiu (e o que eu mesmo sigo), a questão entre verdade e falsidade não poderia mais
estar posta de modo dramático como foram postas coisas como Deus-Verdade versus
Ateísmo-Falsidade. O pragmatismo me parece, principalmente com Rorty, uma filosofia
dos tempos em que não só o Mundo Real foi destruído, mas também, com o Mundo
Real, o Mundo Aparente nos deixou. O pragmatismo é uma filosofia que nos permite ler
Platão novamente, sem ter de combatê-lo. Ler Platão se tornou agora, pela primeira vez,
uma tarefa não partidária. Scruton está com um pé demais num mundo que parece já ter
passado.
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