TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Chanceler: Dom Dadeus Grings Reitor Joaquim Clotet Vice-Reitor: Evilázio Teixeira Conselho Editorial: Antônio Carlos Hohlfeldt Elaine Turk Faria Gilberto Keller de Andrade Helenita Rosa Franco Jaderson Costa da Costa Jane Rita Caetano da Silveira Jerônimo Carlos Santos Braga Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy (Presidente) José Antônio Poli de Figueiredo Jussara Maria Rosa Mendes Lauro Kopper Filho Maria Eunice Moreira Maria Lúcia Tiellet Nunes Marília Costa Morosini Ney Laert Vilar Calazans René Ernaini Gertz Ricardo Timm de Souza Ruth Maria Chittó Gauer EDIPUCRS: Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor Jorge Campos da Costa – Editor-chefe Carmem Luci da Costa Silva Claudia Stumpf Toldo Leci Borges Barbisan Lia Lourdes Marquardt Organizadoras TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO Porto Alegre 2009 © EDIPUCRS, 2009 Capa: Deborah Cattani Diagramação: Stephanie Schmidt Skuratowski Revisão: Rafael Saraiva Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) T314 Teorias do discurso e ensino [recurso eletrônico] / organizadoras, Carmem Luci da Costa Silva ... [et al.]. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2009. 263 p. Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de Acesso: World Wide Web: <http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs> ISBN 978-85-7430-936-1 (on-line) 1. Linguistica – Teorias. 2. Português – Ensino. 3. Línguas Estrangeiras – Ensino. I. Silva, Carmem Luci da Costa. CDD 410 Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33 Caixa Postal 1429 90619-900 Porto Alegre, RS – BRASIL Fone/Fax: (51) 3320-3711 E-mail: [email protected] http://www.edipucrs.com.br COLABORADORES Carmem Luci da Costa Silva (UFRGS) Claudia Stumpf Toldo (UPF) Gisele Benk de Moraes (UPF) Magali Lopes Endruweit (UERGS) Neiva Maria Tebaldi Gomes (UNIRITTER) Neusa Maria Henriques Rocha (UPF) Niura Maria Fontana (UCS) Roberta Macedo Ciocari Sônia Litchenberg Tânia Maris de Azevedo (UCS) Telisa Furlanetto Graeff (UPF) Vania Morales Rowell SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ......................................................................................................... 7 PARTE 1 - TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO DO PORTUGUÊS A língua portuguesa como instrumento de aquisição de conhecimentos no ensino fundamental: algumas reflexões ................................................................. 12 Tânia Maris de Azevedo e Vania Morales Rowell Teorias linguísticas e o ensino da escrita .............................................................. 34 Magali Lopes Endruweit Pela inserção do discurso na escola ....................................................................... 51 Sônia Lichtenberg Argumentação e ensino de língua materna ............................................................ 77 Carmem Luci da Costa Silva Para resumir textos: uma proposta de base semântico-argumentativa .......... 104 Telisa Furlanetto Graeff Gêneros discursivos no ensino: o foco na interação verbal ............................. 133 Neiva Maria Tebaldi Gomes O comportamento dos demonstrativos na organização dos enunciados ....... 153 Claudia Stumpf Toldo e Neusa Maria Henriques Rocha PARTE 2 - TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS Construção da autonomia na formação do professor de língua estrangeira.. 175 Niura Maria Fontana Operadores argumentativos little, a little, few, e a few no ensino inglês como língua estrangeira ..................................................................................................... 211 Roberta Macedo Ciocari Uso de pero, sino e sin embargo através da teoria da argumentação na língua .......................................................................................................................... 236 Gisele Benck de Moraes APRESENTAÇÃO Este livro foi organizado por um grupo de pesquisadores que desenvolvem, com o apoio do CNPq, o projeto “A construção do sentido no discurso”. Ao folhar as páginas desta obra, o leitor encontrará reflexões sobre questões teóricas e práticas acerca da língua e de suas perspectivas no complexo e heterogêneo mundo da educação. Pensar a realidade da língua é pensar que todos os discursos se constroem a partir do uso que dela se faz. Como escreveu Saussure em um de seus rascunhos*, “a língua só é criada com vistas ao discurso”. Diante disso, queremos, neste livro, divulgar estudos desenvolvidos sob diferentes perspectivas teóricas do discurso e questionar alguns aspectos do ensino de língua, tanto materna quanto estrangeira, na escola, tendo presente que o professor precisa – acima de tudo – ser um profissional capaz de criar conhecimento e alternativas para a aprendizagem de seus alunos. Assim, os textos aqui apresentados se propõem a buscar um diálogo possível entre concepções teóricas, e são dirigidos a estudiosos da língua, a professores de modo geral e a alunos de Graduação, futuros professores. Os textos que compõem este livro estão organizados em duas partes. Encontram-se, na primeira, estudos concernentes a teorias do discurso, aplicadas ao ensino da língua materna. Na segunda parte, há trabalhos que dizem respeito à aplicação de teorias ao ensino de línguas estrangeiras. Na primeira parte, Tânia Maris de Azevedo e Vania Morales Rowell, em “A língua portuguesa como instrumento de aquisição de conhecimentos no ensino fundamental: algumas reflexões”, propõem uma abordagem para o ensino da língua portuguesa que leve em conta a língua como “ferramenta” para a aquisição de conhecimentos em todas as áreas. Para tanto, defendem uma concepção de ensino de língua materna a partir de pressupostos vinculados às * STAROBINSKI, Jean. As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand Saussure. São Paulo: Perspectiva, 1974. teorias linguísticas enunciativas, que se centram nos sentidos produzidos pela língua em uso na interlocução. Em “Teorias lingüísticas e o ensino da escrita”, Magali Lopes Endruweit reflete sobre a presença da escrita na escola e sua relação com as teorias linguísticas subjacentes às concepções de escrita. A discussão se dá em três momentos: o primeiro trata do entendimento segundo o qual a escola é o lugar da escrita por excelência; o segundo analisa as principais publicações presentes em sala de aula nos últimos trinta anos e o terceiro procura o significado da escrita na escola. Em “Pela inserção do discurso na escola”, Sônia Lichtenberg analisa o contexto ensino-aprendizagem da língua portuguesa nas escolas de níveis fundamental e médio, assim como os instrumentos utilizados para esse fim – gramáticas tradicionais e livros didáticos – questiona os limites de um ensino que deixa de lado a língua em uso e, em consequência, o discurso. A autora propõe um ensino centrado no funcionamento da língua no discurso a partir da Teoria da Enunciação de Émile Benveniste. No artigo “Argumentação e ensino de língua materna”, Carmem Luci da Costa Silva discute o saber teórico-metodológico do ensino de língua materna proposto pelos PCNs, bem como verifica, nessas diretrizes para os ensinos fundamental e médio, a presença de aspectos que contemplam o funcionamento enunciativo-argumentativo da língua. A partir disso, mostra análises centradas na Teoria da Argumentação de Oswald Ducrot para refletir sobre as possibilidades de exploração do uso argumentativos da língua em sala de aula. Assim, a autora pontua em seu texto duas questões relacionadas: (1) o tratamento da língua em uso e (2) a consideração da argumentação no uso da língua. “Para resumir textos: uma proposta de base semântico-argumentativa” é um artigo em que Telisa Furlanettto Graeff testa uma metodologia de resumo de textos expositivo-argumentativos com base nas teorias da Polifonia e dos Blocos Semânticos propostas por Oswald Ducrot e Marion Carel. A aplicação dessa metodologia a alunos de Pós-Graduação em Letras em nível de Mestrado revelou-se adequada, visto que os alunos passaram, a partir dessa metodologia, a produzir resumos considerando os princípios necessários a esse gênero 8 Carmem Luci da Costa Silva, et al. textual: completude (presença/ausência de unidades semânticas básicas), economia e fidelidade. “Gêneros discursivos no ensino: o foco na interação verbal”, de Neiva Maria Tebaldi Gomes, estuda a possibilidade de levar os gêneros discursivos para a escola. Essa atividade permite, conforme a autora, compreender o espaço escolar como uma extensão do grande espaço das relações sociais em que se movem e se constituem os sujeitos. Esse estudo mostra que, independentemente de perspectivas teóricas, falar de gêneros na Linguística é ter como foco a interação pela linguagem, é tratar das formas de interação verbal que se constroem nas práticas sociais, procurando entender melhor o que o homem faz com a linguagem. “O comportamento dos demonstrativos na organização dos enunciados”, pesquisa desenvolvida por Claudia Stumpf Toldo e Neusa Maria Henriques Rocha, evidencia, à luz da perspectiva linguístico-funcionalista, que a língua tem de ser tratada no seu contexto de uso e entendida na relação com as diversas possibilidades de interação. Para tanto, analisa a construção de sentidos no texto, por meio das relações que se estabelecem, nesse processo, entre os componentes sintáticos, semântico-discursivos e pragmáticos. As autoras procuram compreender o comportamento dos pronomes demonstrativos em enunciados de humor, com o propósito de mostrar que o professor pode levar o aluno a reconhecer a função referenciadora desses pronomes e o papel que eles desempenham na construção dos sentidos do texto. A segunda parte é constituída de textos que abordam o ensino de línguas estrangeiras a partir de teorias sobre o uso da linguagem. Em “Construção da autonomia na formação do professor de língua estrangeira”, Niura Maria Fontana apresenta a noção de autonomia na escola e afirma a necessidade de que o professor tenha conhecimento de teorias linguísticas para, pela relação da teoria com a prática, desenvolver essa competência em seus alunos. Propõe, então, que o professor tenha uma concepção de língua, não como estrutura, mas como atividade situada, que contemple noções como texto, coesão, enunciação, gênero e discurso. É apresentado o relato de um experimento com dois grupos de alunos. Teorias do Discurso e Ensino 9 Em “Operadores argumentativos little, a little, few, e a few no ensino do inglês como língua estrangeira”, Roberta Macedo Ciocari estuda o uso dos chamados quantificadores, destacando que os materiais didáticos comumente utilizados tornam difícil a tarefa de explicar a diferença existente entre os componentes de cada par. Por isso, os alunos não conseguem empregá-los com segurança, visto não os distinguirem. Com o estudo da Teoria da Argumentação na Língua, a autora propõe uma nova abordagem dos quantificadores em questão, que ajudaria tanto alunos como professores no entendimento desse assunto. Com seu trabalho, “Uso de pero, sino e sin embargo, através da teoria da argumentação na língua”, Gisele Benck de Moraes constata que uma das dificuldades que se apresenta a alunos e professores de língua espanhola é o uso de pero, sino, sin embargo no discurso. A busca de esclarecimentos em gramáticas, dicionários e até mesmo em livros didáticos parece não ser suficiente para dar clareza sobre o uso desses termos: a explicação é sucinta e comparativa e, geralmente, trata só de pero e de sino. Em virtude dessa dificuldade, a autora faz um estudo em que mostra o funcionamento dos articuladores pero, sino e do conector sin embargo em textos, com base em descrições amparadas pela Teoria da Argumentação na Língua (TAL) de Oswald Ducrot. Tendo em vista a importância que a Linguística assume no cenário do ensino de língua e a relevância dos temas desenvolvidos neste livro, as autoras esperam que os textos aqui apresentados oportunizem reflexões e discussões que contribuam para o trabalho de professores em sala de aula. 10 Carmem Luci da Costa Silva, et al. PARTE 1 TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO DO PORTUGUÊS A LÍNGUA PORTUGUESA COMO INSTRUMENTO DE AQUISIÇÃO DE CONHECIMENTOS NO ENSINO FUNDAMENTAL: ALGUMAS REFLEXÕES Tânia Maris de Azevedo * [email protected] Vania Morales Rowell ** [email protected] As palavras só têm significado na corrente do pensamento e da vida. (Wittgenstein) 1 Introdução O ensino de língua materna, hoje, parece estar um tanto desfocado em relação ao seu objetivo, principalmente no que se refere ao Ensino Fundamental: à metalinguagem é conferido o status de protagonista, quando deveria, no máximo, ser coadjuvante. O estudo da língua tem se reduzido à memorização de regras gramaticais aplicadas a uma única modalidade, a língua escrita, em uma única variante, a padrão-culta. A língua é tratada como uma dobra sobre si mesma no sentido de que o estudo da estrutura e da forma é visto como suficiente e até mesmo essencial para que, como consequência natural e necessária, o sujeito aprenda a produzir e compreender eficientemente textos/discursos reais, aqueles inseridos em situações cotidianas de comunicação, quer escolares, quer não. Obviamente, e a experiência é testemunha disto, essa consequência não é assim tão natural e, menos ainda, necessária. Muito pelo contrário, a “aprendizagem” da metalinguagem parece até distanciar o aprendiz das tarefas de compreensão leitora e de produção de textos/discursos. O estudo da gramática normativa acaba por inibir e limitar a atividade de produção do aluno, pois este tem sempre a impressão de não saber escrever, como se a língua * Professora do Departamento de Letras de Universidade de Caxias do Sul, Doutora em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. ** Mestre em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. escrita fosse uma modalidade a que somente os grandes literatos têm acesso, longe, portanto, do uso corrente advindo de necessidades cotidianas. Tanto é assim que é comum ouvir, nos mais diversos meios e nas mais diferentes profissões – inclusive na de professor –, profissionais afirmando categoricamente não saber “colocar suas ideias no papel” e ter dificuldade para ler um texto mais especializado e mais complexo. É preciso lembrar que a criança chega à escola como usuário da língua e com uma competência comunicativa de base já bastante desenvolvida em nível oral, além de contar com uma imaginação prodigiosa e extremamente fértil em termos de possibilidade de criação e potencialidade de aquisição de recursos linguísticos para aprimorar sua expressão verbal. A escola, na contramão desse processo, introduz a criança no mundo do código escrito, desprezando o que ela já domina linguisticamente e impondo a ela um registro desvinculado do seu contexto de uso. Unidades desprovidas de sentido – como letras, sílabas, palavras e mesmo orações – são trabalhadas num universo totalmente artificial, impondo ao sujeito aprendiz a condição do “não saber”, da plena ignorância, como se o falante já não dominasse estruturalmente mecanismos básicos de uso da língua. A língua escrita é colocada ao aluno como uma ilustre desconhecida, sem qualquer vínculo com a língua que ele já usa, e usa proficientemente em várias situações enunciativas. Por outro lado, as demais disciplinas curriculares tratam a aquisição do conhecimento em suas áreas, cada uma no seu nicho, como retenção de conteúdos temáticos, de informações específicas, sem que haja consciência de que a linguagem é o principal veículo de interação, por meio da qual se dá a construção do conhecimento, e a língua a ferramenta maior de acesso às informações e de processamento/sistematização delas rumo à construção dos saberes. Essa falta de consciência faz com que os professores que atuam com as outras disciplinas que compõem o currículo do Ensino Fundamental não se percebam como também professores de língua materna, como se o processo de apreensão e apropriação do conhecimento não fosse mediado pela língua. É nesse contexto que se circunscreve o presente trabalho, cujo objetivo é o de propor uma abordagem instrumental para o ensino de Língua Portuguesa no Teorias do Discurso e Ensino 13 Ensino Fundamental (mais especificamente, de 5ª a 8ª série), ou seja, uma abordagem que conceba a língua como “ferramenta” para a aquisição de conhecimentos em todas as áreas, desde o acesso à informação até a estruturação do pensamento e dos diferentes raciocínios que cada área impõe ao sujeito conhecedor. São diferentes textos, diferentes estruturas, diversos campos semânticos a serem dominados e mobilizados para que o sujeito possa transitar pelas várias áreas e pelos múltiplos tipos de conhecimento. São requeridas do aprendiz diferentes habilidades linguísticas para a construção dos diversos saberes atinentes a cada forma de conhecer e cabe à escola, a cada professor e, mais especificamente, ao professor de língua materna a instrumentalização linguística do aluno para a construção do conhecimento. O que defenderemos aqui são algumas concepções acerca do ensino e do ensino de língua materna, algumas formas de conceber a língua como instrumento de interação humana e mediadora da aquisição de conhecimentos. Portanto, não filiaremos este trabalho a nenhuma teoria linguística em especial, mas a determinadas posturas que, transpostas ao ensino, possam dar conta da real função da língua na construção do conhecimento. Se houver necessidade de explicitar alguns pressupostos teóricos, certamente, estes estarão vinculados às chamadas teorias enunciativas, pois cremos que o uso da língua e sua função na interlocução devam ser a tônica do processo educativo em se tratando do ensino da língua materna. Como já foi dito, o Ensino Fundamental não é lugar de discussões metalinguísticas e muito menos de prescrições gramaticais, mas, se o objetivo é proporcionar ao aluno situações que o leve a construir conhecimentos e formar conceitos, nesse nível de ensino a língua portuguesa deve ser tratada desde os seus diversos usos, quer em termos de leitura, quer de produção, e o aporte teórico que pode alicerçar essa concepção de ensino só poderá ser aquele inscrito na perspectiva enunciativa da linguística. Dados os limites desse estudo, não se tem a pretensão de propor soluções definitivas para o problema detectado, mas apenas elencar algumas reflexões que poderão contribuir para que o ensino de língua materna assuma sua principal função no Ensino Fundamental: a de municiar o aprendiz com os mecanismos 14 Carmem Luci da Costa Silva, et al. linguísticos necessários à compreensão e produção dos diversos gêneros discursivos presentes no cotidiano de qualquer cidadão e daqueles gêneros de que se valem as demais disciplinas curriculares para tratar o conhecimento. 2 Alguns conceitos de base No momento em que se concebe a linguagem como responsável pela estruturação do pensamento e a língua como veículo dessa estruturação e, portanto, como instrumento fundamental à aquisição de conhecimento, faz-se mister discutir, mesmo que breve e superficialmente – dadas as limitações impostas pela configuração deste trabalho –, alguns conceitos que se põem na base de uma proposta de ensino instrumental da língua materna. Não há como pensar o ensino de língua sem pensar antes no ensino como educação formal. E falar sobre a educação formal requer uma breve reflexão sobre o conceito de homem em suas relações com os conceitos de natureza, cultura, sociedade. O homem só difere dos outros animais por ser capaz de, pela interação com seus semelhantes, agir sobre a natureza no sentido de transformá-la de acordo com suas necessidades de sobrevivência e também por ser o único a preservar o fruto dessas constantes transformações – a cultura – ao longo da história para que as gerações futuras possam se valer delas sem ter que refazer o caminho já trilhado. O ser humano distingue-se dos outros animais e assume a condição de sujeito, principalmente, por ser o ÚNICO: - dotado de racionalidade, o que lhe possibilita abstrair, distanciar-se da “realidade” a ponto de, por meio da percepção, compreensão, interpretação, representar-se e representar o mundo; - capaz de, por sua alteridade constitutiva, constituir-se na intersubjetividade e auto-referir-se, por meio da linguagem; - a manter sua identidade, independentemente das alterações físico-químicas, afetivas, de personalidade, de caráter que ocorrem com ele ao longo da vida; - a poder refletir sobre si mesmo, pois é dotado de consciência – consciência esta que lhe permite inclusive ter consciência da existência de seu próprio inconsciente, de sua experiência pessoal intransferível; Teorias do Discurso e Ensino 15 - a concretizar a idéia de liberdade, por ser capaz de conceber e fazer escolhas e poder operar essas escolhas dentro dos meios interno e externo, avaliando-as e avaliando sua própria operacionalização. 1 Essas potencialidades do ser humano que o diferenciam dos outros animais e o tornam único têm na base – e, ao mesmo tempo, como principal instrumento de atualização, de concretização – sua capacidade de linguagem, a competência humana de constituir-se e constituir seu mundo na e pela linguagem. Para abstrair, compreender, interpretar, representar-se e representar o mundo, referir e autorreferir-se, preservar sua identidade, refletir sobre si mesmo, sobre seu conhecimento e sobre suas próprias formas de conhecer e aprender, bem como para realizar, tornar concreta a ideia de liberdade, exercendo sua cidadania, o homem se vale da linguagem, e, mais especificamente, do sistema linguístico que põe em uso. A condição social do homem, a interação com os demais da mesma espécie, bem como a preservação da cultura construída só é possível porque o homem possui uma linguagem, uma forma de simbolizar, de representar, de abstrair dos fenômenos conceitos que perduram por meio da linguagem. Da relação do homem, como sujeito conhecedor que é com a natureza e com os outros sujeitos, relação desencadeada pelos conflitos que a sobrevivência cotidiana impõe, surge o processo de educação informal que, novamente via linguagem, é o grande responsável pela preservação da cultura e pela consolidação da sociedade. A educação informal tem por características: (a) a não sistematicidade, uma vez que não é planejada nem regida por quaisquer preceitos didáticopedagógicos; (b) a espontaneidade, já que acontece na justa proporção da necessidade, nos diferentes grupos e relações sociais, à medida que os conflitos surgem como elementos perturbadores da estabilidade do indivíduo/grupo; e (c) a circunstancialidade, visto que o processo não tem local e hora marcados, efetivase conforme a exigência das situações problematizadoras. 1 SANTOS, PEREIRA e AZEVEDO, 2004, p. 14-15. 16 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Por meio do processo educativo informal, são transmitidos valores, crenças, mitos, enfim, regras de convivência de um grupo, de geração em geração. A educação é o vetor de transmissão da cultura enquanto que esta define o quadro institucional da educação e ocupa um lugar essencial em seus conteúdos. A educação, afirma-se, ocupa uma posição central no sistema de valores e os valores são os pilares em que se apóia a educação. Postas a serviço das necessidades de desenvolvimento do ser humano, a educação e a cultura tornam-se, quer uma, quer outra, meios e fins deste mesmo desenvolvimento. 2 Da exigência de organizar e disseminar conhecimentos de modo a tornálos comuns a comunidades maiores e mesmo à sociedade como um todo, surge a educação formal, ou ensino. Com ambiente e horários determinados, com profissionais especializados, com material apropriado e programas curriculares estabelecidos, a educação formal, diferentemente da informal, assume a configuração de processo sistemático – metódica e metodologicamente organizado para propiciar a aquisição do conhecimento produzido –, programado – com objetivos e ações planejados previamente e conteúdos hierarquicamente dispostos ao longo de um currículo – e situado artificialmente – em oposição à circunstancialidade que define o processo de educação informal, a educação formal tem tempos e espaços definidos, ocorre por meio da criação de ambientes de aprendizagem, antecipando necessidades e conflitos. A educação formal passa a ser, então, um simulacro do processo educativo informal, no sentido de que tenta reproduzir situações conflitivas na forma de situações de aprendizagem, para que o sujeito conhecedor tenha acesso ao conhecimento social e historicamente produzido. Todo o processo educativo, seja ele formal ou informal, só é possível por meio da linguagem e, mais especificamente, da língua oral ou escrita. Conhecimentos matemáticos, físicos, químicos, geográficos, independentemente de terem uma linguagem própria, um sistema de formalização e representação, são veiculados pela educação, formal ou não, por meio do sistema linguístico, da 2 NANCZHAO, 1998, p. 257. Teorias do Discurso e Ensino 17 linguagem verbal, oral ou escrita. Os questionamentos, as explicações, as definições, os exercícios didáticos têm na linguagem verbal sua forma de expressão e o meio de decifração/compreensão de símbolos e gráficos pertinentes às diversas áreas do conhecimento. Qualquer que seja a forma de educação, da mais sistemática a mais espontânea, tem como veículo mais utilizado a língua, justamente por ser ela o meio mais viável de transmissão de informações e de processamento delas rumo à formação de conceitos e, consequentemente, à construção do conhecimento. Falando em conhecimento, esse é outro conceito de base a ser aqui discutido, pois de como o compreendemos e entendemos o ato de conhecer decorre a concepção de ensino de língua proposta. O conhecimento é visto aqui como o resultado, o produto do processamento, da organização, enfim, da sistematização do conjunto de informações a que somos expostos a todo instante ou a que nos expomos quando temos um problema a solucionar. Essas informações chegam a nós de várias formas e por diversas vias, desde o que é percebido sensorialmente até o que é intelectualmente captado ou acessado. O que ocorre é que essas informações por si só não se constituem meios para a solução de problemas, precisam ser inter-relacionadas para assumir a configuração de conhecimento construído e, então, poder ser adaptadas, ressignificadas e aplicadas, como instrumentos de resolução, a situações que se colocam como problemas. O conhecimento só é conhecimento enquanto organização, relacionado com as informações e inserido nos contextos destas. As informações constituem parcelas dispersas de saber. [...] [A] informação é uma matéria-prima que o conhecimento deve dominar e integrar. 3 O conhecimento resulta, por conseguinte, de uma ação do sujeito sobre o objeto a ser conhecido. Não há, pois, transmissão de conhecimento, mas reconstrução, ressignificação do objeto de conhecimento pelo sujeito por meio da ação, da interação, que se faz, por sua vez, pela linguagem. 3 MORIN, 2002, p. 16 e 18. 18 Carmem Luci da Costa Silva, et al. É a partir de um acontecimento que se institui como desafio/problema ao sujeito que o processo de conhecer entra em ação, ou seja, que o sujeito, pela interação com outros sujeitos e com as informações – objeto de conhecimento –, constrói uma rede de relações entre essas informações e delas com a situação- problema, interpretando-as e convertendo-as em possibilidades de solução ou de minimização do problema instituído. O produto desse processo, independentemente da efetiva solução do problema, é o que se concebe como conhecimento, uma vez que essa rede de relações estabelecida foi incorporada pelo sujeito e poderá ser o alicerce de novas relações na busca de outras soluções para outras situações conflitivas. A cada evento que se apresenta ao sujeito cognoscente, ele localiza e mobiliza o que já assimilou a respeito, ressignifica e reconstrói o conhecimento que já possui e, buscando novas informações, realizando novas interações, incorpora novas redes de relações ao seu conhecimento prévio, ampliando-o, redimensionando-o e/ou sedimentando-o para a solução de novos problemas. Assim, sucessiva e recursivamente, o conhecimento vai sendo construído, aprofundado, alargado, e o sujeito vai se tornando mais autônomo, mais senhor de suas interpretações e ações sobre o mundo e sobre si mesmo. Como diz Luckesi (1989, p. 47-48), o conhecimento é o produto de um enfrentamento do mundo realizado pelo ser humano que só faz plenamente sentido na medida em que o produzimos e o retemos como um modo de entender a realidade, que nos facilite e nos melhore o modo de viver, e não, pura e simplesmente, como uma forma enfadonha e desinteressante de memorizar fórmulas abstratas e inúteis para nossa vivência e convivência no e com o mundo. Desde essa perspectiva, o objeto de conhecimento não se apresenta ao sujeito como um reflexo do real a ser assimilado, mas como um objeto a que o sujeito precisa atribuir sentido. Por isso, o conhecimento é sempre, como diz Morin (2002), tributário da interpretação, logo, da subjetividade, isto é, construído individual e transitoriamente, não admitindo o caráter de verdade tácita e imutável. A linguagem assume no processo de conhecer pelo menos três funções: a de veicular a interação do sujeito cognoscente com o objeto de conhecimento, Teorias do Discurso e Ensino 19 possibilitando sua apropriação; a de estruturar e organizar o conhecimento resultante dessa interação; e a de tornar consciente ao sujeito todo esse processo. [...] o homem transforma e é transformado nas relações produzidas em uma determinada cultura. Mas a sua relação com o meio não se dá de forma direta, ela é mediada por sistemas simbólicos que representam a realidade; e a linguagem, que se interpõe entre o sujeito e o objeto de conhecimento, é o principal sistema de todos os grupos humanos. 4 Quando o sujeito se questiona sobre algo, quando mobiliza o que já conhece a respeito do que está investigando e, desde aí, estabelece novas relações a fim de se apropriar desse objeto de investigação e, ainda, quando consegue tomar consciência do caminho percorrido para desvendar o objeto que se lhe põe à frente, bem como do resultado desse desvelamento, o faz por meio da linguagem, seja ela verbal ou não. Como diz Vygotsky, a linguagem dá forma ao pensamento, estruturando-o. É por meio da linguagem que o sujeito interpreta, constrói, reconstrói, ressignifica, redimensiona e socializa o conhecimento. Para Luria (1987, p. 202), a presença da linguagem e de suas estruturas lógico-gramaticais permite ao homem tirar conclusões com base em raciocínios lógicos, sem ter que se dirigir cada vez à experiência sensorial imediata. A presença da linguagem permite ao homem realizar a operação dedutiva sem se apoiar nas impressões imediatas e se limitando àqueles meios de que dispõe a própria linguagem. Esta propriedade da linguagem cria possibilidade de existência das formas mais complexas do pensamento discursivo (indutivo e dedutivo), que constituem as formas fundamentais da atividade intelectual produtiva humana. Se a linguagem é o instrumento fundamental do processo de conhecer e se o conhecer pressupõe o aprender, a linguagem desempenha na aprendizagem função igualmente essencial, como mediadora das relações entre o sujeito e o objeto a conhecer. 4 BEZERRA, 2002, p. 38. 20 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Nesse sentido, quando se pensa uma proposta para o ensino de língua materna, outro conceito de base a ser repensado é o de aprendizagem. É preciso saber como se entende o processo de aprendizagem, como se aprende, para poder conceber uma proposta de ensino, uma vez que este só tem sentido se pensado da perspectiva do aprender. Não há espaço aqui para analisarmos todas as formas de aprendizagem, restringir-nos-emos, pois, à aprendizagem formal, sistematizada, escolar. Se o ato de conhecer pressupõe a construção de uma rede de informações interconectadas, faz-se necessário aprender a tecer essa rede. A aprendizagem, aqui, é vista como o desenvolvimento de competências/habilidades essenciais ao ato de conhecer como as de observar, comparar, classificar, estabelecer analisar, relações. sintetizar, Outra vez, o interpretar, criticar, desenvolvimento descobrir, de tais competências/habilidades tem como principal ferramenta a linguagem e, essencialmente, a linguagem verbal. Desde a mais simples observação até a construção da mais complexa rede de relações tem na verbalização o maior instrumento de representação/sistematização/consolidação. Segundo Piaget, aprender é diferente de conhecer. Aprender, para o autor, é saber realizar, ao passo que conhecer é compreender e distinguir as relações necessárias, é atribuir significado às coisas. Nesse sentido, aprender diz respeito mais aos procedimentos e às estratégias empregadas pelo sujeito para agir sobre o objeto de conhecimento e decifrá-lo ou ressignificá-lo. Novamente, aqui, torna-se essencial a consciência sobre esses procedimentos: aprender a aprender, pois, é fundamental para o aprimoramento das estratégias pressupostas pelo conhecer. A meta-aprendizagem, assim como a metacognição, é fundamental para assegurar ao sujeito a autonomia do seu desenvolvimento, uma vez que lhe permite otimizar processos e redimensionar estratégias em função do objeto a conhecer. A aprendizagem resulta de construções efetivadas pelo sujeito cognoscente por meio de estágios de reflexão, remanejamento e remontagem das percepções que ocorrem na ação sobre o mundo e na interação com outras Teorias do Discurso e Ensino 21 pessoas 5. A aprendizagem é resultado de um processo de interação entre o mundo do sujeito e o mundo do objeto, por uma integração ativada pelas ações do sujeito 6. A aprendizagem, por decorrência, só ocorre à proporção que o aluno age sobre os conteúdos específicos e, desafiado por situações problematizadoras, tem suas próprias estruturas de pensamento previamente construídas ou em construção. E, ainda, pelo desenvolvimento de competências/habilidades, mantém uma relação ativa como o conhecimento, relação essa que produz transformações no sujeito cognoscente e no próprio objeto cognoscível. No entanto, a aprendizagem não pode ser vista como um fenômeno unicamente individual. Se o ser humano é aqui entendido como um ser essencialmente social, só se pode compreender a aprendizagem como resultado de um constante processo de interação, não apenas do sujeito com o objeto a conhecer, mas do sujeito com outros sujeitos. No caso específico do ensino formal, a aprendizagem decorre fundamentalmente das interações alunoprofessor e aluno-aluno. Segundo Wood 7, a teoria vigotskiana atribui ao sucesso alcançado pela cooperação a base da aprendizagem e do desenvolvimento. A instrução, tanto formal como informal, em contextos sociais variados, realizada por colegas, familiares, amigos e professores dotados de maior conhecimento, é o principal veículo de transmissão cultural do conhecimento. O conhecimento encontra-se inscrito nas ações, no trabalho, nas brincadeiras, na tecnologia, na literatura, nas artes e na fala dos membros de uma sociedade. E apenas por meio da interação com os representantes de vários grupos sociais e culturais é que o sujeito poderá adquirir, incorporar e desenvolver posteriormente aquele conhecimento. Ou seja, é através das múltiplas inter-relações que o indivíduo mantém com os diferentes grupos sociais que vai construindo seu conhecimento e incorporando valores, crenças e atitudes que compõem a cultura e que, por sua vez, fazem-na perpetuar-se. 5 MORAES, 2000, p. 200. Id. Ib. 7 1996, p. 45. 6 22 Carmem Luci da Costa Silva, et al. O ato de conhecer pressupõe uma ação do sujeito sobre o objeto de conhecimento, no sentido de compreendê-lo e decifrá-lo, processos que por sua vez implicam o ato de refletir, já que nem todo o objeto de conhecimento está disponível sensorialmente. É pela possibilidade de representar simbolicamente, ou seja, pela linguagem, que o sujeito consegue abstrair, logo, analisar, hipotetizar, deduzir, generalizar, transferir, projetar, acessar e processar informações, sistematizando-as e incorporando-as na forma de conhecimento construído. É pela linguagem que o homem se apropria do conhecimento. E é pelo questionamento sobre a realidade (esta concebida como um ponto de vista do sujeito, logo, individualmente percebida e compreendida) que o conhecedor conhece. Portanto, é a língua que permite ao sujeito assumir uma atitude investigativa sobre o mundo, questioná-lo e questionar o conhecimento produzido, e, assim, construir sobre ele seus pontos de vista. É a língua o principal instrumento de tomada de consciência do mundo pelo sujeito. Conhecer nada mais é do que atribuir sentido ao que se nos apresenta; conhecer, portanto, pressupõe a linguagem para tal atribuição de sentido. É por meio da linguagem que o sujeito conhecedor age sobre o objeto a conhecer e, nessa ação, construindo hipóteses e generalizações, confere sentido a ele, apropriando-se desse objeto e tomando consciência do próprio processo de conhecê-lo, o que, consequentemente, lhe permitirá decifrar novos objetos cognocíveis e implementar novas formas de conhecer. De acordo com Vygotsky (1998), quando trata do processo de formação de conceitos, o signo, ao mesmo tempo em que funciona como elemento mediador nesse processo, afigura-se como sua síntese, uma vez que se torna a exteriorização, a abstração, a formalização do próprio conceito formado. A linguagem, nesse sentido, assume papel mediador e estruturante no processo de conhecer. É por meio dela, e mais especificamente por meio da língua, que significamos e representamos o mundo que se nos dá a conhecer. É a língua a responsável pela transformação do conhecimento em saber e em saber-fazer, visto que ela possibilita a socialização de informações e o desenvolvimento de habilidades que o raciocinar pressupõe. É pela propriedade de referir pela língua que o sujeito se constitui e constitui o mundo que o cerca. Teorias do Discurso e Ensino 23 As concepções até aqui discutidas formam o alicerce sem o que não seria possível delinear uma proposta para o ensino de língua materna no Ensino Fundamental. Somente quando se tem por base e se acredita que a função da língua é a de mediar o processo de conhecer em qualquer área pode-se propor que o ensino de língua configure-se como uma instrumentalização ao ato de transformar informações em conhecimento e, posteriormente, outra vez por meio da língua, transformar esse conhecimento construído em ferramenta para a solução de problemas que o viver e o conviver impõem. Assim sendo, é hora de repensarmos o ensino da língua materna desde essa perspectiva: algumas concepções, algumas diretrizes, alguns redimensionamentos. 3 Português instrumental: a língua a serviço da construção de saberes no ensino fundamental Se a educação formal é tida aqui como uma simulação dos processos de ensino e aprendizagem desenvolvidos pela educação informal, o ensino da língua materna não poderia ser concebido de outra forma. Assim, o ensino da língua portuguesa deveria seguir na direção da aquisição da linguagem oral, no sentido de que essa modalidade da língua é apreendida e aprendida em seu uso, pela interação do sujeito com outros que já a detém. Ensinar língua materna, então, significa expor o sujeito aprendiz a diferentes situações de emprego da língua, seja na modalidade escrita para aprendê-la, seja na modalidade oral para aperfeiçoá-la. Hoje, as aulas de língua portuguesa estão direcionadas prioritariamente à aquisição e ao desenvolvimento da língua escrita, quer em termos de compreensão leitora, quer no que se refere à produção de textos. A língua oral é relegada a um segundo plano ou nem sequer trabalhada, sendo inclusive “atrofiado” seu uso no ambiente escolar, já que as interlocuções são limitadas e rigidamente supervisionadas, e as intervenções dos professores sobre a oralidade dos alunos vão exclusivamente ao sentido da correção e, ainda, da correção com critérios do nível culto da modalidade escrita. Além disso, o ensino de língua está muito longe de priorizar as situações de uso efetivo da língua a ser aprendida/aprimorada; a descrição ou mesmo a 24 Carmem Luci da Costa Silva, et al. normatização do sistema linguístico é o foco dos currículos na Educação Básica. A língua como objeto de ensino é uma língua atemporal, fora de contexto, portanto, desprovida de qualquer função, mas plenamente recheada de regras e normas, cuja infração é sempre motivo de punição; é a língua sobre si mesma e por si mesma, sem qualquer vínculo com as possibilidades reais de emprego e, menos ainda, sem qualquer possibilidade de criação sobre ou de rompimento do sistema que é tido como restritivo e coercitivo; é uma língua fossilizada, sem ninguém que a atualize, que a realize, que atribua sentido a ela. Ora, sabe-se bem que o sentido não está na língua, como entidade virtual, mas no contexto de uso das formas da língua; é o discurso, como diz Ducrot (2002), que doa sentido, é na parole saussuriana que o dizer se faz dito e, portanto, pleno de sentido. Então, como conceber um ensino de língua que a artificializa, que suprime dela o que lhe confere sentido? Como esperar que o aluno aprenda a usar uma língua, a sua língua, ensinando suas formas e estruturas descontextualizadas, fora da situação enunciativa que a faz fazer sentido? Diante disso e da crença de que a língua é, além do principal instrumento de interlocução dos seres humanos, o principal mediador na formação de conceitos e, consequentemente, da construção de saberes pelos sujeitos, o que se propõe aqui é quase o inverso disso. É um ensino de língua materna (em que as modalidades oral e escrita tenham o mesmo status e sejam constante e concomitantemente trabalhadas) cujas bases sejam as situações enunciativas, os contextos de interlocução, os diferentes objetivos dos locutores, os diversos perfis dos interlocutores. Nossos professores de língua – seja por formação profissional, seja por falta de formação – são muito atraídos pela descrição de língua e pelo ensino de gramática. Sempre fazemos sucesso na formação de professores quando discutimos as características formais e de estilo de um texto ou gênero, a partir de nossos instrumentos. Por outro lado, nossos alunos não precisam ser gramáticos de texto e nem mesmo conhecer uma metalinguagem sofisticada. Ao contrário, no Brasil, com seus acentuados problemas de iletrismo, a necessidade dos alunos é de terem acesso letrado a textos (de opinião, literários, científicos, Teorias do Discurso e Ensino 25 jornalísticos, informativos, etc.) e de poderem fazer uma leitura crítica e cidadã desses textos. 8 Por isso, acredita-se que os gêneros discursivos, desde a abordagem de Bakhtin, possam se constituir meios eficientes para o ensino da língua materna numa perspectiva mais enunciativa e funcional. A proposta desse autor vem ao encontro da função que se atribui aqui ao ensino de língua materna no Ensino Fundamental, ou seja, a de instrumento do processo de aquisição/construção de conhecimentos em todas as demais disciplinas que compõem o currículo desse nível de ensino. Como diz Bakhtin, todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados 9 (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominados gêneros do discurso. 10 Cada área do conhecimento – e, por conseguinte, no referido processo de simulação, cada disciplina do currículo – possui formas específicas de expressar seus raciocínios e conceitos: definições, explicações, justificativas, questionamentos, fórmulas, gráficos, mapas, esquemas, enfim, uma grande 8 ROJO, p. 27. Conceito situado pelo próprio autor no campo da parole saussuriana, significa o ato de enunciar, de exprimir, transmitir pensamentos, sentimentos, etc. Bakhtin, segundo seu tradutor, usa indiscriminadamente os termos enunciado e enunciação, sem distingui-los. 10 BAKHTIN, 2003, p. 261-262. Grifos do autor. 9 26 Carmem Luci da Costa Silva, et al. quantidade e diversidade de gêneros discursivos aplicados às finalidades e necessidades de cada área e de cada conceito trabalhado, analisado. O sujeito aprendiz é exposto a essa multiplicidade de gêneros discursivos sem que nenhuma instrumentalização linguística lhe seja fornecida. A ideologia escolar tem a falsa impressão de que o fundamental a ser ensinado é o conteúdo temático de cada área, como se esse conteúdo não fosse veiculado por um conjunto de sequências discursivas próprias da área e que requerem domínio, por parte do sujeito cognoscente, para que possam ser compreendidas e, então, aprendido, transferido e aplicado o conteúdo que é por elas transmitido. Desde essa perspectiva, à educação formal cabe não só ensinar o conhecimento produzido em cada área, mas também instrumentalizar o aprendiz para que tenha acesso a esses conhecimentos e seja capaz de apropriar-se deles para construir seus próprios conceitos e produzir novos conhecimentos. Particularmente, à disciplina de língua portuguesa fica uma dupla tarefa: a de instrumentalizar o aluno para compreender e produzir os gêneros discursivos cotidianos, orais ou escritos, dos mais informais aos mais formais; e a de instrumentalizá-lo também para operar, quer em termos de leitura, quer de produção, com os gêneros utilizados pelas outras disciplinas, desde aqueles próprios das várias áreas do conhecimento até os que são didaticamente usados pelas disciplinas para acesso e construção do conhecimento produzido, a saber: os relatórios, resumos, resenhas, esquemas, etc. Ainda conforme Bakhtin, em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma determinada função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis. 11 Nesse sentido, o que se propõe aqui é que a função, a finalidade, a situação enunciativa determinem a forma, os mecanismos linguístico-gramaticais 11 BAKHTIN, 2003, p.266. Teorias do Discurso e Ensino 27 e textuais a serem trabalhados, ensinados nas aulas de língua materna, e não o contrário como vem sendo feito. Que a hierarquização dos conteúdos a serem trabalhados no Ensino Fundamental, principalmente nas últimas quatro séries, em língua portuguesa, seja feita com base nos gêneros discursivos veiculados nas outras disciplinas do currículo e que seja assumida pela disciplina de língua materna a função instrumental que tem em relação às outras que compõem o currículo. Não se postula que seja abolido o estudo da forma em função da análise enunciativo-discursiva, mas que esta seja priorizada e norteie o ensino daquela. Acredita-se que tanto os recursos textuais (mecanismos que asseguram coerência e coesão nos níveis macro e microtextual) quanto os aspectos gramaticais sejam tratados em função do gênero analisado, de acordo com o que é requerido pela situação enunciativa. De acordo com Rojo, toda prática de linguagem se dá numa situação (de comunicação, de enunciação, de produção ou circulação) que é própria de uma determinada esfera social, em um dado tempo e espaço históricos. Esta esfera neste tempo/espaço admite determinados participantes (com relações específicas), temas e modalidades de linguagem e de mídia, e não outros. Estes participantes articulam seus enunciados em gêneros específicos dessa esfera e as propriedades composicionais e estilísticas desses enunciados em gêneros (forma composicional, formas lingüísticas) serão dependentes das relações entre estes participantes. Em especial, das apreciações de valor que estes façam sobe o tema e sobre seus interlocutores. 12 Cabe ao professor de língua materna criar situações-problema que desafiem o aprendiz não só a compreender como também a produzir diferentes gêneros discursivos, isto é, situações conflitivas cuja resolução dependa da produção/compreensão de determinados gêneros. Só assim os alunos perceberão a importância de aprimorar-se linguisticamente para poder interagir em diferentes contextos e com diversos objetivos e interlocutores e tirar o máximo proveito dessas interações. 12 ROJO, p. 16-17. 28 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Falamos apenas através de determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo. Dispomos de um rico repertório de gêneros de discurso orais (e escritos). Em termos práticos, nós os empregamos de forma segura e habilidosa, mas em termos teóricos podemos desconhecer inteiramente sua existência. [...] até mesmo no bate-papo mais descontraído e livre nós moldamos nosso discurso por determinadas formas de gênero, às vezes padronizadas e estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas e criativas [...]. Esses gêneros do discurso nos são dados quase da mesma forma que nos é dada a língua materna, a qual dominamos livremente até começarmos o estudo teórico da gramática. 13 Bakhtin acrescenta ainda que a língua materna – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical – não é apreendida por nós a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciações concretas que ouvimos e reproduzimos nas diferentes situações discursivas, com os interlocutores que nos rodeiam. Assimilamos as formas da língua somente nas e pelas enunciações. As formas da língua e as formas típicas dos enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à nossa experiência e à nossa consciência em conjunto e estreitamente vinculadas. 14 Aprender a falar, de acordo com o mesmo autor, significa aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda, por palavras isoladas). Há, segundo ele, entre os gêneros do discurso e as formas gramaticais e destes com o discurso uma relação de interdependência em termos de organização: os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintáticas). 15 Não entraremos aqui nos meandros da discussão linguística existente entre tipos textuais e gêneros discursivos (ou como quer Marcuschi, gêneros textuais). Não é objetivo deste texto apresentar uma discussão teórica e terminológica sobre esse assunto, no entanto, Marcuschi (2002) faz uma distinção interessante entre esses conceitos e pensamos ser pertinente 13 BAKHTIN, 2003, p. 282-283. Id. ib. 15 Id. ib. 14 Teorias do Discurso e Ensino 29 apresentá-la aqui, pois cremos ser possível aliar, como ferramentas pedagógicas para o ensino de língua materna, tipos textuais e gêneros do discurso. O autor 16 diz usar a expressão tipo textual para designar uma espécie de construção teórica definida pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas) e afirma que esses tipos abrangem categorias como a narração, a exposição, a argumentação, a descrição e a injunção. Já a expressão gêneros textuais (ou o que chamamos aqui gêneros discursivos) é usada como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica. Os gêneros, segundo ele, são inúmeros, e alguns exemplos seriam o telefonema, a carta comercial, a carta pessoal, o romance, o bilhete, a reportagem jornalística, o horóscopo, o artigo científico, a resenha, etc. Por estar didaticamente muito bem posto, reproduziremos o quadro elaborado pelo autor 17 para expressar essa distinção. TIPOS TEXTUAIS GÊNEROS TEXTUAIS 1. construtos teóricos definidos por pro- 1. priedades linguísticas intrínsecas; realizações linguísticas definidas por concretas propriedades sociocomunicativas; 2. constituem sequências linguísticas ou constituem textos empiricamente sequências de enunciados e não são realizados textos empíricos; situações comunicativas; 3. sua nomeação abrange um conjunto limita-do de categorias cumprindo funções em 3. sua nomeação abrange um conjunto teóricas aberto e praticamente ilimitado de determinadas por aspectos lexicais, designações concretas determinadas sintáticos, pelo relações lógicas, tempo verbal; 4. 2. estilo, conteúdo, composição e função; designações narração, canal, teóricas argumentação, dos tipos: descrição, injunção e exposição. 4. exemplos de gêneros: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, aula expositiva, reunião de condomínio, horóscopo, 16 17 2002, p. 22-23. Id, p. 23. 30 Carmem Luci da Costa Silva, et al. receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo virtual, aulas virtuais, etc. Se no ambiente escolar, e mesmo fora dele, o conhecimento se manifesta por diferentes gêneros discursivos e se é papel da disciplina de língua materna instrumentalizar o aluno para o livre trânsito entre esses gêneros para que possa se apropriar do conhecimento produzido pela humanidade e, então, exercer plenamente sua cidadania, acreditamos ser possível, no ensino de língua portuguesa, aliar, mesmo que somente como instrumentos didáticos – uma vez que as bases teóricas que dão origem à distinção feita por Marcuschi sejam em muitos pontos divergentes – esses dois pontos de vista apresentados pelo autor. Os tipos de texto, tanto quanto os aspectos gramaticais da língua, vêm sendo trabalhados no ensino como fins em si mesmos. É comum vermos professores destinarem grande parte do período letivo ao ensino de narrações e descrições (principalmente no Ensino Fundamental), suas estruturas, seus elementos, seus subtipos e, a par disso, categorizações e classificações lexicais e sintáticas, forçando ambientes de compreensão e produção de textos que se “enquadrem” nessa tipologia, como se um texto real fosse puramente narrativo ou descritivo. Nossa proposta é que, partindo das situações enunciativas que dão origem aos diversos gêneros discursivos (quer aqueles presentes no cotidiano, quer aqueles de que se valem as demais disciplinas curriculares), analisando a finalidade de cada gênero, seu estilo, seu conteúdo, os tipos de texto, ou mais especificamente as sequências discursivas que os constituem, sejam trabalhados para explicitar a composição característica de cada gênero, sua construção composicional, como define Bakhtin. Nesse sentido, tanto a tipologia textual quanto os aspectos gramaticais – que passam a ser vistos como mecanismos de coesão e coerência textuais, portanto de um prisma descritivo e não mais prescritivo – serão trabalhados em Teorias do Discurso e Ensino 31 função dos gêneros discursivos ensinados, ou seja, o uso da língua em contextos similares aos reais determinará o estudo do sistema linguístico. Conforme o próprio Bakhtin 18, A língua como sistema possui uma imensa reserva de recursos puramente lingüísticos para exprimir o direcionamento formal: recursos lexicais, morfológicos [...], sintáticos [...]. Entretanto, eles só atingem direcionamento real no todo de um enunciado concreto. Uma instrumentalização linguística com essa configuração parece-nos ser capaz de facilitar ao aluno seu processo de formação de conceitos, a aquisição de conhecimentos e, consequentemente, a construção dos saberes indispensáveis a sua inserção na sociedade de que faz parte como verdadeiro cidadão. Visto que o aluno, quando chega à escola, já domina a língua materna, o papel do ensino da língua, mesmo da modalidade escrita, deve ser o de instigar, provocar e promover uma tomada de consciência dos mecanismos e processos linguísticos que o sujeito já usa e de outros disponíveis no sistema linguístico, quer oral, quer escrito, no sentido de possibilitar a ele um uso mais efetivo e eficaz desses recursos no desenvolvimento de competências/habilidades necessárias à aquisição do conhecimento. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BEZERRA, M. A. Ensino de língua portuguesa e contextos teórico-metodológicos. In DIONISIO, A. P., MACHADO, A. R. e BEZERRA, M. A. (orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. DUCROT, Oswald. Os internalizadores. Tradução Leci Barbisan. Letras de Hoje. Porto Alegre: EDIPUCRS, nº 129, set. 2002. p.7-26 LUCKESI, Cipriano et al. Fazer universidade: uma proposta metodológica. São Paulo: Cortez, 1989. 18 2003, p. 306. 32 Carmem Luci da Costa Silva, et al. LURIA, A. R. Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In DIONISIO, A. P., MACHADO, A. R. e BEZERRA, M. A. (orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. 6ª. ed., Campinas, SP: Papirus, 2000. MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. NANCZHAO, Zhou. Interações entre educação e cultura, na óptica do desenvolvimento econômico e humano: uma perspectiva asiática. In DELORS et al. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: MEC: UNESCO, 1998. ROJO, Roxane. Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas e aplicadas. A sair em MEURER, J. L., BONINI, A. e MOTTA-ROTH, D. (orgs.). 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Em primeiro lugar, a relação entre o ensino de língua e a escrita segue um senso comum responsável por ligar a escrita ao ensino e à escola, filiando a prática da escrita escolar ao positivo próprio da ciência. Por esse prisma, “é preciso ir à escola para aprender a ler e a escrever”. Em segundo lugar, pela tão discutida relação entre linguística e escola, sugerindo que esta possa tornar-se um lugar em que as teorias sejam aplicadas, oportunizando, de certa forma, uma “prática” a uma epistemologia. Por fim, pela suspeita de que a presença da escrita na escola esteja ancorada em duas questões: a) na relação com a ciência e b) na relação com a fala. Ambas as versões estão presentes na escola e estão autorizadas pela linguística saussuriana. Mas como se chegou a conceituação de escrita como sendo “da escola?” Para responder a essa pergunta será necessário um passo atrás, ou seja, tentar acompanhar a discussão de como a escrita é entendida na escola e as prováveis consequências dessa conceituação para o ensino da escrita. * Professora de Língua Portuguesa da UERGS e Doutora em Letras – Estudos da Linguagem pelo PPG- Letras/UFRGS. 2 A escola como o lugar da escrita O ensino da língua vale-se da legitimação da escrita como regularidade, própria do saber escolar, resultando no distanciamento de qualquer visão enunciativa da escrita. Na verdade, a escola é, sim, o lugar da escrita regular. Talvez porque a primazia cronológica da fala como prática oral desenvolvida em interações do dia a dia, sendo adquirida naturalmente à medida que a criança cresce, seja entendida como uma aquisição informal. Ao contrário da escrita, tomada como uma manifestação formal da alfabetização, representa a aquisição de um bem cultural, significando certo prestígio decorrente do processo de escolarização 1. É, portanto, na escola que a criança terá maior contato formal com a língua escrita. A escrita está presente na maioria das práticas sociais dos povos em que penetrou. Mesmo quem não sabe escrever está constantemente sendo influenciado por ela. Segundo Kato (1995), é função da escola introduzir a criança no mundo da escrita para que esta seja capaz de fazer uso desse tipo de linguagem para comunicar-se, em uma sociedade que prestigia a escrita. A escrita faz parte da escola, tanto que é impensável uma sala de aula sem quadro negro - ou branco, seguindo o avanço tecnológico - ainda mais nos ensinos fundamental e médio. Por mais que mudem as metodologias, os recursos usados no dia a dia escolar, “dar aula” significa, também e ainda, escrever no quadro; frequentar a sala de aula, por sua vez, também implica envolver-se muito mais com a expressão escrita do que com a oral. Sem dúvida, a escrita facilita as atividades desenvolvidas na escola. Citando Bottéro (1995, p.21): Por outro lado, ao contrário do discurso oral, flutuante, lábil e contínuo, que não se pode apanhar, como água e o tempo que escorrem, a mensagem escrita é materializada, tendo recebido ao mesmo tempo consistência e duração: não é uma corrente de água inesgotável e impermanente como o rio de Heráclito, no qual nunca nos banhamos duas vezes; tornou-se um objeto, coerente, autônomo e manipulável à vontade. 1 Para Graff, (1994), é equivocada a identificação entre alfabetização e escolarização, pois é possível haver alfabetização desvinculada de escolarização. Teorias do Discurso e Ensino 35 A escrita como um objeto material se presta à análise, à separação de suas partes e ao retorno reparador sobre o que foi escrito, mas talvez sua principal função seja a de armazenar. De fato, a função de arquivar da escrita parece ser decisiva para compreenderem-se as implicações sociais e intelectuais da cultura escrita 2 e, acrescento, de sua importância em sala de aula como representação do oral e da regularidade. Mas é possível pontuar essa presença da escrita tão arraigada ao discernível da língua em relação ao ensino? Apontar gestos dessa presença é a proposta do item seguinte, perseguindo as formas de retorno da escrita através das publicações dirigidas aos professores, pois, certamente serão um testemunho da época em que surgiram. Para esse fim, as publicações mais representativas 3de cada década (abordando os últimos trinta anos) serão chamadas a testemunhar sobre o ensino de língua na escola. A questão de fundo, no entanto, é saber como a escrita situa-se dentro das teorias linguísticas apresentadas aos professores, posição que, consequentemente, repercutirá no ensino da escrita em sala de aula. 3 As teorias linguísticas e a escrita Entre os anos 70 e 80 o ensino volta-se para as teorias da comunicação, prioriza o uso e vê a língua como um instrumento de comunicação transparente, afastando-se gradativamente do ensino da gramática. A discussão sobre o ensino ou não de Gramática na escola é tema de grande interesse na época. Por conta disso, textos não literários, do dia a dia, passam a fazer parte dos livros didáticos; a linguagem oral torna-se parte das aulas. A visão instrumental domina a concepção de língua como veículo de comunicação. Até a década de 70, o estudo centrado no ensino da Gramática priorizava a escrita. Com a mudança de enfoque, as atenções voltadas para a oralidade, o 2 Olson (1995) refere-se à cultura escrita em âmbito mais geral do que apenas a instrução, em sentido restrito, como à capacidade de ler e escrever. Tomo emprestada a condição de armazenamento, característica da cultura escrita, estendendo-a para o processo de escrita dentro da escola. 3 Evidentemente, essa escolha irá retratar uma visão particular em relação à escolha das obras citadas. No entanto, não deixa de ser um testemunho em relação à importância da publicação. 36 Carmem Luci da Costa Silva, et al. trabalho em sala de aula buscou atividades diferenciadas do que se fazia até então. Em vista disso, surge no Brasil, nos anos 80, uma gama de autores dedicados a estudar a relação que se estabelece entre a linguística e o ensino de língua materna em sala de aula. Tais trabalhos repercutem até hoje entre os professores, refletindo a delicada situação que se abateu sobre o ensino, sugerindo que muitas questões (talvez a maioria delas) ainda permanecem insolúveis 4. De certa forma, algumas previsões foram lançadas bem antes, em 1973, com Lingüística e ensino do Português (GENOUVRIER; PEYTARD), e alcançaram os dias de hoje. Trata-se de uma obra singular: precursora de uma discussão que perduraria muitas décadas, traduzida do francês para o português, tinha como objetivo atender às necessidades do professor português e brasileiro e levou a reformulações frequentes e radicais do original francês, o princípio básico foi o de utilizar o arcabouço conceitual do texto francês estofando-o com material luso-brasileiro. A posição de vanguarda defendida pelos autores abre caminho para as novas discussões a respeito da adoção de textos literários consagrados como modelo do bem escrever: cremos que bons textos não são apenas os do passado; cremos que a língua escrita vive também nas cartas, nas revistas, nos jornais, e que uma língua existe, antes de mais nada, oralmente (1973, p.146). Já afirmavam que não deveria haver primazia da língua escrita em relação à oral: duas faces da mesma moeda, interdependentes entre si. A língua escrita é vista como transcrição gráfica, como a materialização da oralidade. Os autores acreditam que o aprendizado da escrita, a partir da entrada para a escola, é o momento em que a criança passará a conhecer verdadeiramente a língua: A primeira distância experimentada e vivida em relação à língua refere-se, portanto 4 Ilustrando esse período vale lembrar as palavras de Ataliba Castilho ao apresentar o livro de Perini (2000):Uma aula de gramática, ou mesmo um livro de gramática, funcionam mais ou menos assim: o professor diz lá umas coisas em que você não crê, os alunos piscam, piscam, e fingem que acreditam, e tudo fica na mesma. Para que então aprender gramática? Porque cai no vestibular. Mas haveria alguma razão verdadeira para tudo isso? Ah, bom... As coisas estavam nesse pé quando, em 1985, apareceram três professores universitários e seus livros maravilhosos. Sem nenhum acordo prévio, usando argumentos não coincidentes, eles semearam a desconfiança quanto às certezas da gramática escolar: Rodolfo Ilari, Celso Pedro Luft e Mário Perini. Teorias do Discurso e Ensino 37 ao contacto da criança com a escrita. É isso que caracteriza sua situação de aluno (p.20). É possível perceber que o ponto de vista defendido pelos autores reflete o momento de mudança por que passam os estudos linguísticos no Brasil. Nota-se a tendência da valorização da expressão oral relegada ao segundo plano devido aos estudos gramaticais, e o professor é instigado a recorrer à linguística para poder realizar a passagem além das aparências gráficas (p. 45). Vê-se que a escrita é a exterioridade, representando um empecilho para se chegar até a verdadeira essência: a fala como oralidade. Tal caracterização da escrita testemunha a concepção de escrita como simples reprodução do som. Seguindo essa discussão, Ilari (1984-1986) 5, em Lingüística e ensino da língua portuguesa, apresenta a coletânea de seis artigos que procuram responder a uma mesma pergunta: pode a Linguística contribuir para o aperfeiçoamento do ensino da língua materna? Considerando algumas orientações teóricas presentes em nosso ensino, o autor tenta avaliar a assimilação de ideias provenientes da linguística e suas consequências práticas para o ensino: a primazia da expressão falada sobre a escrita, proporcionando o uso de textos antes pouco valorizados por não serem literários. E é pela via da redação que a escrita aparece como a expressão de um exercício escolar tendo como função escrever textos. Ilari propõe uma perspectiva formal mais ampla que a gramática para pensar a redação escolar: a teoria do texto ou teoria do discurso. A partir daí, apresenta objetivos para a aula de redação, priorizando a expressão escrita como uma oportunidade de explorar a variabilidade da língua. É preciso dizer que essa forma de ver a escrita como “expressão escrita” manifestada através de textos não chega a colocar em questão a relação de submissão ou não da escrita em relação à oralidade. O interesse passa a ser o texto tomado como unidade essencialmente comunicativa da língua; ponto de 5 Será citada entre parêntese a data da primeira edição seguida da data da publicação em uso. 38 Carmem Luci da Costa Silva, et al. vista assumido pelas Teorias do Texto e pela Linguística Textual6- termos nem sempre sinônimos. Nessa visão, o texto consiste em qualquer passagem, falada ou escrita, que forma um todo significativo, independente de sua extensão. Tratase, pois, de uma unidade de sentido, de um contínuo comunicativo contextual que se caracteriza por um conjunto de relações responsáveis pela tessitura do texto – os critérios ou padrões de textualidade, entre os quais merecem destaque especial a coesão e a coerência. (Fávero e Koch;1988, p.25) A escrita é, portanto, tomada como a expressão do domínio das estruturas linguísticas, adquiridas através do exercício escrito: a produção de texto. Exercício que passou a ser sinônimo de escrita na escola, tornando-se o ponto centralizador das aulas de língua materna, buscando instrumentalizar o aluno para que seja capaz de fazer uso das operações que a língua oferece. Vê-se que a escrita é um instrumento de que se pode lançar mão com o intuito de comunicar através de textos; nesse sentido, a escrita continua a ser entendida como exterioridade, reforçando a concepção de escrita apenas como representação. Importante salientar que essa forma de tomar a escrita passou a fazer parte do ensino de língua, sendo acusada de utilizar “o texto como pretexto” para ensinar nomenclatura. Assim, é possível vislumbrar uma visão “textual” nas publicações que seguiram nos anos 80, transformando o texto como o lugar em que o aluno mostra o domínio gramatical da língua e depois da “subjetividade”. Como podemos ver na obra de Celso Pedro Luft – professor de português e gramático – em Língua e Liberdade (1985), a questão levantada pelo autor é a maneira de se ensinar a língua materna, a postura opressora de um ensino cuja obsessão gramaticalista acaba por traduzir uma visão distorcida de que ensinar uma língua está relacionado com a correção da escrita. 6 A linguística textual começou a desenvolver-se na década de 60, na Europa, em especial, na Alemanha. Marcuschi (1983, p.12) assim a define: proponho que se veja a Lingüística Textual, mesmo que provisória e genericamente, como o estudo das operações lingüísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção, construção, funcionamento e recepção de textos escritos ou orais [...] Em suma, a lingüística Textual trata o texto como um ato de comunicação unificado num complexo universo de ações humanas. Teorias do Discurso e Ensino 39 Luft defende que falar e escrever bem tem a ver com a gramática natural – sistema de regras que os falantes interiorizam ouvindo e falando, um dom que qualquer indivíduo adquire por volta dos cinco ou seis anos, acessível a todas as pessoas normais7. Significa dizer que nascemos programados para falar e que toda pessoa sabe a língua que fala, assim, aprender a língua é evolução natural, como crescer (p. 62). Esta gramática natural é uma gramática da fala, um sistema de regras para a comunicação oral, que nada tem a ver com a correção escrita, pois a verdadeira língua é a fala (p. 44). A escrita é vista como uma sinalização secundária que pode mesmo nem ocorrer, como é o caso dos analfabetos e dos povos ágrafos. Luft sustenta que a escola tradicional volta-se prioritariamente a atividades relacionadas com a leitura e a escrita, deixando de lado o ouvir e o falar, já que letras e outros sinais servem apenas para representar o que alguém falou, o que vai ou poderia falar (p.44). Dessa forma, o ensino deve priorizar a gramática natural da fala, e esta, por sua vez, deve sempre preceder, fundamentar e controlar a gramática artificial da escrita (p.44). A posição de Luft traz de volta a questão relativa à escrita como representação da fala. Reafirma-se a antiga antinomia entre fala e escrita, entre naturalidade e exterioridade, para a partir daí poder ser discutido o ensino da gramática. A aproximação entre escrita e gramática prescritiva reforça a concepção de que a escrita é formalidade, regra artificial, em oposição à gramática natural da fala, que, por ser verdadeira, deve ser priorizada. O ensino dessa gramática artificial escrita se dá na escola, lugar da regularização. É, pois, sobre o ensino de língua na escola que discute Possenti. Em seu livro, Por que (não) ensinar gramática na escola (1996-2000), Sírio Possenti expõe questões relativas à contribuição da linguística para o ensino de língua, afirmando que a escola não ensina língua materna, mas língua padrão. A justificativa para o ensino do português padrão por parte da escola relaciona-se com a aquisição do domínio da escrita e da leitura de textos variados, excetuando-se a produção de textos literários, já que literatos 7 A argumentação de Luft ancora-se em uma teoria estruturalista e gerativista. Significa dizer por este viés que a língua é vista como internalizada, dotando o falante de um saber intuitivo e de uma gramática natural. O funcionamento efetivo da língua é assimilado pela exposição a modelos e a treinamento intensivo, isto é, pela prática. Quanto à escrita, Luft refere uma natural terapia da escrita (p.72) como decorrência da fala, isto é, escrever se aprende escrevendo. 40 Carmem Luci da Costa Silva, et al. certamente não se fazem nos bancos escolares; o máximo que se pode esperar é que eles aí não se percam (p.20). O importante é que o aluno egresso da escola seja capaz de escrever textos com naturalidade. Mas para que esse grau de utilização da língua escrita possa ser atingido é necessário escrever constantemente, inclusive na própria sala de aula. Possenti sugere que a escola “imite” as atividades linguísticas da vida: se nas ruas, nas casas, na vida, o que se faz é falar e ouvir; na escola, as práticas mais relevantes serão escrever e ler. Desse modo, como aprendemos a falar falando e ouvindo, aprenderemos a escrever escrevendo e lendo, e sendo corrigidos, e reescrevendo, e tendo nossos textos lidos e comentados muitas vezes, com uma freqüência semelhante à freqüência da fala e das correções da fala (p.48). A escrita é, portanto, um trabalho, assim como falar e ler também são trabalhos, e a escola é um lugar de trabalho. Ainda que não seja apenas redação, a escrita é vista como a materialização do texto, e o autor lembra que é nesse nível, o do texto, que residem os principais problemas escolares, cuja tentativa de solução se dá na aproximação entre escrita e fala, tentando vencer a distância que as separa. Também por esse viés a escola é lugar de regularidades, onde uma escrita própria desse regular deve ser ensinada. E é também sob esse viés, a menção do texto, que podemos aproximar a obra de Possenti a outra publicação contemporânea: O texto na sala de aula (1984-2000) de João Wanderley Geraldi (org.). No início dos anos 80, surge a coletânea cujos artigos abordam aspectos pedagógicos e sociais relativos à área do ensino, sempre com vistas à sala de aula. Um propósito interliga os textos que compõem essa publicação: todos têm como objetivo principal um (re) dimensionamento das atividades de sala de aula e pretendem servir, em conjunto, como subsídio teórico-prático. Artigos como: Sobre o ensino de português na escola (Sírio Possenti), Concepções de linguagem e ensino de português (Geraldi), Gramática e política (Sírio Possenti), Em terra de surdos-mudos (um estudo sobre as condições de produção de textos escolares) de Luiz Percival de Leme Britto, entre outros, tornaram-se leitura obrigatória para os professores. Teorias do Discurso e Ensino 41 Antes de oferecer sugestões para o desenvolvimento de atividades com a produção de textos e a avaliação, Geraldi aponta a necessidade de levarmos em consideração que uma diferente concepção de linguagem constrói não só uma nova metodologia, mas principalmente um “novo conteúdo” de ensino (2000, p.45). A escrita é vista através da produção de textos na escola, e esta, por sua vez, deve oportunizar ao aluno o domínio da variedade padrão como uma forma de acesso a bens que são de todos. Ao entender linguagem como interação, Geraldi sustenta que é preciso – enquanto professor – mudar de atitude em relação ao aluno, para que possamos nos tornar interlocutores e sermos parceiros reais, devolvendo ao aluno o direito à palavra - e na nossa sociedade isto inclui o direito à palavra escrita (p.131). Tal afirmação sugere a presença de um sujeito que possa ser autor do seu dizer. Já no início dos anos noventa, é ainda João Wanderley Geraldi quem apresenta Portos de Passagem (1991-1993), livro em que o autor contrapõe à prática tradicional do ensino de conteúdos gramaticais uma prática baseada em textos enquanto uma alternativa cujas preocupações fundamentais fossem as operações de construção de textos. Geraldi defende a atividade de produção de textos e de análise linguística como produtores de conhecimento e não meros reprodutores: A busca do já produzido não faz sentido quando a reflexão que a sustenta é sonegada a quem apreende. Esta busca deve ser resultado de perguntas e de reflexões, e não de mero conhecimento do conhecido (1993:220). A construção de sujeitos, e da própria linguagem, tem lugar em um espaço em que a interação é fundamental, sustentado por uma concepção de linguagem enquanto atividade constitutiva, coletiva, histórica e social (p.XIII); deixando clara a opção do autor por uma teoria da linguagem que a considere em sua dimensão discursiva. A produção de textos é o lugar onde a escrita se efetiva, sendo (incluindo a oralidade) o centro de todo o processo de ensino aprendizagem da língua, visto que é no texto que a língua se revela em sua totalidade. Para Geraldi, há um sujeito que produz discursos, concretizados em textos, um sujeito 42 Carmem Luci da Costa Silva, et al. comprometido com sua palavra, ainda que vinculado a uma formação discursiva, dentro da qual nada de novo se diria e apenas se repetiria o já dito (p.135). É possível afirmar que Geraldi trata de enunciação, pois mobiliza conceitos centrais dessa teoria como sujeito e enunciação, dentro de uma regularidade. A relação de que trata o autor é entre o texto e o sujeito que o escreve, buscando as qualidades dessa escrita. A visão de enunciação em que procuro inscrever a escrita entende sujeito e língua como indissociáveis, e a noção de escrita como sendo constitutiva do sujeito. Nesse momento, além de uma visão textual, há um outro elemento a intervir: o sujeito. No entanto, segundo Geraldi, é preciso afastar qualquer interpretação que tome o sujeito como a fonte dos sentidos (p.16). Mas como entender esse sujeito que não atribui sentidos? Como é possível sua presença no ensino? Não é por acaso que o retorno do sujeito (do que diz do regular, apenas) se dê justamente pela via escolar, lugar da regularidade e normatização, lugar, principalmente, do saber; portanto, do conhecimento. Em contrapartida, a escola sustenta a necessidade de o aluno ser o autor de seu texto, garantindo à escrita o lugar, por excelência, de instauração da subjetividade na linguagem. Tal posicionamento reflete-se nas afirmações do tipo o aluno precisa se tornar sujeito de seu texto, ou a escrita é o lugar de emergência da subjetividade, ou ainda, os alunos escrevem sempre igual, queixas que demonstram a insatisfação por parte dos professores em relação ao escrever em sala de aula. Parece que existe certa vagueza de tratamento desse conceito de subjetividade, oscilando entre uma concepção ampla – que poderia ser parafraseada por algo como manifestação linguisticamente marcada daquele que escreve – até uma concepção mais restrita próxima de algo como qualidade estilística superior. Nesse sentido, não é exagero apontar essa busca pela subjetividade como uma condição perseguida nos textos escritos na escola, atributo responsável pelas mais variadas tentativas de ensinar o aluno escrever para esse ou aquele propósito. Significa que para a escola, escrever é principalmente um ato utilitário. Se não é verdade, como entender o direcionamento das aulas de língua materna para a construção de um texto que contemple as exigências do concurso vestibular? Teorias do Discurso e Ensino 43 Há sempre a necessidade de escrever para algum fim, para mostrar conhecimento, para aferir um domínio de conteúdo apreendido durante a trajetória escolar. Esse é o caminho trilhado pelo texto escrito em aula, e consequentemente pela redação de vestibular, tomado como exemplo de bem escrever. Os efeitos dessa visão não podem ser minimizados. Por conta desse entendimento, escrever bem significa escrever conforme as regras norteadoras desse texto ideal. Ideal em forma e também em conteúdo, separação que abriu a discussão em dois pólos distintos: a importância ou não da presença da redação no ensino médio. Por conta disso, praticamente dois momentos recebem a atenção nas aulas de língua portuguesa: a gramática normativa e o ensino de redação. Creio não ser exagero afirmar que há submissão do ensino médio em relação ao vestibular, ou seja, não é difícil suspeitar da existência de uma estreita relação entre o que é pedido no vestibular e o que é ensinado em sala de aula. Lembremos que quando a redação não mais constou na prova de vestibular, em 1970, também sumiu da sala de aula no ensino médio 8. Nessa época, jornais e revistas apontavam o ensino de língua portuguesa nas escolas como decadente e insatisfatório; o Conselho Federal de Educação emitiu parecer sobre o assunto; educadores indicavam a presença de grave crise no ensino da língua. Enfim, em meio à grita generalizada, o uso de provas de múltipla escolha e a ausência de redação no concurso vestibular foram apontados como responsáveis pelo fracasso dos jovens no uso do Português escrito. Em resposta, a prova de redação surgiu como medida de correção para a crise da língua nacional. Demasiada responsabilidade atribuída ao ensino médio e particularmente ao ensino de redação, ainda mais em se tratando de um gênero específico de texto, com um único fim que não extrapola o âmbito do concurso vestibular. Mas entre os muros da escola o embate é outro. É na escola que o aluno aprende que escrever bem seria aproximar-se de modelos pré-estabelecidos, 8 A esse respeito há duas posições. Magda Soares (1978) diz que o raciocínio segundo o qual a inclusão da redação no concurso vestibular garante que os alunos aprenderão a redigir é falso e simplista, pois não garante que haverá um melhor desempenho linguístico por parte dos alunos. Já, Maria Tereza Rocco (1995) considera ter havido melhoria nos textos produzidos após a introdução da prova de redação. 44 Carmem Luci da Costa Silva, et al. fugindo de uma escrita reveladora de conflitos, fracassos, abandonos. Há um aprendizado de não envolvimento, de falsificação das emoções e consequentemente de não reflexão sobre a própria história. Nesse sentido, não é difícil perceber que no cerne do problema está a escola que ajudou a construir uma imagem da escrita como formalidade, resultado de um treinamento para escrever na escola e fora dela. Para os alunos, a língua escrita é encarada como capaz de significar por si só, em nada semelhante à língua falada no dia a dia, capaz de produzir todos os sentidos desejados. O texto escrito em sala de aula, para a escola, não pretende incluir-se na discussão do mundo real sobre o tema em questão; tem seu fim determinado no próprio momento da escrita: não nasceu para significar, para somar-se a uma discussão, para dizer da forma como seu autor encara o mundo. Na verdade, passa à margem do diálogo com outros textos do mundo lá fora. Discussão que de tão ampla excede os limites dessa reflexão, ainda que toque questões importantes em relação ao ensino, à escrita e ao sujeito 9. O que é possível constatar é que a escrita “da escola”, tomada, repito, como a expressão do domínio das estruturas linguísticas, como regularidade traz contrabandeado um sujeito que emerge, no dizer da escola, da produção textual. Mas o que produz esse sujeito se não conhecimento? A subjetividade que a escola busca encontrar nos textos de seus alunos é apenas uma argumentação que denote o domínio do conteúdo apreendido. Trata-se, pois, de um retorno imaginário. A bem da verdade, o sujeito que retornou não é o mesmo que foi excluído pela linguística; isto é, o que retorna sempre esteve presente na escola: o ideal de ciência 10. Ao que parece, a escola cumpre seu papel regularizador, enquadrando sob seus moldes escrita e sujeito. 9 Em (Endruweit;2000), constato que as redações consideradas pela banca como sendo nota dez são as que mais se aproximam de um modelo formal vigente na escola. Três fatores contribuíram para que a redação seja assim entendida: o momento histórico em que o concurso surgiu no Brasil, a pouca valorização do ensino médio por entendê-lo apenas como uma ponte entre a universidade e a presença da redação no concurso como sendo responsável pela qualidade do ensino de língua na escola. 10 A própria ausência de teorização sobre o sujeito pela linguística estrutural possibilita esse “retorno imaginário”. Se há um lugar vazio deixado pelo sujeito, é legítimo seu preenchimento. Foi o que fez a escola, ainda que tal retorno se desse de forma parcial. Essa questão será retomada no terceiro capítulo. Teorias do Discurso e Ensino 45 A escrita presente na escola, na tentativa de aproximar-se da cientificidade, não esqueçamos disso, acaba por tornar-se um poderoso reforço entre as desigualdades sociais, de certa forma, reeditando as crenças de supremacia de quem domina a escrita. Nesse sentido, a escrita presente na escola passa a ser relacionada com a norma-padrão e, em alguns momentos, chegam a ser tomadas como sinônimos. 4 O que é escrever na escola? O que se pode depreender é que a escrita ocupa papel de destaque em sala de aula, mais valorizado em relação à fala, e também por isso mais sujeito ao treinamento. Ainda assim, o trabalho escrito seria uma decorrência do oral, este sim, entendido como um processo natural. É possível pensar que decorrente dessa visão de escrita, alguns livros didáticos buscam desenvolver a criatividade do aluno através de exercícios de fluência e desinibição do ato de escrever, estímulo para escrever e, por fim, criação de um texto 11. A expressão escrita pode também ser entendida como um modo de interação entre falante e ouvinte, em uma relação intersubjetiva construída no processo de enunciação. A linguagem - fala e escrita - é vista como um trabalho do sujeito com a língua. Geraldi (1993, p.183) afirma que ter acesso ao mundo da escrita é poder escolher as estratégias de dizer, mais do que definir como se diz. O acesso ao mundo da escrita é também um acesso a estas estratégias que resultam de relações interlocutivas do passado, de seus objetivos (razões para dizer) e das imagens de interlocutores com que aqueles que escreveram pretenderam um certo tipo de relação. As estratégias que se escolhem revelam, em verdade, esta história porque delas são resultado. Pelo que se pode notar, a intersubjetividade apontada por Geraldi diz respeito às relações de interlocução instituídas entre os locutores envolvidos no processo da escrita, esta, por sua vez, reveladora dos caminhos de tal processo. 11 O exercício de fluência se propõe a levar o aluno a “soltar a imaginação”. Semelhante processo é a “explosão de ideias” em que o aluno deve registrar no papel as ideias que lhe vierem à mente, sem censura prévia, apenas associando-as. 46 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Como geralmente acontece, a proposta dos livros didáticos inicia por um texto para leitura, buscando a interlocução com o aluno para que este “desperte” para a necessidade da escrita a partir de perguntas prévias 12. Independente da teorização a que se filiem, as lições destinadas ao uso em sala de aula, em sua maioria, extrapolam os limites estritos de uma única teoria. Desse modo, a presença de um artigo, resenha ou qualquer outra manifestação escrita se junta a exercícios destinados ao manejo do vocabulário. A escola é, portanto, o lugar onde o aluno entra em contato com uma visão de escrita instrumental, como formalidade da qual ele pode lançar mão para significar – pensamento e/ou fala – ou representar. Muito mais significativo do que a constatação da presença constante da escrita na escola é a consciência de que essa presença foi apenas a sombra de um fenômeno maior: uma escrita além da forma. Mas de que escrita falamos, afinal? Vimos que a escola é apenas aparentemente “o mundo da escrita”, apresentando unicamente um lado do fenômeno, e de certo modo, ratificando a ideia de escrita como representante da fala. A escrita como produto resulta em um ensino centrado na produção de texto, supervalorizando os aspectos formais, as questões situadas na superfície do texto (caligrafia, margem, distribuição dos parágrafos, aspectos organizacionais, por exemplo), superando até mesmo a preocupação com a correção gramatical13. Na escola é preciso que o aluno conheça para que possa passar suas conclusões para o papel; não há a possibilidade de construção durante o momento em que escreve. Mesmo que seja levado em consideração o caráter dialógico para a produção de texto em sala de aula, fica-se sempre dentro da esfera formal, de uma escrita instrumental, alheia à mão que escreve tanto quanto distante do olhar que a recebe. 12 Geraldi (1993, p.170) critica a presença da leitura em sala de aula como mero recurso didático e não como um meio para a produção de conhecimento: Não há perguntas prévias para se ler. Há perguntas que se fazem porque se leu. 13 Considerações baseadas em estudo realizado por Garcez 1998. Teorias do Discurso e Ensino 47 5 Considerações finais As obras apresentadas, principalmente as dos anos 70 e 80, entendem a língua como um instrumento de comunicação. A discussão centra-se nos métodos de melhorar essa função comunicativa, e com o surgimento dos estudos linguísticos no Brasil, a questão preponderante passou a ser a validade ou não do estudo gramatical nas aulas de língua portuguesa. A escrita entra como um subproduto dessas discussões, que de um modo ou de outro, sempre estivera presente na escola: ora como objeto da Gramática ou Filologia, ora como um instrumento da comunicação escrita e da interação pessoal. Certo é que mesmo não sendo o centro das atenções das discussões e das pesquisas, a escrita conquistou um lugar cativo no ensino e parece ter se tornado uma questão à parte das mudanças de rumo do ensino de língua. A presença da escrita em sala de aula impõe sua inclusão nas publicações destinadas aos professores, criando um caminho paralelo em meio às reflexões linguísticas, pois, é praticamente impossível passar ao largo das questões da escrita quando se trata de ensino. Mesmo sendo relegada a um segundo plano, em relação à oralidade, a escrita retorna sempre, forçando sua passagem e consolidando seu lugar na escola. Se for certo o retorno da escrita, visto o lugar ocupado por ela no ensino de língua, o que não está claro diz respeito à qualidade dessa presença que chega mesmo a ser ausência. Ou seja, estar presente nas atividades de aula não garantiu que a escrita deixasse de ser entendida como um modelo de cientificidade, distante de uma visão enunciativa, muito pelo contrário, sua presença no ensino reforçou a distância entre escrita e subjetividade. Há, portanto, duas escritas: a que retornou, ou se manteve, via ensino e a “outra face”, obscura, a que diz do sujeito, ainda oculta. Ao enfatizar a relação entre ensino de língua e escrita, busquei verificar como ela retornou no âmbito da escolarização. Tal relação, dentro da instituição escolar, creditou à escrita o modelo de cientificidade, garantindo sua presença por conta da sua aproximação com a positivação requerida pelo caráter institucional da escola. Pelo mesmo caminho retornam escrita e sujeito: pela trilha do conhecimento. Significa que para a escola, escrever é principalmente um ato utilitário, pois a subjetividade que a escola busca encontrar nos textos dos alunos 48 Carmem Luci da Costa Silva, et al. é, sobretudo, uma argumentação que denote o domínio do conteúdo aprendido. Não é demais repetir: o sujeito que retornou não é o mesmo que foi excluído pela linguística; o que retorna à linguística sempre esteve presente na escola: o ideal de ciência. REFERÊNCIAS BOTTÉRO, Jean; MORRISON, Ken, e outros. Cultura, pensamento e escrita. São Paulo, Ática: 1995. ENDRUWEIT, Magali Lopes. A redação nota dez. 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Nosso intuito não é propor a substituição do que os professores vêm fazendo, nem sugerir procedimentos ou estratégias de ensino-aprendizagem. Queremos apenas instrumentalizar os professores para que, de posse de certos pressupostos teóricos, promovam reflexões sobre o uso da língua, de modo a qualificar o seu trabalho. Pesquisa recente realizada por Moura Neves aponta o estudo da gramática como opção feita pelos professores do ensino fundamental e do ensino médio. 1 O fato de a gramática ser objeto de estudos nas escolas é motivo, atualmente, de muitas críticas, também como consequência de inúmeros questionamentos que, nos últimos anos, são feitos à gramática. Sobre esse assunto existe vasta bibliografia; cabe aos professores a ela recorrerem e formarem seu próprio juízo. Apesar das críticas ou porque há críticas a considerar, os ensinamentos da gramática podem ser tomados como base para outros que se façam necessários, constituindo-se, assim, a sala de aula em um espaço interdisciplinar e de reflexão sobre a língua. A partir da realidade que a pesquisa de Moura Neves revela, apresentamos a visão de língua que um estudo que toma a gramática como base possibilita. Acrescentamos, a seguir, a Teoria da Enunciação de Benveniste como uma leitura em que o estudo da palavra e da frase – noções que são * Doutora em Letras – Estudos da Linguagem pelo PPG-Letras/UFRGS. Esta pesquisa, que é meritória devido ao fato de trabalhos neste sentido serem raros, foi publicada em Gramática na Escola, obra que citamos em Referências Bibliográficas. 1 encontradas nas gramáticas − sob um enfoque singular, mediante uma rede de outras noções que se vão estabelecendo, esboça o quadro da enunciação, que releva a língua em uso. Porque nossa atenção aqui se volta para ensino-aprendizagem, trazemos, a título de exemplos, algumas situações nas quais alunos e professores, ao pensarem a língua, identificam princípios que consideram a enunciação, tais como Benveniste os concebeu. Com estes exemplos, queremos demonstrar que os conhecimentos oriundos da gramática, aliados a outros, ancorados em estudos linguísticos, permitem perceber os fenômenos linguísticos sob ponto de vista diverso daquele que se ancora exclusivamente em estudos gramaticais, propiciando aos que realizam uma atividade reflexiva tornarem-se sujeitos, também, da sua aprendizagem. 2 A língua estudada na escola Falar sobre o ensino do Português é falar de questões relativas ao tratamento da gramática na escola. Isso não significa que este seja ou deva ser o único objeto de estudo nas aulas de Português, porém isto pressupõe que é, a partir do que a gramática apresenta, que, na escola, se promova uma reflexão sobre os fenômenos da língua. Propor outro suporte para este trabalho, representa negar um dado da realidade: na escola, os estudos sobre a Língua Portuguesa se embasam no que é apresentado pela gramática. Em Gramática na Escola, cuja primeira edição data de 1990, Moura Neves descreve pesquisa realizada em quatro cidades do Estado de São Paulo, com 170 professores de Língua Portuguesa de 1º e 2º graus. O dado inicial obtido é “que todos os professores, de um modo ou de outro, ‘ensinam’ gramática” (2003, p. 9), sendo que a maioria dos professores consultados relaciona este conhecimento a “bom” desempenho linguístico – falar e escrever “bem”: essa é a meta desse ensino, cuja aprendizagem futuramente traduzir-se-á, segundo os mesmos professores, em obtenção de sucesso na vida. 52 Carmem Luci da Costa Silva, et al. A fim de colher informações sobre a natureza do trabalho realizado nas aulas, foi solicitada aos professores a formulação de exercícios que se caracterizassem como os mais usuais quanto à aplicação. Pelas respostas apresentadas, verificou-se uma ênfase significativa no que se refere ao estudo das classes gramaticais e das funções sintáticas. Dos professores pesquisados, cerca de 66% afirmaram, em respostas a questionários, consultar manuais de gramática. Dos manuais citados, segundo Moura Neves, 50% se incluem entre obras bem tradicionais, e os outros são livros didáticos, porém, por ocasião de entrevistas, ficou evidenciado que “os professores, na quase totalidade, restringem sua fonte de informações ao livro didático em uso” (2003, p. 22). O fato de o material de referência dos professores ser o livro didático, não interfere na natureza do que é ensinado e na finalidade deste ensino, pois, via de regra, os livros didáticos reproduzem as informações fornecidas por gramáticas de prestígio, mantendo, inclusive, a ordem de apresentação dos conteúdos. Muitas dessas publicações levam como título “Gramática”, e sua “adequação” aos que se iniciam nesses estudos se faz pelo acréscimo de recursos gráficos e/ou exercícios, quando não de textos, atividades de interpretação desses textos e propostas de redação, atendendo às tarefas que a escola (se) impõe: trabalhar com leitura e interpretação, redação e gramática. Nesse contexto, o que é relevante para a discussão que empreendemos é o dado colhido por Moura Neves: nas aulas de Português, estuda-se a gramática. Acresce-se a isto que, dessa teoria, destacam-se dois aspectos: a organização de classes de palavras e as funções que as palavras desempenham na frase, segundo relações que estabelecem entre si, ou que se dão entre os termos da frase nos quais estão contidas. Com esse estudo visa-se ao “bom” desempenho no uso da língua. Diante disto, antes de dar prosseguimento a essa exposição de ideias, esclarecemos que, como o ensino da gramática é algo que se impõe, procuraremos identificar, nesta realidade, alguns aspectos que o justifiquem e, ao mesmo tempo, lacunas as quais possibilitem a inserção de conhecimentos recentes, advindos da Linguística. Teorias do Discurso e Ensino 53 3 A abrangência da língua estudada na escola Destacamos como importante para a contribuição a que nos propomos, a afirmação feita pelos professores, relativa ao estudo da gramática na escola, nos níveis fundamental e médio. Necessitamos, porém, para que tal contribuição se efetive, determinar que aspectos dessa teoria são recortados pelos professores ao trabalharem classes gramaticais e funções sintáticas em suas aulas, ou seja, o que do que é tratado pela gramática o ensino do Português na escola abrange? Esta questão nos remete a outra: de que gramática nos falam os professores, se, sob esse rótulo, se inscreve uma vasta gama de estudos cujos objetivos variam e são, vez por outra, contraditórios? Luft, em sua Moderna Gramática Brasileira, responde a esta questão, opondo, primeiramente, a gramática natural – o saber de quem usa a língua – à gramática artificial − a descrição desse saber e o registro dessa descrição – ou Gramática. Em relação à Gramática – estudos sobre o saber linguístico –, Luft identifica dois tipos: a tradicional, de herança greco-latina, e a moderna, advinda da Linguística. Sobre a tradicional, este autor ainda diz que: A Gramática tradicional tem tido duas orientações: normativa e descritiva, conforme a preocupação dominante de: (a) impor as regras de um padrão lingüístico havido como modelar (...), ou (b) expor os fatos da linguagem. Daí títulos como: Gramática Normativa / Gramática Descritiva ou Expositiva (1979, p. 6). 2 Em relação à moderna, Luft, que edita este livro pela primeira vez em 1976, aponta a estrutural e a transformacional, como “duas vertentes principais”. Bechara, em 1999, na Moderna Gramática Portuguesa, também distingue tipos de gramática: a descritiva e a normativa. 2 Ao lado desta distinção, Luft acrescenta que: Em todo o caso, a Gramática tradicional sempre foi mais normativa que descritiva, por falta de compreensão exata do fenômeno da linguagem e de uma técnica apropriada à descrição (1979, p. 6). 54 Carmem Luci da Costa Silva, et al. A gramática descritiva, de acordo com Bechara, “é uma disciplina científica que registra e descreve (...) um sistema lingüístico em todos os seus aspectos (...)” (p.52). Nessa classificação, insere a estrutural, a funcional, a estrutural e funcional, a contrastiva, a distribucional, a gerativa, a transformacional, a estratificacional, a de dependências, a de valências, a de usos, etc. À gramática normativa este autor atribui uma finalidade pedagógica. A esta gramática cumpre “elencar os fatos recomendados como modelares da exemplaridade idiomática para serem utilizados em circunstâncias especiais de convívio social” (p. 52). Em 2000, Cavaliere, em Fonologia e Morfologia na Gramática Científica Brasileira, faz um estudo sobre os conceitos de gramática vigentes, do qual extrairemos os termos sob os quais as gramáticas são classificadas, respeitando, assim, o procedimento adotado pelos autores anteriormente citados, e apresentaremos suas características principais. Gramática descritiva é a que faz uma exposição metódica dos fatos da língua ou, considerando-se o conceito saussuriano, a que descreve o sistema linguístico em uso. Por não ser discriminatória, obriga aquele que dela se ocupa, a delimitar seu campo de atuação, dada a impossibilidade de se estudarem todas as variantes de uma língua, nas suas manifestações oral e escrita. Caso tenha objetivo pedagógico, selecionará os usos que o ensino privilegia. A gramática que tem origem nos estudos clássicos e que visa à prescrição de um comportamento linguístico é chamada de normativa. Baseia-se na autoridade de quem prescreve ou na de escritores que gozam de prestígio, apresentando o que se considera correto, sem que para isto se apresentem justificativas, mesmo que seus preceitos contrariem o que, no momento, vigore como uso, pois não há preocupação com um estudo sistemático dos fatos linguísticos, tal como o fazem os trabalhos descritivos. A gramática tradicional, no mais das vezes confundida com a gramática normativa, é de caráter descritivo-normativo porque é especializada na descrição de um uso, tido como o que se rege pela norma culta, a qual é de domínio dos falantes escolarizados, que a utilizam principalmente na escrita. Sua finalidade não é propriamente a prescrição visto que está baseada na observação de fatos Teorias do Discurso e Ensino 55 linguísticos os quais não são tão constantemente atualizados, devido à incapacidade de se estabelecer, com certa frequência, o que vige neste uso. 3 Assim diferenciadas as gramáticas, mesmo que as propostas apresentadas por Luft, Bechara e Cavaliere difiram em certos aspectos, pode-se dizer que a gramática estudada na escola não é a moderna, citada pelo primeiro, nem a descritiva, referida pelo segundo, porque estas têm como base teorias linguísticas. O que os professores elegem como matéria de estudos − as classes de palavras e as funções que as palavras desempenham na frase, com o objetivo de que os alunos adquiram “bom” desempenho linguístico, entendendo-se “bom” como a norma culta − se situa nos âmbitos da descrição e da normalização, tomando-se descrição como exposição dos fatos da língua ou o sistema linguístico em uso (gramática tradicional, conforme Luft e Cavaliere) e normalização como o conjunto de normas pertinentes ao sistema que é descrito (gramática descritiva com fins pedagógicos ou gramática tradicional, conforme Cavaliere; gramática tradicional, conforme Luft, e, ainda, gramática normativa, conforme Bechara - 1999). 4 Examinando-se alguns livros didáticos – materiais elaborados para estudantes, mas confessadamente também utilizados pelos professores como fonte de consulta – e algumas gramáticas tradicionais, identifica-se, geralmente nos capítulos iniciais, a exposição de fatos linguísticos. Ao estudar as classes e subclasses de palavras – substantivos, adjetivos, pronomes, e ainda pronomes pessoais, possessivos, demonstrativos, indefinidos, etc. – e as divisões que a frase comporta, incluindo-se sucessivas divisões de seus “termos” – sujeito e predicado; verbos intransitivos, transitivos, etc.; objeto direto, objeto indireto, etc. – estas obras atribuem-se o papel de organizar e hierarquizar fatos linguísticos a partir da apresentação de uma terminologia e de definições. Num primeiro momento, então, descrevem a língua. 3 O autor ainda desenvolve dois conceitos – gramática como sistema lingüístico e gramática como método de investigação científica –, os quais não apresentamos aqui devido à sua especificidade e, por isto, não atinentes ao que entendemos por ensino da gramática na escola, tal como os professores manifestam na pesquisa realizada e em outra situações nas quais, a partir de relatos e comentários, descrevem o seu trabalho. 4 Sobre este assunto, leia-se também Estrutura da Língua Portuguesa, de Joaquim Mattoso Câmara Jr. 56 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Esse tratamento inicial dos fatos linguísticos permite que, posteriormente, os estudos se voltem fundamentalmente para questões relacionadas a um uso que, nesse caso, é o que pessoas escolarizadas utilizam notadamente em situações de escrita. Metodologicamente, essas obras desenvolvem um percurso: da classificação, que implica uma nomenclatura com suas respectivas definições, à aplicação da classificação apresentada, na formulação de regras relativas ao “bem” dizer e ao “bem” escrever. Ao determinar classes, sejam elas de palavras ou de funções, nota-se que a gramática promove relações entre os diversos agrupamentos. Noções são apresentadas, respeitando-se um direcionamento: do amplo para o específico, do abrangente para o abrangido, do central para o periférico. À medida que se avança no estudo, uma noção prescinde da anterior ou de anteriores. Além disto, os estudos da sintaxe da frase, não apenas, mas também classificatórios, se encarregam de estipular o lugar que as classes de palavras ocupam na estrutura frasal, muitas vezes reafirmando relações já estabelecidas ao ser explicitado cada um desses agrupamentos. Assim, por exemplo, se os artigos são apresentados como determinantes dos substantivos, seu ingresso na frase se dá como adjunto adnominal de um núcleo nominal. A gramática estudada na escola, pela via de obras tradicionais e livros didáticos que as tomam como base, portanto, esboça um quadro de noções pertinentes à língua, o qual se caracteriza pela classificação e pela hierarquização. Além do arcabouço do sistema da língua que esses estudos traçam, nelas se encontram explicitados empregos. Quando é apresentada a flexão dos substantivos, quando, ao lado da definição de adjetivos, são tratados os gentílicos, e nos estudos sobre concordância, regência, colocação de pronomes, etc., aflora a especificidade do uso, sob forma de restrição. Como se trata de um uso, obviamente não há como se ter outro que não seja este. Nesse sentido, afirma Cavaliere que: (...) mesmo a gramática descritiva sempre terá um componente normativo, a menos que efetivamente logre descrever todos os possíveis usos da língua em suas dimensões diastrática, diatópica e diafásica. Não sendo assim, a simples seleção dos fatos descritos reflete uma discriminação do que é ou não é descritível, isto é, implica uma norma, à semelhança da que Teorias do Discurso e Ensino 57 modernamente se encontra no conceito de aceitabilidade (2000, p. 38). Até época bem recente, se tomavam as normas apresentadas pelas gramáticas como extensivas a qualquer manifestação linguística. Atualmente, o que se verifica é uma ruptura no interior da própria gramática porque os “empregos” ou regras, sabe-se, convivem com usos os mais diversos. Não só linguistas sabem dessa convivência, os gramáticos também o admitem, e um exemplo disto é Bechara. Na Moderna Gramática Portuguesa, de Bechara, publicada nos anos 90, edição revista e ampliada de obra de mesmo título, cuja primeira edição ocorre em 1961, o autor, ao distinguir gramática descritiva e gramática normativa, sobre a última afirma que: Cabe à gramática normativa, que não é uma disciplina com finalidade científica e sim pedagógica, elencar os fatos recomendados como modelares da exemplaridade idiomática para serem utilizados em situações especiais de convívio social. A gramática normativa recomenda como se deve falar e escrever segundo o uso e a autoridade dos escritores corretos e dos gramáticos e dicionaristas esclarecidos (1999, p. 52). Essa visão do que representa a gramática normativa hoje – um uso, próprio a situações especiais de convívio social, no conjunto de usos que constituem a Língua Portuguesa – decorre de estudos realizados por Bechara que, no Prefácio desta sua Gramática, diz que se trata de um novo livro e assim o descreve: (...) amadurecido pela leitura atenta dos teóricos da linguagem, da produção acadêmica universitária, das críticas e sugestões gentilmente formuladas por companheiros da mesma seara e da leitura demorada de nossos melhores escritores (1999, p. 18). Tomamos aqui um único modelo – o gramático Bechara – uma vez que as duas edições da Moderna Gramática Portuguesa permitem cotejar sua atual posição, cuja origem o próprio autor revela, com a anteriormente assumida. Na edição de 1961, na Introdução, Bechara afirma: 58 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Mas dentro da diversidade das línguas ou falares regionais se sobrepõe um uso comum a toda área geográfica, fixada pela escola e utilizada pelas pessoas cultas: é isto o que constitui a língua geral, língua padrão ou oficial do país. Cabe à Gramática registrar os fatos da língua geral ou padrão, estabelecendo os preceitos de como se fala ou escreve bem ou como se pode falar e escrever bem uma língua. Daí ser a Gramática, ao mesmo tempo, uma ciência e uma arte (p. 25). No mesmo capítulo, ao distinguir essa gramática da gramática histórica e da comparada, denomina-a “gramática descritiva, expositiva, normativa ou tãosomente gramática” (p.26). Verifica-se, pois, que a gramática, também aos olhos de um gramático, mudou. Sua finalidade era “registrar os fatos da língua geral ou padrão, estabelecendo os preceitos de como se fala ou se escreve bem ou como se pode falar e escrever bem uma língua”; atualmente se atém a “situações especiais de convívio social”, e faz apenas recomendações. Era considerada “uma ciência e uma arte”; hoje é uma disciplina “pedagógica”. Sua denominação, em consequência, tornou-se restrita, segundo este autor, à gramática normativa, deixando, pois, de abarcar as que se lhe davam pela ausência de outras gramáticas, pela força que impunha e pelo prestígio que gozava: “gramática descritiva, expositiva, normativa ou tão-somente gramática. Além disto, o que se apresenta como gramática normativa, porque o gramático refere-se a situações especiais de convívio social, pressupondo-se, portanto, outras situações em que não são aceitas estas normas, se aproxima do que se aponta como característica da gramática descritiva, que referenda um uso entre a possibilidade de vários outros. Aliás, estendendo-se dessa forma o conceito de gramática normativa apresentado por Bechara nessa nova versão de seu trabalho, se faz justiça ao que este autor atualmente apresenta na sua Gramática, porque não se exime de justificar, comentar, apresentar possibilidades várias, mas também se vale de estudos oriundos da ciência linguística para fundamentar suas posições. A partir dessas reflexões, verifica-se que a língua estudada na escola restringe-se a um uso, o qual não pode mais ser concebido como o ideal. Caso, ao se referirem a “bom” desempenho linguístico, os professores tenham em Teorias do Discurso e Ensino 59 mente a uniformização do uso da língua ou a aquisição de um uso que se sobreponha aos demais porque o “mais correto” ou o “melhor”, essa ideia tão logo deverá ser abandonada, pois atualmente ninguém mais a autoriza, nem os próprios gramáticos. Também porque esse ensino se restringe a apenas um uso, mesmo que os conhecimentos obtidos por meio dele se façam necessários em inúmeras situações de vida, principalmente naquelas em que é utilizada a expressão escrita, há de se considerar que esse ensino não pode, por si só, ser tomado como o ensino do Português, embora reconheçamos que seja uma das tarefas da escola a excelência relativa à escrita. Ademais, há outro fator limitante a considerar: verifica-se que esse trabalho com a língua não ultrapassa o estudo da frase, já que é assim que a gramática procede. Propomos a inserção do discurso no ensino do Português, a partir da Teoria da Enunciação, de Benveniste. Certamente essa não é a única alternativa à disposição para que tal projeto se formalize, porém a esta teoria deve-se a compreensão de como a língua funciona, pois considera a língua e o uso, ou seja, a língua em uso. 4 Uma Teoria da Enunciação Quando nos referimos à Teoria da Enunciação de Benveniste, estamos falando de estudos selecionados por este linguista, entre outros realizados, publicados em dois livros: Problemas de Lingüística Geral I e Problemas de Lingüística Geral II. Estas publicações são constituídas de artigos, alguns originalmente apresentados por escrito, outros originados de conferências, produzidos em momentos diversos. Esses estudos não estão dispostos cronologicamente nessas obras, nem supõem uma leitura em determinada ordem, embora reunidos sob títulos que visam dar ao leitor certa indicação sobre o que neles é tratado. Nesse aspecto, esses estudos linguísticos distinguem-se de muitos outros a que estamos acostumados a ler, pois sua forma de apresentação não 60 Carmem Luci da Costa Silva, et al. determina um percurso de leitura: podemos livremente incursionar entre eles. Apesar disto, percebemos que, independentemente da especificidade que alguns artigos apresentam, seu autor é fiel a certos princípios que regem sua teoria, e da rede de relações que o leitor paulatinamente elabora, emana um todo coerente e consistente. Relevando o que é ensinado nas escolas hoje, e nesse aspecto consideramos de grande valor o trabalho de Moura Neves no sentido de nos fornecer dados relativos às “aulas de gramática” no ensino fundamental e no médio, nos dispomos, neste escrito, a perseguir o traçado apresentado pelos professores, os quais se dedicam ao estudo das palavras como classes e ao da frase como funções desempenhadas pelas palavras. Desse modo, como a teoria de Benveniste propicia a apreensão dos fenômenos linguísticos sob várias perspectivas, optamos por organizar esta exposição inicialmente pela via da palavra e, posteriormente, da frase, e, em seguida, apresentar todas as implicações que desses focos emanam. 4.1 As palavras É a partir da clássica distinção dos pronomes que Benveniste formula a noção de pessoa 5, a qual desencadeia uma série de outras noções, fazendo-se presente em toda sua teoria. Questionando essa distinção, este autor afirma que o tratamento dado à pessoa do verbo, desde a gramática grega até os nossos dias – 1ª, 2ª e 3ª pessoas – é não linguístico. Estas denominações não nos informam nem sobre a necessidade da categoria, nem sobre o conteúdo que ela implica, nem sobre as relações que reúnem as diferentes pessoas (1995, p.248). Sob o mesmo critério adotado para a apresentação dessa distinção – pessoa –, Benveniste retoma o estudo dos pronomes, estabelecendo que a 5 Sugerimos, neste momento, especialmente a leitura de A Natureza dos Pronomes, Estrutura das Relações de Pessoa no Verbo e A Subjetividade na Linguagem, por nós elencados em Referências Bibliográficas. Teorias do Discurso e Ensino 61 noção de pessoa decorre de um ato em que eu se diz eu. Eu é essencialmente linguístico, é palavra que coloca a língua em funcionamento. Este ato, por meio do qual o locutor se propõe como sujeito, institui também tu, também pessoa, mas pessoa diferenciada. Ambas se constituem pelo mesmo ato, porém são opostas. Na e pela enunciação, que é “colocar a língua em funcionamento por um ato individual de utilização” (1989, p.82), o locutor assim se apresenta, mas sempre pressupondo um alocutário. Eu e tu são formas linguísticas que têm existência na e pela enunciação. Porque subjetivas, são sempre únicas e efêmeras, pois são palavras que eu profere. Apresentam a mesma referência, isto é, a instância de discurso que as contém. São inversíveis, pois, no momento em que tu toma a palavra, se apresenta como eu, e o que até então assim se dizia, torna-se tu. Além de eu e tu, que estabelecem a noção de intersubjetividade, a enunciação constitui outras palavras ou categorias, os indicadores de subjetividade: o tempo, que é o presente concomitante com a enunciação; o aqui, que é indissociável de agora; os demonstrativos, que designam todos e quaisquer objetos presentes no aqui-agora. Também outros advérbios ou locuções adverbiais que são correlatos de aqui e de agora, os tempos verbais, que tomam o presente da enunciação como referência, a modalidade, os adjetivos, os possessivos, certos verbos, etc. também marcam a inserção do sujeito na língua. A noção de subjetividade, que instala eu-tu-aqui-agora e todas as demais relações que a partir disto se estabelecem, não prevê ele. Quanto à natureza, ele corresponde a não pessoa, pois não pertence à instância de discurso como eu e tu, porque diz respeito ao não importa quem ou não importa o que munido de referência objetiva. Essa forma não decorre da enunciação, pois a língua lhe prevê um conceito. Quanto à função, ele é um substituto abreviativo, representa no enunciado o não importa quem ou não importa o que já referido: seu caráter é, portanto, sintático. Ao estudar os pronomes, Benveniste estabelece a oposição eu-tu/ele, caracterizando dois âmbitos: o da enunciação e o da língua. Ao primeiro pertencem as palavras que a partir do uso adquirem significação; ao segundo 62 Carmem Luci da Costa Silva, et al. pertencem palavras que para qualquer falante estão associadas a um conceito. Assim pode-se entender a oposição subjetividade/objetividade. Apesar de não negarmos essa oposição, ela precisa ser interpretada para que compreendamos enunciação como colocar a língua em funcionamento. Benveniste, ao caracterizar eu como pessoa que enuncia eu, afirma que “há (...) neste processo uma dupla instância conjugada: a instância de eu como referente, e instância de discurso contendo eu, como referido” (1995, p.279). Em outras palavras, eu é referente porque é sujeito da enunciação; eu é referido porque eu – o que se propõe como sujeito – enuncia eu, constituindo o enunciado. Na e pela enunciação, instaura-se um mundo – a presente instância de discurso – pelo fato de o sujeito só poder assumir esta condição diante de tu, bem como ser o referente de uma série de categorias, qual seja o tempo, que é o presente, este-aqui-agora. Eu-tu-este-aqui-agora passa a coexistir e a constituir um eixo em torno do qual tem possibilidade o uso de outras palavras como, por exemplo, expressões de temporalidade que se estabelecem em relação ao presente, e alguns advérbios que decorrem de aqui. Pelo viés do sujeito, que exterioriza esta realidade ou a sua realidade, têm significação, ainda, os modos, os adjetivos, os possessivos, etc. Em síntese: a enunciação é a referência de todas as palavras que adquirem tal estatuto ao serem enunciadas. A ele correspondem os conceitos da língua. Por meio de ele, eu designa as coisas às quais quer dar existência. Assim sendo, ele não é constituído, a partir das coisas; ao contrário, são as coisas que são constituídas a partir do momento em que são enunciadas, passando a fazer parte da instância de discurso e, apesar de exteriores à relação eu-tu, têm como referência, assim como as demais palavras, a enunciação. Retomemos a definição de enunciação: enunciação é o colocar a língua em funcionamento por um ato individual de utilização. Língua em funcionamento admite a existência de um coletivo, a língua como um sistema de significações desvinculadas da realidade, formas distintivas; língua em funcionamento supõe um ato individual que significa a realidade em que se inclui, ou seja, a instância de discurso. Ele, pertencente ao coletivo, na e pela enunciação tem referência, Teorias do Discurso e Ensino 63 adquire existência, materialidade, e os indicadores de subjetividade nela e por ela emergem. Podemos, assim, considerar as palavras sob duas perspectivas: a da origem e a da referência. Sob a primeira, temos eu-tu/ele: a língua e a instância de discurso, a língua e o uso da língua. Na outra perspectiva, a da referência, a oposição se desfaz – eu-tu-ele – a língua é apenas uso porque colocada em funcionamento. 4.2 A frase Para a inclusão da frase nesta Teoria da Enunciação, se faz necessário estudar as duas maneiras de ser língua por Benveniste tratadas: a primeira denominada semiótica; a segunda, semântica. À medida que avançarmos neste estudo ver-se-á que estas maneiras de ser estão na base da oposição pessoa/não pessoa: a não pessoa é do domínio do semiótico, a pessoa é do domínio do semântico. Embora sejam distintos, semiótico e semântico têm um aspecto em comum: ambos significam, diferenciando-se pela maneira como significam 6. O âmbito do semiótico tem como unidade o signo. Corresponde à língua, tal como é descrita por Saussure no Curso de Lingüística Geral. O signo significa em face de outro signo, pois essa maneira de ser língua se caracteriza por excluir o mundo, uma vez que as relações que nela se estabelecem se dão entre as unidades que lhe são pertinentes. No semiótico, não há intervenção de um sujeito, então a referência inexiste: a significação é genérica. No âmbito do semântico, está a subjetividade. É a enunciação. É eu que se diz e diz o mundo. Já não há signo, mas palavra. Embora as palavras sejam signos, têm outro estatuto porque significam uma situação que é particular e única. Não apenas significam, servem para viver. Para explicitar a transposição do signo para palavra, Benveniste utiliza os termos agenciamento e apropriação. O locutor agencia palavras (os signos) no 6 Para complementação, leia-se, principalmente, A Forma e o Sentido na Linguagem e Os Níveis da Análise Lingüística, o primeiro apresentado em um congresso que reuniu filósofos; o segundo, em um congresso de linguistas. Ambos são referenciados no final deste trabalho. 64 Carmem Luci da Costa Silva, et al. campo do semiótico e as desloca para o semântico, ou seja, a língua e o uso da língua são vistos como associados. A este processo, Benveniste dá o nome de apropriação: o sujeito se apropria da língua e a põe em funcionamento. Nesse processo de apropriação para funcionamento, o que era genérico se torna específico: os conceitos da língua, noções gerais devido à ausência de referência, sofrem uma restrição em uma situação de emprego da língua: “cada palavra não retém senão uma pequena parte do valor que tem enquanto signo” (1989, p.234). Na ordem do semântico, não é apenas a palavra que significa, também a frase significa, ou melhor, a palavra significa porque contida na frase 7. A palavra é palavra porque está na frase, já que a função da língua é predicar. No discurso, a língua se manifesta, o pensamento se torna ideia. No discurso, a palavra jamais pode ser vista isoladamente, está sempre em conexão com outras palavras. Um sentido se expressa, o qual é sempre particular, pois relativo a sujeitos e contexto, por isso exige uma configuração também particular, para que se manifeste a singularidade da ideia. Essa singularidade relativa à referência a situações sempre novas e diferenciadas determina certo arranjo de palavras. A frase, então, não pode ser vista como um somatório de palavras, pois nela as palavras, dependendo da organização que lhes é imposta, apresentam nuances diversas, adequando-se à ideia. O semântico é, assim, o uso da língua, significação partilhada pelos falantes a qual se manifesta na palavra – uma parte do coletivo expressando sentido particular, entendido como emprego – em inter-relação com outras palavras. Nessa configuração própria à ideia se dá a significação do predicar. 7 Frase, termo empregado por Benveniste, relaciona-se à expressão de uma ideia. Não se limita, portanto, como em outros estudos, quanto à extensão. A frase, tal como é concebida por este autor, comporta inter-relações entre as palavras, uma certa organização promovida por quem usa a língua. Esta organização é exigida pela atribuição de referência. Teorias do Discurso e Ensino 65 4.3 O diálogo Na e pela enunciação, eu se constitui, se apresenta como sujeito; a linguagem é, portanto, condição humana, por meio dela o homem se diferencia dos outros homens, se individualiza. Assim, em Benveniste, a linguagem não pode ser reduzida a instrumento de comunicação, pois “a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’” (1995, p.286). Apesar de eu ser, ao mesmo tempo, referente e referido – eu diz eu e, deste modo, se institui como pessoa –, esse ato não lhe confere prerrogativas porque este dizer constitui tu, o não eu. Em Benveniste, não há propriamente noção de pessoa, mas de pessoas, sempre duas e somente duas, e se por vezes empregamos o singular, é para estabelecer a noção de oposição pessoa/não pessoa. Essa noção de pessoalidade está associada a outra, a de inversibilidade. Eu assim o é enquanto dura seu dizer, invertem-se as posições no momento em que tu toma a palavra. Eu e tu, embora opostos, não são excludentes e ainda gozam da possibilidade de revezamento na atribuição de referência. Então, se usamos o termo subjetividade com o objetivo de descrever o ato por meio do qual o locutor põe a língua em uso, devemos considerar que intersubjetividade é o termo que condiz com a noção de pessoas. Eu e tu, coparticipantes da enunciação como integrantes da instância de discurso, promovem o diálogo. E para que este se exerça, a noção de referência, ainda que necessária, não é suficiente: importa a de correferência para que o diálogo como tal se constitua. 8 Para que melhor se esclareça a noção de correferência, é preciso que se retome a oposição entre ordem do semiótico/ordem do semântico. Na visão de Benveniste, a língua é o único sistema dotado dessa dupla significância, e porque desse modo se apresenta, é capaz de interpretar todos os demais sistemas de signos, os quais são unidimensionais. Já que possui duas 8 Os estudos aqui realizados poderão ser enriquecidos com a leitura dos textos O Aparelho Formal da Enunciação e Semiologia da Língua. 66 Carmem Luci da Costa Silva, et al. dimensões, sua função de interpretante não se restringe a outros sistemas, ela “pode, a princípio, tudo categorizar e interpretar, inclusive ela mesma” (1989, p.62). Em uma situação de emprego, a língua é o interpretante e o interpretado pois a enunciação, a maneira de ser língua no campo do semântico, inclui o semiótico: o locutor toma a língua inteira e a coloca em funcionamento para referir o mundo da presente instância de discurso. A dupla significância da língua – significa o que é coletivo, ou significa o que é particular: semiótico/semântico; significa o que é particular, considerando a significação que é coletiva: a inclusão do semiótico no semântico – garante-lhe interpretar-se a si mesma. A língua é interpretante enquanto coletivo, é interpretado enquanto particular; é interpretante enquanto expressão de uma situação nova e única, a qual corresponde ao interpretado. O colocar a língua em funcionamento, que prevê não só sujeito, mas sujeitos, os quais têm a possibilidade de alternar-se nesse ato, confunde-se com o quadro do diálogo: um ir-e-vir do processo de apropriação da língua, configurando a ideia, de modo a referir a instância de discurso, referência esta que é perpassada pela língua, um aparato que é comum aos parceiros. O que caracteriza o diálogo, relação entre sujeitos, é uma constante alternância de semiótico e semântico. Nesse processo, já sabemos como o locutor constitui a significação, porém, em se tratando de alocutário, não podemos afirmar que faz simplesmente o caminho inverso, pois isto representaria destituí-lo da condição de sujeito. Face à enunciação de eu, tu, porque também sujeito, reconstitui o processo: reconhece, na língua, a qual é comum a eu e tu, os conceitos relativos às palavras que compõem o enunciado; semantiza, porque parceiro do locutor, copartícipe da situação de discurso, atribuindo referência, ou seja, significando. Há, portanto, reconstituição do processo; não há reconstituição do enunciado. Para locutor e alocutário são comuns a língua e a instância de discurso e, consequentemente, referência e significação. O uso da língua, porque traz implícito o diálogo, implica não só referência, mas correferência. O diálogo prevê, portanto, sujeitos, um imbuído em significar-se, o outro em atribuir significação a este significar-se. Eu refere, eu-tu coreferem. A língua é Teorias do Discurso e Ensino 67 garantia de um mínimo comum; a existência de sujeitos que partilham a mesma situação de discurso, o aqui-agora, que inclui este, garante a relação discursiva. Assim como eu constitui tu, mas, ao mesmo tempo, por ele é constituído, a referência, decorrente da enunciação, prevê correferência, condição para a existência do diálogo. Se o entendimento da noção de subjetividade é requisito para a de intersubjetividade, a de referência também o é para a de correferência: uma é origem; a outra, fim da enunciação É com este sentido que a língua serve para viver. 5 A inserção da enunciação – reflexões a partir de algumas situações de ensino-aprendizagem Por tudo o que foi exposto, verificada a rede de relações e a complexidade que essa maneira de compreender os fenômenos linguísticos envolve, conclui-se que esta Teoria da Enunciação não é aqui apresentada para que seja desenvolvida em sala de aula, porém conhecê-la é possuir um suporte a mais para considerar as intervenções feitas pelos alunos, que trazem suas explicações, incompreensões e críticas, quando lhes é apresentada uma informação nova ou quando são aprofundados ou inter-relacionados alguns aspectos relativos aos fatos linguísticos tratados pela gramática. Há muito tempo, teorias pedagógicas e outras que contribuem para a reflexão sobre modos de ensinar e modos de aprender apontam para a necessidade de que sejam promovidas, em sala de aula, situações nas quais os alunos participem ativamente. Não se concebe mais um ensino em que os alunos sejam vistos como objeto. Os professores, no afã de sempre e cada vez mais qualificarem o trabalho que fazem, realizam um esforço ao planejarem situações de ensino-aprendizagem, para garantir aos alunos o papel de agentes do seu aprender. Como é isto o que se quer e o que se faz quanto ao que é propriamente pedagógico, é preciso que, nos momentos em que os alunos apresentam suas indagações ou em que assumem uma posição diante do que é estudado, os professores tenham uma bagagem de conhecimentos suficiente para interpretar o que pelos alunos está sendo expresso, corroborando ou redirecionando as reflexões apresentadas, de modo a enriquecê-las. 68 Carmem Luci da Costa Silva, et al. É certo que os professores, por mais que se dediquem a organizar as atividades, não têm como prever todas as respostas dos alunos. Um ensino voltado para o pensar sobre a matéria está à mercê do inusitado. Assim, em uma sala de aula do ensino fundamental em que os alunos estudavam os pronomes, o professor apresentou algumas frases previamente selecionadas, as quais eram constituídas por pronomes indefinidos, e os alunos, após levantamento de hipóteses que eram aceitas ou refutadas pelos seus pares e pelo professor, concluíram que certas palavras da língua expressam ideia de imprecisão, de indeterminação, de indefinição. Avançando um pouco mais a discussão, um aluno deu a seguinte opinião: “Penso que estas palavras não definem. Alguém indica uma pessoa, mas não diz que pessoa é; algo dá uma ideia parecida em relação a uma coisa, muitos é uma palavra que expressa grande quantidade, mas esta quantidade varia, dependendo de quem diz. Na frase Tenho muitos lápis, muitos pode representar 12 lápis, assim como pode representar uns 50. Se um menino muito pobre, que estuda numa escola muito pobre em que todos os alunos também são pobres, disser ‘Tenho muitos lápis’, muitos pode representar 12 lápis ou até menos; se um menino com boas condições financeiras disser para seus colegas, que têm o mesmo padrão de vida, esta frase, muitos não representa 12 lápis porque nem este menino nem seus colegas consideram que ter 12 lápis é ter muitos lápis. Muitos, neste caso, devem ser uns 50 ou até mais.” Imediatamente essa ideia de “grande quantidade relativa”, denominação dada por esse aluno, foi aceita pelos demais e passou a circular entre eles, e vários outros exemplos foram dados, não mais apenas relacionados a uma condição econômico-financeira, mas a outras situações, como no caso de pontos marcados por equipes esportivas. Certamente o fato de o professor ter se valido de frases para introduzir o estudo dos pronomes indefinidos, seria merecedor de críticas de parte dos que afirmam ser esta uma visão redutora. Neste caso, entende-se perfeitamente a intenção do professor. Este partia do âmbito da língua, da significação na esfera do coletivo, e a discussão que promovia junto e entre os alunos desencadeava a especificidade do uso, verificando-se efeitos de sentido quando do emprego da palavra. Por outro lado, esse professor se atinha ao que o grupo de professores Teorias do Discurso e Ensino 69 da escola em que trabalhava decidira ser o fio condutor dos objetivos e conteúdos na série e nas diversas séries do ensino fundamental, pois considerava os princípios da gramática, sem restringir-se unicamente a eles. O que essa forma de tratar os pronomes indefinidos adotada por esse professor proporcionou foi abordar, sob duas óticas, o que se convencionou chamar, de acordo com a gramática, de pronomes indefinidos: pelo viés da língua e pelo viés do discurso. Do primeiro, a noção de indefinição; do segundo, essa noção que se mantém numa situação de uso, mas que passa a produzir um efeito – o que os alunos chamaram de quantidade indefinida “relativa” – em função da consideração de sujeitos e de uma situação enunciativa, nos exemplos apresentados pelos alunos. Isto nos indica que os professores nunca devem se apegar a uma só interpretação. A língua abriga conceitos, noções amplas, mas os alunos normalmente “pensam” a língua a partir de usos, geralmente o que falam ou o que ouvem diariamente; são especificidades, particularidades que constituem os seus exemplos. Faz-se necessário, assim, um ir-e-vir, o que justifica um trabalho não só por meio de palavras e frases, mas também de porções maiores, o que inclui a análise de situações discursivas. Foi o que expressou um aluno da mesma turma, também quando eram estudados tais pronomes: “Se eu chego à janela e digo ‘Ninguém está na rua’, ninguém não está indefinindo, simplesmente a frase quer expressar que a rua está vazia, que nela não há nenhuma pessoa”. A língua aqui participa com o seu jogo de oposições – alguém/ninguém, por exemplo; a razão de ninguém figurar, nas listagens apresentadas pelas gramáticas, como um pronome indefinido –, porém atribuir a ninguém, na situação apresentada, a noção de indefinição, discordando da afirmação do aluno, torna-se difícil, quando não insustentável. Parece-nos que, muitas vezes, os alunos têm dificuldade de compreender afirmações feitas pelo professor, ou se insurgem contra elas porque se postam ao lado de situações de uso, que são sempre particulares, pois envolvem locutores e um contexto específico. Suas contribuições implicam referência, uma ideia que é expressa tendo-se em vista uma situação enunciativa. 70 Carmem Luci da Costa Silva, et al. A frase, conforme afirma Benveniste, unidade de significação do discurso, é, muitas vezes, em atividades de aula, pinçada do discurso ou simplesmente “criada”, pois é objetivo do professor apresentar um todo em que determinada palavra figura. Daí a dificuldade, por exemplo, de os professores explicarem a diferença entre artigos definidos e indefinidos ou a distinção entre oração subordinada adjetiva restritiva e oração subordinada adjetiva explicativa. Em muitas situações, a frase, limite máximo de análise das gramáticas, não é suficiente. Essas situações requerem a atenção dos professores que, sabedores de que o sentido ultrapassa a fronteira da frase gramatical, porque relativo à ideia que é expressa, deverão selecionar recursos compatíveis com o que pretendem discutir com seus alunos. A falta de previsão quanto a esse aspecto pode acarretar imprecisões que terão como consequência dificuldades para os alunos. A gramática costuma classificar o sujeito gramatical, e, principalmente no estudo da concordância, os tipos de sujeito, nomenclatura geralmente usada nas atividades escolares, retornam para o estabelecimento de certas regras. Na Novíssima Gramática da Língua Portuguesa, de Cegalla, lê-se que o sujeito é indeterminado “quando não se indica o agente da ação verbal” (1970, p. 246). Em relação aos modos de indeterminação do sujeito, este autor apresenta dois, sendo um deles assim exposto: Usando o verbo na 3ª pessoa do plural, sem referência a qualquer agente já expresso. Na rua olham-no com admiração. “Batem leve, levemente...” Augusto Gil (1970, p. 246). Uma leitura atenta da explicitação feita pelo gramático, apesar de os exemplos se constituírem, como costumam acontecer nessas obras, de frases isoladas, permite antever a inclusão das frases-exemplo em situações discursivas, pois à condição de o verbo estar conjugado na 3ª pessoa do plural alia-se outra condição: “sem referência a qualquer agente já expresso”. Isso requer que os estudos sobre indeterminação do sujeito se façam a partir de um conjunto de frases – a ideia deve ser apresentada – que possibilite uma análise da relação entre as frases, de maneira que os alunos possam constatar a inexistência de retomada de palavra à qual possa ser atribuído o Teorias do Discurso e Ensino 71 papel de agente e, consequentemente, a noção de indeterminação promovida pelo locutor. Não só nos estudos introdutórios desse assunto, mas sempre que este estiver sendo tratado – exercícios, provas, etc. – esse aspecto precisa ser considerado. Muitas vezes, entretanto, não é o que se vê em atividades realizadas em aula. Tarefas que se caracterizam pelo reconhecimento dos tipos de sujeito, incluem frases do tipo Deixaram-me um bilhete, e nada mais. Afirmar, por exemplo, que, na frase Deixaram-me um bilhete, o sujeito gramatical é indeterminado, com base no fato de o verbo indicar terceira pessoa do plural, ignorando que outra resposta possa ser apresentada pelos alunos, revela autoritarismo ou, o que é mais grave, desconhecimento do que a gramática apresenta como noção de sujeito indeterminado. Se, nesse caso, alguns alunos “acertarem” a resposta que o professor estipulou como desejada, é obra do acaso porque essa frase, desvinculada de uma situação enunciativa, não possibilita correferência: diante dela, os alunos perguntar-se-ão “qual é o sentido?” Devido à impossibilidade de resolverem a questão, agirão aleatoriamente. O que se verifica aqui é que a análise da frase, tal como se costuma fazer nas aulas de Português, não é suficiente. Ensinar que deixaram é um verbo na terceira pessoa do plural, que me é objeto indireto, um bilhete é objeto direto, portanto o sujeito gramatical não está expresso materialmente na frase e, a partir da forma verbal, classificar o sujeito gramatical como indeterminado, é desconhecer que Deixaram-me um bilhete pode figurar em um enunciado como Meus amigos saíram apressados. Deixaram-me um bilhete. O sentido aqui não se estabelece unicamente na frase dada, ultrapassa-a, e falar sobre ele exige que estabeleçamos inter-relações com outras frases do enunciado, as quais, neste caso, não constam. Comete-se erro semelhante quando é apresentada aos alunos uma frase como Ele chegou atrasado e se pede a eles que seja identificado o pronome. Que tipo de ensino está se promovendo? Um ensino baseado na memorização de uma lista de palavras entre as quais ele se encontra. Essa situação não tem nenhuma significação porque Ele chegou atrasado, por si só, não é um fato do Português. 72 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Em uma aula em que um professor mostrava isto a seus alunos, um deles complementou a explanação do professor dizendo: “Esta palavra, assim apresentada, me dá ideia de indefinição, assim como alguém em Alguém chegou atrasado. Não tenho nenhuma informação sobre quem seja ele”. A falha não está na gramática, comete o erro quem, a partir de uma lista de palavras, pensa poder ensinar uma língua. O que precisamos entender é que a gramática estabelece que a maior porção de língua que analisa é a frase; esta é a sua escolha metodológica. Porém, quando a língua é usada, e uma língua serve para falar, o objetivo de quem a utiliza é a atribuição de referência, e por referência entende-se a expressão de uma ideia, que pressupõe, sempre, uma situação de discurso. Em muitas ocasiões, é possível que uma só palavra dê conta desta ideia – e as gramáticas afirmam a existência de frases formadas por uma única palavra –; em outras, apenas uma frase pode exprimir a ideia. Até aqui, utilizar o recorte metodológico das gramáticas é suficiente e adequado, entretanto há situações em que a ideia se materializa por meio de inter-relações entre certo número de frases. Nesse sentido, a noção de frase em Benveniste e nas gramáticas não é a mesma. Para Benveniste frase implica certa organização, conexões entre palavras, que assim são apresentadas porque há algo a exprimir. Essa sintagmatização não pode ser limitada porque a ideia quer ver-se expressa, não importando “extensão”. A atribuição de referência muitas vezes exige “porções” maiores que a frase da gramática. Os professores, por isto, quando planejam suas aulas, quando dialogam com seus alunos, quando avaliam respostas, precisam constantemente colocar-se na posição de analistas, perguntando-se “como aqui se dá o sentido?”, ou seja, “quais são as inter-relações?”, e ainda “qual é, então, o sentido?”. Pergunta semelhante a esta última foi formulada a alunos que estudavam os pronomes pessoais. Este é, a propósito, um grupo de palavras que representa para os alunos uma série de dificuldades, a começar pela noção de pessoa trazida pela gramática. Quando se lhes apresenta a distinção 1ª, 2ª e 3ª pessoas – a que fala, a com quem se fala, a de quem ou de que se fala, respectivamente, – demonstram Teorias do Discurso e Ensino 73 os alunos certo estranhamento quanto ao termo pessoa: ao se dizer O cachorro é feroz. Ele me mordeu ou O edifício precisa de reformas. Ele apresenta rachaduras nas paredes internas, como podem cachorro e edifício ser tratados como pessoas? Esse, então, é um momento propício para se falar em diálogo, em locutores e no que à situação enunciativa não pertence, sem que haja necessidade de se recorrer à complexidade das noções que a situação enunciativa envolve. Outro ponto que desperta uma crítica é a oposição singular/plural relacionada à 1ª e à 2ª pessoas, além da presença de vós e a ausência de você(s) no quadro dos pronomes, sendo que uma reflexão sobre esses dois últimos pode desencadear inúmeras discussões sobre questões de uso. Para que os próprios alunos fornecessem indicações para uma posterior tomada de posição a respeito da relação singular/plural, solicitou-se a eles que imaginassem um diálogo em que alguém usasse a frase Nós fizemos o trabalho e, com base na situação imaginada, explicassem o que nós representa. Resumidamente, foram dadas as seguintes respostas: a) Nós representa que eu e todos os meus colegas de turma fizemos o trabalho. b) Nós representa que eu e um colega fizemos o trabalho. c) Nós representa que eu e Fulano fizemos o trabalho. d) Nós representa que eu e um colega que, naquele dia, faltou à aula fizemos o trabalho. e) Nós representa que eu e o colega com o qual estou falando, fizemos o trabalho. A apresentação das respostas, as quais despertam atenção, pois cada aluno se colocou na posição de locutor, possibilitou a conclusão desejada – eu e tu, eu e ele(s); o locutor e o alocutário, o locutor e uma outra pessoa que não participa do diálogo, mas sempre a presença do locutor, pois, afinal, é o locutor – daí derivando-se a inexistência de um plural com base em eu e eu, a leitura que os alunos faziam de 1ª pessoa do plural, a qual consideravam inaceitável. Caso professores se disponham a compatibilizar a sua prática em sala de aula com o que até aqui apresentamos, certamente verificarão que há uma grande variedade de outros fatos a acrescentar. Sabemos que a sala de aula se 74 Carmem Luci da Costa Silva, et al. manifesta como uma sucessão de desafios, que alguns deles são facilmente superados, outros permanecem por um longo tempo, até que encontremos uma resposta. À guisa de conclusão, apresentamos uma resposta, que é a nossa. A gramática, à medida que é estudada, fornece, tanto em relação às classes de palavras como quanto ao que denomina funções sintáticas, um quadro conceitual. Com base nesse quadro – termos e definições – formula regras, pertinentes a um uso, próprio a certas ocasiões específicas. Aos professores, que escolheram essa gramática como fio condutor para a organização de situações de ensino-aprendizagem, cabe estudá-la criticamente, verificando seus aspectos positivos e/ou negativos. De posse disto, terão à sua disposição uma série de contribuições, oriundas das mais diversas teorias linguísticas, capazes de preencher possíveis lacunas que venham a ser identificadas. A seleção dessas teorias por certo exigirá novamente estudos e reflexões, não só quanto aos pressupostos que apresentam, mas também quanto à forma de adequá-los àquilo que o professor pretende. Com esse intuito, apresentamos essa Teoria da Enunciação, que releva a língua enquanto uso e releva o uso enquanto língua: o uso da língua. Outras obrigatoriamente deverão ser conhecidas para que a sala de aula se torne um espaço de permanente reflexão e diálogo. REFERÊNCIAS BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. São Paulo: Ed. Nacional, 1961. ______. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. BENVENISTE, Émile. A forma e o sentido na linguagem. In: ______. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas, SP: Pontes, 1989. ______. A natureza dos pronomes. In: ______. Problemas de Lingüística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995. ______. Da subjetividade na linguagem. In: ______. Problemas de Lingüística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995. Teorias do Discurso e Ensino 75 ______. Estrutura das relações de pessoa no verbo. In: ______. Problemas de Lingüística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995. ______. O aparelho formal da enunciação. 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ARGUMENTAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA Carmem Luci da Costa Silva* [email protected] 1 Considerações iniciais Neste texto, pretendemos mostrar como as questões defendidas pelos autores da perspectiva da Teoria da Argumentação na Língua (Oswald Ducrot e colaboradores) estão presentes nos diferentes pressupostos preconizados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Com isso, buscamos, juntamente com os professores de língua materna de ensino fundamental e de ensino médio, um maior entendimento dos aspectos teóricos que subjazem às teses contidas nos PCNs. Para tanto, nosso percurso apresenta duas configurações, quais sejam: a primeira, que pontua aspectos teórico-metodológicos sobre o ensino de língua materna produzidos pelos PCNs, e a segunda que apresenta questões teóricas acerca do funcionamento argumentativo da língua produzido pela Teoria da Argumentação na Língua. Essas duas configurações serão relacionadas, levando-se em conta os seguintes aspectos: (1) o tratamento da língua em uso e (2) a consideração do funcionamento argumentativo da língua. 2 Contextualizando os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) Quando as pesquisas produzidas por uma linguística centrada no uso da língua começam a proliferar após a década de 1980 no Brasil, novas reflexões surgem no cenário do ensino de língua materna, contendo críticas acerca da sua finalidade e dos conteúdos selecionados para a aprendizagem. Entre as críticas mais frequentes ao ensino de língua portuguesa, dito tradicional, destacavam-se: a desconsideração de atividades de uso da língua; o uso do texto como pretexto para ensinar valores morais e para o tratamento de aspectos gramaticais; a * Professora de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da UFRGS e Doutora em Letras – Estudos da Linguagem pelo PPG- Letras/UFRGS. excessiva valorização da norma linguística, através de regras de exceção; ensino descontextualizado, com ênfase na metalinguagem, normalmente vinculado à memorização de terminologias e associado à identificação de fragmentos em frases soltas; e a apresentação de uma teoria gramatical, sem a devida reflexão do funcionamento da língua em seus vários níveis (fonológico, morfológico, sintático, semântico e pragmático). A partir disso, produziu-se um pressuposto consensual acerca do ensino de língua portuguesa de que as práticas precisavam partir do uso (linguagem) para permitir a conquista de novas habilidades linguísticas (metalinguagem). É justamente, levando em conta tal pressuposto, que os Parâmetros Curriculares Nacionais defendem como objetivo do ensino de língua materna o desenvolvimento da competência discursiva do aluno. Por isso, nessa nova diretriz, o texto, em toda a sua diversidade de gêneros, é considerado o objeto desse ensino. Além de se partir da língua em uso, os Parâmetros Curriculares Nacionais consideram a importância de se tomar a língua como objeto de reflexão, a fim de possibilitar ao aluno produzir categorias explicativas de seu funcionamento, visto ser na prática de reflexão sobre a língua e a linguagem que pode se dar a construção de instrumentos que permitirão ao sujeito o desenvolvimento da competência discursiva para falar, escutar, ler e escrever nas diversas situações de interação. Em decorrência disso, os conteúdos de Língua Portuguesa articulam-se em dois eixos básicos: uso da língua oral e escrita, e a reflexão sobre a língua e a linguagem...(PCNs terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental, p. 34) Dessa maneira, nos Parâmetros Curriculares de Ensino Fundamental (PCNs EF), os conteúdos estão divididos em dois eixos: o do uso e o da reflexão. No eixo do uso, a língua é vista a partir do processo de interlocução, com ênfase nos seguintes trabalhos: (1) na historicidade da linguagem e da língua; (2) na constituição do contexto de produção, representações do mundo e interações sociais (interlocutores, finalidade da interação, lugar e momento de produção); (3) nas implicações do contexto de produção na organização dos discursos: restrições de conteúdo e de forma decorrentes das escolhas de gêneros e 78 Carmem Luci da Costa Silva, et al. suportes; (4) nas implicações do contexto de produção no processo de significação (representações dos interlocutores no processo de construção de sentidos, relações intertextuais e articulação entre texto e contexto no processo de compreensão). No eixo reflexão, os conteúdos desenvolvidos sobre os do eixo uso, referem-se à construção de instrumentos para a análise e funcionamento da linguagem em situações de interlocução, privilegiando alguns aspectos linguísticos que possibilitam a ampliação da competência discursiva do sujeito: (1) variação linguística: modalidades, variedades e registros; (2) organização estrutural dos enunciados; (3) léxico e redes semânticas; (4) processos de construção de significação e (4) modos de organização dos discursos. Já, no ensino médio, pressupõe-se que os elementos básicos relativos ao funcionamento da língua portuguesa foram apreendidos no ensino fundamental, cabendo a esse nível oferecer aos estudantes oportunidades de compreensão mais aguçada dos mecanismos que regulam a língua. Levando em conta as competências e as habilidades propostas pelos Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio (PCNs EM), chegamos aos seguintes objetivos defendidos para esse nível de ensino: desenvolvimento do potencial crítico do aluno (percepção das múltiplas possibilidades de expressão linguística) e sua capacitação como leitor efetivo dos mais diversos textos de nossa cultura. Nesse sentido, os PCNs+EM, ao dividirem as competências básicas em três blocos - Representação e comunicação, Investigação e compreensão e Contextualização sociocultural -, retomam as competências de uso e de reflexão já expressas nos PCNs EF. Essas competências básicas apresentam, em sua transversalidade, a aquisição e o desenvolvimento das competências interativa, textual e gramatical como os grandes pilares do ensino de língua materna no nível médio. A questão fundamental para o ensino de Língua Portuguesa na etapa final de escolaridade básica desloca-se, portanto, dos conteúdos a serem abordados para a aquisição de competências e de habilidades. No primeiro bloco das competências gerais a serem desenvolvidas no ensino médio – o da Representação e Comunicação, temos os seguintes conceitos estruturantes: (1) linguagens (verbal, não-verbal e digital); (2) signo e símbolo; (3) denotação e conotação; (4) gramática; (5) texto; (6) interlocução, Teorias do Discurso e Ensino 79 significação, dialogismo e (7) protagonismo. As habilidades relacionadas a esses conhecimentos contemplam a utilização da linguagem nos três níveis de competência (interativa, gramatical e textual), através da leitura e da interpretação, da inserção do aluno como protagonista na produção e na recepção de textos e da aplicação das tecnologias de comunicação e da informação em situações relevantes. Considerando a questão que nos interessa aqui – a argumentação –, enfatizaremos esse primeiro bloco, com os conceitos, por um lado, de gramática e de texto, por outro lado, de interlocução, significação e dialogismo. O conceito de gramática está desenvolvido da seguinte maneira: refere-se a um conjunto de regras que sustentam o sistema de qualquer língua. Na fala, fazemos uso de um conhecimento lingüístico internalizado, que independe de aprendizagem escolarizada e que resulta na oralidade. Na escrita, necessitamos de outros subsídios lingüísticos, fornecidos pelo letramento (conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito). O domínio desse conceito é importante em quase todas as situações em que se trabalha com a língua. Para ficar em alguns exemplos: • Na fala ou na escrita, é fundamental considerar a situação de produção dos discursos que, afinal, são possibilitados pelo conhecimento gramatical (morfológico, sintático, semântico) de cada pessoa. • Compreender que o aceitável na linguagem coloquial pode ser considerado um desvio na linguagem padrão ou norma culta. • Abordar os diversos graus de formalidade das situações de interação. • Compreender as especificidades das modalidades oral e escrita da língua (PCNs+EM, p. 60). Nessa concepção de gramática, temos a presença das perspectivas estruturais, gerativas e sociolinguísticas para dar conta da análise do funcionamento sistemático da língua em suas diferentes variedades. Já a noção de texto vincula–se aos postulados teóricos do conceito de gênero de discurso da perspectiva enunciativa bakhtiniana. De fato, o texto é concebido como um todo significativo (verbal ou não-verbal), com diferentes feições, conforme a abordagem temática, a estrutura composicional e os traços estilísticos do autor. A partir desse conceito, os PCNs+EM defendem que a unidade de ensino seja 80 Carmem Luci da Costa Silva, et al. composta pelo texto, que pode ser abordado a partir de dois pontos de vista: pela consideração dos diversos aspectos implicados em sua estruturação, o que envolve as escolhas feitas pelo autor das possibilidades oferecidas pela língua, e pela sua relação intertextual, através do seu diálogo com outros textos. Desse modo, as noções de interlocução, significação e dialogismo são vinculadas à produção de enunciados pertinentes à situação de uso, tanto na fala quanto na escrita. Segundo tal concepção, as diversas trocas sociais possibilitam que os falantes de uma língua produzam enunciados de acordo com certas intenções e dentro de determinadas condições, o que origina diferentes efeitos de sentido. É, nessa linha, que encontramos a seguinte tese nos PCNs+EM, p. 61: “Quando se dialoga com alguém ou se lê um texto, é pela interlocução que se constroem os sentidos; também é nela que os interlocutores se constituem e são constituídos”. Assim, os três níveis de competência (interativa, gramatical e textual) são entendidos como pressupostos necessários à constituição do ser falante e do usuário de uma língua, através do desenvolvimento das seguintes habilidades: da utilização da linguagem na interação com pessoas e situações, envolvendo o desenvolvimento da argumentação oral por meio de gêneros e o domínio progressivo das situações de interlocução; do conhecimento das articulações que regem o sistema linuístico, em atividades de textualização, como conexão, coesão nominal, coesão verbal e mecanismos enunciativos; e da leitura plena com a produção de sentidos de todos os aspectos significativos, implicando a caracterização dos diversos gêneros e seus mecanismos de articulação, leitura de imagens, percepção das sequências e dos tipos no interior dos gêneros e paráfrase oral, com substituição de elementos coesivos. Quanto ao ler e ao interpretar, os PCNs+EM tratam do ser leitor, pressupondo os domínios do código (verbal ou não) e de suas convenções, dos mecanismos de articulação que constituem o todo significativo e do contexto em que se insere esse todo. Dessa maneira, a competência de ler e de interpretar pode desenvolver-se com atividades relacionadas à antecipação e à inferência, à exploração dos elementos da narrativa, ao tratamento dos efeitos de sentido e da autoria, através da análise das escolhas e do estilo do autor. Teorias do Discurso e Ensino 81 A partir dos três eixos sugeridos para o trabalho com a Língua Portuguesa no ensino médio – centrados no desenvolvimento das competências interativa, textual e gramatical, há nos PCNs+EM critérios para a seleção dos conteúdos e das competências e habilidades específicas. Com relação à competência interativa, é enfatizado o fato de que é, através da língua materna, que o indivíduo participa das trocas sociais nas diversas situações comunicativas, sendo a escola a mediadora da aquisição dessa competência. E aqui precisamente o conceito de interlocução aparece: Pela língua, somos capazes de agir e fazer reagir: quando nos apropriamos dela – instaurando um “eu” que dialoga com um “outro” – buscamos atingir certas intencionalidades, determinadas em grande medida pelo lugar de que falamos, e construir sentidos que se completam na própria situação de interlocução (PCNs+EM, p. 74). Por isso, para o desenvolvimento da competência interativa, o ensino de língua materna, conforme os PCNs+EM, deve levar em conta alguns fatores: as variedades linguísticas da língua, a adequação das variedades às situações de interlocução – interlocutores, intenções, espaço e tempo, o questionamento dos rótulos de certo e errado, avaliação da adequação das variedades linguísticas às circunstâncias comunicativas e o tratamento da norma culta como variedade de prestígio, mas não como a privilegiada no processo de conhecimento linguístico do aluno. Para o desenvolvimento da competência interativa, há nos PCNs+EM procedimentos sugeridos que enfatizam as situações comunicativas e os elementos ligados ao ato enunciativo: onde, para quem, como e com que intenções. Dentro disso, o trabalho com os papéis de falante e de ouvinte tornase importante para o tratamento do saber ouvir, pois, através da escuta, o sentido da fala do outro pode se legitimar e ser avaliado. Para o desenvolvimento da competência textual, há nos PCNs+EM a definição de texto como unidade linguística concreta em uma situação interativa específica, a partir da qual se constitui como unidade de sentido. É o texto escrito que é enfatizado tanto do ponto de vista da leitura quanto da produção. O tratamento conferido à competência textual baseia-se nos trabalhos da 82 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Linguística Textual de Ingedore Koch e de Luiz Travaglia, tendo subjacente o constructo teórico enunciativo bakhtiniano de gêneros do discurso, já que há a consideração, para abordagem do texto, do tema, da estrutura composicional e das escolhas operadas na língua pelo autor (estilo). Ao trazer os procedimentos para o desenvolvimento da competência textual, os PCNs+EM listam as maiores dificuldades dos estudantes na leitura de textos, quais sejam: não conhecer o significado de algumas palavras; não saber o que o texto quer dizer (sentido global); enxergar a parte, não o todo; não saber o que está pressuposto e não saber compreender efetivamente o lido. Para superar tais dificuldades de compreensão, interpretação e valoração de um texto, as sugestões de procedimentos gerais de leitura são: buscar apoio no significado de palavras conhecidas e inferir o das desconhecidas; estabelecer relações entre os significados das palavras, reconhecendo o novo e o dado nas proposições para conectá-las entre si; construir um significado global, a partir do entendimento da função das partes do texto; e organizar as ideias globais num esquema coerente. Tendo em vista que, na produção textual, o aluno necessita mobilizar uma série de recursos, relacionados às competências interativa e gramatical, torna-se relevante o desenvolvimento das seguintes habilidades: (1) utilizar relações constituídas em vários tipos, de acordo com o seu projeto de texto (tese e argumentos, causa e consequência, fato e opinião, anterioridade e posterioridade, problema e solução, conflito e resolução, definição e exemplo, tópico e divisão, comparação, oposição e progressão argumentativa); (2) relacionar adequadamente, no texto dissertativo (expositivo ou argumentativo), a seleção e a ordenação dos argumentos com a tese; (3) identificar, no texto argumentativo, o interlocutor e o assunto sobre o qual se posiciona para estabelecer relações; (4) utilizar diferentes recursos resultantes de operações linguísticas – escolha, ordenação, expansão, transformação, encaixamento, inversão e apagamento –, considerando as condições de produção. No que diz respeito à competência gramatical, o ensino de gramática é visto como um dos mecanismos para a implementação das competências interativa e textual, ou seja, é tratado como um meio para um fim. O desenvolvimento da competência gramatical relacionado ao da textual pode se dar através dos seguintes procedimentos: exploração de textos de diferentes Teorias do Discurso e Ensino 83 gêneros quanto ao tratamento temático e aos recursos formais utilizados pelo autor; estabelecimento de relações entre partes de um texto a partir da repetição e da substituição de um termo; estabelecimento de relação entre a estratégia argumentativa do autor e os recursos coesivos e argumentativos escolhidos; e análise das relações sintático-semânticas em segmentos do texto (gradação, disjunção, explicação, causalidade, conclusão, comparação, contraposição, exemplificação, retificação e explicitação). Para o tratamento da competência gramatical, novamente vemos a influência da Sociolinguística Variacionista e da Linguística Textual (aspectos coesivos). Quanto à observação dos recursos expressivos utilizados pelo autor decorrentes das escolhas dos elementos da língua, há, nos PCNs+EM, sugestões de procedimentos de leitura intrinsecamente ligados aos mecanismos gramaticais, tais como o tratamento dos efeitos de sentido decorrentes do uso de pontuação e a verificação do uso dos recursos lexicais e sintáticos em função da estratégia argumentativa do autor. Aqui a exploração das escolhas gramaticais do autor busca vincular o uso das formas às suas estratégias argumentativas e aos efeitos de sentido que pretende produzir na interlocução. Desse modo, a gramática é vista como o que possibilita um modo de dizer, que não se limita apenas à forma, mas à forma como produtora de sentido. Assim como nos PCNs EF uso e reflexão formam os eixos norteadores do ensino de língua portuguesa de modo integrado, as diretrizes dos PCNs EM preveêm o desenvolvimento das competências interativa, textual e gramatical, não de forma estanque, mas simultânea, pois cada competência prescinde das outras. O percurso feito permite-nos sintetizar as principais reflexões sobre o ensino de língua portuguesa no ensino fundamental e no ensino médio desenvolvidas no interior dos PCNs. Do ponto de vista metodológico, os PCNs assumem uma visão de ensino-aprendizagem centrada na língua em uso, concebendo o texto como elemento central da unidade de ensino. Por isso, o texto, seja na produção, seja na leitura, é concebido em seu aspecto estrutural, através da exploração dos elementos recorrentes e relacionais (coesão) e, em seu aspecto enunciativo, a partir da instanciação dos interlocutores e da situação de enunciação (o aqui e o agora). A questão gramatical é vista como um meio 84 Carmem Luci da Costa Silva, et al. para o desenvolvimento das competências interativa e textual, estando a serviço das estratégias argumentativas do autor, devendo, desse modo, ser explorada na leitura e na produção de texto. Assim, percebemos uma ênfase no tratamento do nível semântico da língua, a partir do trabalho com os efeitos de sentido produzidos na interlocução pelos usos lexicais e pela organização sintática. Tendo em vista que os PCNs, ao operarem a transposição de questões teóricas advindas da Linguística ao Ensino de Língua Portuguesa, recorrem a uma diversidade de teorias, o que consideramos salutar em termos de ensino, tentaremos a seguir trazer as contribuições teóricas da Semântica Argumentativa sobre o uso e o funcionamento da língua, concebendo-a também como uma proposta teórica possível de ser aplicada ao ensino de língua. 3 O funcionamento enunciativo-argumentativo da língua: aspectos teóricos A menção à perspectiva enunciativa de língua, como já vimos, é atestada nos PCNs do ensino fundamental e do ensino médio. No entanto, como lembra Flores (2001), existe uma diversidade teórica que permite falar em mais de uma teoria da enunciação. Por isso, o autor defende a existência de uma Linguística da Enunciação, abrigando as diferentes teorias enunciativas. De fato, a enunciação, embora concebida de forma diversa por diferentes autores, entre os quais podemos citar Bally, Jakobson, Benveniste, Bakhtin, Ducrot, Authier-Revuz, parece ter, nessas várias abordagens, as seguintes similaridades: 1) o estruturalismo saussuriano como condição para elaboração de uma reflexão particular; 2) a língua em uso, com a verificação das marcas que trazem as representações do sujeito que enuncia nesse uso e 3) a observação dos fenômenos de diferentes naturezas (morfológica, sintática, etc.) pelo ponto de vista do sentido. Ducrot, o precursor da Teoria da Argumentação na Língua, procura inserir a sua descrição semântica do sentido no quadro estruturalista saussuriano e no campo da Linguística da Enunciação. Nesse sentido, é importante evidenciarmos a concepção de enunciação desse teórico, articulando-a com a sua concepção de argumentação. Em vários momentos, o autor enfatiza não conceber a Teorias do Discurso e Ensino 85 enunciação como um fato empírico, ou seja, como uma atividade exercida por um ser humano que produz certo enunciado influenciado por determinadas condições ou forças internas ou externas. A enunciação sob esse ponto de vista é um processo de produção, entretanto Ducrot (1984/entrevista à revista Punto de vista) salienta que seu trabalho toma a enunciação de outro modo, pois para ele a enunciação é somente o simples acontecimento constituído pela aparição do enunciado, o sentido de um enunciado é o que o enunciado diz de sua enunciação, porém a enunciação vista não como processo de produção e sim como acontecimento (...) me interessa o sentido do enunciado, ou seja, o que se diz no enunciado sobre a enunciação. (...) O que eu quero dizer é que o sentido de um enunciado refere a sua enunciação, apresentando indicações sobre o fato de sua aparição, sobre o valor desta aparição (p. 24). Dessa forma, temos que a enunciação é o acontecimento que dá vida ao produto, concebido como enunciado. O interesse de Ducrot está justamente nas indicações fornecidas pelo enunciado que trazem o acontecimento enunciativo. Nesse sentido, as marcas da enunciação no enunciado, por ele estudadas, têm a especificidade de remeterem à instância em que tais enunciados são produzidos, fazendo aparecer a posição do locutor, enquanto responsável por esse acontecimento. A reflexão contida na Teoria da Argumentação na Língua embora enfatize os fenômenos da língua enquanto sistema abstrato, procura ir além, visto os fenômenos da língua também pertencerem à fala na medida em que o uso passa a lhes dar existência. A dicotomia língua/fala da linguística saussuriana é operacionalizada no quadro teórico de Ducrot através da distinção frase/enunciado. Para dar conta do tratamento do sentido no enunciado, enquanto produto da enunciação, Ducrot serve-se da noção saussuriana de valor, adaptando-a ao seu quadro teórico para abarcar as noções de significação, valor semântico da frase (entidade abstrata) e sentido, valor semântico do enunciado (entidade concreta produzida por um locutor). Com isso, mostra que a própria enunciação está inscrita na língua e é parte constitutiva dos sentidos dos enunciados. Disso resulta que a Teoria da Argumentação da Língua é uma 86 Carmem Luci da Costa Silva, et al. perspectiva que enfatiza o uso, relacionando-o sempre com um sistema preexistente, a língua. Numa perspectiva polifônica, o tratamento da enunciação em Ducrot aparece vinculado às diferentes vozes que se configuram no enunciado. Para o autor, a descrição da enunciação, constitutiva do sentido do enunciado, contém a atribuição da enunciação a vários sujeitos: sujeito falante (autor empírico, que não é levado em conta na descrição do sentido); locutor (aquele que se responsabiliza pela produção do enunciado) e enunciadores (origens dos diferentes pontos de vista e atitudes manifestados pelo locutor). Nessa concepção, o sentido do enunciado não estaria somente nos diferentes pontos de vista, que se mostram através do locutor, mas também na posição do locutor frente aos enunciadores por ele postos em cena na produção do enunciado. Na divisão proposta para o ato enunciativo, é conferida ao sujeito falante, tratado como ser empírico, a origem desse ato. Esse sujeito é dotado de atividade psicofisiológica necessária à produção do enunciado. O segundo elemento constitutivo do ato enunciativo é o locutor, que é o ser do discurso responsável pelo enunciado, a quem o pronome "eu" e outras marcas de primeira pessoa referem-se. De acordo com Ducrot, não há paradoxo entre o sujeito falante e o locutor, pois o primeiro é um elemento da experiência e o segundo, uma ficção discursiva. A partir da figura de locutor, Ducrot assinala uma das formas de polifonia, a qual ocorre no discurso relatado. No exemplo <Pedro diz «João me disse: "eu virei"» >, encontramos duas marcas de primeira pessoa que remetem a seres diferenciados, evidenciando dois locutores distintos, o primeiro relacionado a Pedro e o segundo a João. Por isso, Ducrot prefere caracterizar o discurso relatado direto como consistindo, fundamentalmente, em uma apresentação de uma enunciação dupla: o próprio sentido do enunciado atribuiria à enunciação dois locutores diferentes, eventualmente subordinados. Certamente, do ponto de vista empírico, para Ducrot, a enunciação é ação de um único sujeito falante, mas a imagem que o enunciado dá dela é a de uma troca, de um diálogo, ou ainda, de uma hierarquia de falas. Além de assinalar essa forma de polifonia, quando há mais de um locutor explicitamente marcado, a noção de enunciador (E) permite a Ducrot (1984/1987) Teorias do Discurso e Ensino 87 descrever uma segunda forma de polifonia: aquela que ocorre quando se encontra, em um discurso, a voz de alguém que não tenha as propriedades que se atribuem ao locutor. São os enunciadores, que se expressam através da enunciação, aparecendo somente a manifestação de suas posições, mas não, no sentido material, suas “falas”. Assim, os diferentes pontos de vista, presentes num enunciado ou discurso 1, muitas vezes estranhos ao do locutor, são denominados por Ducrot enunciadores. O conceito desse elemento da enunciação pode ser visto, através das palavras do próprio autor: Chamo “enunciadores” estes seres que são considerados como se expressando através da enunciação, sem que para tanto se lhe atribuam palavras precisas; se eles “falam” é somente no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas palavras (DUCROT, 1984/1987, p.192). A pertinência linguística da noção de enunciador é mostrada através da ironia, da negação, do uso do mas e da pressuposição. Na ironia, o locutor apresenta a enunciação como expressando a posição de enunciador (E) que o locutor (L) considera absurda, pois, mesmo sendo o responsável pela enunciação, L não se identifica com E, origem do ponto de vista expresso na enunciação. A situação a seguir ilustra as diferentes vozes presentes na ironia: “Ao dizer que iria passar no vestibular, Márcia foi desacreditada pelos amigos. Com o listão na mão, constando o seu nome, ela diz para os mesmos amigos: ‘vocês estão vendo, eu não passei!’” (exemplo nosso). Essa enunciação irônica de Márcia, pela qual se responsabiliza como locutor (uso de eu), apresenta um ponto de vista diferente do dela, uma vez que pertence aos amigos que duvidaram dela. Na negação, ocorre a presença de pontos de vista opostos, fato que ocorre na sequência Pedro não é gentil, em que há um locutor que é responsável pela sua enunciação e dois enunciadores: E1, que apresenta o ponto de vista de que “Pedro é gentil” e E2, que apresenta o ponto de vista de que “Pedro não é gentil”. Com o uso de mas, também percebemos pontos de 1 A noção de discurso em Ducrot está relacionada a fato observável e concreto, tal como o enunciado, porém situa este último em um nível elementar de descrição e o primeiro em um nível complexo. 88 Carmem Luci da Costa Silva, et al. vista que levam a conclusões diferentes como no enunciado o tempo está bom, mas estou com dor nos pés, em que o locutor, responsável pelo enunciado, apresenta quatro enunciadores: um enunciador (E1) que apresenta a posição de que “faz bom tempo”, encaminhando à conclusão “vamos caminhar” (E2) e um enunciador (E3), que apresenta a posição “estou com dor nos pés”, encaminhando à conclusão “não vamos caminhar” (E4). Nesse caso, o locutor mostra concordância com os enunciadores E1 e E2 dos quais se distancia por apresentar argumento e conclusão em sentidos opostos (E3 e E4), enunciadores com os quais se identifica. Com a pressuposição, Ducrot (op. cit.) mostra que há um enunciador que é responsável pelo posto e outro pelo pressuposto, como vemos na sequência Pedro parou de fumar, em que E1 coloca que “Pedro não fuma atualmente” e E2 que “Pedro fumava anteriormente”. Esses fenômenos, para o autor, atestam linguisticamente os diferentes pontos de vista do locutor, evidenciando a sua posição no enunciado e seu engajamento na enunciação. Assim, com a Teoria da Polifonia, Ducrot (1984/1987) tem o objetivo de criticar e de substituir a tese da unicidade do sujeito falante. Centra-se no estudo da linguagem cotidiana, aplicada à análise de enunciados, postulando que a polifonia é um princípio constitutivo da linguagem. Segundo o autor, o sentido de um enunciado configura-se não só através dos termos nele contidos, mas igualmente através das "figuras" enunciativas que apresenta, as quais remetem ao contexto da enunciação. Tais "figuras" abrangem a diversidade de representação do sujeito no enunciado, fazendo, por isso, parte de seu sentido. Com o propósito de descrever o sentido dos enunciados, Ducrot, no texto Polifonia y Argumentacion (1988), mostra como a noção de polifonia pode ser usada na Teoria da Argumentação na Língua, relacionada à Teoria dos Topoi. Nessa versão da teoria, locutor e enunciador são apresentados como “funções”, reiterando, novamente, a posição de que o autor efetivo (produtor do enunciado) faz parte das condições externas de sua produção e, por isso, não constitui objeto da descrição semântica. O conceito de locutor mantém-se, visto ser aquele a quem se atribui a responsabilidade pela enunciação no interior do próprio enunciado. Também a noção de enunciadores mantém-se, porque são considerados como a fonte, a origem, dos diferentes pontos de vista. Teorias do Discurso e Ensino 89 Com a Teoria dos Topoi, Anscombre e Ducrot (1995) verificam que, entre um enunciado-argumento e um enunciado-conclusão, há um elemento argumentativo que os articula, imprimindo a tais enunciados uma dada orientação argumentativa. Para os autores, se de um enunciado pode-se concluir outro, é porque está intervindo um terceiro termo, um topos, princípio argumentativo que permite constituir a ligação entre esses dois enunciados. O topos apresenta as seguintes características: a universalidade, a generalidade e a gradualidade. A universalidade liga-se ao fato de ele ser um consenso no seio de uma coletividade; a generalidade relaciona-se ao fato de valer para situações diferenciadas daquela em que é utilizado e a gradualidade vincula-se à relação argumento/conclusão, que é gradual por natureza (um argumento é mais ou menos forte para uma dada conclusão). Devido a essa gradualidade, o topos pode tomar formas de valores argumentativos, que, na Teoria, denominam-se formas tópicas. No exemplo Pedro trabalhou pouco, temos um enunciado-argumento que leva a determinadas conclusões, entre as quais a conclusão de que Pedro não está cansado. Ao produzir Pedro trabalhou pouco, não está cansado, temos a voz de um locutor e as vozes de enunciadores, que expressam seus pontos de vista de que “quem trabalha cansa” (E1) e de “quem não trabalha não cansa” (E2). Nesse caso, os enunciadores evocam um topos de que “o trabalho leva ao cansaço”. O enunciado-argumento (Pedro trabalhou pouco) somente é válido para o enunciado-conclusão (Pedro não está cansado) graças ao princípio de universalidade (topos) compartilhado pelos falantes de que “o trabalho cansa”. Tal relação argumento-conclusão também é entendida porque esse princípio argumentativo aplica-se a outras situações diferentes daquela que está sendo explicitada, evidenciando a generalidade do “topos”. A gradualidade, através das formas tópicas “quanto mais trabalho, mais cansaço” e “quanto menos trabalho, menos cansaço”, garante o encadeamento entre o enunciado-argumento “Pedro trabalhou pouco” e o enunciado-conclusão “Pedro não está cansado”. Com isso, Ducrot (1997/2005) amplia a noção de enunciador, que passa a ser concebido como a fonte de um ponto de vista que consiste em evocar, a propósito de um estado de coisas, um princípio argumentativo geral que serve de apoio ao raciocínio, o topos. 90 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Sendo assim, a análise do sentido argumentativo é feita através de marcas linguísticas, uma vez que, como atesta Ducrot (1997/2005), o linguista, ao descrever palavras, descobre nelas indicações relativas a sua “possível” enunciação. É a partir das palavras escritas ou pronunciadas que a enunciação e seu contexto devem ser caracterizados, já que somente se pode ter uma imagem do evento enunciativo considerando o que foi enunciado. Com isso, ele procura desinformatizar a língua e extinguir a divisão, no sentido do enunciado, entre os aspectos objetivo e subjetivo, porque os enunciados não dão acesso direto à realidade, não a descrevem diretamente, visto que, se nós descrevemos a realidade (aspecto objetivo), fazemos isso por meio de uma atitude (aspecto subjetivo) e de um chamado ao interlocutor (aspecto intersubjetivo). Dessa forma, Ducrot unifica os aspectos subjetivo e intersubjetivo no que chama de “valor argumentativo” das palavras na língua. Essa relação enunciação/argumentação é ressaltada por Flores (2001), por considerar que, na Teoria, o emprego de uma palavra no enunciado torna possível ou impossível a continuidade do discurso, o que mostra um valor argumentativo no nível fundamental da descrição semântica. Por isso, o autor observa que a Semântica Argumentativa é uma teoria voltada para as questões de enunciação porque considera, na representação do sentido do enunciado, tanto a presença de diferentes vozes, quanto a evocação de princípios argumentativos que fornecem indicações de como certo enunciado deve ser interpretado em dada situação. A versão atual da Semântica Argumentativa, Teoria dos Blocos Semânticos, proposta por Carel e Ducrot, opõe-se à Teoria dos Topoi. Para Carel (1995,1997, 1998, 2002), o sentido de uma entidade linguística consiste em evocar um conjunto de discursos ou de modificar o conjunto de discursos associados a outras entidades. Nessa versão da Teoria da Argumentação na Língua, o caráter argumentativo de um encadeamento é definido não pela intervenção de um topos (elemento externo ao enunciado), mas pela interdependência entre seus dois segmentos, os quais formam uma unidade de sentido. Ao dizermos “X é feliz: ele deve ser rico” e “X é feliz: ele tem muitos amigos”, temos dois sentidos para “felicidade” diferenciados que se constituem pela interdependência entre os segmentos, pois, no primeiro enunciado, o sentido Teorias do Discurso e Ensino 91 de “felicidade” liga-se à questão monetária e, no segundo, à questão afetiva. Essa interdependência semântica entre os dois segmentos dos enunciados forma uma unidade, que, na Teoria, é denominada Bloco Semântico. Para sistematizar a sua descrição do sentido e tratar da interdependência entre encadeamentos, a autora considera como discursos doadores de sentido os encadeamentos argumentativos ligados por conectores de dois tipos: portanto (encadeamento normativo) e no entanto (encadeamento transgressivo) 2. Esses aspectos podem ser vistos nos exemplos a seguir: (1) Eu proponho adiar a assinatura do contrato, pois ele apresenta problemas. (2) O contrato apresenta problemas, no entanto eu proponho não adiar a sua assinatura. No exemplo 1, há uma interdependência entre “apresentar problemas” e “adiar assinatura”, garantido pelo encadeamento argumentativo normativo em portanto, que pode ser reagrupado no bloco “problema PORTANTO adiamento”. No exemplo 2, também temos uma interdependência entre “apresentar problemas” e “não adiar assinatura”, evidenciada através do encadeamento argumentativo transgressivo em no entanto, que pode ser reagrupado no bloco “problema NO -ENTANTO não adiamento”. De modo geral, todo bloco semântico tem um aspecto normativo P PORTANTO Q e um aspecto transgressivo P NO ENTANTO não-Q, o que confere a argumentatividade inerente aos enunciados e às palavras da língua, já que esses aspectos podem estar associados a uma palavra devido à argumentação interna da mesma. A partir dessas noções, Ducrot (1995, 2002) mostra que certos tipos de palavras funcionam como um modificador, agindo sobre a força argumentativa de outra palavra, seja atenuando (desrealizante) seja fortalecendo (realizante) essa força. Assim, o modificador não introduz nenhum termo novo nos aspectos que constituem a argumentação interna de determinado termo, mas procura reorganizar o sintagma com uma nova combinação. Isso pode ser visto no 2 Os conectores donc (portanto) e pourtant (no entanto) são entidades teóricas, que indicam as relações argumentativas básicas de um encadeamento. O primeiro faz parte da norma e o segundo evidencia uma transgressão da norma. 92 Carmem Luci da Costa Silva, et al. exemplo “problema fácil”, em que “problema” (X) tem sua argumentação interna (AI) atenuada (aspecto normativo: “esforço PORTANTO resolução”), enquanto “problema difícil” tem sua argumentação interna reforçada (aspecto transgressivo: “esforço NO ENTANTO não resolução”). Com os modificadores, ocorre uma reorientação argumentativa estabelecida na relação pela interdependência de sentido entre os segmentos. Nessa proposta teórica, o sentido do encadeamento somente pode ser constituído pelos dois segmentos que o compõem, evidenciando uma interdependência semântica entre argumento e conclusão de forma indecomponível, o que constitui o bloco semântico. Conforme Azevedo (2003, p. 102), com as noções de bloco semântico e encadeamento, Ducrot e Carel trazem a inter-relação língua (bloco semântico) e fala (encadeamento). Essa interrelação entre o nível abstrato e o concreto parece, novamente, circunscrever a interdependência entre o uso e o sistema abstrato, a língua. A partir dessas considerações, podemos verificar que Ducrot parece minimizar, na Teoria dos Blocos Semânticos, os aspectos enunciativos, ligados à Linguística da Enunciação, e realçar mais as relações argumentativas internas aos enunciados, vinculadas ao quadro saussuriano estruturalista. Embora minimizados, acreditamos que os aspectos enunciativos da versão atual da teoria estão nas indicações argumentativas inscritas no encadeamento, que marcam as posições do locutor e possibilitam a continuidade de sentidos. Se o discurso é doador de sentido argumentativo, esse sentido é constituído através da escolha de um segmento em detrimento de outro para orientar a argumentação. Assim, durante a sua enunciação, o locutor dá indicações sobre o caminho que escolheu e o alocutário tenta reconstruir esse itinerário a partir das indicações fornecidas nos enunciados. Isso pode ser exemplificado com a noção de modificador, o qual reorganiza o encadeamento com uma nova combinação argumentativa. Nesse sentido, vemos, em todas as reflexões teóricas produzidas no interior do quadro da Semântica Argumentativa, um tratamento não somente daquilo que o locutor diz, mas de como ele o diz. Pensamos que a reflexão produzida sobre esse como nas atividades relacionadas aos eixos do uso e da reflexão, conforme proposta dos PCNs, possibilitará ao aluno desenvolver a sua competência interativa, textual e gramatical, tanto para a leitura quanto para a Teorias do Discurso e Ensino 93 produção de textos. Tais questões serão discutidas no item seguinte, através da busca de aplicação de uma abordagem argumentativa ao ensino de língua materna. 4 Argumentação e ensino de língua materna Com a contextualização dos PCNs, percebemos a defesa de algumas teses acerca do ensino de língua materna ali contidas, a saber: o tratamento da língua em uso, com ênfase em atividades de leitura e de produção de texto, e a abordagem dos mecanismos gramaticais como meio para o desenvolvimento das competências interativa e textual. Nesse sentido, é dado relevo à questão gramatical como estando a serviço das estratégias argumentativas do autor na leitura e na escrita. Com isso, o nível semântico da língua, através do trabalho com os efeitos de sentido dos usos lexicais e da organização sintática produzidos na interlocução, passa a ser bastante tematizado. É justamente por isso que consideramos relevante a abordagem da Semântica Argumentativa no tratamento da língua em uso e em sua reflexão para o desenvolvimento das competências interativa, textual e gramatical. Na Teoria da Argumentação na Língua, as relações argumentativas do enunciado são o foco de estudo, porque o discurso não é composto de informação, mas de argumentação. Como exemplo podemos citar o segmento “este livro é interessante”, que não traz uma informação acerca do livro, mas uma argumentação em favor dele. Ligada a isso, temos a defesa, na teoria, de que o discurso é doador de sentido e que, portanto, não é a situação de enunciação que lhe garante significação, já que esta é justamente construída pelo enunciado. Assim, é o discurso que constrói o contexto, e não o contrário, o que possibilita interpretar a palavra pelas relações que ela mantém no discurso e pelos pontos de vista ali expressos. Como consequência das questões acima, temos que a representação da enunciação (situação e sujeitos) está integrada no sentido do enunciado, já que enunciação é acontecimento. Esse acontecimento traz um dizer que, por sua vez, produz sentidos. Com isso, vemos que ocorre, na Teoria, a dissolução da 94 Carmem Luci da Costa Silva, et al. dicotomia língua (abstrato)/fala (concreto) e a defesa da relação frase (abstrato)/enunciação (acontecimento)/enunciado (concreto). Os pressupostos da Teoria da Argumentação acima apontados parecemnos ser de grande valia para a construção de uma metodologia produtiva de ensino de língua materna, principalmente se centrada nos seguintes pontos: no tratamento da língua em uso como acontecimento particular, mas sempre em relação com o sistema linguístico, que é coletivo, e na concepção de que o discurso constrói o contexto, e não o contrário, já que “o mundo aparece, no enunciado, por meio da exploração discursiva do qual é objeto” (Ducrot, 1997/2005, p. 20). Esse último ponto a nosso ver é de suma importância no ensino da leitura, em que muitas vezes se toma o texto como pretexto para um debate que se inicia e termina com opiniões preexistentes e a manifestação escrita fornece apenas o tema para a discussão sem que o aluno explore o funcionamento argumentativo contido nas escolhas do autor. No entanto, como defende Ducrot (1999/2005, pp. 14, 15), “o que preexiste à fala é uma situação sem limites e sem estrutura: a fala traz com ela os limites e os pontos de vista que tornam essa situação utilizável para a interpretação”. A noção de polifonia, desenvolvida no interior da Teoria da Argumentação, também tem uma valor operacional importante para o desenvolvimento das competências textual e gramatical do aluno, já que, para a verificação das diferentes vozes contidas no texto, torna-se necessário observar as marcas gramaticais que autorizam a existência de diálogo no discurso. Nesse sentido, torna-se relevante, no tratamento textual, o desenvolvimento dessa concepção de que, em um mesmo discurso, não temos somente a “voz” de seu autor, enquanto locutor responsável pelo discurso, mas outras “vozes” que a ela se mesclam, apontando pontos de vista com os quais o locutor se identifica ou não. Por isso, trabalhar com as pistas contidas nos enunciados para recuperar não ditos, ou dizeres implícitos, que apresentam sentidos no texto, torna-se importante para a formação de leitores críticos. Ilustraremos essa concepção com a descrição do funcionamento polifônico nos discursos abaixo: Teorias do Discurso e Ensino 95 Discurso 1: Na música Pra que mentir, de Vadico e Noel Rosa, temos o seguinte dizer: “Tu ainda não tens a malícia de toda mulher”. Com as marcas gramaticais adverbiais “ainda” e “não”, o locutor apresenta, mescladas a sua voz, outras vozes, que, no interior da teoria, são chamadas enunciadores. Uma das posições é autorizada pelo uso de “não”, através do qual o locutor nega um ponto de vista afirmativo anterior, que está no ponto de vista de que “a interlocutora (tu) considera ter a malícia das mulheres”. Além disso, o locutor, através do uso de “ainda”, insere outra voz que defende a posição de que “a interlocutora (tu) um dia terá a malícia das mulheres”. Junto a essas vozes, implicitamente constituídas pelo uso de marcadores gramaticais, temos a posição do locutor explicitamente evidenciada em seu dizer através da defesa de que a “interlocutora (tu) não tem ainda a malícia das outras mulheres”. A análise do enunciado da música mostra a importância de se verificar o funcionamento gramatical pelo viés do sentido e como vinculado à argumentação do autor. Esse tratamento polifônico na interpretação de textos substitui a leitura horizontal (linear) por uma vertical, visto que a ideia subjacente está no fato de que o sentido do discurso é constituído por outros discursos, que lhe são transversais, cujos supostos responsáveis, tratados na teoria como “enunciadores”, podem ser diferentes daquele efetivamente responsável pelo dizer, o “locutor”. Essa superposição de vozes, muitas vezes em confronto (caso da negação), evidencia o diálogo e a argumentação inerente ao discurso. Discurso 2: Em um comercial da Folha de São Paulo, encontramos o seguinte dizer: “A Folha não se atrela a nenhum grupo. Por isso, a notícia sempre chega ao leitor como deve chegar: limpa”. Nesse anúncio da Folha de São Paulo, encontramos diferentes vozes mescladas à do locutor, aquele que se responsabiliza pela unidade do discurso. Novamente, temos a partícula negativa “não”, enunciando um ponto de vista afirmativo de que “a Folha, enquanto jornal, vincula-se a grupos” (enunciador 1). Explicitamente, temos a defesa do locutor, através do posto de que “a Folha não se atrela a nenhum grupo” (enunciador 2). Esses pontos de vista são encadeados 96 Carmem Luci da Costa Silva, et al. através do articulador “por isso”, que introduz novas vozes, uma relacionada ao enunciador 1, que defende “A Folha, como jornal, não traz a notícia transparente/verdadeira” (enunciador 3) e outra que se articula com a do enunciador 2, assumido pelo locutor, de que “A Folha traz a notícia transparente/verdadeira” (enunciador 4). Esses sentidos, instaurados nesse discurso, podem ser lidos devido às pistas fornecidas em sua materialidade, tais como a partícula negativa “não” e a expressão “por isso”. Também é importante salientar, nesse discurso, uma tese defendida pela Teoria da Argumentação da Língua, segundo a qual “o discurso é doador de sentido”. Essa tese pode ser vista pelo sentido da palavra “limpa”, que está ligada a discurso “transparente e verdadeiro” e não vinculada à noção de “asseado, lavado, etc.” O que autoriza o sentido de “limpa” como “transparente e verdadeira” é justamente a relação posta, no enunciado, entre os termos “Folha, notícia e limpa”, que, encadeados argumentativamente, trazem o ponto de vista do locutor e conduzem o interlocutor à conclusão: “A Folha é um jornal comprometido com a verdade da notícia”. A reflexão da produção de sentido dos dois discursos, através da abordagem polifônica, evidencia como esse fenômeno linguístico apresenta-se no uso da língua. Por fazer parte desse uso, consideramos que, se explorado no trabalho com a leitura, possibilita o desenvolvimento da competência discursiva do aluno, acarretando a formação de leitores críticos e de produtores de texto comprometidos com a escolha de formas como um meio para produzir sentido argumentativo no dizer, oral ou escrito. A seguir, a partir de dois episódios representativos de diferentes momentos de aquisição da linguagem 3, mostraremos a argumentação presente no dizer da criança, a fim de refletirmos acerca da importância de se considerar no ensino a relação do aluno com a língua e com o outro, pois acreditamos ser, nessa relação, que ele se constitui como um sujeito que argumenta. O primeiro episódio retoma a polifonia, associando-a à questão dos topoi, fenômeno também 3 Essas análises fizeram parte da pesquisa desenvolvida junto à UFRGS, intitulada Um estudo polifônico da linguagem da criança” e Um estudo polifônico da linguagem da criança: fase II . Tal pesquisa contou com o apoio da FAPERGS, através da concessão de bolsa de Iniciação Científica à aluna Maira Azevedo e Souza, que nos auxiliou nas análises aqui exemplificadas. Teorias do Discurso e Ensino 97 explorado pelo quadro teórico da semântica argumentativa, como evidenciado anteriormente. O segundo episódio apresenta a argumentação da criança através do uso de modificadores (adjetivos e advérbios), que, na última versão da Teoria da Argumentação na Língua cunhada de Teoria dos Blocos Semânticos, têm a função de atenuar ou reforçar a argumentação contida nas palavras plenas (verbos e substantivos). Episódio 1: polifonia e topoi A criança (3;2.13) relata à entrevistadora, em sua escola, uma experiência por ela vivenciada. *entrevistadora: *ato: *entrevistadora: *entrevistadora: *entrevistadora: *criança: *entrevistadora: *entrevistadora: *criança: *entrevistadora: *entrevistadora: *criança: *entrevistadora: *criança: *entrevistadora: *ato: *entrevistadora: *criança: *entrevistadora: *criança: *entrevistadora: *criança: *entrevistadora: *criança: *entrevistadora: *ato: *entrevistadora: *criança: *entrevistadora: *entrevistadora: *ato: 98 tu nunca caiu? a criança responde afirmativamente com a cabeça. já caiu? e aí tu chorou? como é que foi esse tombo que tu caiu, conta prá mim. eu caí na escada que eu fui na minha avó. hum! e aí, como é que aconteceu? aconteceu, eu aconteci, chorei, daí eu chorei e daí eu fui pulando e daí eu me machuquei. hum, coitadinha. e aí depois quem é que foi lá te socorrer, pegar tu? o Henrique. o Henrique? uh hum. ah, ele mora lá perto da tua avó? a criança responde afirmativamente com a cabeça. hum. não, ele mora com a mãe dele. ah, e aí eles deram um remedinho prá ti? não, foi a minha mãe. a tua mãe deu remedinho? uh hum. e aí tu parou... deu aspirina. ah, deu aspirina (risos) e aí tu parou de chorar? a criança responde afirmativamente com a cabeça. é? eu não chorei eu só estava com dor de cabeça. ah, aí te deu dor de cabeça. tu caiu deu dor de cabeça? a criança responde afirmativamente com a cabeça. Carmem Luci da Costa Silva, et al. Nas sequências destacadas da criança, percebemos que o locutor apresenta os pontos de vista de que “a queda faz com que se chore”(E1) e de que “sem queda não se chora” (E2), evocando o topos (princípio argumentativo do consenso) de que “o choro requer um motivo” que, no caso, é a queda. Tal topos mobiliza as formas tópicas “quanto mais motivo→ mais choro” (FT1) e “quanto menos motivo → menos choro”(FT2). Tal princípio argumentativo é reiterado pelo locutor quando, diante da pergunta do interlocutor ( é? ), este muda a orientação argumentativa e coloca “eu não chorei eu só estava com dor de cabeça”, ou seja, dor de cabeça não é motivo para se chorar, fato reforçado pelo uso do operador só. Com isso, o locutor mobiliza os pontos de vista de que “se chora por determinados motivos”(E3) e de que “dor de cabeça não é motivo para se chorar”(E4), levando argumentativamente, através da evocação do topos já citado, o interlocutor a concluir que ela não é uma criança que chora por um simples motivo, como uma dor de cabeça. Episódio 2: modificadores e blocos semânticos Situação: a criança (4;9.5) relata, em sua escola, à entrevistadora uma narrativa ficcional. *criança: *criança: *criança: *entrevistadora: * ato: *entrevistador: era uma vez um coelhinho ele era muito bom ele andava dando os presente e os ovo daí o gurizinho disse: ô coelhinho. e daí o coelhinho veio (pausa) a coelhinha tava na casa. hum terminou a história? responde positivamente com a cabeça. muito bem. Na narrativa, selecionamos o encadeamento argumentativo destacado e, no primeiro segmento, já observamos a exploração pelo locutor do morfema diminutivo –inho que atenua a argumentação interna de “coelho”, que tem o aspecto normativo “animal PORTANTO sem generosidade”. Além do diminutivo, utiliza a palavra “bom”, reforçando essa atenuação, em que “coelhinho bom” passa a ter em sua argumentação interna (AI) o aspecto transgressivo “animal NO ENTANTO com generosidade”. Esse aspecto transgressivo dado pela Teorias do Discurso e Ensino 99 combinação do modificador “bom” à palavra plena “coelho” confere um potencial argumentativo ao primeiro segmento “coelhinho bom” do encadeamento evidenciado, o que justifica a consequência “dar presentes”. As análises empreendidas com dados de crianças parecem mostrar algumas questões importantes ligadas à Teoria da Argumentação na Língua. Uma delas diz respeito ao fato de que, independentemente da faixa etária, valemo-nos de princípios argumentativos (topoi) para mostrar diferentes pontos de vista (enunciadores), orientando o interlocutor para determinadas conclusões. O fato de a criança, desde uma fase prematura, já evidenciar argumentação em seu discurso mostra que argumentar é um fenômeno inerente ao uso da língua, o que justifica a necessidade de o ensino de língua materna, pautado no uso da língua, trabalhar os aspectos argumentativos dos elementos linguísticos, já que um dos pontos enfatizados pelos PCNs relaciona-se justamente à reflexão das escolhas feitas pelo locutor em suas estratégias argumentativas. Com relação aos modificadores, as análises empreendidas a partir da Teoria da Argumentação na Língua também evidenciaram que a criança conhece a argumentação inerente às palavras da língua, o que lhe possibilita relacionar tais palavras, muitas vezes, reorientando argumentativamente o seu dizer. Ainda, observamos que, embora a Teoria da Argumentação leve em conta como modificador apenas palavras instrumentais (adjetivos e advérbios), o uso de diminutivos parece funcionar como um modificador. Isso se justifica pela reorganização ou pela reorientação provocada por estes na argumentação interna das palavras plenas (substantivos e verbos), quando combinadas às raízes das mesmas. A partir das considerações sobre os princípios argumentativos subjacentes às vozes da criança e sobre o uso que fazem dos modificadores, podemos relacionar o desenvolvimento da linguagem argumentativa da criança no período pré-escolar e sua relação com o ensino de língua materna em fases posteriores. Considerando a polifonia aliada aos princípios argumentativos, acreditamos ser interessante, em termos de ensino, os professores explorarem tais princípios subjacentes ao discurso dos alunos, a fim de proporem atividades que os levem em conta, conferindo uma maior contextualização ao trabalho e, com isso, uma maior possibilidade de eles argumentarem tanto na oralidade quanto na escrita. Com relação aos modificadores, os professores podem explorar o funcionamento 100 Carmem Luci da Costa Silva, et al. lexical e sintático das palavras no discurso, a fim de trabalharem as estratégias argumentativas do autor. Nesse caso, não importa apenas a metalinguagem, ou seja, a classificação das palavras como adjetivo, advérbio, etc., mas o entendimento do funcionamento argumentativo de tais elementos gramaticais no discurso, constituído pela relação entre encadeamentos. Os trabalhos de Ducrot e colaboradores situam-se no campo da Linguística da Enunciação. Nessa perspectiva, os aspectos subjetivo e intersubjetivo da linguagem (questões enunciativas) relacionam-se ao valor argumentativo dos enunciados. Desse modo, o emprego de uma palavra torna possíveis ou impossíveis os encadeamentos argumentativos do discurso, ou seja, sua continuidade. Por isso, consideramos importante que os professores atentem para o que o aluno diz, dando continuidade a seus encadeamentos argumentativos, uma vez que, como mostramos, tanto o uso das vozes quanto o dos modificadores ocorrem na relação eu-tu da situação de enunciação (Benveniste, 1974/1989), em que os sujeitos vão constituindo justamente a sua argumentação a partir dessa relação. 5 Considerações finais A partir dos pressupostos teórico-metodológicos defendidos pelos PCNs e da retomada de algumas categorias conceituais da Teoria da Argumentação na Língua (principalmente polifonia e modificadores), procuramos, neste texto, através da análise do funcionamento argumentativo da língua em uso, mostrar a possibilidade de aplicação das noções da Semântica Argumentativa ao ensino de língua materna. Os PCNs postulam a necessidade de um ensino de Língua Portuguesa baseado no uso da língua e na reflexão sobre o funcionamento desse uso. A Teoria da Argumentação na Língua, ao procurar descrever o sentido argumentativo presente nos enunciados/encadeamentos/discursos, enquanto entidades concretas, preconiza o uso da língua como lugar de argumentação do locutor. A busca de aplicabilidade das noções da Semântica Argumentativa acerca da descrição do funcionamento da língua no discurso ao ensino de língua materna parece-nos constituir-se num dos suportes teóricos de que o professor Teorias do Discurso e Ensino 101 pode se valer para operacionalizar uma metodologia de ensino centrada na língua em uso, tese dos PCNs, principalmente através da verificação da argumentatividade inerente a esse uso. REFERÊNCIAS ANSCONBRE, Jean Claude (org.). Théorie des Topoi. Paris: Éditions Kimé, 1995. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998. ______. 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Princípios para a definição do objeto da lingüística da enunciação. Letras de Hoje. Porto Alegre: EDIPUCRS. v. 36, nº 4, p. 7-67, 2001. Teorias do Discurso e Ensino 103 PARA RESUMIR TEXTOS: UMA PROPOSTA DE BASE SEMÂNTICOARGUMENTATIVA Telisa Furlanetto Graeff* [email protected] 1 Introdução Cada vez mais temos necessidade de ler e de produzir resumos. É esse gênero textual que permite às pessoas acesso mais rápido ao que há de novo na sua área de atuação, para que possam decidir sobre o interesse ou não de ler o original. Referimo-nos aqui ao resumo parafrástico. O mesmo que se faz, por exemplo, quando se ficha uma obra de consulta para estudo, quando se elabora a revisão de literatura de um trabalho científico ou quando se prepara uma apresentação de trabalho para seminários, congressos, entre outros. Devido a esse seu caráter pragmático, a importância de se saber fazer resumos tem sido reconhecida por alunos e professores. É sabido que a elaboração de um resumo parafrástico deve observar três princípios: (1) o princípio de completude, o que significa que a(s) unidade(s) semântica(s) básica(s) deve(m) ser preservada(s); (2) o princípio de fidelidade, o que significa que se deve parafrasear o original; (3) o princípio de economia, o que significa que se devem evitar as repetições de unidades semânticas básicas. Relativamente aos princípios de completude e de fidelidade, Graeff (2001) verificou, em pesquisa realizada com 20 (vinte) leitores competentes, que realizaram a tarefa de resumir dois textos expositivo-argumentativos, sem instrução especial, que esses dois princípios foram observados pela quase totalidade dos resumidores. Observou, inclusive, que eles não só selecionaram as ideias como também foram capazes de hierarquizá-las, o que, conforme os * Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, Doutora em Linguística Aplicada pela PUCRS. estudiosos do assunto, constitui o grande problema revelado pela análise de resumos (Flottum, 1992). Já o princípio de economia não foi observado pela maioria dos resumidores. A hipótese é que, se lhes fosse apresentado o quadrado argumentativo de cada um dos blocos semânticos, que se sucedem ao longo do texto, eles conseguiriam perceber, com clareza, as repetições de seu próprio resumo. Uma hipótese como essa tem base na questão de se é possível ensinar a resumir textos expositivo-argumentativos, por meio de uma metodologia fundamentada na Teoria dos Blocos Semânticos e na Teoria da Polifonia, conforme sugere Graeff na obra antes referida. Este texto tem o objetivo de apresentar uma pesquisa feita com o intuito de construir uma metodologia de elaboração de resumos. Seguem uma reflexão sobre importância do tema da pesquisa e seus objetivos, o quadro teórico em que se insere, a metodologia utilizada, a apresentação e análise dos resultados. 2 Atividade de resumo e ensino Manter-se atualizado é uma exigência para um profissional que pretenda ser competente e cidadão de seu país e do mundo, sintonizado, portanto, com as questões locais, nacionais e internacionais que afetam a sua esfera de atuação profissional e a vida humana. Essa não é uma tarefa fácil, principalmente pelo volume de informações, postos à disposição com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massas e, mais recentemente, pelas novas tecnologias de informação e comunicação. Nesse contexto, ganha espaço o resumo que, de um lado, difunde o conhecimento produzido mais rapidamente e, de outro, permite dominar a enorme quantidade de informações com que nos defrontamos diariamente. Todos lemos resumos. Eles se apresentam a nós desde a forma de resumo de novelas de TV, de filmes até a forma de resumos de pesquisas, servindo aos nossos mais variados interesses e necessidades de interação sóciocomunicativa. Teorias do Discurso e Ensino 105 Todos produzimos resumos, desde cedo, na escola. E essa atividade é realizada sem que se tenham recebido instruções formais de como proceder. Opera-se, então, com a intuição de falantes nativos. É, também, fundamentalmente nessa intuição que se baseiam as parcas instruções sobre como fazer um resumo, produzidas entre nós. De fato, não há tradição na escola brasileira de se trabalhar o resumo. A esse respeito, cumpre referir a obra Redação Técnica (Silva et al., 1975) que pretendeu iniciar essa tradição, junto aos alunos iniciantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nesse livro, é dedicado um capítulo inteiro ao tema Sínteses, em que é tratada a habilidade de sintetizar, a extensão do resumo, os passos essenciais para se compor um resumo e em que se transcreve a NB-88 Sinopses e Resumos. A atitude foi de vanguarda, mas a compreensão da atividade de resumir é essencialmente intuitiva, como se pode observar no trecho: Para resumir um trabalho é necessário compreender sua organização. Parte-se de uma visão global do texto ou livro, através de uma leitura de apreensão do todo. O objetivo é compreender o texto em seu conjunto e em cada uma de suas partes. Para isso, deve-se determinar o enfoque que o autor dá ao assunto: filosófico ou científico, administrativo ou econômico, qualitativo ou quantitativo. Desta forma podem-se estabelecer, então, os pontos essenciais do tema e suas qualificações e enunciá-los do modo mais conciso possível.(p.109) Ao se ler sobre os passos essenciais para compor um resumo, fica-se sabendo que o primeiro passo é encontrar a ideia-tópico do parágrafo; o segundo, eliminar tudo o que não seja essencial à compreensão da ideia-tópico; o terceiro, escrever o resumo, utilizando as palavras e expressões mais econômicas, e que o passo final é comparar o resumo com o original, para testar a sua precisão e fazer quaisquer revisões. (Silva et al., 1975, p.110-11). Diferentemente do que ocorre no Brasil, o resumo ocupa um lugar de destaque no ensino nos Estados Unidos e na Europa, especialmente na França. Conforme Charolles (1991), o resumo de textos foi introduzido, em 1969, na prova de francês do baccalauréat, tendo sido anexado, também, a outros exames ou concursos do ensino francês. 106 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Na medida em que se reconhece a importância pragmática desse gênero textual, justifica-se o interesse em construir e testar uma metodologia de base científica, que dê conta dessa atividade de síntese. Nesse sentido, foram objetivos da pesquisa: (1) verificar se é possível ensinar a selecionar e a hierarquizar unidades semânticas básicas em textos expositivo-argumentativos; (2) verificar se o conhecimento das unidades semânticas básicas de um texto favorece a elaboração de resumo parafrástico, isento de repetições; (3) colocar à disposição dos professores subsídios teórico-metodológicos que auxiliem no trabalho de ensinar a resumir textos. 3 Alguns estudos sobre resumo A leitura e a produção de resumos vem ocupando um lugar cada vez mais importante em nossa sociedade, sendo necessária a sua prática na maioria das atividades profissionais. Em vista disso, o estudo de sua natureza e funcionamento deveria ocupar lugar especial entre os estudiosos da linguagem em uso. Entretanto, há poucos trabalhos sobre esse tipo de prática discursiva entre nós. A produção de conhecimento principal sobre esse gênero textual vem da Europa, especialmente da França. Grize (1992, p.3-10) examina a atividade de resumir e constata a existência de dois planos distintos que se apresentam ao resumidor: um, no nível do texto, caso em que o resumo sintetiza o texto; o outro plano está sobre o texto, caso em que o resumo é feito a propósito do texto, tratando do que o texto apresenta e do modo como procede. Nos dois casos, segundo o referido autor, trata-se de uma atividade de comunicação que, por natureza, necessita de três componentes: o emissor, o destinatário e a situação, o que conduz a interrogar a respeito do status de cada participante. É diferente, por exemplo, resumir um texto para quem já o leu e para quem não o leu ainda. Em síntese, quem resume deve ter uma ideia de a quem se dirige o resumo, do por que resumir e do para fazer o quê. As várias respostas a essas questões levaram Grize a uma tentativa de caracterização de quatro tipos de textos que comumente são considerados resumos, embora ele já alerte para o fato de que o primeiro e o último constituam Teorias do Discurso e Ensino 107 quase casos-limite: (1) resumo exemplificação; (2) resumo substituição; (3) resumo síntese; (4) resumo descrição. Enquanto o resumo exemplificação é feito de excertos retirados do original, o resumo substituição constitui um novo modo de apresentar o que o texto diz e o modo como diz. Em geral, ele comporta um tipo de julgamento do resumidor. Conforme Grize, o resumo síntese é o mais frequente. Ele parafraseia as ideias essenciais, mantendo as palavras-chave. Às vezes o próprio título pode constituir sozinho o resumo do texto. No resumo descrição, são escolhidos os aspectos que serão retidos, como os fatos, no caso de índice analítico; as ideias, no caso de manuais de filosofia, etc. O resumo de que nos ocupamos neste trabalho é o resumo síntese. Constitui uma paráfrase resumitiva do texto original. A respeito de como proceder para resumir um texto, é importante mencionar duas perspectivas teóricas: uma, linguística de base cognitiva, de que são representantes Van Dijk e seus seguidores como Vigner; outra, linguística de base sintática, representada por Charolles. Van Dijk (1980, p.46-49) detalha regras de resumo de texto, chamadas de macro-regras, que, na verdade, são regras gerais que subjazem à compreensão de qualquer texto. São elas: (1) seleção/apagamento fraco, pela qual se apagam todas as proposições do texto-base que não sejam relevantes para a interpretação de outras proposições do discurso; (2) seleção/apagamento forte, pela qual se apagam proposições localmente relevantes; (3) generalização, pela qual se constrói uma proposição, conceptualmente mais geral, pela abstração dos detalhes semânticos das respectivas sentenças; (4) construção, pela qual se substitui uma sequência de proposições por uma proposição microproposições que denote denotam um fato global, componentes, do qual condições as ou consequências habituais; (5) zero, pela qual se reproduz no macronível uma mesma proposição que ocorre no micronível. 108 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Essas macro-regras estabelecem relações entre a macroestrutura do texto e as estruturas semânticas das frases e de sequências menores do conjunto do texto (microestruturas). Conforme Van Dijk, essas macro-regras podem ser aplicadas em diversos níveis, de sorte que pode haver várias macroproposições hierarquicamente ordenadas. Entende-se, assim, que há diferentes níveis possíveis de macroestrutura num texto, uma vez que cada nível superior, isto é, mais global de proposições pode representar uma macroestrutura, em relação a um nível inferior. Nesse caso, a macroestrutura de um texto, seria aquela mais geral e global deste texto. As macro-regras, na definição do autor em foco (1983, p.58), são “uma reconstrução daquela parte de nossa capacidade linguística com a qual unimos significados, convertendo-os em totalidades significativas maiores”. Elas são utilizadas para estabelecer uma ordem entre as proposições, o que implica a redução da informação. No plano cognitivo, as macro-regras são consideradas operações para redução de informação semântica, utilizadas na compreensão de textos. Vigner (1991, p.33-54) aborda a questão do resumo de textos narrativos e descritivos pelo viés da dimensão cognitiva, associada às modificações lexicais e sintáticas. Assumindo que o resumo pressupõe capacidades de abstrair e de generalizar, postula três operações características dessas capacidades: globalização, por meio da qual se eliminam, se substituem e se integram informações; de generalização e de conceptualização. Ele mesmo admite que essas operações têm “analogias incontestáveis” com as operações de compreensão, explicitadas por Van Dijk e Kintsch (1975). Exemplifica a operação de globalização, por meio de um texto narrativo cuja redução se baseia no apagamento de certo número de informações subordinadas, relativamente a um modelo cognitivo global do tipo script. Nessa passagem da experiência singular ao esquema, o apagamento e a integração das informações fundamentam-se no tratamento cognitivo do texto, que determina “o valor estrutural da informação”, de acordo com a sua posição no conteúdo global do texto. Para exemplificar a operação de generalização, Vigner seleciona duas descrições (retratos) sobre as quais aplica o processo de generalização, associado a um princípio de economia em matéria de Teorias do Discurso e Ensino 109 reformulação. Desse modo, os retratos perdem suas peculiaridades, tornando-se um único retrato genérico. Para exemplificar a operação de conceptualização, utiliza um texto composto de duas partes: descrição da vida de um camponês e comentário. A primeira situa-se no universo da experiência, da constatação; a segunda, no universo do conhecimento, da explicação. A passagem da constatação empírica para a conceptualização ocorre pela redução dos pontos de vista, sob os quais é apresentado o objeto ou o acontecimento, a um único sentido de um dado campo teórico. Desse modo, reduz-se a informação semântica e aumenta-se a densidade do texto. O trabalho de Vigner cresce em importância para o ensino, quando o autor examina as implicações da retomada do conteúdo semântico reduzido e de sua reformulação linguística, do ponto de vista da seleção lexical e das alterações sintáticas dos enunciados. Na transformação de globalização (das partes para o todo), o léxico se organiza segundo uma relação de tipo partitivo, isto é, as partes são reunidas sob uma etiqueta lexical única. Na tarefa de generalização (do específico ao genérico), a relação posta em jogo é do tipo hierárquico, isto é, da hiponímia para a hiperonímia. No processo de conceptualização (do empírico para o genérico), o evento ou o objeto descrito é, de certo modo, desindividualizado, posto fora das circunstâncias, sendo ressaltada a estrutura do acontecimento ou da organização. O aspecto de alterações sintáticas é brevemente tratado por Vigner. Contudo, enfatiza dois pontos que podem dar lugar a aplicações pedagógicas: os artigos (o uso de definido/indefinido) e as modificações sintáticas mais perceptíveis na passagem dos enunciados descritivos para os enunciados teóricos (transformações de períodos simples em compostos por subordinação e posterior nominalização dos períodos compostos). Enfatizando que os pré-requisitos cognitivos não são idênticos para todos os tipos de textos, esse autor menciona que os textos expositivo-argumentativos parecem escapar da utilização das operações que descreveu. Imagina que a redução desse tipo de texto possa estar ligada às operações de globalização, isto é, à integração num esquema argumentativo global de todos os elementos subordinados. Charolles (1991, p.7-27) situa-se num quadro teórico totalmente diferente dos relacionados à perspectiva cognitivista. As macro-regras não têm lugar em 110 Carmem Luci da Costa Silva, et al. sua perspectiva, pelo fato de elas se basearem nos conhecimentos enciclopédicos dos resumidores, não sendo, por isso, nem predizíveis nem controláveis, pelo menos linguisticamente. Sua abordagem da atividade de resumo considera essencialmente marcas linguísticas de superfície (conectores, expressões que situam no tempo e no espaço, verbos introdutores de mundos, marcas de segmentação e anáforas), capazes de guiar o resumidor na construção de uma representação da organização do texto-fonte e na hierarquização da informação que ele contém. Para mostrar o funcionamento de sua proposta, Charolles examina o primeiro parágrafo de um texto, proposto como prova de resumo. Nesse caso, os elementos que guiam a hierarquização das informações são os conectores, que podem estar implícitos ou explícitos. Considerando que o conector indica, convencionalmente, qual função semântico-pragmática liga sua enunciação, na intenção do autor, aos segmentos que o precedem, Charolles levanta a hipótese de que o processo de compreensão inclui a recuperação mental dos conectores implícitos. Essa tarefa de restituição relacional e intencional constitui o processo de compreensão, que supõe, ainda, duas outras operações: a parentetização e a hierarquização. Na tarefa de parentetização, a interpretação conduz a reunir os conjuntos de enunciados aos quais se atribui a mesma função enunciativa; na hierarquização, é estabelecida uma hierarquia de intenções em que as operações de consecução (donc=portanto), de correção (mais=mas) e de oposição (pourtant=mesmo assim) são diretrizes, devendo, por isso, ser preservadas no resumo. Considerando que os princípios de contração são recursivos, Charolles demonstra que uma versão moderadamente condensada do texto-fonte poderia ser objeto de uma nova aplicação da regra de eliminação de enunciados subordinados, até que se chegasse a constituir um tipo de título, estado último do resumo. É interessante observar que, após todas essas operações – explicitação de conetivos, parentetização, hierarquização -, o texto-fonte fica reduzido a enunciados que expressam as unidades semânticas básicas, isto é, fica reduzido a enunciados que expressam os encadeamentos argumentativos em donc (portanto) e os encadeamentos argumentativos em pourtant (mesmo assim). Conclusão a que chegou Graeff (2001), ao estudar a atividade de resumir de uma Teorias do Discurso e Ensino 111 perspectiva semântico-linguística, nesse caso, aplicando a proposta de semântica argumentativa, elaborada inicialmente por Oswald Ducrot, em cooperação com Jean-Claude Anscombre (1983). Essa teoria, que parte do pressuposto de que a língua é essencialmente argumentativa, foi ampliada pela Teoria da Polifonia e pela Teoria dos Topoi e, mais recentemente, modificada pela Teoria dos Blocos Semânticos (Carel,1995). Aplicando ao estudo do resumo princípios e conceitos da Teoria da Polifonia associados a princípios e conceitos da teoria dos Blocos Semânticos foi possível concluir como se constrói o sentido nos textos e propor a metodologia de resumo de textos (Graeff, 2001) que foi testada na pesquisa que está sendo agora apresentada. Conforme Carel (1995), um enunciado A donc C (= A portanto C) é argumentativo por expressar discursos como O apetite é sinal de saúde e O estudo conduz ao sucesso. Tais discursos não são considerados pela referida autora como associações de conceitos independentes (Apetite e Saúde; Estudo e Sucesso), não sendo vistos como elos entre um argumento e uma conclusão. Ela os percebe como representações unitárias (blocos semânticos), as quais constituem o próprio sentido dos encadeamentos argumentativos. Mostra, também, que os encadeamentos em donc, além de exprimirem um bloco, exprimem uma apreensão positiva ou negativa do bloco. Carel inova, ainda mais, ao afirmar a existência de encadeamentos transgressivos (em pourtant), ao lado de encadeamentos argumentativos (em donc). Sua tese é de que ambos os encadeamentos são igualmente primitivos, não se fundamentando o encadeamento transgressivo A pourtant não-C no encadeamento normativo A donc C. Nessa perspectiva, os dois constituem unidades semânticas básicas. Desse modo, pode-se estabelecer o quadrado argumentativo do bloco cujo sentido resulta da interdependência semântica entre apetite e saúde como segue: Seja: X= apetite Y= saúde bloco semântico + positividade: apetite / saúde bloco semântico + negatividade: não apetite/ não saúde 112 Carmem Luci da Costa Silva, et al. A. Ter apetite donc ter saúde. B. Não ter apetite donc não ter saúde. Aspecto normativo (X DC Y) Aspecto normativo (neg X DC neg Y) C. Não ter apetite pourtant ter saúde. D. Ter apetite pourtant não ter saúde. Aspecto transgressivo (neg X PT Y) Aspecto transgressivo (X PT neg Y) Nesse quadrado argumentativo, os pares A/B e C/D são recíprocos. (Cada par recíproco é formado pela apreensão positiva e negativa do mesmo bloco). Os pares A/D e B/C são conversos. (Cada par converso é composto de um aspecto argumentativo normativo e de um aspecto argumentativo transgressivo). Conforme Carel (2002, p.37), a conversão é uma das relações fundamentais do discurso, visto instalar a oposição entre enunciados. Ao explicitar primeiramente, sob que condições duas argumentações são conversas, para depois tratar de enunciados conversos, afirma a pesquisadora que duas argumentações são conversas, primeiramente, quando se trata de encadeamentos como (n) a polícia pressiona Paulo para que vá vê-la, donc ele irá. (t1) a polícia pressiona Paulo para que vá vê-la, pourtant ele não irá. isto é, de encadeamentos, com estrito parentesco material, da forma A donc C e A pourtant não-C. Observa, contudo, Carel que são também conversos (n) e (t2): (t2) os professores pressionavam Maria a responder, pourtant ela não respondeu Explica que a relação de conversão não exige um estrito parentesco material, sendo converso a A donc C qualquer encadeamento que exprima o mesmo bloco semântico e o mesmo aspecto transgressivo desse bloco, ou seja, A pourtant não-C. Entende a autora em foco que são conversos, em relação ao encadeamento normativo (n), ambos os encadeamentos transgressivos (t1) e Teorias do Discurso e Ensino 113 (t2), porque, ainda que não sejam estritamente aparentados materialmente, ambos exprimem a mesma ideia de ação feita sob pressão e sob o mesmo ponto de vista transgressivo, ou seja, tanto em (t1) quanto em (t2) é dito que se pode resistir à coação. A seguir, Carel (p. 37) define a noção de enunciados conversos: (...) dois enunciados serão ditos conversos se suas argumentações internas são conversas. Por exemplo, os dois enunciados até mesmo esse bom estudante foi reprovado e esse bom estudante, como se esperava, foi aprovado são conversos porque eles condensam respectivamente as argumentações conversas é um bom estudante, pourtant ele foi reprovado e é um bom estudante donc foi aprovado. Como se mencionou antes, a base teórica para o estudo do resumo reuniu tanto ideias da Teoria dos Blocos Semânticos quanto da Teoria da Polifonia. Ducrot (1968, p.65), em sua Teoria da Polifonia, faz perceber que a ideia de sujeito-falante remete, na verdade, a várias funções muito diferentes, como a função de sujeito empírico (produtor do enunciado); de locutor (responsável pelo enunciado); de enunciador (responsável pelos pontos de vista apresentados pelo enunciado), e que a indicação da posição de locutor, em relação à posição dos enunciadores, pode ser de identificação, de aprovação e de oposição. Em vista disso, na perspectiva da Teoria da Polifonia que propõe, há três etapas importantes para a constituição do sentido do enunciado: (a) apresentação dos pontos de vista dos diferentes enunciadores; (b) indicação da posição do locutor em relação à posição dos enunciadores; (c) identificação do(s) enunciador(es) com outra pessoa que não o locutor. Para que essa noção de polifonia pudesse ser aplicada à estrutura global do texto, tivemos (Graeff, 2001) de transpô-la do enunciado para o texto e considerar que o sentido de um texto expositivo-argumentativo é redutível a uma superposição de diferentes vozes que, postas em cena pelo locutor, dialogam entre si, agrupando-se para concordar ou discordar e, com as quais o locutor concorda e se identifica, ou não. Isso significa que, num texto, os enunciadores são agrupados conforme a identidade da orientação argumentativa do que 114 Carmem Luci da Costa Silva, et al. enunciam. Em outras palavras, conforme o encadeamento argumentativo que suas manifestações expressam. No caso de o locutor não concordar com uma dada orientação argumentativa, os enunciados que a evocam são todos apagados, isto é, não são retidos no resumo. Já relativamente ao conjunto de vozes, ditas aparentadas por evocarem o mesmo bloco semântico e o mesmo aspecto argumentativo desse bloco, ele é mantido no resumo, expresso num enunciado argumentativo que represente essa ideia comum, que organiza as vozes no conjunto, caso o locutor com ele concorde e/ ou se identifique. Observe-se que, no caso de o locutor se identificar com um encadeamento transgressivo de um dado bloco semântico, isso significa que ele concorda/ reconhece a existência do aspecto normativo, mas que preferiu expressar o bloco em seu aspecto transgressivo. Nesse caso, a presença, no resumo, de um encadeamento argumentativo transgressivo torna desnecessária a presença do seu converso normativo. A construção das matrizes para análise dos resumos, que especificam essas unidades semânticas básicas, observou os seguintes passos (Graeff, 2001, p.92-93): a) leitura do texto-base; b) identificação dos blocos semânticos; c) estabelecimento do quadrado argumentativo de cada bloco, composto pelos aspectos recíprocos (positivo e negativo) e pelos aspectos conversos (normativo e transgressivo); d) seleção dos encadeamentos expressos no texto-base; e) seleção dos encadeamentos com que o locutor do texto-base concorda e/ou se identifica. 4 Metodologia da pesquisa 4.1 Os textos Foram selecionados três textos (denominados aqui Texto1, Texto2 e Texto3) dentre artigos de opinião, publicados na Revista Veja, em 2003. Esses textos versam sobre temas da atualidade, de interesse dos brasileiros em geral. Teorias do Discurso e Ensino 115 4.2 Os participantes Participaram da pesquisa 10 (dez) alunos de Curso de Pós-Graduação em Letras, em nível de Mestrado. 4.3 O procedimento 1- O Texto 1 Qual a mais bela?, de Rosana Zakabi, publicado nas páginas dedicadas a assuntos gerais da revista Veja, de 17/12/2003, p.146, foi distribuído aos alunos. Solicitou-se que o resumissem, observando os princípios de economia e de fidelidade. Não se definiu tempo para a realização da tarefa. 2- Os alunos receberam instruções formais sobre procedimentos para realização de resumos, com base nas teorias da Polifonia e dos Blocos Semânticos. A seguir, juntamente com o professor, leram o Texto2, Mataram mais um, de Ronaldo França, publicado nas páginas sobre o Brasil, da revista Veja de 13/08/2003, p.5; identificaram os blocos semânticos desse texto e elaboraram o quadrado argumentativo correspondente a cada um dos blocos. Por fim, selecionaram os encadeamentos argumentativos com os quais o locutor concorda e/ou se identifica. A seguir, com base nesses encadeamentos argumentativos selecionados e já hierarquizados pela própria interdependência existente entre os blocos semânticos do texto, escreveram o resumo. O professor leu, comentou cada resumo, solicitando aos alunos que o reescrevessem, quando julgou necessário. Procedimento semelhante foi adotado com o Texto 3 Sobre veados, flamingos e outros bichos, ensaio de Roberto Pompeu de Toledo, publicado na revista Veja, em 20/08/2003, p.126. Acertados os resumos dos textos 2 e 3, os alunos receberam novamente o Texto 1 e a respectiva cópia do resumo que fizeram sobre esse texto, com a tarefa de que cada um avaliasse o seu resumo e de que o reescrevesse, se julgasse necessário. Ao final da atividade, entregaram o resumo do Texto 1, na última versão. 3 - Essa última versão do resumo do Texto1 de cada aluno foi avaliada, considerando os princípios de completude (presença/ausência de unidades 116 Carmem Luci da Costa Silva, et al. semânticas básicas), de economia e de fidelidade, com base nos procedimentos referidos em relação aos Textos 2 e 3, isto é, com base na matriz gerada por esses procedimentos, e, em seguida, comparada com a primeira versão do resumo do Texto 1, também avaliada com os mesmos critérios. 4.4 Passos para resumir os textos 2 e 3 4.4 1 Etapas seguidas em aula, para sintetizar o Texto 2 Mataram mais um, de Ronaldo França, publicado nas páginas sobre o Brasil, da revista Veja de 13/08/2003, p.5, que se lê abaixo: Mataram mais um Diretor de presídio é assassinado no meio da rua. De tão banal, a cena já não comove os brasileiros Ronaldo França O Rio de Janeiro foi palco, na semana passada, de mais uma cena de banditismo explícito. Foi assassinado, com dezessete tiros, o diretor do presídio de Bangu III, Abel Silvério de Aguiar. Seu carro foi perseguido por outros dois automóveis, na Avenida Brasil, a mais movimentada do Rio. Os bandidos encapuzados dispararam até que ele perdesse o controle da direção. Aguiar chocou-se contra um ônibus. Os assassinos, que usavam coletes à prova de bala e máscaras, saltaram dos carros e atiraram mais de perto, para garantir a execução. Duas semanas antes, Paulo Rocha, o coordenador de segurança do complexo penitenciário, que reúne quinze unidades, foi assassinado no mesmo local, de forma semelhante. Apesar da inaceitável ousadia dos bandidos, não se registrou comoção especial pelas mortes. É como se os assassinatos, mesmo quando de agentes da lei, juízes e políticos, fossem inescapáveis fatos da vida. Não são. Não podem ser. A história mostra que a banalização do banditismo é um fenômeno que, como o câncer, nasce e cresce silenciosamente. Quando se tenta atacá-lo, em muitos casos, já é tarde demais. A ousadia dos bandidos é crescente. Quando eles agem de maneira especialmente cruel, produzem reações da sociedade na forma de manifestações públicas "pela paz" ou "contra a violência". Essas manifestações têm sido inócuas para conter os marginais. Elas podem revelar, no fundo, um fenômeno de adaptação, de amortecimento social diante do inimigo que não se sabe mais como combater. Em junho, mês da mais recente estatística disponível, 600 pessoas foram assassinadas no Rio. No último trimestre, a violência ceifou 950 vidas por mês em São Paulo. Somente nos dois principais Estados da federação Teorias do Discurso e Ensino 117 matam-se, em média, 18.600 pessoas por ano. São números assustadoramente altos. A Guerra do Vietnã matou, em média, 20 000 pessoas por ano, somados os dois lados. O Rio e partes de São Paulo passam por uma guerra urbana que, por sua persistência e pela freqüência dos episódios sangrentos, acabou se incorporando à rotina urbana. Na semana passada, após o assassinato de Aguiar, as autoridades fluminenses de segurança anunciaram, como de praxe, medidas urgentes. Especula-se que o crime teria sido cometido por quadrilhas insatisfeitas com o rigor na prisão ou em virtude de uma disputa pelo controle das cantinas nos presídios. A polícia promete apurar o caso. Um estudo feito pelo secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, mostrou que apenas 8% dos homicídios investigados pela polícia são elucidados. As investigações não costumam andar muito além do anúncio de medidas urgentes. E, no entanto, afora as famílias, ninguém se lembra de cobrar soluções. É como se tudo fosse muito normal. Não é. O professor entregou o texto aos alunos. Foram feitos comentários sobre a revista, sobre a sua circulação, sobre a seção onde se encontra o texto, sobre seus possíveis leitores, etc. A seguir, o professor iniciou a leitura do texto. Já, no primeiro período, percebeu-se que o locutor do texto constatava a existência de banditismo explícito no Brasil, mas não se sabia, ainda, o que ele achava disso, como se posicionava diante dessa constatação. Somente após relatar ocorrências de banditismo explícito, o locutor apresenta a outra parte do bloco semântico expressa no enunciado: Apesar da inaceitável ousadia dos bandidos, não se registrou comoção especial pelas mortes. Então, pôde-se perceber que escrevia sobre a existência de banditismo explícito, relacionada com a inexistência de comoção especial da sociedade. O locutor se posiciona, convocando esse bloco semântico em seu aspecto argumentativo transgressivo (Há banditismo explícito PT não há comoção especial da sociedade). Manifesta seu espanto diante dessa conduta fora do normal da sociedade. Notese que o normal seria (Há banditismo explícito DC a sociedade rechaça, repudia, exige medidas em sentido contrário, etc). Mais adiante, no texto, ele vai sintetizar o encadeamento argumentativo transgressivo por meio da expressão banalização do banditismo. Em outras palavras, esse encadeamento constitui uma paráfrase da expressão em foco, ou seja, sua argumentação interna. O texto, então, passa a explicitar essa banalização, constatando tanto o aumento da violência, da ousadia dos bandidos quanto a ineficácia de ações em sentido contrário por parte das autoridades e a ausência de indignação por parte 118 Carmem Luci da Costa Silva, et al. da sociedade. O locutor conclui o texto com os enunciados É como se tudo fosse muito normal. Não é. Observe-se que o primeiro desses enunciados expressa o encadeamento O banditismo explícito é rotineiro DC é normal. Já o segundo enunciado, que expressa o ponto de vista do locutor sobre a banalização do banditismo, contém o encadeamento argumentativo transgressivo O banditismo explícito é rotineiro PT não é normal. Como se pôde perceber, o locutor rechaça a atitude da sociedade brasileira de considerar banal o banditismo explícito, exortando-a a cobrar soluções das autoridades. Essa seria uma possível síntese do texto 2. 4.4.2 Etapas seguidas em aula, para sintetizar o Texto 3 Sobre veados, flamingos e outros bichos, de Roberto Pompeu de Toledo, articulista da Revista Veja, publicado em 20/08/2003, p.126, do qual se lê abaixo a segunda nota, que trata do segundo tipo de poder – o da casa do patriarca da Globo. Sobre veados, flamingos e outros bichos Duas notas e dois tipos de poder: o da imagética do ministro da Justiça e o da casa do patriarca da Globo Roberto Pompeu de Toledo No fundo, no fundo, a diferença entre o burguês e o aristocrata é que o aristocrata nunca vende a casa. Um burguês, e burguês aqui cobre desde a classe média até a classe média alta, como se diz no Brasil, vive trocando de casa, ou de apartamento. Aristocrata que é aristocrata nasce e morre na mesma casa – ou castelo. Quando morre – supremo requinte – é enterrado nos próprios domínios. A princesa Diana repousa na herdade da família. No Brasil não há, salvo os Orleans e Bragança – que, ao que consta, não pretendem vender o Palácio Grão-Pará, na doce Petrópolis –, aristocratas. Mas há os que, lúcidos, sabem que, depois de acumular riqueza, o passo seguinte é perseguir os atributos da aristocracia. Ajuda muito. Duplica o prestígio e reforça o poder. E, entre esses atributos, o principal é a casa – uma casa que não só se imponha pelo tamanho e pela elegância, mas que transmita a idéia de raízes, de permanência, de continuidade. O banal sonho da casa própria da patuléia transmuda-se, no aristocrata, na fidelidade ao castelo. Teorias do Discurso e Ensino 119 Essas coisas vêm a propósito de Roberto Marinho. Ele morava numa mansão do nobre bairro do Cosme Velho – e atenção que se disse "nobre", não "rico"; "rico" é a Barra da Tijuca. No amplo terreno, cortado por um rio – nada menos que o Rio Carioca, com nome igual ao dos habitantes da cidade –, criava flamingos, araras, macacos e outros bichos. O patriarca da Globo ali estava fazia mais de meio século, marca pífia em termos europeus, mas de causar estupor no Brasil – e não se duvide de que a casa, e os bichos, e o rio contribuíram pesadamente para a mística do proprietário. Especialista no assunto, Roberto Marinho sabia que o poder emana, também, da casa em que se mora. No fim, não chegou a ser enterrado em seus domínios, mas foi velado neles – e assim, mesmo morto, se apresentou em escala superior ao comum dos mortos. Costumam chamar Machado de Assis, que morou ali perto, de "bruxo do Cosme Velho", apelido meio incompreensível num escritor tão racional e límpido. Roberto Marinho, o prestidigitador do poder e do prestígio, foi o verdadeiro bruxo do Cosme Velho. Nesse ensaio, o autor apresenta, como ele mesmo refere, “Duas notas e dois tipos de poder: o da imagética do ministro da Justiça e o da casa do patriarca da Globo.” Foi objeto de análise argumentativa a segunda nota, que começa com o enunciado: No fundo, no fundo, a diferença entre o burguês e o aristocrata é que o aristocrata nunca vende a casa. Esse enunciado convoca o bloco semântico que relaciona ser aristocrata / manter-se na casa, em suas formas recíprocas: É aristocrata DC não muda de casa e É burguês DC muda de casa. Na sequência do texto, o locutor comenta que burguês vive trocando de casa e apresenta exemplos que reiteram a argumentação expressa no encadeamento de que nobre, mesmo quando morre, permanece na propriedade da família. A seguir, o enunciado: Mas há os que, lúcidos, sabem que, depois de acumular riqueza, o passo seguinte é perseguir os atributos da aristocracia. Esse enunciado trata dos burgueses que, depois de ricos, querem ser reconhecidos como nobres. Continuando, o texto explicita por que o principal atributo da aristocracia é a casa (...) uma casa que não só se imponha pelo tamanho e pela elegância, mas que transmita a idéia de raízes, de permanência, de continuidade. O enunciado com mas convoca o aspecto transgressivo da forma recíproca negativa É burguês DC muda de casa, expresso pelo encadeamento argumentativo transgressivo É burguês PT não muda de casa. A partir daqui, todo o último parágrafo do texto é usado pelo locutor para mostrar que foi assim com Roberto Marinho, que sempre viveu na mesma casa, sendo nela até velado. 120 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Em síntese, Roberto Marinho era burguês, mesmo assim possuía atributos da aristocracia. 5 Apresentação e análise dos resultados Após trabalharem, em sala de aula, na síntese dos Textos 2 e 3, os alunos foram unânimes em afirmar que os resumos do Texto1 Qual a mais bela?, elaborados antes de conhecerem a Teoria dos Blocos Semânticos, eram “muito ruins”, especialmente em função de terem mantido as exemplificações, as quais reproduzem encadeamentos argumentativos. Verificou-se que esses resumos são, no geral, longos, tendo cinco deles entre 40 a 44 linhas; quatro, entre 31 a 35 linhas, havendo apenas um com 25 linhas, o que não o isenta do atributo longo, em vista de se conceber o resumo como uma paráfrase resumitiva que expressa o(s) encadeamento(s) argumentativo(s) com que o locutor concorda e /ou se identifica. Nessa direção de análise, é interessante que se leia o texto em foco, para que se possam considerar, posteriormente, as suas unidades semânticas básicas. Qual a mais bela? Dois concursos elegem misses com critérios opostos, uma delas com o peso de 117 quilos O padrão universal de beleza é o da mulher alta, magérrima, com seios e bumbum firmes e abundantes. Algo como Gisele Bündchen, certo? Nem sempre. Em alguns países, mulher bonita é aquela que não apenas exibe seios e bumbum fartos, mas também apresenta cintura larga, barriga exuberante, braços fortes e pernas bem grossas. Neste mês, dois concursos de beleza elegeram mulheres completamente distintas uma da outra. Um deles ocorreu em Burkina Fasso, na África. As participantes tinham entre 75 e 130 quilos e desfilaram em trajes de banho. A grande vencedora foi Carine Riragendanwa, de 27 anos, 1,80 metro de altura e 117 quilos. O outro foi na China e elegeu a miss Mundo 2003. A vencedora foi a irlandesa Rosanna Davison, de 19 anos, também de 1,80 metro de altura e dezenas de quilos mais magra. Para o concurso de miss Mundo, o pré-requisito é ter 90 centímetros de quadris, 60 de cintura e 90 de busto. O concurso de Burkina Fasso parte do pressuposto de que, quanto maiores forem as medidas das misses, melhor. Teorias do Discurso e Ensino 121 Apreciar formas arredondadas não é exclusividade de Burkina Fasso. Fugindo do padrão de beleza em voga no Ocidente, que prega a magreza absoluta, quem faz sucesso em várias sociedades da África e de algumas ilhas do Pacífico Sul são as gordinhas. Na Nigéria, há um festival todos os anos que também elege uma miss, geralmente a mais corpulenta. Antes de se casarem, muitas noivas nigerianas passam por um regime de engorda para agradar a seus pretendentes. No mundo ocidental, as formas arredondadas foram valorizadas até meados do século passado – a musa dos anos 50 era Marilyn Monroe, com seus seios e quadris voluptuosos. Na Renascença, as mulheres roliças eram fonte de inspiração para os artistas consagrados da época. Elas simbolizavam status, conforto e boa saúde. A magreza estabeleceu-se como sinônimo de elegância no início dos anos 90, quando as supermodelos Cindy Crawford e Claudia Schiffer se transformaram no padrão de beleza na maior parte dos países. Sabe-se hoje que, além da questão cultural, há ainda fatores biológicos que contribuem para o conceito de beleza. Segundo os cientistas, a simetria facial, ou seja, a medida dos olhos, do nariz, da boca e das faces, é um item importante na escolha dos parceiros. É sinal de genes saudáveis, ausência de parasitas e sistema imunológico eficiente. A proporção entre cintura e quadris também é um indicador ancestral de saúde e fertilidade. Quadris mais largos costumam ser atraentes para a maioria dos homens. Talvez por esse motivo os corpos esqueléticos são admirados mais pelas mulheres que por eles. Ainda assim, casos como o de Burkina Fasso estão se tornando cada vez mais raros. Países que antes cultuavam as cheinhas passaram a admirar as mais magras por influência da indústria da moda. Há também a questão da saúde. Excesso de gordura tornou-se sinônimo de doenças cardiovasculares e diabetes – e, pior ainda, a obesidade é vista como sinal de desleixo. No Arquipélago de Tonga, no Pacífico Sul, ser gordo foi privilégio reservado aos nobres durante séculos. Nas últimas décadas, a prosperidade permitiu que os pobres também engordassem. Em conseqüência, a obesidade e as doenças cardiovasculares tornaram-se endêmicas. Os gordos passaram de bonitos a feios O texto inicia, indagando se o padrão universal de beleza é o de mulher magérrima. E ele mesmo responde: Nem sempre. Têm-se, já aqui, dois blocos semânticos que relacionam peso e beleza, expressando padrões estéticos de culturas diferentes: numa, ser magro é belo; e noutra, ser gordo é belo, cujos encadeamentos argumentativos normativos poderiam, respectivamente, ser expressos como é magro DC é belo e é gordo DC é belo. Passa, então, a explicitar essa ideia, mencionando, com detalhes, dois concursos ocorridos simultaneamente – um, na África, cuja vencedora pesava 117 quilos, e outro, na China, para eleger a miss Mundo, cuja vencedora era bem magra. 122 Carmem Luci da Costa Silva, et al. No segundo parágrafo, são apresentados novos exemplos de que, em várias sociedades da África e de algumas ilhas do Pacífico Sul, são as “gordinhas” que fazem sucesso, diferentemente do que ocorre no Ocidente hoje, em que as “magérrimas” fazem sucesso. Como se pode perceber, o texto continua tratando dos dois blocos semânticos, que representam dois padrões de beleza opostos. A partir da metade do segundo parágrafo, passará a mostrar que ser gordo também foi critério de beleza no mundo ocidental, desde a Renascença até o século XIX, tendo sido substituído, somente no início dos anos 90, em virtude do aparecimento das super modelos, que eram altas e magras, o que significa associar ao padrão de beleza gordo DC belo o atributo de mais frequente. No terceiro parágrafo, o texto apresenta mais argumentos a favor da ideia gordo é belo, ao referir que, além dos fatores culturais, os biológicos também contribuem para definir o conceito de beleza, sendo a proporção entre cintura e quadril também um indicador ancestral de saúde e fertilidade. E, mais adiante, que quadris mais largos costumam ser atraentes para a maioria dos homens e que corpos esqueléticos são admirados mais pelas mulheres que por eles, o que reforçaria a ideia de prevalência do padrão gordo DC belo sobre o magro DC belo. É, então, que surge no texto um parágrafo iniciado por Ainda assim. Confira-se: Ainda assim, casos como o de Burkina Fasso estão se tornando cada vez mais raros, em que se explicita a relação de padrão estético e frequência no mundo, constituindo um novo bloco semântico, apreendido no aspecto transgressivo pelo enunciado em questão. Pelo que vinha sendo enunciado no texto sobre o padrão estético gordo é belo, se poderia concluir que ele suplantaria o outro (magro é belo). A orientação argumentativa desse parágrafo indicava para a universalização do padrão estético gordo é belo (padrão de beleza gordo DC mais frequente). Contudo, o Ainda assim expressa a seleção do aspecto transgressivo (padrão de beleza gordo PT mais raro). A seguir, já em seu final, lê-se no texto o enunciado Países que antes cultuavam as cheinhas, passaram a admirar as mais magras, que manifesta o encadeamento argumentativo normativo padrão de beleza magro DC mais frequente. Concorrem para a ampliação desse padrão no mundo, segundo o Teorias do Discurso e Ensino 123 texto, a expansão da indústria da moda, para a qual ser gordo é estar fora de moda, é ser desleixado, e questões ligadas à saúde, segundo as quais obesidade é fator de doença. Após apresentar exemplos da ocorrência dessa mudança de comportamento, o texto conclui com o enunciado Os gordos passaram de bonitos a feios, que expressa a tendência à universalização do padrão de beleza magro. Como já se referiu, os resumos feitos na sala de aula, antes de se praticar a metodologia baseada nas teorias dos Blocos Semânticos e da Polifonia, caracterizam-se por serem notoriamente longos, tendo muitas ideias repetidas. Em realidade, nota-se, em todos eles, que o texto foi copiado, com supressões da exemplificação ou, às vezes, apenas de detalhes existentes nas exemplificações. Prova disso é o mais sintético deles, que resultou num texto com 25 linhas, no manuscrito elaborado pelo chamado Aluno 8. Confiram-se os dois resumos feitos por esse aluno. Resumo 1. Texto 1. Qual é a mais bela? O padrão universal de beleza é o da mulher alta, magérrima, com seios e bumbum firmes e abundantes, mas em alguns países elegem misses com critérios opostos. No mês de dezembro de 2003, dois concursos de beleza elegeram mulheres completamente distintas uma da outra. Um deles ocorreu em Burkina Fasso, na África. As participantes tinham entre 75 e 130 quilos. O outro foi na China e elegeu a miss Mundo 2003. Para o concurso de miss Mundo, o prérequisito é ter 90 centímetros de quadris, 60 de cintura e 90 de busto. O concurso de Burkina Fasso parte do pressuposto de que, quanto maiores forem as medidas das misses, melhor. No mundo ocidental, as formas arredondadas foram valorizadas até meados do século passado. Na Renascença, as mulheres roliças simbolizavam status, conforto e boa saúde. A magreza estabeleceu-se como sinônimo de elegância no início dos anos 90. Sabe-se hoje que, além da questão cultural, há ainda fatores biológicos que contribuem para o conceito de beleza. Segundo os cientistas, a medida dos olhos, do nariz, da boca e das faces é sinal de genes saudáveis. A proporção entre cintura e quadris também é um indicador ancestral de saúde e fertilidade. Ainda assim, casos como o de Burkina Fasso estão se tornando cada vez mais raros. Países que antes cultuavam as cheinhas passaram a admirar as mais magras por influência da indústria da moda. Há também a questão da saúde. Excesso de gordura tornou-se sinônimo de doenças cardiovasculares e diabetes e, pior ainda, a obesidade é vista como sinal de desleixo. 124 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Resumo 2. Texto 1. Qual é a mais bela? O padrão universal de beleza é o da mulher alta, magérrima, com seios e bumbum firmes e abundantes. Nem sempre. Em alguns países da África, mulher bonita é aquela que não apenas exibe seios e bumbum fartos, mas também apresentar cintura larga, barriga exuberante, braços fortes e pernas bem grossas. Na Renascença, as mulheres roliças eram fontes de inspiração para os artistas consagrados da época. Elas simbolizavam “status”, conforto e boa saúde. A magreza estabeleceu-se como sinônimo de elegância no início dos anos 90. Sabe-se hoje que, além da questão cultural, há ainda fatores biológicos que contribuem para o conceito de beleza. A medida dos olhos, nariz, boca e das faces – simetria facial, é sinal de genes saudáveis. Talvez por esse motivo os corpos esqueléticos são admirados mais pelas mulheres que por homens. Países que antes cultuavam as cheinhas passaram a admirar as mais magras por influência da indústria da moda e também de saúde. Excesso de gordura tornou-se sinônimo de doenças cardiovasculares e diabetes, e, pior ainda, a obesidade é vista como sinal de desleixo. Quando se comparam os dois resumos, percebe-se que, também na elaboração do segundo resumo, o aluno ficou preso ao texto-fonte. A diferença entre os dois textos produzidos é muito pequena, até no número de linhas de cada um. Fica muito evidente que o Aluno 8 não conseguiu identificar blocos e encadeamentos. Daí a dificuldade de suprimir exemplificações e paráfrases. Curiosamente, foi desse aluno o menor Resumo 1 do texto “Qual a mais bela?”, do que derivou a expectativa de que seu Resumo 2 fosse modelar. Diferentemente disso, todos os outros nove alunos, cujos resumos 1 eram bem maiores, chegando um deles a 44 linhas, o que significa maior presença de paráfrases e de exemplificações, produziram resumos 2 mais adequados, no ponto de vista do princípio da economia. Compare-se o número de linhas dos resumos 1 e 2 por aluno: Aluno Resumo 1 Resumo 2 Aluno 1 31 06 Aluno 2 32 15 Aluno 3 42 19 Aluno 4 40 16 Aluno 5 40 07 Aluno 6 42 07 Aluno 7 44 13 Aluno 8 25 21 Aluno 9 31 11 Aluno 10 35 09 Teorias do Discurso e Ensino 125 Analisando os resumos 2, no ponto de vista dos princípios de completude (expressão dos encadeamentos com que o locutor se identifica) e de fidelidade (o resumo deve ser uma paráfrase do original), constatou-se a sua não observância nos resumos produzidos pelos alunos 6 e 7, como se mostrará a seguir. Aluno 6 Resumo 2 O conceito universal da beleza atualmente é ser magérrimo, além de não correr riscos com doenças cardiovasculares. Já em Burkina Fasso, na África, este conceito foge às regras, pois mulheres gordas são vistas como as mais belas. Note-se que, nesse caso, não foi observada a ordem em que os blocos vão se constituindo no texto-fonte: (1) peso e beleza, (2) padrão de beleza e frequência no mundo. A ausência dessa hierarquia ocasionou tanto a incompletude quanto a infidelidade do resumo relativamente ao texto-fonte. Aluno 7 Resumo 2 Quando abordamos o assunto beleza, nos vêm à mente mulheres altas e magras. Porém isto não é regra em alguns países. Todos sabem que os ditames da beleza trazem como modelo pessoas extremamente elegantes, parecendo-nos o mais bonito, mas há lugares em que isto não é a regra, pois ser gordo nestes países, já há algum tempo, mostra que as gordinhas são muito apreciadas. Portanto, querendo ou não, dependendo do lugar, as opiniões são diferentes com relação aos padrões de beleza; mas uma coisa é certa: ser magro tem lá suas vantagens. Nesse resumo, há três parágrafos que se parafraseiam. É possível que tenha havido a intenção de elaborar um resumo com introdução, desenvolvimento e conclusão, o que poderia explicar a repetição. No terceiro parágrafo, verifica-se a infração ao princípio de fidelidade ao original, quando se lê “(...) mas uma coisa é certa: ser magro tem lá suas vantagens.” Note-se que não é o caso de “ter lá suas vantagens”, pois o texto “Qual a mais bela?” trata da universalização do padrão de beleza magro. Exceto esses três resumos comentados (Alunos 6, 7, 8), todos os outros (ver Anexo) indicam a produtividade da metodologia de resumo baseada nas 126 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Teorias da Polifonia e dos Blocos Semânticos. A propósito, comparem-se os resumos 1 e 2 do Aluno 1, que seguem. Resumo 1. do Texto 1. Qual a mais bela? No mês de dezembro (2003) ocorreram dois concursos de beleza, que elegeram mulheres completamente distintas uma da outra. Um deles ocorreu um Burkina Fasso, na África. As participantes tinham entre 75 e 130 quilos e desfilaram em trajes de banho. A grande vencedora foi Carine Riragendanwa, de 27 anos, 1,80 metros de altura e 117 quilos. O outro foi na China e elegeu a Miss Mundo 2003. A vencedora foi a irlandesa Rosanna Davison, de 19 anos, também de 1, 80 metros de altura e dezena de quilos mais magra. Para o concurso de miss Mundo, o pré-requisito é ter 90 centímetros de quadris, 60 de cintura e 90 de busto. O concurso de Burkina Fasso parte do pressuposto de que, quanto maiores forem as medidas das misses, melhor. Em várias sociedades da África e de algumas ilhas do Pacífico Sul, o padrão de beleza em voga são as formas arredondadas, valorizadas, no mundo ocidental, até meados do século passado. Na Renascença, as mulheres roliças inspiravam artistas e simbolizavam status, conforto e boa saúde. A magreza estabeleceu-se como sinônimo de elegância no início dos anos 90, transformando-se no padrão de beleza na maior parte dos países. Casos como o de Burkina Fasso estão se tornando cada vez mais raros, por influência da indústria da moda e por questões de saúde, uma vez que o excesso de gordura tornou-se sinônimo de doenças cardiovasculares e de diabetes. Para Piorar, a obesidade é vista como sinal de desleixo. Nas últimas décadas, a prosperidade, no Arquipélago de Tonga, no Pacífico Sul, permitiu que os pobres engordassem – antes privilégio dos nobres. Em consequência, a obesidade e as doenças cardiovasculares tornaram-se endêmicas. Os gordos passaram de bonitos a feios. Resumo 2. do Texto 1. Qual a mais bela? Principalmente no Ocidente, o padrão de beleza em voga é a magreza absoluta. Já, em alguns países, mulher bonita é aquela que “quanto maior, melhor”. Porém, padrões de beleza que cultuam as “cheinhas” estão se tornando cada vez mais raros, por influência da indústria da moda e questões de saúde. Parece muito claro, nesse caso, que a diferença verificável entre os dois resumos advém da diferença de concepção de resumo que presidiu a elaboração de cada um. Enquanto o Resumo 1 contém as ideias básicas hierarquizadas, mas repetidas por paráfrases e exemplificações, o Resumo 2, reconhecendo a existência de unidades semânticas básicas na organização dos sentidos do texto, contém apenas o essencial, expressão dos encadeamentos argumentativos: magro DC belo; gordo DC belo; padrão de beleza magro DC mais frequente, que se sucedem no texto-fonte, constituindo seu sentido. Observações Teorias do Discurso e Ensino 127 semelhantes poderiam ser feitas a propósito dos resumos 1 e 2 de outros seis alunos, o que reitera a validade do procedimento proposto e, especialmente, da perspectiva teórica que o sustenta. 6 Considerações Finais A comparação dos resumos 1 e 2 do texto “Qual a mais bela?”, produzidos, respectivamente, antes e depois da interferência feita pelo professor em sala de aula, revela que conceitos da Teoria da Polifonia aliados aos conceitos de bloco semântico, de encadeamento argumentativo recíproco (positivo e negativo) e converso (normativo e transgressivo), aplicados à atividade de produção de resumos parafrásticos, ao mesmo tempo em que garante a presença das ideias essenciais, hierarquizadas, do texto-fonte, reduz significativamente a sua repetição. Além disso, a observação da facilidade com que a maioria dos alunos identificou as unidades semânticas básicas dos textos sintetizados em aula e, posteriormente, com que reformulou o Resumo 1 indicam que a abordagem de base semântico-argumentativa sintoniza com a competência dos usuários da língua, sendo capaz de ampliá-la. Nessa direção, é possível afirmar que essa competência linguística é argumentativa, visto que os alunos reconheceram, tanto na atividade de leitura do texto-fonte quanto na de produção do resumo, que o sentido é gerado no encadeamento argumentativo o qual, por sua vez, pode se manifestar por meio dos diferentes enunciados, que constituem o texto. Dito de outro modo, eles reconheceram a existência de enunciados que, embora não fossem materialmente aparentados, expressavam uma mesma ideia, isto é, um mesmo bloco e um mesmo aspecto transgressivo ou normativo com que foram apreendidos. Essas constatações comprovam o poder explicativo da Teoria da Argumentação na Língua e sua possibilidade de aplicação ao ensino, posto que se assiste, nesse caso específico, à ampliação do conceito de resumo subjacente à produção do Resumo 1, na medida em que a sua reformulação (Resumo 2) passa a ser presidida pelo entendimento de que se trata de uma prática 128 Carmem Luci da Costa Silva, et al. discursiva que explicita a(s) unidade(s) semântica(s) básica(s) do texto-fonte, isto é, o(s) encadeamento(s) argumentativo(s) vinculado(s) ao(s) bloco(s) que o constituem, com os quais o locutor, responsável pelo texto, se identifica. REFERÊNCIAS CAREL, Marion. Argumentação interna aos enunciados. Letras de Hoje, Porto Alegre, EDIPUCRS, v.37, n.3, p.27-44, set.2002. ______. Pourtant: argumentation for exception. Journal of Pragmatics, v.24, pp.167-188, 1995. ______. L’argumentation dans le discours: argumenter n’est pas justifier. Letras de Hoje, PUCRS, v.32, n.1, p23-40, mar.1997. CHAROLLES, Michel. Marquages linguistiques et résumé de texte. In: CHAROLLES, Michel; PETITJEAN, André. (Orgs.). Le résumé de texte. Paris: Klincksieck, 1992. pp.11-27. ______. Le résumé de texte scolaire; fonctions et principes de l élaboration. Pratiques, Metz, n.72, pp.7-27, déc.1991. CHAROLLES,Michel; PETITJEAN, André.(Orgs.). Le Résumé de texte: aspects linguistiques, sémiotiques, psycholinguistiques et automatiques. Paris: Klincksiek, 1992. (Recherches Linguistiques, 17). DUCROT, Oswald. Os Internalizadores. Letras de Hoje, Porto Alegre, EDIPUCRS, v.37, n.3, p.7-26, set.2002. ______. Les mots du discours. Paris: Minuit, 1980. ______. Polifonía y argumentación. Cali: Universidad del Valle, 1988. ______. Topoi na teoria da argumentação na língua. Revista Brasileira de Letras, São Carlos, UFSC, v.1, n.1, p.1-11, 1999. ERLICH, M.F. et al. La superstructure des textes expositifs est-elle prise en charge lors de la sélection des informations importantes? In: CHAROLLES, Michel; PETITJEAN, André (org.). Le résumé de texte. Paris: Klincksieck, 1992. p.183-206. FLOTTUM, Kjersti. La hiérarchisation d’information comme activité résumante. In: CHAROLLES, Michel; PETITJEAN, André (Orgs.). Le Résumé de texte. Paris: Klincksieck, 1992. p. 91-102. Teorias do Discurso e Ensino 129 GRAEFF, Telisa Furlanetto. Resumo de textos: em busca dos blocos semânticos e das unidades semânticas básicas. Passo Fundo: UPF Editora, 2001. GRIZE, Jean-Blaise. Résumer, mais pour qui? In: CHAROLLES, Michel; PETITJEAN, André. Le Résumé de texte. Paris: Klincksieck, 1992. p.3-10. SILVA, Rebeca Peixoto da. Redação técnica. Porto Alegre: Ed. Formação, 1975. VAN DIJK, Teun A.; KINTSCH, W. Comment on se rappelle et on résume des histoires. Langages. Paris:Didier- Larousse, n.40, pp.98-116, 1975. ______. Cognitive psychology and discourse: recalling and summarizing stories. In: DRESSLER, W. U. (Ed.). Current trends in text linguistics. Berlin: Gruyter,1978. pp.61-80. ______. Macro-structures. Hillsdale: Erlbaum, 1980. VIGNER, Gerard. Réduction de l’information et généralisation: aspects cognitifs et linguistiques de l’ activité de résumé. Pratiques, n.72, p.33-54, déc.1991. Anexo: Resumo 2 do Texto 1 Qual a mais bela? Aluno 1 Principalmente no Ocidente, o padrão de beleza em voga é a magreza absoluta. Já, em alguns países, mulher bonita é aquela que “quanto maior, melhor”. Porém, padrões de beleza que cultuam as “cheinhas” estão se tornando cada vez mais raros, por influência da indústria da moda e questões de saúde. Aluno 2 O padrão universal de beleza feminina volta-se a corpos magérrimos, longilíneos e com seios e bumbum fartos. No entanto, há exceção para esse padrão, pois, na África, o sinônimo de beleza volta-se para, além de seios e bumbum fartos, também para cintura larga, barriga exuberante e braços e pernas grossas. Porém, alguns países que já cultuaram as “cheinhas” passaram a admirar as mais magras, talvez por influência da moda, ou também, pela associação da obesidade a doenças cardiovasculares, que vêm modificando o conceito de beleza, em que ser gordo está significando ser feio. Aluno 3 O padrão universal de beleza é o da mulher alta, magérrima com seios e bumbum firmes e abundantes, mas há alguns países em que as mulheres gordas são sinônimo de elegância e beleza. No Ocidente a beleza da mulher passou a ter destaque nos anos 90 quando se estabeleceu como sinônimo de elegância a mulher magra e alta. Em alguns países da África e em algumas ilhas do Pacífico Sul, beleza significa mulher forte com traços físicos exuberantes, passando, em alguns casos, por regime de engorda para melhor representar sua beleza. Contudo, pelo fato de a obesidade estar hoje associada a doenças cardiovasculares, ser gordo vem adquirindo significado de ser desleixado e feio. 130 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Aluno 4 O padrão de beleza, imposto às mulheres, não é o mesmo devido às diferenças culturais existentes entre os países do mundo. Se, ser magra para algumas mulheres é ser bela e elegante, para outras, o sinônimo de beleza está na sua gordura exuberante, de formas arredondadas. Não se pode esquecer, no entanto, que, em algumas culturas, a gordura está associada à prosperidade; mas, nos dias atuais, há uma grande preocupação com a questão da saúde. Ser gordo, em nossa sociedade, é sinônimo de doença além de ser um sinal de desleixo. Em vista disso, ser gordo está se tornando feio em todos os lugares do mundo. Aluno 5 No Ocidente ser magra é sinônimo de beleza, porém, na África, quanto mais gorda a mulher for, maior será a sua beleza. No entanto, com o passar do tempo, descobriu-se que o excesso de gordura estaria ligado ao surgimento de doenças e, a partir daí, os gordos passaram, então, de bonitos a feios. Aluno 6 O conceito universal da beleza atualmente é ser magérrimo, além de não correr riscos com doenças cardiovasculares. Já em Burkina Fasso, na África, este conceito foge às regras, pois mulheres gordas são vistas como as mais belas. Aluno 7 Quando abordamos o assunto beleza, nos vem à mente mulheres altas e magras. Porém isto não é regra em alguns países. Todos sabem que os ditames da beleza trazem como modelo pessoas extremamente elegantes, parecendo-nos o mais bonito, mas há lugares em que isto não é a regra, pois ser gordo nestes países, já há algum tempo, mostra que as gordinhas são muito apreciadas. Portanto, querendo ou não, dependendo do lugar, as opiniões são diferentes com relação aos padrões de beleza; mas uma coisa é certa: ser magro tem lá suas vantagens. Aluno 8 O padrão universal de beleza é o da mulher alta, magérrima, com seios e bumbum firmes e abundantes. Nem sempre. Em alguns países da África, mulher bonita é aquela que não apenas exibe seios e bumbum fartos, mas também apresentar cintura larga, barriga exuberante, braços fortes e pernas bem grossas. Na Renascença, as mulheres roliças eram fontes de inspiração para os artistas consagrados da época. Elas simbolizavam “status”, conforto e boa saúde. A magreza estabeleceu-se como sinônimo de elegância no início dos anos 90. Sabe-se hoje que, além da questão cultural, há ainda fatores biológicos que contribuem para o conceito de beleza. A medida dos olhos, nariz, boca e das faces – simetria facial, é sinal de genes saudáveis. Talvez por esse motivo os corpos esqueléticos são admirados mais pelas mulheres que por homens. Países que antes cultuavam as “cheinhas” passaram a admirar as mais magras por influência da indústria da moda e também de saúde. Excesso de gordura tornou-se sinônimo de doenças cardiovasculares e diabetes, e, pior ainda, a obesidade é vista como sinal de desleixo. Teorias do Discurso e Ensino 131 Aluno 9 O padrão universal de beleza é o da mulher alta, magérrima, com seios e bumbum firmes e abundantes. Porém, em alguns países, esses padrões são substituídos e há escolha de mulheres mais belas, atendendo critérios bem diferenciados como das formas arredondadas e da gordura. O conceito de beleza associado à magreza ocorreu no início dos anos 90. Somados aos padrões culturais, os fatores biológicos também têm contribuído. Outro aspecto que influenciou foi a moda que colaborou com a denominação do belo. Aluno 10 Nem sempre o padrão de beleza foi o da mulher magérrima. Esse padrão estabeleceu-se no início dos anos 90, na maioria dos países. Contudo, em várias sociedades da África e em algumas ilhas do Pacífico Sul, o padrão de beleza é o da mulher gorda. Atualmente a influência da indústria da moda e a associação da obesidade a doenças cardiovasculares e a desleixo estão universalizando o conceito de beleza associado à magreza. 132 Carmem Luci da Costa Silva, et al. GÊNEROS DISCURSIVOS NO ENSINO: O FOCO NA INTERAÇÃO VERBAL Neiva Maria Tebaldi Gomes* [email protected] Uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários tipos de enunciados em particular (primários e secundários), ou seja, dos diversos gêneros do discurso, é indispensável para qualquer estudo, seja qual for a orientação específica. Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida 1 (grifo nosso). 1 Considerações iniciais No ensino de língua e suas literaturas, estamos há algum tempo buscando romper com uma tradição que prioriza questões sobre a língua e sobre a literatura para dar espaço a uma prática escolar que priorize a interação verbal, que se processa por meio de textos orais e escritos. A produção científica produzida com a finalidade de orientar o ensino, os documentos parametrizadores2 e os próprios manuais didáticos apontam para essa prática. Entretanto, uma mudança, seja qual for, resulta sempre de um processo lento e gradual no modo de agir e de pensar, que vai além, portanto, de uma orientação teórica3. No contato direto com a sala de aula 4, percebe-se que ainda não se explora devidamente a diversidade textual. O texto, com poucas exceções, * Professora de Língua Portuguesa, Linguística Aplicada ao Ensino, Prática de Ensino e Estágio Supervisionado, no UniRitter. 1 Bakhtin, 2000, p. 282. 2 Referimo-nos, mais especificamente, aos PCNs. 3 Segundo FARIAS (2006, p. 43), uma mudança "reclama, também e principalmente, uma dimensão humana, política e ética por parte dos sujeitos nela envolvidos. Mudar pressupõe uma ruptura por dentro, para se libertar das amarras com o estabelecido e redefinir um outro modo de pensar e agir". 4 Contato que mantemos pelas visitas às escolas para orientação e supervisão do estágio curricular do curso e Letras e pelos encontros com professores de Ensino Básico que a prof. Leny Gomes e eu promovemos ao desenvolver a pesquisa docente A sala de aula e a pesquisa: intersecção de espaços, cujo objeto de estudo são as práticas escolares de ensino de língua e literatura. continua sendo utilizado como pretexto para o ensino de questões gramaticais ou literárias, muitas vezes pouco relevantes. As discussões linguísticas que vêm se desenvolvendo sobre gêneros discursivos parecem contribuir para a redefinição de outro modo de conceber o produto da atividade verbal, uma vez que remetem às diferentes esferas dessa atividade, não apenas à produção literária. São reflexões que procedem, fundamentalmente, de textos de um pensador russo, Mikhail Bakhtin 5, embora estudos sobre gêneros textuais tenham se desenvolvido também a partir de outros quadros teóricos 6 da Linguística. Independentemente da perspectiva pela qual se desenvolvem tais estudos, falar de gêneros, hoje, na Linguística é ter como foco a interação pela linguagem7, é tratar das formas de interação verbal8 que se constroem nas práticas sociais, procurando entender melhor o que o homem faz com a linguagem. Levar para a escola a perspectiva dos gêneros discursivos significa compreender o espaço escolar como uma extensão do grande espaço das relações sociais em que se movem e se constituem os sujeitos − o universo de textos orais e escritos. 5 Referimo-nos, aqui, mais especificamente, a Estética da Criação Verbal (Bakhtin, 2000), livro em que encontramos, no capítulo "Os gêneros do discurso", a distinção entre os gêneros do cotidiano e os literários. A base teórica dessa postulação, no entanto, aparece já em Marxismo e filosofia da Linguagem (1999). Ver, especialmente, p. 42-43 "tipos e formas do discurso"; cap. 5, Língua, fala e enunciação e cap. 6, A interação verbal. 6 No Brasil, além das inúmeras produções decorrentes da transposição dos PCN, outros estudos vêm contribuindo para a compreensão da diversidade de gêneros. MARCUSCHI (2004) apresenta uma categorização das diferentes formas de utilização da língua, considerando o continuum tipológico das práticas sociais de produção - da oralidade para a escrita e MARCUSCHI (2005) trata da funcionalidade dos gêneros e da diferenciação entre tipos e gêneros textuais. NEVES (2006) procura situar os estudos linguísticos mais recentes, recuperando o percurso literário dos gêneros. 7 NEVES (2006). Gêneros: ontem, hoje e sempre. Artigo a ser publicado em livro que está em fase final de organização. 8 O tema interação é complexo e sugere sempre uma pluralidade de estudos teóricos. A origem desses estudos na linguística, no entanto, parece ter, entre outras, duas vertentes bem definidas: uma que procede de estudos bakhtinianos (via França, mais especificamente) e outra, da pragmática, a vertente americana. A primeira (a bakhtiniana) enfatiza as relações sociais que acontecem inevitavelmente na interação e pela linguagem, entendendo-se, aqui, por interação uma ação - linguística ou não - que vai em direção ao outro, mas que tem uma implicação (eu/outro) mútua; a segunda (a pragmática) procura responder à pergunta o que fazemos com a linguagem. Neste artigo, focalizamos a interação a partir das práticas escolares de linguagem. 134 Carmem Luci da Costa Silva, et al. 2 Algumas considerações teóricas sobre os gêneros discursivos As teorias linguísticas, de modo geral, divergem entre si fundamentalmente quanto ao ponto de vista sobre a linguagem, mas representam, desde os estudos clássicos, uma tentativa de buscar a compreensão da própria natureza humana. Na abordagem dos gêneros discursivos, mais especificamente, o que está em jogo é a compreensão da linguagem como prática das inter-relações que se constroem predominantemente pela linguagem verbal. Na base das reflexões sobre essa prática, estão os enunciados9 que põem um sujeito em contato com outro. Esses enunciados concretos que emanam dos integrantes de uma ou outra esfera da atividade humana, quando considerados isoladamente, constituem enunciados individuais. Contudo, quando são considerados por sua funcionalidade − a de dar conta de diferentes necessidades de interação − revelam formas relativamente estáveis que cada esfera de utilização da língua elabora. Esses tipos de enunciados mais ou menos estáveis, que se modificam para dar conta de novas necessidades de interação ou para adequar-se a novos suportes, são denominados, na Linguística, gêneros discursivos10. Na percepção de Bakhtin 11, a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso − orais e escritos − são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai se diferenciando e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. Nessa complexidade devem 9 O termo de Bakhtin que aparece em Estética da Criação Verbal traduzido como enunciado designa uma unidade real de comunicação verbal (ou seja, uma unidade discursiva) que, criada num determinado momento, tem um autor e se destina a alguém. Por isso cada enunciado é, nesse sentido, único e não reiterável. 10 Em textos destinados à orientação do ensino de língua, percebe-se um uso indiscriminado dos sintagmas "gêneros discursivos" e “gêneros textuais". Nas discussões linguísticas mais recentes, o primeiro é mais frequentemente atribuído a Bakhtin, uma vez que toda a fundamentação teórica aparece já em Marxismo e Filosofia da Linguagem e posteriormente em Estética da Criação Verbal. O segundo sintagma - gêneros textuais - parece ser mais frequente em textos que derivam da Linguística Textual. Como usuário deste último encontramos, entre tanto outros, Luiz Antônio Marcuschi, (In: DIONISIO, A. P., MACHADO, A. R. e BEZERRA, M. A., (Org.), 2005. Os PCN, conforme estudo de Brait (In: ROJO (Org.), 2000, p. 15-38), fazem um uso indiscriminado desses sintagmas, mesclando, além dos dois citados, "tipologia textual". Não entraremos na discussão do conceito de gênero que procede da tradição literária, tema de que se ocupa Neves, no artigo já referido. A nosso ver, faltam estudos mais específicos para tratar com mais propriedade desses dois modos de ser da linguagem - o literário e o não literário. 11 Bakhtin (2000), p. 279-280. Teorias do Discurso e Ensino 135 ser consideradas as tecnologias que engendram novas formas de interação a partir das já existentes. Como formas de interação verbal, os gêneros do discurso caracterizam-se por sua heterogeneidade, incluindo, indiferentemente, a curta réplica do diálogo cotidiano, o relato, a carta familiar (hoje praticamente substituída pelo e-mail e outras formas de correspondência eletrônica), toda sorte de formas de informação e de apelos verbais veiculados por suportes midiáticos e publicitários, o repertório dos documentos oficiais, o universo das declarações públicas, as variadas formas de exposição científica e todos os modos literários (do dito popular ao romance volumoso). Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível (Bakhtin, 2000, p. 302). Essa afirmação enfatiza a origem e a constituição sociocultural dos gêneros que não devem, todavia, ser entendidos como formas rígidas, uma vez que são fruto de uma atividade humana tão natural, a linguagem verbal. Daí dizer-se, na Linguística, que são formas resultantes de situações de interação verbal e da reflexão do homem sobre essas formas de maior ou menor complexidade que vão se estabelecendo culturalmente. A diversidade de formas atende à diversidade de funções exercidas pela linguagem no universo sóciocultural. No dizer de François 12, A divisão dos gêneros depende, em particular, da oposição da fala de 'alguém', da fala do outro, daquela que eu reivindico como minha, daquela à qual estou habituado ou que me espanta, daquela que eu imito, aquela à qual eu respondo, aquela que eu comento, aquela à qual eu recuso responder ou aquela que me deixa sem voz [...]. (In: Brait, 1997, p. 201). Ao considerar os gêneros do ponto de vista da sua constituição e circulação, Bakhtin percebe uma diferença essencial entre o gênero de discurso primário (simples) e o gênero de discurso secundário (complexo). Os gêneros 12 Professor da Université "René Descartes" - Paris V/França. 136 Carmem Luci da Costa Silva, et al. secundários do discurso − o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico, ou seja, os gêneros característicos da escrita − aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída. Durante o processo de criação, segundo Bakhtin, esses gêneros secundários absorvem e transmutam gêneros primários (simples), gêneros que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea. Os gêneros primários do discurso − o diálogo oral, o relato, a anedota e todas as demais formas da oralidade − ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios. Esse processo de absorção e transformação de gêneros primários (da oralidade) pode ser mais facilmente percebido na literatura. É no romance, em especial, por sua extensão e complexidade, que representações e ressonâncias do cotidiano discursivo podem ser mais facilmente identificadas. Os estudos linguísticos que se desenvolvem pela perspectiva dos gêneros discursivos fundamentam-se na compreensão dessas inter-relações que se constroem pela linguagem verbal. Para Bakhtin 13, ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso leva ao formalismo e à abstração. Essa advertência revela uma clara recusa a estudos da língua voltados meramente para a forma, embora, em suas reflexões, ele não desconsidere o sistema linguístico. O estudo da natureza do enunciado e dos gêneros do discurso tem uma importância fundamental para superar as noções simplificadas acerca da vida verbal, a que chamam de o "fluxo verbal", a comunicação, etc, [...]. Irei mais longe: o estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real da comunicação verbal, também deve permitir compreender melhor a natureza das unidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as orações (Bakhtin, 2000, p.287). Os gêneros, como formas culturalmente estabilizadas de organização da atividade verbal − oral ou escrita −, são passíveis de mudanças e adaptações. 13 Referência feita na epígrafe deste artigo. Teorias do Discurso e Ensino 137 Modificam-se no "fluxo verbal" para dar conta de novas necessidades comunicativas e/ou em função do surgimento de novos suportes14. Podem, ainda, ser adaptados ou mesmo criados especialmente para certos eventos de letramento, ou mais especificamente para dar conta de situações de ensinoaprendizagem e de outras práticas de interação verbal na escola. No entanto, por serem concebidos como constitutivos das práticas sociais e culturais, os gêneros não podem ser pensados de modo independente dos contextos de produção e circulação. Por isso, estudar a língua pela perspectiva dos gêneros do discurso pode representar uma possibilidade de refletir sobre as ações humanas que estão ligadas ao uso da língua. 3 Gêneros discursivos e prática escolar de linguagem Nos últimos anos, na tentativa de fazer frente à fragmentação do conhecimento, têm-se desenvolvido teorias e estratégias interdisciplinares (muitas vezes reduzidas, estas últimas, a articulações artificiais de saberes, é verdade), mas separa-se, ainda, em disciplinas distintas 15 o que é constitutivo da própria existência social e subjetiva do indivíduo − a linguagem. A compreensão de que literário e não literário mesclam-se e fundem-se na atividade verbal tanto interior (constitutiva da consciência individual) quanto exterior (constitutiva das relações sociais) é ponto de partida para um trabalho escolar com a linguagem menos compartimentado e mais comprometido com a prática da atividade verbal − compreensão para a qual o referencial teórico dos gêneros discursivos aponta. A principal razão para qualquer ato de linguagem − que parte de um eu e vai em direção a um tu − é a produção de sentidos, sempre novos e sempre outros em cada ato enunciativo, porque participantes, intenções e contextos nunca serão exatamente os mesmos. Os sentidos e a linguagem se constituem na interação e se renovam pela capacidade criativa dos sujeitos. Para 14 Vejam-se as alterações ocorridas no processo de transformação de alguns gêneros: da carta ao e-mail e do diário manuscrito ao blog. 15 A dissociação entre ensino de língua e ensino de literatura, bem como outras dicotomias presentes na escola básica, é tema do artigo Literário e não literário: arte, vida e aprendizagem. (In: GOMES, Leny da Silva e GOMES, N. M. Tebaldi. (2006)). 138 Carmem Luci da Costa Silva, et al. desenvolvê-la, o aluno precisa encontrar espaços para dialogar e interagir com os textos, reconstruir sentidos a partir das suas experiências e dos seus saberes, confrontar suas ideias e percepções de mundo com as que são apresentadas ou representadas nos textos que materializam discursos, entendidos aqui num sentido amplo de construção sócio-histórica de maneiras de pensar e agir. Nesse sentido, convivemos com uma pluralidade discursiva que se reproduz e se reconstrói nos processos de interação social. Os discursos se materializam linguisticamente e, ao mesmo tempo, impregnam ideologicamente a língua que os veicula. Desse processo decorre certa submissão discursiva, isto é, as palavras nos vêm já carregadas de sentidos. Todavia, sempre sobra espaço para a autoria e para a descoberta de outros significados e de outras formas de significar, ainda que o espaço de criatividade, muitas vezes, se restrinja − na produção textual escrita − ao modo de recortar e organizar fragmentos discursivos e − na leitura − ao modo de relacionar esses fragmentos para produzir outros sentidos. Em todo ato de interação verbal, oral ou escrito, pressupõe-se uma competência social de utilização da língua de acordo com as expectativas em jogo. A escola deve, pois, funcionar como um laboratório de práticas sociais de produção de linguagem oral e escrita, propiciando a percepção e o desenvolvimento das múltiplas possibilidades de sentidos e formas de expressão e de interação verbal. Do trabalho diversificado com textos representativos das relações sociais e culturais resulta a produção de formas textuais tipicamente escolares que compõem o que poderíamos denominar "gênero escolar". São textos (orais e escritos) como diálogos, discussões escolares, comentários, paráfrases, resumos, resenhas, enfim, toda espécie de produção textual resultante da inter-ação com os gêneros que circulam no social extra-escolar e são selecionados para desenvolver as habilidades que propiciam a inclusão e a atuação numa sociedade letrada. Em relação à leitura, o reconhecimento do gênero por sua função contribui para entendê-la como prática social responsiva − uma reação-resposta do destinatário do enunciado −, ou seja, como uma tomada de posição ativa a propósito do que é lido e compreendido. O leitor não é passivo em nenhum momento do processo de leitura, porque a compreensão resulta da atividade do Teorias do Discurso e Ensino 139 leitor: de embates entre formas linguísticas e sentidos possíveis, entre percepções, vivências e saberes do leitor com as representações textuais. É nesse sentido que a leitura produzida, de alguma forma, é sempre uma resposta. Ao considerar as formas de circulação dos gêneros nas instituições do mundo atual, Kleiman diz que não há por que não incluir a escola no 'circuito dos gêneros'. As ações nos eventos de diversas esferas de atividade do cotidiano não estão sedimentadas; elas não pertencem apenas a um tipo de evento social e os textos aí interpretados ou produzidos não pertencem apenas a um gênero, mas resultam de combinações de gêneros retirados das instituições [de]onde se originaram, pelos participantes do evento [...] (Kleiman, In: Bunzen E Mendonça (Org.), 2006, p.28). Por essa sua maleabilidade, segundo Kleiman, os gêneros podem servir de matriz social e histórica de atividades escolares. No entanto, para que o gênero selecionado para o trabalho escolar não fique dissociado de sua função, será preciso ter sempre presente a necessidade de contextualização da atividade verbal, tanto na leitura quanto na produção do texto. Para isso, imaginemos, por exemplo, o engajamento dos alunos de uma determinada série em um projeto que tenha como meta final uma campanha de doação de alimentos a creches assistenciais da comunidade. Os saberes a respeito dos textos que circulam na esfera publicitária poderiam ser explorados na produção de textos destinados a servir de mola propulsora da campanha e conseguir o envolvimento dos pais, de grupos sociais e pessoas da comunidade; os de texto jornalístico, para divulgá-la dentro e fora da escola; os de texto científico para dar suporte à produção de relatórios de atividades interdisciplinares paralelas, como pesquisa do valor de determinados alimentos ou as consequências advindas da falta de outros. Desse modo, a realização do projeto oportunizaria a inserção do aluno em diferentes esferas das práticas sociais letradas, tornando-o sujeito ativo de sua aprendizagem. A produção de faixas, cartazes, anúncios, notícias, reportagens, relatórios, entre outros, constituiria um exercício dos gêneros publicitário, jornalístico e científico, porém na condição de gêneros situados na escola. Na preparação e execução do projeto, além da leitura e produção textual, outras habilidades seriam exercitadas: discussão de grupo, relato oral, argumentação. 140 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Teríamos aqui um trabalho escolar fundamentando uma prática social da linguagem. Em relação à adoção da perspectiva dos gêneros discursivos na escola, Kleiman lembra que é a prática social que viabiliza a exploração do gênero, e não o contrário. Sem o embasamento dessa prática, em vez de resultar no acréscimo de uma matriz sócio-histórica que guie as ações dos jovens, a adoção dos gêneros pode resultar na sobreposição de mais um conjunto de descrições metalinguísticas. A pesquisadora destaca a necessidade de um enfoque que se afaste do ensino de objetos que podem ser reduzidos aos seus aspectos linguísticos formais. Dito de outra forma, são as habilidades de interagir pela linguagem − compreendendo, interpretando, analisando, avaliando, argumentando e produzindo textos que dão conta de funções diversas − que devem ser estabelecidas como metas a atingir com o trabalho escolar e não a identificação e descrição de características formais dos gêneros. O desenvolvimento dos estudos linguísticos tem contribuído para que essas outras esferas de uso da linguagem escrita, além da literária, passassem também a ser consideradas para efeito de estudos. Essa prática de modo algum diminui o valor do texto literário, muito menos desobriga a escola de dar-lhe o devido destaque no ensino. Ao contrário, a compreensão dos diferentes usos da linguagem certamente leva o aluno a perceber melhor nuanças próprias dos diferentes modos de existência da língua. Os próprios PCN orientam no sentido de que, no Ensino Fundamental, a escola deve abrir espaço para a diversidade discursiva e, no Ensino Médio, seja dada prioridade ao texto literário. Confrontando a concepção clássica de gênero com a atual, Neves afirma que, Falar de gêneros, hoje, na era da Lingüística, é ter como foco a interação pela linguagem, enquanto falar de gênero, em Aristóteles, era falar do objeto 'poética' ou do objeto 'retórica', tendo como foco o 'dizer bem' com a linguagem.[...] O fim último era obter que a linguagem, o instrumento para dizer a verdade, a dissesse bem segundo sua finalidade, com qualidade, com arte e estilo! (Neves, 2006). Teorias do Discurso e Ensino 141 Neves lembra ser o gênero literário uma convenção estética que dá forma à obra, um repertório de recursos expressivos que pode ser descrito por meio do exame dos discursos literários. A Linguística, certamente, não muda essa concepção literária, mas passa a considerar outras dimensões e outras esferas de uso da língua, incluindo os gêneros que ficavam à margem de qualquer estudo. A autora também lembra que foi a consideração da necessidade de adaptar o discurso ao auditório que levou ao estabelecimento dos gêneros. Assim, diz, no passado como no presente, é o foco no auditório − a finalidade − que orienta o surgimento e a flexibilização dessas formas. Desse modo, partindo da classificação dos gêneros poéticos de Aristóteles, Neves apresenta uma visão geral sobre o percurso e a evolução do que diz ser o gênero 'revisitado', sem descuidar de momentos significativos da ampliação da esfera social desse estudo, destacando Bakhtin com a reflexão sobre 'gêneros discursivos' − noção que é retomada, segundo a autora, por outros linguistas modernos, como Schneuwly 16, porém neste já sem a especificação do discurso/discursivo. Neves enfatiza a relação forte que vê entre as propostas funcionalistas da linguagem e a dos gêneros, uma vez que ambos os enfoques se sustentam em princípios como finalidade, propósito, intenção de produção. Diz insistir nessa relação porque a teoria funcionalista se ocupa da língua 'em função'. Para Machado 17, o gênero, é antes de tudo, um conceito plural que se reporta às formulações combinatórias da linguagem em suas dimensões verbal e extra-verbal. O gênero articula formas discursivas criadoras da linguagem, de visões de mundo e de sistemas de valores configurados por pontos de vista determinados, constituindo-se, assim, como decorrência direta das formas representativas do mundo cotidiano e prosaico. Analisando os Parâmetros Curriculares Nacionais, percebe-se que a concepção de gênero está aí posta, uma vez que explicitam a relevância da exploração da linguagem por seu potencial constitutivo das relações sociais − o 16 A autora faz referência a SCHNEUWLY, B. Genres et types de discours: considérations psychologiques et ontogénétiques. In: REUTER, Y. (Ed.) Actes du Colloque de l'Université Charles-De Gaulle III. Les interactions Lecture-écriture. Neuchâtel: Peter Lang, 1994. p. 155-173. 17 1997, p.143. 142 Carmem Luci da Costa Silva, et al. caráter intersubjetivo (o "eu" na relação com o outro) − e da consciência individual − o intrasubjetivo (o "eu" diante de si mesmo, porém que se constitui como "eu" porque existe outro). Toda linguagem carrega dentro de si uma visão de mundo, prenha de significados e significações que vão muito além de seu aspecto formal. O estudo apenas do aspecto formal, desconsiderando a inter-relação contextual, semântica e gramatical própria da natureza e função da linguagem, desvincula o aluno do caráter intrasubjetivo, intersubjetivo e social da linguagem (PCN, 2002, p.126-7) A produção científica produzida e tomada como referência para o ensino não deixa dúvida: no trabalho escolar, a ênfase deve ser a interação verbal que se processa em diferentes formas e usos da língua e se materializa em textos orais ou escritos. 4 O texto na sala de aula: sugestão de atividades Apresentamos, em continuidade, dois textos que serão acompanhados de um roteiro de atividades. Embora mantenham alguma semelhança temática, diferenciam-se, inicialmente, pela esfera a que pertencem. O texto 1, Identidade, é um poema, pertence portanto à esfera literária (literatura infanto-juvenil) e como tal a significação é veiculada pela materialidade linguística. O texto 2, Eu sou Eu, integra o gênero canção, constituindo-se os sentidos pelo componente linguístico e pela música. Nesse gênero, o texto não pode, num primeiro momento, desatrelar-se da melodia, sob pena de transformar-se em outro gênero, certamente empobrecido. Como materializações de gêneros que facilitam a expressão de subjetividade − poesia e canção − e por trazerem à tona uma questão identitária, esses dois textos, juntamente com outros, poderiam integrar uma unidade ou projeto de trabalho que envolvesse uma reflexão sobre a própria identidade. Teorias do Discurso e Ensino 143 Texto 1 Identidade 18 Pedro Bandeira Às vezes nem eu mesmo sei quem sou. Às vezes sou "o meu queridinho". Às vezes sou malcriado. Para mim tem vezes que eu sou rei, herói voador, caubói lutador, jogador campeão. Às vezes sou pulga, sou mosca também, que voa e se esconde de medo e vergonha. Às vezes eu sou Hércules, Sansão vencedor, peito de aço, goleador. Mas que importa O que pensam de mim? Eu sou eu, sou assim, sou menino. 18 Disponível: http://www.institutoalgar.org.br/conteudo.asp?ContentID=75 144 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Sugestão de atividades 19. 1 - Leitura individual. 2 - Espaço para a verbalização e socialização de sentidos e relações construídas pelos alunos a partir da primeira leitura. 3 - Leitura oral seguida de espaço para a discussão mediada pelo professor que orientará, se for preciso, o diálogo intertextual com a mitologia grega (Hércules) e com o episódio bíblico (Sansão)20, a percepção da função desses elementos na (re)construção dos sentidos do texto; a identificação dos elementos que compõem as comparações, as antíteses e sua função na constituição dos sentidos; a alteração da estrutura textual com a introdução da pergunta − Mas que importa / O que pensam de mim? − e da resposta − Eu sou eu / sou assim, / sou menino; a reflexão sobre essa estrutura − quem pergunta, quem responde, quem é o "eu" do poema? 4 - Observação e análise da composição textual − extensão dos versos, rimas − e da relação dessa estrutura com os sentidos. 5 - Releitura do texto, agora para construir interpretações, tendo como núcleos significativos as comparações que permitem expressar as diferentes percepções subjetivas do "eu" poético. 6 - Diálogo com outros textos: sugerir a busca de outros textos que tratem da questão da identidade. O roteiro sugerido visa apenas à consideração de etapas que consideramos constitutivas do processo de leitura: num primeiro o contato com o texto, a construção de relações de sentido e associações se estabelecem a partir da experiência individual, embora suscitada pelo componente linguístico; na(s) releitura(s) a construção de interpretações deve ser orientada, mais especificamente, pela materialidade linguística. A socialização dos sentidos construídos individualmente, como foi sugerido por meio do roteiro, contribui para 19 Esse roteiro é apenas uma sugestão entre outras possíveis. São atividades, provavelmente, mais adequadas para alunos de quinta série. 20 Caso o aluno não tenha as informações necessárias para estabelecer essas relações intertextuais de sentido, o professor deverá fornecê-las. Atividades complementares de pesquisas poderão ser também desencadeadas, promovendo um trabalho interdisciplinar. Teorias do Discurso e Ensino 145 que o leitor em formação possa sentir-se participante ativo do processo de compreensão de um texto. A sua experiência, os seus conhecimentos linguísticos e extralinguísticos são acionados na recuperação dos sentidos potencialmente presentes na materialidade linguística. Dessa forma, o ato de leitura constitui um processo de diálogo entre leitor e texto, porém diálogo entendido como embate, como trabalho com essa materialidade. No poema "Identidade", por sua estrutura composicional, será preciso destacar a função das oposições que refletem conflitos na percepção da própria identidade. O menino, ora "queridinho" ora "malcriado", pode experimentar tanto a sensação de força e poder dos heróis míticos (um Hércules − semideus da mitologia grega, célebre pela sua força − ou um Sansão − personagem bíblica também célebre por sua força, cuja história é contada entre os capítulos XIII e XVI do Livro dos Juízes) e outros heróis atuais, quanto a pequenez de um inseto. Todavia é pela identificação das duas personagens que se constroem as relações intertextuais, o diálogo que vai permitir as interpretações. Por isso, a recuperação da intertextualidade é imprescindível. Entre outras possibilidades, esse texto ainda poderia ser utilizado para desencadear uma unidade de trabalho em que cada estudante buscaria textos de diferentes gêneros para explicitar seu próprio percurso identitário: do registro oficial (certidão de nascimento, de batismo ou outra forma de filiação religiosa, carteira de sócio de clube, identidade escolar e outras identificações e filiações), do registro do cotidiano (participação de nascimento, convites para festas de aniversário e outros), do registro das relações interpessoais do dia a dia (e-mail recebidos e enviados e outras formas de comunicação). Seguindo esse percurso, estaríamos explorando diferentes gêneros por sua função e tornando o trabalho de sala de aula mais próximo da vida do aluno. Certamente, esse percurso também levaria a uma reflexão sobre a própria identidade, o lugar social, as relações interpessoais, fortalecendo sentimentos de identificação e pertencimento a determinados grupos sociais. Ao final do projeto, os sujeitos envolvidos teriam subsídios para escrever sobre sua própria identidade. Como uma das etapas do processo de produção escrita, é importante levar o aluno a refletir sobre o contexto de produção: para quem vai dizer o que tem para dizer, de que modo, com que finalidade e em que gênero. 146 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Texto 2 EU SOU EU Luiz Tatit 21 Você reclama que eu estou tão diferente Você não sabe o que diz, é evidente Como é que pode de repente Alguém ficar tão diferente E diferente de quê? Como é que dá pra saber? Só eu que sei eu que vivo O tempo todo comigo O tempo todo não digo Mas o bastante Pra me reconhecer Eu estou aqui pra provar que eu sou eu Vim desfazer essa dúvida cruel Pois só de te mostrar que não sou outro Eu já me sinto outro, já valeu Você diz que eu já não sou mais aquele Passa por mim e pergunta quem é ele? Como é que pode alguém deixar De ser aquele que já foi Se quem já foi ainda é Enquanto vive ainda é Pode dizer o que quiser Mas se está aí porque é Não é preciso ter fé Pois se tem corpo, alma, Cheiro, voz, qual é! Eu estou aqui pra provar que eu sou eu Vim desfazer essa dúvida cruel 21 TATIT, 1997. Também disponível: http://www.mpbnet.com.br/dabliu/dboo27/index.html. Teorias do Discurso e Ensino 147 Pois só de te mostrar que eu não sou outro Eu já me sinto outro, já valeu Mas mesmo eu que sou eu tive receio Se não sou eu nem sou outro estou no meio Como é que fica a minha imagem Individual e social Apresentando-me assim Sou diferente de mim Mas sou eu mesmo no fim Isso não cola é ruim Quem é que crê nisso aí É preferível dizer Então esqueça-me! Eu estou aqui pra provar que eu sou eu Vim desfazer essa dúvida cruel Pois só de te mostrar que não sou outro Eu já me sinto outro, já valeu Sugestão de atividades 22 1 - Audição da canção. 2 - Espaço para a verbalização e socialização de sentidos e relações textuais construídas pelos alunos a partir da primeira audição, a relação desse ritmo de música com outros e dessa letra com outras. 3 - Segunda audição, agora lendo a letra da canção. 4 - Discussão mediada pelo professor, agora centrando a atenção na materialidade linguística e melódica: exploração dos efeitos rítmicos e poéticos estabelecidos pelo encadeamento das palavras, pela utilização de rimas, aliterações, assonâncias e repetições. (Observação da função desses recursos no texto e não sua classificação ou teorização sobre eles). 22 A canção de Tatit também poderia ser explorada a partir das últimas séries do ensino fundamental. Da mesma forma que o texto anterior, as atividades sugeridas poderiam integrar um projeto que tivesse por objetivo uma reflexão do adolescente sobre a própria identidade. 148 Carmem Luci da Costa Silva, et al. 5 - Atenção à estrutura composicional: a pressuposição de um "tu" com quem o "eu" dialoga (diálogo indireto em que se constitui a canção). 6 - Após a mobilização de saberes de diferentes áreas (musical, literária, linguística), oportunizar uma última audição para que a reconstrução de sentidos possa ser ampliada, agora construindo interpretações tendo como núcleos significantes os versos Estou aqui pra provar que eu sou eu / Vim desfazer essa dúvida cruel / Como é que fica a minha imagem / Individual e social. 7 - Diálogo com outros textos: incentivar a busca de outras canções ou poemas que tratam da questão da identidade. Como no texto anterior, é a questão da identidade que aflora. Mas neste há que se dar atenção ao gênero que, como já dissemos, se constitui de melodia e texto. O texto, sem a melodia, transforma-se noutro gênero. Daí a necessidade de apresentá-lo, num primeiro momento, em seu suporte original, a música. A canção, cuja função principal é a expressão de uma subjetividade, revela um movimento enunciativo que transforma a voz que fala em voz que canta 23. Da fala ao canto há um processo geral de corporificação: da forma fonológica passa-se à substância fonética. A primeira é cristalizada na segunda. As relações in absentia materializam-se in praesentia. A gramática lingüística cede espaço à gramática de recorrência musical. A voz articulada do intelecto converte-se em expressão do corpo que sente (Tati, 1996, p.15). 5 Considerações finais Entendemos que a prática linguística deve reproduzir, de alguma forma, o universo social mais amplo e promover atividades que visem ao desenvolvimento de habilidades de leitura e produção de textos (textos que articulam, reproduzem, criam ou recriam discursos), à promoção da interação, ao estabelecimento de confrontos de pontos de vista, à descoberta e promoção da autoria. Entendemos, também, que há uma estreita relação de complementaridade entre os processos de leitura e escrita. A leitura não é somente algo que precede a escritura, mas está implicada continuamente nesta última, constituindo-se num componente 23 Tatit, 1996, p.14. Teorias do Discurso e Ensino 149 essencial do processo de produção. Quem escreve, de fato, deve alternar o papel de escritor com o de leitor de si mesmo, avaliando quanto produziu, imaginando como será entendido, procurando assumir a perspectiva daquele(s) a quem a escrita se destina. Essa capacidade de ler-se é questão prévia para obter resultados adequados com a escrita e está na base, em particular, da habilidade de revisão do próprio texto, como o observa Della Casa 24. Também concordamos com Della Casa quando afirma que os textos que lemos podem constituir os referentes de uma comunicação dialógica 25. Frequentemente escrevemos em relação a um outro texto, por exemplo, para confirmar, referir, refutar ideias, ou para introduzir novos pontos de vista. A escola deve constituir-se em um laboratório dessas vivências sócio-discursivas e explorar todas as possibilidades de "representação" do universo social. Em textos de gêneros das esferas do cotidiano, como no jornalístico, encontram-se, facilmente, exemplos da comunicação dialógica verbal: artigos que refutam pontos de vista anteriormente publicados, textos de opinião com posicionamentos divergentes, na mesma página, respostas a questionamentos. Todos exemplos de atividades que podem ser realizadas, desde cedo, no micro-universo da escola. Dessa forma, os textos lidos e produzidos reforçariam o vínculo existente entre a língua e a vida. A produção textual deixaria de ser um exercício, desprovido de sentido, de produção de descrição, narração ou dissertação, que como gêneros inexistem porque constituem apenas sequências com as quais se constroem os textos de diferentes gêneros, e se tornaria atividade discursiva. A atividade discursiva, segundo Bakhtin 26, é um jogo fundamentalmente dialógico, porque o discurso elabora-se no meio do já-dito dos outros discursos e, mais especificamente, do já-dito que se dá no espaço social compartilhado pela palavra. Mas esse espaço não está desabitado. Nele confrontam-se discursos diferentes, diferentes sentidos, e aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. 24 2001, p. 152-153. A caracterização "dialógica" remete à própria condição da atividade discursiva que se elabora no meio do já-dito dos outros discursos como resposta, pressupondo-se aí o confronto de ideias. 26 1999 p. 147. 25 150 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Ao longo deste texto, foram trazidas considerações sobre uma prática linguística mais próxima da realidade vivida pelo aluno em outros contextos sociais de interação verbal e menos voltada para a forma abstrata, porque A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (Bakhtin,1999, p. 23). Essa compreensão é, certamente, fundamental para que o processo de ensino-aprendizagem da língua e suas literaturas possa ser focalizado por uma perspectiva menos teórica e mais centrada nas diferentes esferas de uso e modos de existência da língua. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). 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O principal propósito de nossa pesquisa é refletir acerca da construção dos sentidos no texto, evidenciando a importância das relações que se estabelecem, nesse processo, entre os componentes sintáticos, semântico-discursivos e pragmáticos. Com base nessa perspectiva, defendemos que nenhuma análise linguística pode ser feita isoladamente, posto que a própria linguagem é um sistema não autônomo. Assim, examinar um fenômeno linguístico exige ultrapassar o nível da palavra e da frase, ou seja, só é possível compreendermos determinado fato linguístico, se analisarmos o texto, o contexto comunicativo, incluindo-se aí o conjunto de enunciados dos envolvidos na comunicação e o próprio processo de enunciação. Cabe ressaltar que as análises que apresentamos ao final deste trabalho resultam de um processo de discussão, estudo e troca de experiências entre professores que atuam nas disciplinas de Prática de Ensino I e Prática de Ensino II, do curso de Graduação em Letras da UPF – de cujo grupo fazemos parte – e alunos que desenvolvem seus estágios curriculares em escolas do ensino fundamental e médio da região de abrangência da UPF. Muitas das reflexões * Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo e Doutora em Linguística Aplicada pela PUCRS. ** Professora do Curso de Letras da Universidade de Passo Fundo e Mestre em Linguística Aplicada pela PUCRS. apontadas aqui resultam de provocações de alunos dos cursos de PósGraduação Lato e Stricto Sensu do curso de Letras. Na verdade, temos ouvido, com frequência, os alunos afirmarem que estão seguros do que “não devem fazer nas aulas de português”, mas inseguros de como realizar práticas pedagógicas que conduzam o aluno a melhorar seu desempenho linguístico e a desenvolver sua competência comunicativa. Nosso propósito é, à luz da perspectiva funcionalista, evidenciar que a língua tem de ser tratada no seu contexto de uso e entendida na sua relação com as diversas possibilidades de interação. Se toda atividade verbal se dá através de textos, deve ele – o texto – ser o eixo principal do trabalho escolar. Para dar conta da investigação pretendida, fizemos um recorte e escolhemos, dentre diversas possibilidades de estudo, um fenômeno específico: o comportamento do pronome demonstrativo em enunciados escritos, valendo-nos, para tal, de textos de humor. Pretendemos, com este trabalho, contribuir para que se ampliem discussões acerca da necessidade de o professor redimensionar a sua prática pedagógica, desenvolvendo, por exemplo, um trabalho que permita ao aluno reconhecer a função referenciadora do demonstrativo e o papel que ele desempenha na construção dos sentidos do texto. Acreditamos que somente através de atividades reflexivas, com base na língua em uso, é que nossos alunos tornar-se-ão mais competentes linguística e textualmente. 2 Questões ligadas ao ensino da língua Para discutir o papel dos pronomes demonstrativos na construção dos sentidos de um texto escrito, acreditamos ser necessário fazer uma breve referência à concepção de língua que adotamos ao tecer essas considerações e a como entendemos que deva se dar esse ensino. Com relação a isso, usamos as palavras de Marcuschi (1996), que defende a posição de que a concepção de língua é que define a perspectiva de ensino a ser adotada. Assim, se a lingua é vista como um código transparente, cuja função é transmitir informação – afastada, portanto, da vida dos falantes – a ela é dado um tratamento também artificial, distante do contexto em que se realiza. Já, se a língua é concebida 154 Carmem Luci da Costa Silva, et al. como um fenômeno natural e histórico, como uma atividade social e cognitiva que varia ao longo do tempo, de acordo com os falantes e com os seus propósitos, sua manifestação e tratamento se darão nessa mesma perspectiva. Esta, pois, é a posição que adotaremos no percurso que ora construímos. Entendemos que não há como a escola ver a língua afastada do falante e de seu uso. A língua concebida como enunciação, como discurso, inclui as relações da língua com aqueles que a utilizam e com o contexto de situação. Nessa perspectiva, tal como afirma o já referido autor, a língua se configura como uma atividade constitutiva – que permite aos falantes a construção dos sentidos – como uma atividade cognitiva – por meio da qual os usuários expressam seus sentimentos – e como uma atividade social – por meio da qual os sujeitos interagem. Dik (apud Neves, 1997), em seu paradigma funcional, concebe a língua como instrumento de interação social, com vistas a estabelecer relações comunicativas entre os usuários. Nesse modelo, a interação verbal é construída pelo falante e pelo ouvinte. Neves, com relação a esse aspecto, destaca que tanto o falante quanto o ouvinte têm informação pragmática. Isso porque quem fala tem uma intenção, com base no conhecimento que tem do destinatário, e deseja obter uma determinada interpretação. O ouvinte, por sua vez, apoiado no conhecimento que tem do falante, busca recuperar a intenção produzida. Conforme a perspectiva funcionalista, o ensino da língua deve se dar de forma a integrar os diversos componentes da produção linguística, ou seja, a pragmática – a situação de interação, que inclui os usuários da língua, suas intenções e todo o processo de interação –, a semântica – a busca dos efeitos de sentido – e a sintaxe – a escolha da estrutura do enunciado. Assim, só haverá comunicação se os interlocutores dialogarem entre si e se houver sucesso na interação. Nesse processo é determinante não só a situação comunicativa, como também, a organização, a estrutura do discurso, ou seja, as escolhas, os arranjos feitos pelos interlocutores. Isso reforça a ideia de que aspectos pragmáticos, semânticos e sintáticos não se sustentam de forma isolada e independente e não podem ser analisados de forma autônoma. Um está interligado a outro, estabelecendo entre eles uma interdependência que só o discurso pode fazer ver. Teorias do Discurso e Ensino 155 Diante disso, reafirmamos que o ensino da língua, como processo de interação verbal, concebe a língua como enunciação, incluindo, portanto, as relações da língua com aqueles que a utilizam, com a situação comunicativa e com as condições de produção em que ela ocorre. Essa perspectiva aponta para um trabalho centrado nas atividades de uso da língua, ou seja, nas atividades de produção oral, produção escrita, na leitura e na compreensão oral e escrita. Como já evidenciamos anteriormente, se é no texto e é através do texto que a linguagem se constrói, é no texto que devemos centrar o ensino da língua. Esse ensino só se dará se as atividades forem desenvolvidas tendo como ponto de partida a exposição a diversos tipos de texto, a observação de como o texto está organizado e estruturado, a percepção das razões que determinaram as escolhas, a escrita usual de textos – não como atividades eventuais ou como produções que valem nota – enfim, o ensino do português só se justifica pelo papel que as atividades realizadas desempenham na construção e na compreensão de textos. Assim, as aulas de português devem ser planejadas de tal modo que o aluno, com base nas possibilidades que lhe são oferecidas, seja capaz de julgar, avaliar, fazer escolhas, ajustar sua linguagem, enfim, empregar estratégias que garantam o êxito na interação. O que pretendemos, na verdade, é que o aluno esteja habilitado não só a construir textos com qualidade, mas a ter uma nova postura diante da leitura e da escrita, de modo que ele faça dessas práticas motivações para pensar o mundo e atuar socialmente na melhoria desse mundo, para construir um novo sujeito, uma nova sociedade. Com base nessas reflexões, vale observar que, ao trabalhar a língua, o professor não pode restringir esse estudo a atividades de análise de determinados itens gramaticais, de forma isolada. Se o que defendemos se ancora no pressuposto de que a língua tem de ser tratada no seu contexto de uso e entendida na sua relação com as diversas possibilidades de interação – privilegiando a abordagem funcionalista – é no texto que se poderá efetivar esse estudo. Tal como afirma Neves (2002, p. 226), saber expressar-se numa língua não é simplesmente dominar o modo de estruturação de suas frases, mas é saber combinar essas unidades sintáticas em peças comunicativas eficientes, o 156 Carmem Luci da Costa Silva, et al. que envolve a capacidade de adequar os enunciados às situações, aos objetivos da comunicação e às condições de interlocução. Desse modo, cabe ao professor de língua oferecer situações para que o aluno, a partir da língua que usa, se aproprie de diversos mecanismos linguísticos, de forma a trabalhar modos de expressão e de organização do texto. 3 A gramática no ensino fundamental e médio Uma questão que tem suscitado inúmeras reflexões e tem sido motivo de muitas discussões entre os professores de língua materna diz respeito a como trabalhar a gramática no espaço escolar. Cabe destacarmos que é expressivo o número de estudos e investigações que circulam nos meios acadêmicos acerca do tratamento da gramática no ensino fundamental e médio e que vêm desafiando os professores a repensar a sua prática pedagógica. Ainda assim, estamos longe de acreditar que as escolas tenham clareza de como conduzir esse novo processo. Com referência à abordagem da gramática, convém ressaltar que, ao fazermos menção a essa questão, nos apoiamos na concepção de gramática como o próprio sistema de regras da língua em funcionamento. Tal como defende Neves (2002, p.226), a boa constituição de um texto passa pela gramática, ou seja, “produção de texto e gramática não são atividades que se estranham; pelo contrário, as peças que se acomodam dentro de um texto cumprem funções” que estão na natureza da própria gramática. Nessa perspectiva, tudo que é gramatical é textual, e tudo que é textual é gramatical. Com respeito a essa questão, afirma Travaglia (2003, p. 45): Todos os recursos da língua – em todos os seus planos (fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático) e níveis (lexical, frasal, textual-discursivo) – em termos de unidades e estruturas (sejam elas fonológicas, morfológicas, sintáticas, textuais), funcionam como pistas e instruções de sentidos que são coadjuvados nesta função por mecanismos, fatores e princípios. Dessa ação conjunta surgem os efeitos de sentido possíveis para uma dada seqüência lingüística usada como texto numa dada situação de interação. Teorias do Discurso e Ensino 157 Ocorre que, embora essas concepções circulem entre os professores de língua portuguesa, o trabalho com a gramática continua se dando da forma mais tradicional, ou seja, aos alunos é oferecido um ensino em que a metalinguagem é privilegiada, em detrimento da própria linguagem; são propostas atividades que priorizam a simples rotulação, o reconhecimento, a categorização de entidades isoladas; são desenvolvidas atividades artificiais e mecânicas, distantes da língua em funcionamento e que prescindem de qualquer tipo de reflexão. Permanece, ainda, arraigada a ideia de que o domínio de definições de entidades e a memorização de paradigmas linguísticos são formas de garantir a boa linguagem. Consideremos o foco principal deste trabalho. Se fosse solicitado a um professor – cuja prática ainda se sustenta no ensino tradicional de gramática – que desenvolvesse o estudo do pronome demonstrativo, muito provavelmente o seu ponto de partida (tal como ocorre nas gramáticas pedagógicas e na maioria dos livros didáticos) seria a apresentação da definição, pretensamente absoluta, exata, transparente; posteriormente seriam propostos exemplos, também inequívocos, apresentados fora do discurso, que se encaixariam exatamente dentro da definição dada. Seguiriam atividades de reconhecimento, de subclassificação, de preenchimento de lacunas em frases artificiais (intencionalmente construídas para tal propósito) ou, talvez, exercícios mecânicos com base em textos-pretextos. Nenhum progresso linguístico se efetivará a partir de exercitações mecânicas. Nenhuma melhoria na competência comunicativa se dará se não se contemplar a língua em uso. Nenhuma ampliação da expressão verbal se desencadeará se não se observarem as possibilidades que determinam a construção dos sentidos. Não há, portanto, como analisar o comportamento do pronome demonstrativo sem se considerar o seu papel de referenciação textual ou situacional. Embora seja fundamental examinar a sua função interna na estrutura oracional, não podemos tratá-lo como uma unidade autossuficiente. 158 Carmem Luci da Costa Silva, et al. 4 Uma questão teórica: o processo de referenciação Como já afirmamos, o objetivo principal deste estudo é observar, analisar e discutir o movimento sintático-semântico do pronome demonstrativo em textos de humor, tendo presente o processo de construção dos sentidos desses textos. Para isso, faremos, agora, algumas reflexões mais específicas sobre referenciação. Temos como ponto de partida o pressuposto de que a referenciação constitui uma atividade discursiva, o que implica dizer que a língua e a linguagem não são referenciais, ou seja, não nos interessa interpretar as estruturas linguísticas sob o ponto de vista das estruturas objetivas da realidade. Essa ideia de ver a referência como atividade linguística é defendida por Mondada & Dubois (1995). Queremos pontuar que, num estudo de língua, o que deve ser posto em relevo não são as estruturas da realidade, mas as estruturações impostas pela interpretação humana à realidade. Isso lembra Ferdinand Saussure, no Curso de Linguística Geral, quando afirmava que o ponto de vista cria o objeto. Referência não é a representação de referentes do mundo, uma vez que acreditamos que a realidade é construída e alterada conforme interagimos com ela. Assim, podemos afirmar que a referência é o resultado de uma atividade que realizamos quando usamos uma expressão linguística para designar ou representar o mundo. Tal como defendem Marcuschi & Koch (1998), os referentes textuais não são objetos-de-mundo, mas sim objetos-de-discurso que podem ser modificados, reativados, (re) interpretados, transformados, pois, na medida em que usamos a língua, tudo é colocado a serviço da construção do discurso. Conforme os autores, não se pode negar que existe a realidade extramente, nem se pode definir a subjetividade como parâmetro do real. Segundo eles, o nosso cérebro não opera como um sistema fotográfico, que reflete o real. Ele reelabora os dados sensoriais para fins de apreensão e compreensão. E essa reelaboração se dá essencialmente no discurso. Também não se postula uma reelaboração subjetiva, individual: a reelaboração deve obedecer a restrições impostas pelas condições culturais, sociais, históricas e, finalmente, pelas condições de processamento decorrentes do uso da língua (Marcuschi & Koch, 1998, p.5). Teorias do Discurso e Ensino 159 Com base em estudos realizados por Denis Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995), podemos dizer que a referência evidencia um processo construído por um sujeito em uma dada situação discursiva. Isso mostra que os referentes não são realidades do mundo, mas sim representações construídas pelo discurso, ou seja, são objetos-de-discurso. Essa reflexão revela que quem constrói a imagem daquilo a que remete é o próprio discurso. Relativamente a esse campo teórico, Lorenza Mondada (1994) (In: MARCUSCHI, 2000) acentua que as representações não têm uma estrutura fixa, posto que emergem e são construídas na dinâmica discursiva. Reafirmamos, portanto, que os objetos tratados no discurso, ou seja, aqueles elementos aos quais o discurso faz referência, são objetos constitutivamente discursivos e, como tal, objetos-de-discurso gerados na/pela enunciação. 4.1 O papel da anáfora na construção do discurso Dentro do universo linguístico da referenciação, destacamos, inicialmente, a anáfora. De acordo com o Dicionário de Análise do Discurso de Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau (2004) a origem da palavra anáfora vem do grego ana – “para o alto”, “para trás”, e phorein – “levar”. A origem do vocábulo “anáfora” lembra um movimento de referência a algo presente no texto. Ainda, segundo o Dicionário já mencionado, a anáfora pode ser definida como o relacionamento interpretativo, em um enunciado ou sequência de enunciados, de ao menos duas sequências, sendo que a primeira tem a função de guiar a interpretação da outra ou das outras (2004, p. 36). Assim, para nós, neste trabalho, o que importa é que esse fenômeno linguístico visa a retomar e/ou enfatizar um sintagma nominal anterior. Esse procedimento - característico da coesão textual – acaba por manter sempre ativado o tópico textual, levando-o adiante no processo enunciativo do texto, na medida em que o discurso está sempre se fazendo. Conforme o Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem de Ducrot e Todorov (1972), etimologicamente, anáfórico é aquilo que remete para trás ou, ainda, um segmento de discurso é anafórico quando é necessário referir-se a outro elemento do mesmo discurso. Portanto, aqui os anafóricos são vistos como elementos que se referem a outros elementos 160 Carmem Luci da Costa Silva, et al. (independentemente da linguagem usada) que estão na mesma situação enunciativa, no mesmo texto, no mesmo discurso. A anáfora auxilia a progressão referencial uma vez que diz respeito à introdução, identificação, preservação, continuidade e retomada de referentes textuais, (re)organizando – a todo momento – a cadeia referencial que se constrói no texto, quando este também se constrói. Estando diante de um elemento lexical que aponta para um referente, é impossível dizer algo sobre alguma coisa antes de identificar que referente é esse. Um dos pressupostos teóricos que assumimos neste estudo é o de que um enunciado é composto por palavras para as quais não é possível fixar nenhum valor intrínseco estável, pois seu valor não reside em si mesmo, mas na relação que estabelece com outras palavras no enunciado. Conforme Ducrot (1980), a significação de uma palavra contém, sobretudo, instruções dadas àqueles que deverão interpretar um enunciado, solicitar que procurem na situação de discurso este ou aquele tipo de informação, a fim de utilizá-la no intuito de (re)construir o sentido visado pelo locutor. Para que se possam procurar instruções na situação de discurso, um elemento linguístico deve permitir essa possibillidade. Aqui, o que nos interessa é o pronome demonstrativo. A seguir propomos uma reflexão acerca do comportamento do pronome demonstrativo, a fim de perceber como ele colabora na construção dos sentidos de um texto. Selecionamos, entre vários itens possíveis para este estudo, duas situações: o demonstrativo como dêitico e o demonstrativo como anafórico. Passamos, em seguida, a discutir tais possibilidades de ocorrência. 4.2 O demonstrativo dêitico e o anafórico O elemento dêitico é a entidade linguística responsável pela referência a um objeto do texto e/ou à situação de enunciação em que está inserido. O demonstrativo, enquanto forma pronominal, funciona aqui como o elemento responsável em localizar, no discurso, um aqui e agora, a partir de uma enunciação do sujeito. Conforme diz Benveniste (1995, p. 280), “essas formas pronominais não remetem à ‘realidade’ nem a posições ‘objetivas’ no espaço ou no tempo, mas à enunciação, cada vez única, que as contém, e reflitam assim o seu próprio emprego”. Teorias do Discurso e Ensino 161 Apothéloz (1995) afirma que dêiticos são expressões linguísticas cujas interpretações apoiam-se em parâmetros de lugar, de tempo, de pessoa, instituídos na situação de enunciação. O mesmo autor faz uma diferença entre dêixis textual e dêixis situacional. A primeira corresponde ao dêitico que se refere a outro elemento presente no texto. Ela pode ser vista como uma função metatextual, pois permite a organização do elemento referido, facilitando a orientação do leitor; a segunda refere-se a elementos da enunciação. A dêixis evidencia uma atividade de referência. Segundo estudos de Koch e Marcuschi (1998), referir não é um ato de ostensão direta entre linguagem e mundo, posto que grande parte dos referentes textuais se constitui em objetos-dediscurso e não em objetos-de-mundo. Mondada e Dubois (1995) destacam que os referentes textuais são construídos como objetos-de-discurso, porque os sentidos do texto são possíveis numa significação que diz respeito aos conhecimentos gerados na relação textual-discursiva, ou seja, na enunciação. Isso se torna significativo, neste momento, pois, quando se diz que o dêitico refere-se a algo, alguns estudos mais tradicionais consideram que ele pode referir-se ao que está fora do texto. Essa concepção é aqui contestada, pois, quando se observa o dêitico como textual ou situacional, é a cena enunciativa daquela realização textual que se observa. Portanto, o objeto da referência não estará fora do texto, mas em seu interior, constituindo-o. Ele é determinado pela enunciação. O demonstrativo com papel dêitico é tomado, neste estudo, como aquele que faz referência às categorias de pessoa, lugar e tempo, necessárias na constituição da cena enunciativa. Entendemos que o pronome demonstrativo em função anafórica deve resgatar uma âncora, ou seja, um termo do co-texto, que autorize um engatilhamento do referente em questão. Destacamos, nas palavras de Cavalcante (2005, p. 128), que numerosos estudos têm demonstrado que certas introduções de referentes encontram algum tipo de ancoragem no cotexto, o que lhes confere, em vista disso, um caráter anafórico. Sublinhamos que, na concepção que defendemos, a ocorrência da anáfora dá-se mesmo que elementos não retomem diretamente o mesmo objeto-de-discurso (anáforas diretas) e que, aparentemente, introduzam uma entidade nova, remetam a uma ou outra marca cotextual da qual elas se tornam não exatamente novas, mas 162 Carmem Luci da Costa Silva, et al. inferíveis no discurso. Esse tipo de anáfora (anáfora indireta) ativa novos referentes com uma motivação ou ancoragem no universo textual. Concordamos com Schiffrin (apud: Marcuschi:2005, p. 59), que reconhece ser difícil traçar uma linha divisória e estabelecer relações entre o mundo criado por palavras ( o texto) e o mundo representado pelas palavras (o contexto), o que torna difícil uma distinção clara entre o que é um contexto textual e um contexto extratextual. Aponta, ainda, para a dificuldade de se distinguir clara e objetivamente anáfora e dêixis. Para tanto, a referida autora sugere que se veja a anáfora como um “dependente da dêixis”, tendo em vista que o próprio texto é essencialmente uma subespécie de um campo dêitico singular, uma vez que textos e contextos criam um campo dêitico singular – quando da enunciação – em que a anáfora acaba sendo um tipo de dêixis. Isso porque texto e contexto constituem um ao outro. Tal como postula Cavalcante (2005, p.144), não podemos negar a deiticidade de determinado elemento, em dadas situações discursivas, uma vez que é por esse processo que o leitor é conduzido pela mão até chegar bem próximo do ponto de origem do texto criado pelo eu que enuncia, e que o faz penetrar inteiramente no cenário que ele tenciona criar. 5 A função referenciadora dos demonstrativos em textos de humor Com o propósito de ilustrar as reflexões até aqui postas, apresentaremos, a seguir, a análise de seis textos, evidenciando o papel do demonstrativo na construção dos sentidos. Nessa atividade, procuramos mostrar que os demonstrativos – assim como quaisquer unidades menores dentro da unidade maior de investigação da língua, ou seja, o texto – não são usados sem qualquer critério. São, ao contrário, peças escolhidas pelo falante, com uma determinada intenção, e são essenciais para a construção do enunciado, para a organização do discurso. Daí porque concordarmos com Marcuschi (s.d.), quando defende que a referenciação não é um simples ato de representação ou de designação extensional, mas um ato de construção criativo e, por isso, uma atividade complexa. Os textos 1, 2 e 3, reproduzidos a seguir, fazem parte de um conjunto de textos propostos em livros didáticos, em lições sobre o estudo do pronome Teorias do Discurso e Ensino 163 demonstrativo, apresentados em Neves (2003). Os demais, foram publicados no jornal Zero Hora, de Porto Alegre – RS . Na análise aqui desenvolvida, fazemos uma breve referência aos elementos do discurso que provocam o humor, ou seja, aos mecanismos acionados pelos falantes, responsáveis pela decorrência do riso. 5.1 Análise de textos Texto 1 O efeito humorístico, nesse texto, é resultado de uma falha na interação, em razão de um dos falantes (a galinha) não ter recuperado a intenção do interlocutor (cujo propósito é representado pela mensagem de alerta). Na verdade, a recuperação da mensagem só se dá no último quadrinho, após o encontrão. Nesse texto, fica evidente a importância de se reconhecer a função referenciadora dos demonstrativos e o papel que eles desempenham no enunciado. Como podemos observar, os efeitos produzidos pelos demonstrativos só se constroem à medida que o discurso se desenvolve. Ao analisarmos a frase “Esta é a coisa mais estúpida que eu já vi”, verificamos que o falante, ao empregar o demonstrativo esta, faz uma referência a algo presente no texto, mas não especificamente ao alerta constante na tabuleta. Remete, sim, a uma representação construída no e pelo discurso, ou seja, faz referência à falta de lógica de um aviso como aquele ou da própria instalação da placa. No contexto em que se encontra, o demonstrativo esta equivale ao demonstrativo isso, à expressão esse fato, esse tipo de recado. Já, no último quadrinho, o demonstrativo aquele remete ao aviso constante na pequena tabuleta referida no texto. É um demonstrativo referenciador textual 164 Carmem Luci da Costa Silva, et al. anafórico, pois recupera algo que já foi dito no texto. O demonstrativo este, por sua vez, não só acentua a inclusão do falante na situação do discurso, como indica proximidade espacial do falante, ao deparar com o sinal. Essa ocorrência nos traz a instância enunciativa em que um sujeito se enuncia num aqui e num agora. Usamos as palavras de Benveniste (1995, p. 277) para pontuar algo importante sobre a natureza dos pronomes: “Uns pertencem à sintaxe da língua, outros são característicos daquilo que chamaremos as ‘instâncias de discurso’, isto é, os atos discretos e cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada em palavra por um locutor”. Assim, o demonstrativo este tem uma função dêitica, localiza tempo e lugar em relação ao sujeito que fala. É interessante observar, também, a ideia de contraposição implícita no último quadrinho (aquele X este), o que reforça a concepção de que esses referenciadores são peças fundamentais para a organização do discurso e para a construção dos sentidos do texto. Texto 2 Nessa tira, o humor é causado por uma ideia implícita presente na fala de Helga. Ela, ao declarar “Espero”, deixa subentendida a afirmação de que Hagar sabe muito pouco sobre os fatos da vida. Tal como afirma Possenti (2001, p. 56), o efeito de humor “é decorrente de que o enunciado do primeiro interlocutor tem um foco e a resposta é dada como se ele tivesse um outro”. Ao leitor, cabe a tarefa de “perceber a diferença entre a mais provável interpretação do texto e a esperta seleção alternativa do interlocutor”. O uso do demonstrativo aquilo, constante no primeiro quadrinho, permite ao leitor inferir que anteriormente os interlocutores tenham comentado sobre a necessidade de um determinado tipo de conversa com o filho Hamlet. Portanto, remete a algo que é do domínio de ambos. O emprego das aspas no termo Teorias do Discurso e Ensino 165 “aquilo” sugere que o assunto esteja relacionado ao tema sexo. Cabe lembrarmos, com referência a essa afirmação, algumas expressões já cristalizadas, tais como “Só pensa naquilo” ou “O presidente tinha aquilo roxo”. Como podemos observar, o demonstrativo não pode ser interpretado semanticamente por si mesmo. Remete, sim, a outros itens do discurso necessários a sua interpretação. Para Cavalcante (2003), o uso do demonstrativo nessa situação, como a do texto em análise, evidencia um caso de recategorização, uma vez que ele foi empregado com um valor insinuador, acompanhado de traços prosódicos que o ratificam. Esse fato comprova que os pronomes demonstrativos – como muitos estudos apontam – não são neutros, na medida em que retomam e recategorizam elementos que se constituem no próprio discurso. Texto 3 Na tira analisada, podemos observar que o elemento responsável pelo humor é o emprego do demonstrativo este. É óbvio que, para melhor interpretar o texto, o leitor deve ativar seu conhecimento de mundo em relação a Hagar e Helga, ou seja, tem de saber que são casados e conhecer algumas características dos personagens, tais como os hábitos pouco higiênicos de Hagar. No entanto, temos de admitir que o leitor, mesmo não conhecendo as tiras de Dik Browne, pode inferir a ideia anteriormente posta, devido ao valor semântico expresso pelo demonstrativo. Através do uso de este, é feita uma referência a Hagar, que é um elemento que está dentro do texto. Embora o uso do demonstrativo na fala de Helga recupere a imagem do marido, o referenciador tem uma função dêitica, já que, como afirma Lyons (1980, p. 261), a dêixis identifica pessoas em relação ao contexto espaçotemporal mantido pelo ato de enunciação. Na situação de fala analisada, o demonstrativo este equivale à expressão este aqui. Mais uma vez, usando as 166 Carmem Luci da Costa Silva, et al. palavras de Benveniste (1995, p. 279), queremos chamar a atenção para o fato de que os pronomes demonstrativos apontam para um traço distintivo: “é a identificação do objeto por um indicador de ostensão concomitante com a instância de discurso”. Vale ressaltar, também, a importância da linguagem não verbal nesse texto. Como podemos perceber, a alusão feita por Helga se efetiva como se ela estivesse se dirigindo ao leitor ou a outro interlocutor qualquer. Com referência, ainda, à fala de Helga, vemos que a frase interrogativa não requer resposta. Na verdade, a esposa diz uma coisa para significar outra, quer dizer, emprega a ironia, um mecanismo linguístico que pretende, ao invés de perguntar, negar o que foi dito. Texto 4 Teorias do Discurso e Ensino 167 Texto 5 Os textos 4 e 5, veiculados no jornal Zero Hora, praticamente na mesma semana, exploram o mesmo tema. Versam sobre os acontecimentos políticos da época, evidenciando a crise vivida pelo PT, as denúncias de corrupção e de pagamento de propina, bem como o processo de descrédito nos partidos e na classe dos políticos. Cabe aqui fazermos referência a Possenti (2001), quando afirma que o humor nem sempre é crítico, mas o humor político certamente o é. O mesmo autor destaca – e isso é evidenciado nos textos sob análise - que a compreensão de piadas ou outros tipos de textos humorísticos, de conotação política, depende não só do funcionamento discursivo, como também de fatores pragmáticos. Como sabemos, toda crise política apresenta um bom motivo para o exercício do humor. Os dois textos não só abordam as “falcatruas” e “as denúncias” que integram o cenário político, como também fazem uma sátira à reação do cidadão comum. É exatamente desse desfecho inesperado que decorre o riso: no texto 4, o personagem Boca reitera a postura desonesta dos políticos e, no texto 5, um dos personagens aprova a prática inescrupulosa do PT, que, finalmente, se igualou aos demais partidos. Com referência ao emprego da forma preposicionada dessas (texto 4) e do demonstrativo estas (texto 5), constatamos o caráter de retomada de uma situação que é de domínio do leitor, sugerida no contexto. O emprego desses pronomes traz a síntese de uma ideia. Esta é uma informação conhecida do interlocutor, o que permite o emprego do demonstrativo sem prejuízo de sua compreensão. O demonstrativo exige, então, uma competência linguística mais apurada da qual depende o sucesso da construção do sentido do texto. Nesses casos, os demonstrativos não recuperam a informação do contexto à esquerda como normalmente ocorre. A expressão “dessas notícias de falcatruas e milhões 168 Carmem Luci da Costa Silva, et al. que ninguém sabe de onde vem” (texto 4) e a expressão “estas denúncias” (texto 5) remetem a situações que possibilitam a reativação da memória do leitor. Mais uma vez, os objetos-de-mundo se transformam em objetos-de-discurso. Podemos destacar, também, que o emprego do pronome demonstrativo, além de seu poder dêitico, particulariza uma instância discursiva, retomando algo do discurso e apontando pra algo significativo para a construção do sentido do texto. Texto 6 Dúvida gaudéria O peão entra num bar chique desses com homem de brinco e mulher de cabeça raspada, vai lá para um cantinho do balcão, pede uma cachaça e fica só bombeando o movimento e bebericando. Daqui a pouco senta-se ao lado dele uma guria com um jeito meio esquisito, pede uma vodka e puxa assunto. - Você é peão de estância mesmo? - Eu sou. Nasci numa estância. Me criei lá, laço, pealo e gineteio. Capo touro e cavalo. Marco o gado. Mato e carneio. Faço de tudo numa estância. Aí o gaúcho estufa o peito e começa a cantada: - E tu, guriazinha bonita? Que que tu fazes na vida? - Qual é, meu! Eu sou lésbica! - Lésbica? Que que é isso? - Eu gosto de mulher. Levanto pensando em mulher. Trabalho pensando em mulher. Almoço pensando em mulher. Deito pensando em mulher. Durmo sonhando com mulher. É isso. Tchau! E a mulher levanta-se e vai embora, deixando o peão, que fica ali, matutando, entretido com os pensamentos. Nisso senta-se outra garota. Ele fica meio desconfiado, mas fica na dele. Aí a guria pergunta: - Você é peão de estância, dos legítimos? Ele olha bem pra ela, faz uma pausa conferindo o raciocínio, e tasca: - Pois olha, até bem pouquinho eu era. Só que agora descobri que sou lésbica! Isso, lésbica! Teorias do Discurso e Ensino 169 O texto 6, também publicado em Zero Hora [s.d.], comprova a afirmação de Possenti (2001, p. 126), quando defende que “fazer humor é basicamente produzir um equívoco, ou melhor, desnudar um equívoco possível”. Esse texto é um exemplo de equívoco, ou seja, a interação entre os falantes não ocorre, porque há uma falha que impede esse processo. Conforme Neves (2003), o que falta nesse tipo de situação é conhecimento da natureza linguística. O gaudério, por não estar de posse do significado da palavra lésbica e, por considerar “que quem gosta de mulher é homem”, aciona esse conhecimento e se auto-intitula “lésbica”. É a falta de sintonia entre os interlocutores que provoca o riso. Quanto ao demonstrativo desses (no primeiro parágrafo), verifica-se que o termo recupera o referente “bar chique”; no entanto, o demonstrativo se restringe a um determinado tipo de bar (que, segundo a percepção do gaudério, é chique). Na frase “Lésbica? Que que é isso?”, o demonstrativo isso é usado para referir o termo “lésbica”; portanto, seu funcionamento é anafórico. Equivale à pergunta “O que significa essa palavra”? O termo preposicionado nisso, na frase “Nisso senta-se outra garota” é, também, usado como um referenciador textual. Aponta para uma situação temporal na narrativa, o que equivale à expressão nesse momento. O termo nisso, empregado no início do período, tal como no caso analisado, frequentemente ocorre em registros mais distensos, menos formais, especialmente em situações de fala. Nesse exemplo, vemos que ele tem fundamental importância no discurso, pois marca uma mudança no percurso da narrativa, contribuindo, portanto, para explicitar essa transição. O demonstrativo na frase “Isso, lésbica!”, se difere dos demais casos analisados. Tem uma função fática e é empregado de forma corrente em atos de fala. Denota concordância com algo que já foi referido (podendo remeter ao já dito pelo ouvinte ou pelo próprio falante). Nesse caso, portanto, tem valor de reforço, de assentimento. 170 Carmem Luci da Costa Silva, et al. 6 Considerações finais Tudo o que foi discutido e analisado nos leva a reafirmar que a referenciação tem um papel fundamental na construção do enunciado, na organização do discurso. Os demonstrativos, como foi constatado ao longo deste estudo, não podem ser interpretados semanticamente, de forma isolada. São itens da língua que remetem a outros itens do discurso necessários à sua interpretação. Por isso, para a análise do demonstrativo, temos de levar em conta as funções semânticas, pragmáticas e interativas. Tal como defende Marcuschi [s.d.], considerando que a língua em si mesma não providencia a determinação semântica para as palavras e as palavras isoladas também não nos dão sua dimensão semântica, somente uma rede lexical situada num sistema sócio-interativo permite a produção de sentidos. Neste trabalho pudemos comprovar que, efetivamente, os referentes não são realidades do mundo, mas representações construídas pelo discurso, ou seja, são objetos-de-discurso. Do mesmo modo, vimos que o demonstrativo como referenciador não tem a função apenas de referir, mas de contribuir para a construção do sentido, para a organização textual, para a orientação argumentativa, para a interação entre os falantes. Sabemos que, neste estudo, não apresentamos nenhuma proposta inovadora. Nosso propósito foi o de dividir algumas preocupações e propor reflexões acerca de um tema que, sabemos, não se esgota nunca. Na verdade, tentamos mostrar que é possível o professor desenvolver um trabalho que permita ao aluno do ensino fundamental e médio reconhecer a função referenciadora do demonstrativo, não como uma atividade mecânica, puramente descritiva – como se a língua fosse algo externo ao falante – mas como uma atividade produtiva. Nesse sentido, vale destacar que o aluno precisa não apenas dominar o modo de estruturação das entidades da língua, mas saber combinar essas unidades em peças comunicativas eficientes, adequando os enunciados às situações, aos objetivos da comunicação e às condições de interlocução. Em Teorias do Discurso e Ensino 171 outras palavras, o aluno deve ser capaz de usar a língua de forma eficiente e crítica nas diversas situações – na escola e fora dela. Cabe ao professor, portanto, “orientar o olhar” do aluno, para que ele “se mova” no texto, observe que determinados recursos concorrem para a produção de diferentes efeitos de sentido, trabalhe modos de expressão e de organização do texto e se aproprie de diversos mecanismos linguísticos. Afinal, se quer o professor de língua portuguesa contribuir para que seus alunos sejam leitores autônomos e usuários da língua capazes de assumir a palavra e a produzir textos adequados às suas necessidades comunicativas, tem de oferecer-lhes as ferramentas para que esse processo se construa. REFERÊNCIAS APOTHÉLOZ, Denis. Nominalisations, référents clandestins et anaphores atypiques. In: BERRENDONER, a & REICHLER-BÉGUELIN (EDS). Travaux Neuchâtelois de Linguistique. Genève: tranel, n.23, 1995. APOTHÉLOZ, Denis & REICHLER-BÉGUELIN. Construction de la référence et stratégies de désignation. TRANEL, 23, 1995. CHARAUDEAU, Patrick. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. DUCROT, Oswald & TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São Paulo, SP: Perspectiva, 1972. BENVENISTE, Émile. A natureza dos pronomes. In: BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística Geral I. Campinas, São Paulo: Pontes, p.277-283, 1995. 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Teorias do Discurso e Ensino 173 PARTE 2 TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE LÍNGUA ESTRANGEIRA Niura Maria Fontana * 1 [email protected] 1 Introdução Uma das principais metas da educação em geral e da educação de professores em particular, numa perspectiva humanista e sociocultural, é, ou deveria ser, criar condições para que o aprendiz construa e exerça a própria autonomia. O início desse processo está ligado às atitudes e ações do educador (em sentido amplo) que buscam conhecer e respeitar o espaço do educando. Como a autonomia é construída, é também necessário oportunizar ao aprendiz múltiplas e sucessivas oportunidades para desenvolvê-la. Desse ponto de vista, respeitar a autonomia do aprendiz é um imperativo ético e não um favor que o professor faz ao seu aluno (FREIRE, 2004). Importa, pois, compreender melhor esse processo. A noção de autonomia, aplicável à educação, pode ser buscada no pensamento iluminista e na ética de Kant (PAVIANI, comunicação privada). O iluminismo representa para Kant (1995, p.11) “a saída do homem da sua menoridade”, definida esta última como “a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem.” A dependência de outros para tomarem decisões por nós (a menoridade) é considerada comodista e poderia ser superada, com boa vontade e decisão, a partir do lema iluminista: “Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento!” A superação dessa situação de dependência é fundamental para lidar com a mudança e a incerteza típicas do nosso tempo, assim como com as contingências cotidianas da vida de cada cidadão. Não se trata, porém, de atitude individualista, mas sim do desenvolvimento de atitudes éticas e cooperativas em * Professora do Departamento de Letras, Universidade de Caxias do Sul. Sou grata aos colegas Jayme Paviani, Neires Soldatelli Paviani e Isabel Paese Pressanto, pelas valiosas sugestões dadas à versão preliminar deste texto. 1 busca da construção de saberes coletivos, numa relação de dependência recíproca com os outros. De fato, a autonomia não acontece de forma isolada, mas desenvolve-se numa relação de interdependência com o contexto cultural em que as pessoas estão inseridas, como aponta Morin (2003). Assim entendida, a autonomia ultrapassa o âmbito moral e cognitivo para transformar-se em competência para interagir socialmente, principalmente em termos de estabelecer objetivos, avaliar dados e possibilidades, e de tomar decisões. Dada a sua complexidade, o percurso de tornar-se autônomo pressupõe saberes de muitas ordens, que se constroem e se alimentam continuamente de percepções, elaborações, conhecimentos, associações, práticas, reflexões e aceitação do risco. Neste capítulo, faremos algumas considerações sobre a formação do educador, com foco no desenvolvimento da autonomia pelo aluno estagiário de Letras, a partir da apropriação de referenciais teóricos sobre o objeto de ensino, da explicitação da relação entre teoria e prática e do desenvolvimento do senso crítico como fatores centrais integrantes do processo de construir competências. Um relato de pesquisa-ação ilustra os aspectos teóricos abordados. 2 Educação e autonomia A concepção contemporânea de educação como autoformação do sujeito aprendente incorpora necessariamente a noção de autonomia, cujas bases podem ser buscadas em Kant e em Freire. Na visão kantiana (TAVARES; FERRO, 1997, p. 145), a autonomia consiste na “capacidade que todo o ser racional tem de dar a si próprio a lei moral, de legislar por si próprio. É a propriedade da vontade que em si encontra a lei reguladora da sua acção moral.” Essa autonomia da vontade baseia-se no conceito de liberdade, concebida esta como um princípio independente das leis do mundo físico, mas dependente das leis da moral (TAVARES; FERRO, 1997). Assim, compreende-se que a autonomia se constitui a partir de liberdade baseada em critérios e não de liberdade irrestrita. Essa noção, de cunho ético, inicialmente proposta por Kant (1995), propagou-se, assumindo sentidos talvez menos restritos, e aplicando-se a 176 Carmem Luci da Costa Silva, et al. outros campos, entre os quais o da educação e o do desenvolvimento de sistemas de leis (ZATTI, 2007). Tema recorrente na obra de Freire e uma de suas grandes preocupações, a autonomia do educando pode ser estimulada por meio de uma prática educativa reflexiva, apoiada no pressuposto fundamental de que a aprendizagem é uma construção do sujeito aprendente e não uma doação ou transferência de conhecimento do professor ao educando (FREIRE, 2004). Aprender, nesse caso, depende sobretudo de querer aprender, de buscar e relacionar informações, de desenvolver um olhar atento e crítico voltado à realidade, de transformar reflexão em ação. Para que isso ocorra, é preciso que o aluno assuma a responsabilidade pela própria aprendizagem/construção, por si só uma evidência de autonomia, na visão de Dickinson (1994). Ao contemplar aspectos sociopolíticos do desenvolvimento humano e da educação, propondo elementos como a conscientização, a passagem da consciência ingênua para a consciência crítica, o papel do diálogo com os outros e com o mundo, a libertação da opressão, tendo como pano de fundo um contexto socioistórico determinado, Freire (1983; 2004) faz uma contribuição decisiva para a ampliação do conceito de autonomia desenvolvido por Kant. Com Zatti (2207, p. 46), podemos dizer que Tanto para Freire quanto para Kant, o homem é construtor de si. A diferença é que para Kant o homem retira de si, da própria razão, os meios para se fazer homem, já em Freire é a ação dialógica feita no mundo com os outros que possibilita a própria construção. Embora concordem no que diz respeito às bases éticas da autonomia e à sua relevância na constituição da dignidade humana, os dois autores divergem quanto ao entendimento da natureza do fenômeno em estudo: enquanto Kant focaliza o individual, a partir da racionalidade, Freire vê o coletivo, constituído na interação com o meio sociocultural e político no percurso histórico. Segundo Kant (apud ZATTI, 2007), um dos fatores que podem possibilitar a autonomia é o conhecimento, pois este alarga as condições do ser humano de agir e de pensar por si próprio. Nesse caso, pode-se dizer que o pensar e o agir autônomos passam pela construção de competências, que pressupõem Teorias do Discurso e Ensino 177 necessariamente conhecimento. A noção de competência pode ser vista sob diferentes perspectivas na área educacional. No contexto deste estudo, para definir competência, seguimos Gillet apud Allal (2004, p. 81): Uma competência é definida como um sistema de conhecimentos, conceituais e procedimentais, organizados em esquemas operatórios, que permitem, com relação a uma família de situações, identificar uma tarefa-problema e sua resolução por meio de uma ação eficaz. Nessa definição, numa visão ampla e integradora, Allal (2004, p. 83) identifica uma série de componentes que formam uma rede articulada e funcional, “capaz de ser mobilizada” pelo sujeito para a realização de uma tarefa específica. A competência é, pois, sempre situada, é sempre competência orientada para um propósito, não se confundindo nem se contrapondo aos saberes, mas promovendo a sua organização. Na proposta de Allal (2004), os diferentes componentes da competência são categorizados como cognitivos, afetivos, sociais e sensório-motores, cada um recobrindo áreas específicas. Os fatores cognitivos compreendem não apenas os conhecimentos declarativos, procedimentais e contextuais, mas também os aspectos metacognitivos; os afetivos compreendem, entre outras categorias, atitudes e motivações; os sociais englobam interações e negociações e os sensório-motores envolvem a coordenação gestual (pode-se pressupor aqui todos os aspectos psicofísicos que permitem a concretização da atividade verbal oral e escrita, como a visão, a audição e o funcionamento do sistema fonador, por exemplo). Outro aspecto relevante apontado por Allal (2004) diz respeito à natureza de uma competência, entendida a partir da perspectiva da cognição situada. O processo da construção de uma competência é explicado por Allal (2004, p. 83), com base em estudos de Brown, Collins e Duguid (1989), que retomam uma tese de Dewey, segundo a qual “a forma como o indivíduo aprende – as condições em que a aprendizagem se realiza – faz parte daquilo que ele aprende”. A esse respeito, continua Allal (2004, p.83): 178 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Sob essa ótica, uma competência sempre se constrói por meio de uma aprendizagem “na prática”, o que implica a apropriação, não só de saberes e savoir-faire, mas também de modos de interação e de ferramentas valorizadas no contexto em questão. Em outros termos, o desenvolvimento de uma competência leva à integração de instrumentos externos, que amplificam e estendem o campo de atividade conceitual do funcionamento do indivíduo. Essa concepção do processo de construção de uma competência destaca não apenas a inter-relação entre teoria e prática, mas também a incorporação das condições de aprendizagem, ou seja, de como essa competência é construída e influenciada por um contexto específico, tendo repercussões na cognição. A mediação de tal processo nos educandos requer do educador saberes e competências de várias ordens, que contribuem também para a construção de um fazer pedagógico autônomo. São, na verdade, os saberes específicos da profissão, cujo desenvolvimento contínuo é meta da formação docente. Entre os saberes que o professor mobiliza nas situações de ensino e de aprendizagem, Gauthier et al. (1998), ao proporem uma teoria da pedagogia, apontam: o saber disciplinar (o conhecimento científico sobre o objeto de ensino, ou seja, a matéria); o saber curricular (o conhecimento sobre a proposta da escola em termos de programas de ensino); o saber das ciências da educação (o conhecimento a respeito da educação e do sistema escolar em suas diversas instâncias); o saber da tradição pedagógica (o saber dar aulas, de acordo com a tradição pedagógica vigente); o saber experiencial (a experiência particular do professor, seu repertório de técnicas, estratégias e critérios); o saber da ação pedagógica (metodologias de ensino com base científica). No entanto, não basta ao professor desenvolver saberes e competências como um fim em si mesmos, de forma descontextualizada e acrítica. Para promover a autonomia do aprendiz, esses saberes requerem uma base éticofilosófica apoiada em princípios e um referencial epistemológico sólido, que possam servir de fundamentação para uma metodologia de ensino emancipatória. Em outras palavras, o educador competente deve ser capaz de ajudar o aprendiz a construir-se como sujeito da própria aprendizagem e, num âmbito mais amplo, da própria história. O que estamos propondo é compatível com o que postulam Moraes (2000) e Freire (1983; 2004), no sentido de afastarTeorias do Discurso e Ensino 179 se da visão da chamada ciência normal, incorporando pressupostos humanistas, cognitivistas e socioculturais nas práticas educativas. 3 Teoria versus prática ou teoria e prática? A relação entre teoria e prática tem sido amplamente defendida nos cursos de nível superior, talvez de modo mais acentuado nos de licenciaturas, nos quais o desenvolvimento de competências para o ensino deveria contemplar o saber eo saber fazer de forma integrada. Se, por um lado, a importância e a necessidade dessa inter-relação são apontadas, por outro, percebe-se que na maioria das vezes, segundo observação empírica, ela não se concretiza. Na verdade, parece haver uma tendência a supervalorizar a prática, a habilidade técnica, subestimando a base teórica, fato apontado por vários estudiosos, entre os quais Paviani (1986). De fato, os professores e licenciandos, em sua maioria, parecem priorizar informações “práticas” que os auxiliem a acrescentar novidades ao “cardápio diário”; buscam “receitas” para agradar aos alunos e para serem bemsucedidos na condução dos programas de ensino (PAVIANI, 1986). Não se trata aqui de desconsiderar a prática. Na verdade, a preocupação com a prática é pertinente, e o professor precisa ter habilidades técnicas múltiplas para desempenhar com qualidade os papéis que lhe cabem. Mas, na mesma medida, são-lhe indispensáveis conhecimentos teóricos de natureza científica. A resistência à informação teórica possivelmente seja consequência do desconhecimento da função da teoria na prática e do papel da prática na realimentação da teoria. Talvez o professor, preocupado em desenvolver habilidades técnicas, ingenuamente pense não estar usando nenhuma teoria, quando, de fato, cada ação humana “deriva de uma posição teórica” (PAVIANI, 1986, p. 23), “mesmo que esta seja implícita, parcial, meramente doutrinária ou ideológica” (PAVIANI, 1986, p. 21). Teoria e prática são noções que remontam à antiguidade grega, que reconhecia a existência de diferentes graus ou modos de saber. Um deles, a episteme, ou ciência, correspondia a “um saber pelas causas”, enquanto outro, a techne, equivalia a “um saber fazer” (PAVIANI, 1976, p. 15). Numa visão atual, 180 Carmem Luci da Costa Silva, et al. mas fiel à tradição grega, Paviani (2003) entende que o saber fazer, sempre ligado ao exercício profissional, não consiste em saber puramente prático: ao contrário, pressupõe também conhecimentos teóricos, ou episteme. Por sua vez, o conhecimento teórico implica o desenvolvimento de competências práticas do tipo savoir-faire. Esses modos de saber, no entanto, têm sido entendidos como categorias separadas, transformando-se numa dicotomia que ainda produz seus efeitos no ensino, especialmente no nível superior, em que, ao contrário do que ocorre com os profissionais do ensino, há uma ênfase excessiva no conhecimento teórico. E essa dissociação entre episteme e techne dificulta o acesso à sophia, ou seja, à sabedoria como plenitude de conhecimento. Ao longo da história, a relação entre teoria e prática tem sido alvo de diferentes compreensões. Na visão dialética, teoria e prática são categorias complementares, segundo Demo (2000, p.111): teoria necessita de prática e vice-versa, embora cada termo tenha sua lógica; teoria tem pretensões universalizantes, enquanto prática é localizada; esta, ao mesmo tempo que diminui a teoria, tem a vantagem de a realizar; aquela, ao mesmo tempo que se sente traída em toda prática, tem a vantagem de apontar para a crítica alternativa; para renovar-se, toda prática carece voltar para a teoria, onde descobre que sua prática era uma entre outras e sempre incompleta (...) Se o que foi posto realmente procede, o que parece ser necessário é oportunizar aos licenciandos (e também aos professores imersos na rotina das escolas) oportunidades de conscientização sobre o papel fundamental da teoria na prática educacional, como apoio necessário para o desenvolvimento de uma competência crítica, por sua vez imprescindível para a construção de atitudes autônomas. Por outro lado, torna-se também importante recuperar as relações entre teoria e prática, numa perspectiva dialética, oportunizando aos licenciandos uma clara percepção da interface entre ambas, resguardadas as características de cada uma. Ao conhecimento racional dessa relação é importante associar uma vivência de ambas as dimensões como condição para a construção de saberes conducentes à autonomia. Do ponto de vista científico, as teorias podem ser vistas como estruturas ou cadeias de cognição, cujo objetivo é o de explicar fenômenos a partir de Teorias do Discurso e Ensino 181 pressupostos universais (MATALLO JR., 2000b). Mais especificamente, as teorias têm o propósito de solucionar problemas (KUHN, apud MATALLO JR., 2000a), já que “a ciência começa com problemas” (POPPER, apud MATALLO JR., 2000a, p.24), desenvolvendo-se por meio de conjeturas que se estruturam para explicar tanto as regularidades quanto as irregularidades da natureza, mas que podem esgotar-se e tornar-se ultrapassadas, dando origem a novas conjeturas, permitindo assim o processo contínuo de revisão e avanço da ciência (MATALLO JR., 2000a). Assim como existem diferentes teorias, existem também práticas diversificadas em educação, algumas reprodutoras do status quo, outras defensoras de mudanças, o que é apontado por Paviani (1986, p.23): Diferentes maneiras de conceber a educação refletem diferentes modos de ver o homem no mundo. Por isso, o entendimento de uma teoria educacional não pode se realizar sem uma certa compreensão dialética das relações entre as idéias e a realidade, entre o educador e o educando. Nessa linha de pensamento, a apropriação e produção de conhecimento com fundamentação científica oferecem ao educador importantes elementos para conhecer “o homem no mundo”, o que se refletirá em suas práticas sociais, com ênfase à educação, otimizando escolhas e qualificando ações. 4 Senso crítico e autonomia Se a ciência vive de problemas e do levantamento de conjeturas, qual o valor do conhecimento científico em educação? O papel do conhecimento científico é o de oferecer um referencial que permita analisar a experiência empírica, os dados da realidade, de forma sistemática e criteriosa, transcendendo o senso comum. Assim, ao mesmo tempo, oportuniza a produção de conhecimento e oferece subsídios para o exercício da crítica fundamentada e confiável, da crítica que contribui para o aperfeiçoamento. Moraes (2000, p. 223) assim justifica a importância da criticidade: 182 Carmem Luci da Costa Silva, et al. O desenvolvimento da criticidade facilita a identificação da fonte de produção da informação, a análise de sua validade e a possibilidade de compará-la, decidindo qual será mais útil para o desenvolvimento de seu trabalho. Requer, portanto, raciocínio, valores morais e tomada de consciência dos próprios sentimentos. Evidentemente, as teorias não podem ser adotadas sem questionamento, já que não constituem verdades absolutas ou imutáveis. A produção do conhecimento precisa ser competente, crítica e inovadora, e para isso deve apoiar-se na competência técnica, crítica e criativa. Enquanto a competência técnica é construída a partir de condições lógicas, epistemológicas e metodológicas, a criatividade desenvolve-se a partir da liberdade de usar o impulso criador. A competência crítica, por sua vez, pressupõe a compreensão de que o conhecimento está sempre situado num contexto amplo, resultando de uma rede de relações socioculturais. Para exercê-la, pois, é preciso ter conhecimento não só do objeto de estudo em profundidade, mas ter condições de compreender as interferências ideológicas e as formulações do senso comum, evitando tanto atitudes dogmáticas quanto excessivamente céticas (SEVERINO, 2002), já que ambas as posturas são paralisantes. E atitude crítica é ferramenta fundamental para que o educador consiga estabelecer uma relação profícua entre teoria e prática, de modo que uma questione a outra, contribuindo simultaneamente com dados e informações específicos que, se considerados isoladamente, pouca chance teriam de ser compreendidos e aperfeiçoados. A esse respeito, afirma Paviani (1986, p. 22): “O educador consciente do seu papel social e histórico faz a crítica da teoria e, graças à teoria, investiga de modo amplo, sistemático e rigoroso a prática.” O que parece ser desejável, então, é o desenvolvimento de uma atitude crítica que permita “examinar a origem, a natureza, o modo de ser e a finalidade do conhecimento”, ou seja, de uma postura crítica baseada na compreensão profunda da teoria ou do fenômeno que se deseja discutir (PAVIANI, 1986, p. 24). Além disso, é ainda Paviani (2003, p. 124) quem explica, “a verdadeira crítica pressupõe o uso de critérios. Criticar é julgar e avaliar as pretensões, os planos, as decisões. É examinar a questão sob todos os ângulos e, igualmente, nos seus aspectos de argumentação internos e externos.” Teorias do Discurso e Ensino 183 Acrescente-se que a crítica à prática não apenas contribui para iluminá-la ou complementá-la, mas pode também fazer surgir elementos para novas construções teóricas, estabelecendo-se assim um circuito em que teoria e prática estão em constante retroalimentação mútua, o que parece ser um processo adequado, tanto para a educação quanto para a ciência. 5 Concepções de língua: teorias da linguagem e orientação pedagógica Uma vez que o professor de línguas, tanto estrangeira como materna, tem como objetivo oportunizar ao aluno a construção de competências linguísticas, de modo que ele possa interagir adequadamente na vida social, torna-se imprescindível uma noção clara do que seja língua. Aqui a presença das teorias da linguagem desempenha um papel crucial na construção do conhecimento disciplinar do professor, baseado em fundamentos epistemológicos que lhe permitam desenvolver uma visão crítica que, por sua vez, servirá de suporte para o desenvolvimento de atitudes e ações autônomas. A concepção de língua como sistema ou como código, de raízes estruturalistas, centrada na gramática, tem sido o referencial por excelência do ensino na abordagem tradicional. A tendência hoje é pensar a língua em termos de discurso, aqui entendido segundo Benveniste, apud Rangel (2003, p. 16), como “linguagem posta em ação – e necessariamente entre parceiros”. Isto porque, como explica Marcuschi (2003, p.22), “as línguas são não apenas um código para comunicação, mas fundamentalmente atividade interativa (dialógica) de natureza sócio-cognitiva e histórica.” Essa mudança de paradigma em relação à natureza da linguagem encontra justificativas epistemológicas e metodológicas. Bernárdez (2004) afirma que os modelos formalistas na linguística elegeram o aspecto individual como único foco de investigação, devido, entre outras razões, à dificuldade metodológica de estudar a linguagem em seus aspectos individuais e sociais, simultaneamente. Admitida a concepção da linguagem como fenômeno individual e social, “impressa no cérebro de cada indivíduo”, mas que “surge e se realiza na 184 Carmem Luci da Costa Silva, et al. interação entre os indivíduos” (BENÁRDEZ, 2004, p 29), qualquer modelo teórico que se preocupe exclusivamente com uma das dimensões apresenta limitações. Além da linguagem, há uma vasta gama de atividades sociais apoiadas ao mesmo tempo em princípios cognitivos e sociais (entre as quais a psicologia social, a antropologia cognitiva e a semiótica numa visão cognitivista) que, em função da natureza dos fenômenos estudados, requerem a revisão e superação dos modelos formalistas (BENÁRDEZ, 2004). Nesse sentido, com relação à linguagem, Bernárdez (2004, p. 29) defende, entre outros, os seguintes princípios para embasar a investigação linguística: • A linguagem é seu uso, em interação com os princípios cognitivos utilizados para seu processamento. Todo fenômeno lingüístico põe em jogo diversos aspectos reconhecíveis na linguagem. • A linguagem deve ser estudada empiricamente, partindo-se da observação para estabelecer hipóteses acerca da existência de princípios que expliquem os fatos identificados; esses rincípios devem ser testados em novos fatos lingüísticos. As concepções de língua, como de resto todas as construções da ciência em todas as áreas do conhecimento, passaram, ao longo da história, por vários estágios. Em seu percurso evolutivo, a noção de língua foi sendo construída a partir de diferentes compreensões acerca do objeto de investigação e da própria metodologia, culminando, na atualidade, com a divisão em duas grandes correntes: a da língua como sistema e a da língua como atividade sociocognitiva historicamente situada. Na verdade, é preciso que esses extremos sejam compreendidos não como mutuamente excludentes, mas como as duas faces da mesma moeda. Essas duas dimensões constituintes da língua, ou o que Bronckart (2003) denomina de “duplo estatuto da língua”, estão na base da distinção entre linguística do sistema e linguística do discurso, no interior das quais existem várias tendências. Por descreverem a língua de modo imanente, sem contemplar seus contextos de uso, a teoria estruturalista e a gerativa compõem o grupo da linguística do sistema. A linguística do discurso tem como foco as manifestações verbais concretas, realizadas por indivíduos também concretos, em situações de comunicação no mundo real (KOCH, 2001). Nesse grupo estão incluídas as Teorias do Discurso e Ensino 185 linhas das Teorias da Enunciação, dos Atos de Fala e da Atividade Verbal (KOCH, 2001) e ainda as da Análise do Discurso Francesa e Crítica, além do Sociointeracionismo Discursivo. Ao teorizar sobre a noção de língua como atividade, Marcuschi (2001, p.1) parte do pressuposto de que “todas as nossas atividades, sejam elas lingüísticas ou não, são sempre situadas, seja do ponto de vista social, histórico ou cognitivo.” Isto significa que a língua não é um sistema autônomo; ao contrário, está profundamente entranhada na vida social e cultural dos grupos humanos que por meio dela interagem, ou, nas palavras de Mondada apud Marcuschi (2001, p.2), a língua “existe na e pelas práticas discursivas dos locutores”. Sendo assim, argumenta o mesmo autor (2001, p.3), a língua não pode ser entendida nem como instrumento, nem como representação da realidade, e sim como coconstrução interativa, pois “é na interação (seja com um texto ou um outro indivíduo) que emergem os sentidos numa espécie de ação coletiva (...).” Do mesmo modo, não corresponde apenas a uma atividade cognitiva. Sendo assim, com Marcuschi (2001, p.2) assumimos que A língua se manifesta como um conjunto de práticas sóciointerativas de modo que “os efeitos de codificação e de estandardização não são os únicos aspectos definidores da língua; eles são o resultado de práticas sedimentadas” que devem ser descritas nos seus efeitos constituintes. Por isso, não é a língua como sistema nem como forma que está aqui em evidência e sim a língua enquanto atividade social, interativa e cognitiva. Que repercussões essa visão teórica tem no ensino da língua? O que significa, para fins práticos, assumir a concepção de língua como atividade? A partir dessa compreensão de língua, na qual a visão formal e a visão estritamente funcional não competem, mas complementam-se, Marcuschi (2001, p.2) defende uma abordagem pedagógica “que supere tanto o plano estritamente formal quanto a centração no código”, e que se preocupe “com as atividades linguísticas situadas e não com as estruturas da língua descarnadas de seus usuários” (grifo do autor). No âmbito das práticas de ensino, um objeto acessível à investigação é o livro didático, cuja análise permite desvelar os fundamentos teóricos subjacentes, 186 Carmem Luci da Costa Silva, et al. tanto do ponto de vista linguístico quanto cognitivo e pedagógico, entre outros. Nos últimos anos, o livro didático, por constituir o recurso didático por excelência, sendo em muitos casos o único apoio do professor, tem despertado o interesse de pesquisadores e revelado seus pontos fortes e fracos. Manuais escolares de língua portuguesa analisados por Marcuschi (1996, p.71) revelam uma concepção de língua como “um código ou um sistema de sinais autônomo, totalmente transparente, sem história, e fora da realidade social dos falantes”. Essa noção não é considerada adequada ao ensino, já que a língua é muito mais do que um sistema de estruturas: consiste em um complexo fenômeno cultural, social e cognitivo constituído historicamente, que se manifesta no uso. Por ser sempre situada, é necessariamente variável e dinâmica. Essa posição encontra apoio também na antropologia linguística (DURANTI, 2000, p. 30), ao enfatizar a língua como recurso da cultura, apresentando, entre outros, o argumento de que “hay dimensiones del habla que solo pueden captarse si estudiamos lo que la gente hace realmente con el lenguage, relacionando las palabras, los silencios y los gestos con el contexto en que se producen estos signos.” Ainda segundo Duranti (2000), a distinção entre antropologia linguística, etnografia e estudos linguísticos (unidos pelo interesse comum no uso da linguagem) se dá através de objetivos e métodos específicos. Para a antropologia linguística, a linguagem é “um conjunto de estratégias simbólicas” integrante do tecido social. Nesse contexto, as palavras constituem um modo de refletir sobre o mundo e a natureza da existência humana. Enquanto grande parte da linguística formal contemporânea se preocupa com a faculdade da linguagem mais do que com a linguagem em si, a antropologia linguística tem como objeto a “linguagem como medida de nossas vidas” (MORRISON apud DURANTI, 2000, p. 27), tendo como foco o discurso situado e a ação linguística. Embora a distinção entre estrutura e função já esteja teoricamente estabelecida há mais de três décadas, seus desenvolvimentos mais recentes que desembocam em várias correntes centradas na língua como discurso, entre as quais o sociointeracionismo discursivo (BAKHTIN, 1992; BRONCKART, 2003), não parecem ainda ter sido devidamente assimilados pelos alunos. A noção de língua como discurso é uma das concepções centrais do Sociointeracionismo Discursivo, cujos fundamentos podem ser encontrados em Bakhtin (1992) e Teorias do Discurso e Ensino 187 Vygotsky (1987), e cuja consolidação se deve principalmente a Bronckart (2003), Schneuwly (2004), Dolz e Schneuwly (2004), Marcuschi (2001), Rojo (2005) e Machado (2005), entre outros. Nessa perspectiva, segundo Marcuschi (2001, p.1), o pressuposto geral é de que a língua seja “sobretudo um domínio público de construção simbólica e interativa do mundo, permitindo, na convivência cooperativa, a própria sobrevivência da espécie humana” (Grifo do autor). Na prática pedagógica, os aspectos funcionais e discursivos da língua são ainda preteridos em relação aos aspectos estruturais, que acabam transformando-se no conteúdo central e, na maioria das vezes, exclusivo dos programas de ensino de língua estrangeira, tanto no ensino básico quanto no superior. Por outro lado, é importante reafirmar que as abordagens discursivas da língua não podem prescindir dos mecanismos linguísticos e textuais na análise e produção de linguagem. Trata-se aqui, novamente, de ver essas duas dimensões da língua dialeticamente: uma pressupondo a outra, principalmente quando se trata de ensino da língua. A mudança de paradigma representada pelo centramento na língua como atividade social e não mais apenas na estrutura constitui quase que uma revolução no âmbito da linguística e passa a exigir do professor de línguas um esforço de (re)-construção teórica associado ao exercício de uma atitude crítica rigorosa, buscando estabelecer na prática docente elos coerentes com a teoria, subsídios para repensar o seu fazer, ou até contribuições capazes de realimentar a teoria. Uma das primeiras decorrências da adoção da proposta discursiva de língua é a mudança quanto à importância do ensino da gramática. O que era o foco central nas abordagens tradicionais, passa a ser pano de fundo em análises linguísticas apresentadas seletivamente, quando a serviço do propósito interacional da produção verbal que é objeto de ensino. Preferentemente, é enfatizada a gramática implícita, em uso, numa visão funcionalista. As regras gramaticais, se necessárias, são apresentadas indutivamente, inseridas em contextos significativos, tanto para a construção dos sentidos em foco quanto para o aprendiz enquanto ator social e usuário da língua. Outro aspecto que sofre radicais mudanças a partir da concepção discursiva é a de texto e, consequentemente, do tratamento didático que lhe é 188 Carmem Luci da Costa Silva, et al. dado. A evolução da Linguística do Texto, partindo da noção de texto como objeto formal e passando por uma etapa de constituição da textualidade, com base em propriedades específicas, atingiu um estágio em que busca reintegrar autor, leitor e texto na vida social, pressupondo, pois, a dimensão interacional. No que diz respeito a essa dimensão, Heinemann e Viehweger apud Koch (2003) apontam os sistemas de conhecimento que são acessados durante o processamento textual: o linguístico, o enciclopédico e o interacional, todos indispensáveis para a construção dos sentidos do texto, integrando aspectos linguísticos, cognitivos e interacionais. Outros desenvolvimentos nos estudos da linguagem também sinalizam uma mudança de foco: a visão de texto como unidade formal cede lugar à concepção de texto como unidade funcional (BEAUGRANDE apud MARCUSCHI, 2001, p.11). Seguindo essa acepção, Marcuschi (2001, p.11) afirma que o texto é um (...) evento, um acontecimento, e sua existência depende de que alguém o processe em algum contexto. Daí os princípios da textualização não serem normas ou regras de boa-formação textual nem indicadores de propriedades que um dado evento lingüístico deve satisfazer. Os princípios de textualização são hoje vistos como um conjunto de condições que conduzem sóciocognitivamente à produção de um evento interativamente comunicativo. Nessa perspectiva, já que o texto não mais corresponde a um objeto sintático-semântico, o seu tratamento didático também muda. O texto como um evento discursivo passa a ser contemplado em suas diferentes dimensões (textuais, funcionais, interacionais), sem ênfase central no aspecto linguístico. Essas mudanças epistemológicas têm repercussões importantes no ensino da língua, tanto materna como estrangeira. Uma das propostas recentes para a análise e produção de textos, na ótica sociointeracionista, é a baseada na concepção de gênero discursivo. Para Bakhtin (1992), toda comunicação em qualquer campo da atividade humana se dá através de enunciados particulares que, apesar disso, têm traços “relativamente estáveis” em comum, que correspondem aos gêneros do discurso. Seguindo a mesma linha, Bronckart (2003) reelabora alguns conceitos Teorias do Discurso e Ensino 189 (principalmente o de gênero discursivo, que ele interpreta como gênero textual). Os textos, para esse autor, são “produtos da atividade de linguagem em funcionamento permanente” num contexto socioistórico, podem ser de diferentes espécies, correspondendo a modelos abstratos de formas de produção verbal. Tais modelos (ou gêneros) apresentam características e propriedades específicas, que são, a um tempo, convencionais e dinâmicas. Um repertório de modelos fica disponível a todos os usuários da língua, permitindo-lhes entender e produzir textos concretos a partir deles. Os textos empíricos são, pois, realizações únicas de gêneros textuais, que constituem modelos abstratos organizadores das produções verbais situadas em contextos determinados. Como exemplos de gêneros textuais temos o romance, o poema, a carta, o curriculum vitae, a entrevista, a reportagem, o verbete de dicionário, o relato histórico, o artigo científico, o e-mail, entre inúmeras possibilidades. Nessa linha, outro conceito útil tanto para a análise quanto para o ensino de textos é o de arquitetura textual, proposto por Bronckart (2003). De acordo com ele, o texto estrutura-se em três extratos ou camadas superpostas, que constituem o folhado textual. Esses extratos abrangem: a infraestrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos. A infra-estrutura corresponde ao plano geral do texto, aos tipos de discurso e às sequências (movimentos da informação correspondentes a partes específicas do texto) e comporta, ainda, as articulações entre esses elementos, que podem ocorrer, por exemplo, por encaixamento e fusão. O segundo constituinte dessa camada é o conteúdo temático do texto e como ele se desenvolve ao longo do texto. A terceira camada compreende os mecanismos de textualização, que são os elementos que garantem a articulação linear do texto e consistem em elementos de coesão (conjunções, preposições, locuções prepositivas, advérbios e locuções adverbiais, grupos nominais, segmentos de frases e verbos). A quarta e última camada do folhado textual refere-se aos mecanismos enunciativos, considerados os fatores que mais contribuem para manter a coerência pragmática do texto. Ou seja, são os posicionamentos enunciativos e as vozes que se manifestam no texto e que permitem identificar que instâncias assumem o que é dito, que vozes se manifestam, que avaliações são feitas sobre o tema. 190 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Com base na concepção de língua como discurso, a tendência contemporânea é a de valorizar amplamente a compreensão e produção de gêneros textuais em seus contextos de produção e circulação como unidades de interação nas práticas sociais dos usuários da linguagem. A ênfase maior situase, então, na compreensão dos gêneros em uso mais do que nas propriedades formais dos textos, concepção que embasa a proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais para Língua Materna (MARCUSCHI, 2001; ROJO; CORDEIRO, 2004, entre outros). 6 Um percurso de construção Uma forma de pensar essas questões teóricas na prática é através da obtenção de dados empíricos, que permitam análises sistemáticas de situações concretas. A título de ilustração, relataremos um estudo 2 feito com duas turmas de professores-alunos de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado em Inglês e Respectivas Literaturas no Ensino Fundamental e Médio, com o objetivo de observar um percurso de construção de autonomia, através da apropriação de pressupostos teóricos e de reflexão crítica. A abordagem empregada foi a da pesquisa-ação, consistindo em observação, intervenção e avaliação. Inicialmente, foi aplicado um instrumento que continha perguntas sobre o professor e sua formação, entre as quais uma que contemplava “os conhecimentos que um bom professor de Inglês deveria ter”. Partindo da constatação de que apenas três dos dezessete alunos inquiridos apontaram fundamentos teóricos de alguma natureza como requisito para a formação do professor, foi planejada uma intervenção que lhes oportunizasse verificar não só a necessidade de conhecimentos teóricos para embasar as ações docentes, mas também a de identificar diferentes posições teóricas sobre a língua, relacionando-as com o material instrucional analisado, numa perspectiva crítica. O propósito geral da intervenção foi o de estimular o 2 FONTANA, N. M. Autonomia na avaliação de material didático. Relatório de Pesquisa. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul. Material não publicado, 2004. Teorias do Discurso e Ensino 191 desenvolvimento da autonomia, especificamente no que diz respeito à análise e seleção de material didático para o ensino de Inglês. O estudo foi assim conduzido: foram aplicados aos dois grupos de alunos, em momentos diferentes, um pré-teste, com foco nas concepções de língua presentes no material instrucional oferecido para análise e, depois de um período de intervenção visando à apropriação de alguns conceitos norteadores para a escolha de material didático, um pós-teste com foco idêntico. O instrumento para a coleta de dados, tanto para o pré quanto para o pós-teste foi um questionário de análise de uma lição de Inglês, contemplando o objetivo da lição, a concepção de língua que a embasava e identificação de atividades gramaticais e de oportunidades de interação. Foram apresentadas questões abertas, com o objetivo de verificar se os alunos percebiam as implicações teóricas subjacentes ao material instrucional apresentado. Os alunos responderam individualmente às questões, em sala de aula. Para o primeiro grupo, o texto usado no pré-teste teve que ser substituído por outro no pós-teste, pois entre uma aplicação e outra os alunos levantaram questionamentos que poderiam contaminar os dados; para o segundo grupo, foi usado o mesmo texto para análise nos dois momentos da coleta. As lições usadas para análise foram retiradas da série didática English File. Para o primeiro grupo, foram apresentadas, no pré-teste, a lição file 3A(Fish, chips and cricket) do livro English File -student’s book 1 (OXENDEN; SELIGSON, 1996) e no pós-teste, a lição file 2B (What’s your job really like?) do livro English File – student’s book 2 (OXENDEN; SELIGSON; LATHAM-KOENIG, 1997). Para o segundo grupo, tanto no pré quanto no pós-teste, foi usada a lição file 3A(Fish, chips and cricket) do livro English File -student’s book 1 (OXENDEN; SELIGSON, 1996) De acordo com o manual do professor, o projeto da série baseia-se em cinco dimensões da língua: gramática, vocabulário, pronúncia, funções e habilidades linguísticas, articulados pedagogicamente por meio de revisões sistemáticas. O objetivo geral da série é levar o aluno a expressar-se e sobreviver numa variedade de situações práticas, configurando uma abordagem discursiva, apoiada na concepção de língua como atividade, sem descuidar dos insumos estruturais que possibilitarão a interação. 192 Carmem Luci da Costa Silva, et al. As lições selecionadas para o teste apresentam, na margem superior, os tópicos de gramática e tema/vocabulário, e constam, inicialmente, de um texto acompanhado de uma atividade de vocabulário e de atividades de compreensão, cuja correção é feita através da audição de fita cassete com a gravação dos textos. Os textos são culturalmente sensíveis, apresentado criticamente aspectos da cultura britânica, ao mesmo tempo em que oferecem desafios cognitivos (lacunas) para que o aluno os reconstrua. Na sequência, é apresentado o tópico gramatical, através de exemplos retirados dos textos, para que o aluno deduza a regra e a aplique em atividades de prática de linguagem, entre as quais, uma que novamente faz referência ao texto. O tópico gramatical é contextualizado no texto, cuja função é identificável, embora não esteja explícita. Após, há uma seção dedicada à pronúncia, seguida de atividades comunicativas orais e escritas, permitindo ao aluno falar da sua realidade. A sequência das atividades de vocabulário, compreensão de texto e gramática conduz à culminância da lição, que é tipicamente interativa. Seguiu-se um período de intervenção de dez semanas, que consistiu na manipulação de insumos teóricos e metodológicos (textos sobre concepções de língua e de linguagem e sobre abordagens de ensino, para leitura e elaboração de resenha; atividade de categorização de características das visões de língua como sistema e como discurso; leitura e discussão de texto expositivo sobre língua como sistema e língua como discurso; exposição dialogada e análise de diagrama e de quadro-resumo contemplando vários aspectos dessas duas visões de língua e relacionando-os a situações práticas de sala de aula; análise crítica de planos de aula e de aulas observadas ao vivo e através de vídeo). Durante esse tempo, os alunos tiveram oportunidades de apropriar-se de um conteúdo teórico fundamental para as ações pedagógicas referentes ao ensino de línguas, já que a concepção de língua serve de referencial para o nível de planejamento, de execução das aulas, de seleção ou produção de material instrucional, assim como de avaliação. A metodologia usada foi a crítico-reflexiva, oportunizando análises pontuais e globais da questão que consistia no objeto de estudo, com foco nas relações entre aspectos teóricos e sua repercussão nas práticas de ensino. Os alunos foram incentivados a observar, comparar, analisar e avaliar as Teorias do Discurso e Ensino 193 situações de ensino e aprendizagem propostas, de modo crítico e pessoal, com vistas ao desenvolvimento de atitudes autônomas e coerentes. Após a intervenção, foi aplicado o pós-teste, abordando as mesmas questões apresentadas no pré-teste. As respostas foram analisadas, comparadas e discutidas com os aprendizes, que puderam fazer um exercício de metacognição sobre o percurso feito, identificando mudanças em suas compreensões, que foram atribuídas à apropriação teórica, às leituras e discussões e à percepção da presença dos aspectos teóricos nas diferentes instâncias da prática em sala de aula, com destaque para a análise de material didático. Para ilustrar as reflexões de base teórica sobre a construção da autonomia aqui apresentadas, selecionamos duas questões inter-relacionadas, uma vez que a escolha do objetivo, considerando-se o critério de validade, deve estar associada a uma concepção de língua que orienta toda a organização da lição. As questões propostas aos alunos foram as seguintes: (1) Qual o objetivo da lição? (2) Que concepção de língua embasa a lição? As respostas dos alunos a essas questões foram categorizadas a partir, principalmente, da noção de língua como sistema e como discurso. Na sequência, são apresentadas e analisadas as respostas às questões (1) e (2), comparando-se o desempenho de cada grupo no pré e no pós-teste. Posteriormente, o desempenho global dos dois grupos de alunos é comparado e analisado. Dados do primeiro grupo Pré-teste, questão (1) Com relação ao objetivo da lição (questão 1), no pré-teste, o primeiro grupo de alunos respondeu: Fazer com que o aluno saiba falar sobre sua vida ou de outra pessoa [...] e coisas que faz no dia a dia. Trabalhar o “present simple” [...] e alguns verbos do dia a dia. Ao mesmo tempo, a lição objetiva a interação entre alunos e 194 Carmem Luci da Costa Silva, et al. professor por meio de perguntas respostas básicas da comunicação diária. Oportunizar o conhecimento dos hábitos do povo inglês através do texto [...] trabalhando vocabulário, gramática e pronúncia. Ler um texto sobre os ingleses a fim de observar o modo de vida dos mesmos. Trabalhar a 3ª pessoa singular (simple present) Oportunizar a aprendizagem da estrutura do presente simples, focalizando as pessoas he, she, it. Proporcionar ao aluno a aprendizagem do Present Simple, com enfoque na terceira pessoa do singular, “he, she, it” Apresentar o presente simples na terceira pessoa do singular. Analisar o uso e a gramática do presente simples na terceira pessoa do singular. Apresentar a terceira pessoa, o uso do auxiliar em negativas e perguntas, levar ao conhecimento do aluno um pouco mais sobre a cultura inglesa, e apresentar novos vocábulos [...]. Apresentar alguns elementos típicos da cultura inglesa e oportunizar o contato com as regras do presente simples na terceira pessoa do singular. Apresentar costumes ingleses e aproveitar a oportunidade para introduzir a 3ª pessoa do singular no presente simples. Como se vê, foram apontados objetivos muito diversificados, com predomínio dos relacionados aos aspectos gramaticais e culturais, conforme pode ser visto na categorização apresentada no quadro 1. Respostas quanto ao objetivo da lição RESPOSTAS Comunicação sobre atividades cotidianas Aspectos culturais, gramática e vocabulário Gramática do presente simples Gramática e interação Aspectos culturais e gramática FREQUÊNCIA 1 2 4 1 3 Quadro 1: pré-teste Em resumo, quatro dos onze alunos perceberam os objetivos como sendo exclusivamente gramaticais, um deles percebeu somente os aspectos interacionais, e os seis restantes identificaram objetivos mesclados, englobando aspectos gramaticais, lexicais e interacionais. Além dessas evidências no préteste, a análise das respostas do mesmo(a) aluno(a), na identificação de objetivo e concepção de língua, revela algumas incongruências que podem ser vistas no quadro 2. Teorias do Discurso e Ensino 195 ALUNO A1 A2 A3 A4 A5 A6 A7 A8 A9 A10 A11 OBJETIVO CONCEPÇÃO DE LÍNGUA Gramática e interação Algo Interativo Gramática Interação Gramática Comunicativa Aspectos culturais e gramática Meio de troca de saberes Gramática Estruturalista Aspectos culturais e gramática Estruturalista Aspectos culturais, vocabulário, Tradicional gramática e pronúncia Aspectos culturais e gramática Tradicional Gramática e uso Ignora Gramática e aspectos culturais Língua associada à cultura Interação Comunicativa Quadro 2: pré-teste Enquanto a maioria dos alunos forneceu respostas coerentes, A2 e A3 identificaram na lição um objetivo gramatical, relacionando-o a uma concepção interacional de língua, desconsiderando o critério de validade que deveria ser respeitado na produção do material didático. Esse aspecto revela a ausência de um repertório crítico amadurecido que permita flagrar incoerências teóricometodológicas, por um lado, e realizar um autoquestionamento sobre a consistência e coerência dos próprios saberes (metacognição). Pós-teste, questão (1) No pós-teste, as respostas referentes à questão (1) foram expressas nos seguintes termos: Trabalhar o uso do “have to” and “don’t have to” em uma lição que trata de profissões. Oportunizar ao aluno situações para o mesmo refletir e comunicar-se sobre as atividades que ele tem que fazer ou não em seu trabalho. O objetivo da lição é trabalhar have to/don’t have to (obligation) mais adjetivos. Capacitar o aluno no uso do modal have to e sua forma negativa. O objetivo estrutural é apresentar have to/don’t have to e adjetivos. Trabalhar a forma verbal have to/don’t have to falando sobre profissões. 196 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Entender e usar have to/don’t have to e falar sobre o seu trabalho usando adjetivos. Apresentar a estrutura have to/don’t have to e seu uso, além de falar sobre trabalhos e adjetivos para falar deles. Ensinar o uso de have to e don’t have to aplicado a profissões. Apresentar a estrutura have to e don’t have to com o objetivo de instrumentalizar os alunos a caracterizar profissões e falar sobre obrigações e não obrigações destas. Habilitar o aluno a falar sobre profissões e suas qualidades e também sobre suas obrigações. Observa-se que, de uma pulverização muito grande no pré-teste, as respostas do pós-teste passaram a concentrar-se em torno de dois eixos: gramática e uso da língua (embora em graus distintos), conforme conteúdo apresentado no quadro 3. Respostas quanto ao objetivo da lição RESPOSTAS Gramática Gramática e tema Uso da estrutura ligado ao tema Interação FREQUÊNCIA 2 2 5 2 Quadro 3: pós-teste Comparando-se as respostas do pré e do pós-teste, verifica-se que houve uma mudança na percepção dos objetivos da lição, predominando o uso da estrutura e a interação (sete escolhas) sobre os aspectos estruturais e temáticos (quatro escolhas). Os objetivos explícitos da lição conforme foi mencionado anteriormente na descrição da metodologia do estudo eram gramaticais e lexicais. Mas o objetivo implícito era conduzir o aluno a interagir em situações específicas. Ou seja, a gramática e o léxico foram explorados como meio para apoiar o desenvolvimento de habilidades interacionais e não como um fim em si mesmos, o que foi percebido pela maioria dos alunos. Para quatro dos onze alunos, no entanto, persiste a percepção do objetivo estrutural, sem menção aos aspectos interacionais. Essa é a visão tradicional em relação ao ensino de línguas, à qual os alunos estiveram expostos ao longo de sua formação e que, muito possivelmente, internalizaram e reproduziram. Teorias do Discurso e Ensino 197 Pré-teste, questão (2) Com relação à concepção de língua no pré-teste, as respostas produzidas pelos alunos foram do seguinte teor: A língua é apresentada em conjunto a aspectos culturais do país onde é falada. A concepção de que a língua pode ser aprendida por interação. [...] uma concepção de língua como algo interativo [...] A lição é embasada na idéia da língua ser um meio de troca de saberes, de integração do grupo. Abordagem comunicativa com ênfase em vocabulário e gramática. Uma concepção comunicativa [...]. Creio que [...] a concepção de língua que embasa a lição é estruturalista. A lição tem base numa visão estruturalista de língua. A concepção que embasa a língua é tradicional. Uma concepção tradicional. Não tenho certeza. Não possuo conhecimentos a respeito de concepções de língua. Essas respostas, também bastante diversificadas, podem ser agrupadas em torno de alguns núcleos, o que é mostrado no quadro 4. Respostas quanto à concepção de língua RESPOSTAS Interação/comunicação Concepção tradicional Integração língua-cultura Desconhece FREQUÊNCIA 5 2 1 1 Quadro 4: pré-teste Embora cinco alunos tenham apontado uma concepção de língua como interação/comunicação, os outros seis alunos contemplaram aspectos variados, desde os estruturais e culturais, passando pela concepção tradicional (provavelmente referindo-se à abordagem de ensino), até a constatação de desconhecimento da questão. As respostas permitem inferir que alguns alunos responderam de forma intuitiva ou a partir de experiências pessoais, sem o apoio de um referencial teórico. 198 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Pós-teste, questão (2) No pós-teste, as respostas sobre a concepção de língua que embasa a lição foram assim expressas: Veículo que precisa ser guiado dentro dos limites da rua (contexto) e traz elementos culturais. Concepção comunicacional da língua, mas não deixa de lado a concepção estrutural. A concepção de língua é funcional. A língua apresenta-se como discurso. Língua como instrumento de comunicação, como função. A lição é embasada em língua como discurso, em uso real. A concepção da língua como discurso. É uma concepção de língua como função interativa. Se fundamenta na concepção interacional. Uma concepção interacionista. Concepção de língua como atividade discursiva. Essas respostas, construídas em torno de três focos, foram resumidas e categorizadas no quadro 5. Respostas quanto à concepção de língua da lição RESPOSTAS Funcional interacionista/ como discurso Comunicacional e também estrutural Dependente do contexto/traz elementos culturais FREQUÊNCIA 9 1 1 Quadro 5 pós-teste Como se observa, as respostas, na quase totalidade, expressam uma percepção de língua como discurso, sendo que uma delas aponta a indissociável relação entre língua e cultura. Além disso, não mais ocorreu a resposta “desconheço”, como aconteceu no pré-teste. De uma visão inicial, predominantemente vaga e dispersa, o grupo assumiu uma posição mais clara quanto aos aspectos teóricos subjacentes ao material analisado. Dados do segundo grupo Um segundo grupo de alunos estagiários, formado por seis alunos, foi submetido ao mesmo pré-teste que o primeiro grupo. Seguiu-se um período de Teorias do Discurso e Ensino 199 dez semanas de intervenção pedagógica idêntica, ao final do qual os alunos realizaram o mesmo pós-teste. Pré-teste, questão (1) Respostas dos alunos quanto ao objetivo da lição no pré-teste: Ensinar o presente simples na terceira pessoa do singular, através de atividades escritas e orais. Apresentar o “present simple” através de um aspecto cultural da Inglaterra. Apresentar o presente simples na terceira pessoa do singular e mostrar alguns aspectos da cultura britânica/inglesa. Propiciar ao aluno conhecimentos sobre a cultura inglesa assim como enfocar o presente simples, principalmente a terceira pessoa do singular. Ensinar o uso correto do Simple Present Tense, nas formas afirmativa, negativa e interrogativa. Proporcionar atividades envolvendo o uso do presente simples com as três pessoas he, she, it. O resumo das opções apresentadas pelos alunos consta do quadro 6. Respostas quanto ao objetivo da lição RESPOSTAS Gramática Gramática e cultura FREQUÊNCIA 3 3 Quadro 6: pré-teste Como se vê no quadro-resumo, os alunos perceberam apenas as dimensões gramatical e cultural da lição, desconsiderando os aspectos lexicais (explícitos no material) e os interacionais, presentes em atividades (implícitos na lição). Em função da não identificação desses aspectos, verificou-se alguma discrepância entre o objetivo apontado e a concepção de língua, conforme dados contidos no quadro 7. 200 Carmem Luci da Costa Silva, et al. ALUNO OBJETIVO A1 Gramática e aspectos culturais A2 A3 A4 A5 Gramática Aspectos culturais e gramática Gramática Gramática e aspectos culturais A6 Gramática CONCEPÇÃO DE LÍNGUA Conceitos construídos pelo aluno Uso da língua Comunicativa Comunicativa Princípios da aquisição da linguagem e teorias da cognição Comunicação Quadro 7: pré-teste Repete-se com esse grupo, em maiores proporções (alunos A2, A3, A4 e A6), a incoerência entre objetivo da lição e noção teórica subjacente. Aparentemente, os alunos confundiram dois níveis de análise, tomando concepção de língua por abordagem de ensino. Fica evidente, mais uma vez, a necessidade de buscar fundamentos teóricos que permitam compreender e identificar pressupostos presentes em manifestações concretas no âmbito do ensino. Pós-teste, questão (1) Na sequência, são apresentadas as respostas quanto ao objetivo da lição no pós-teste: Falar e perguntar sobre uma rotina, através do presente simples e aprender sobre a cultura inglesa. Perguntar e informar sobre hábitos e rotinas e utilizar o present simple na terceira pessoa do singular. Introduzir o presente simples na terceira pessoa do singular, apresentando aspectos culturais do povo inglês. Apresentar um aspecto da cultura inglesa e introduzir o simple present. Apresentar o presente simples na terceira pessoa do singular. Explicar o “simple present” a partir de um texto que apresenta aspectos culturais. Os objetivos identificados foram agrupados no quadro 8. Respostas quanto ao objetivo da lição Teorias do Discurso e Ensino 201 RESPOSTAS Comunicação/ uso Gramática Gramática e cultura FREQUÊNCIA 2 1 3 Quadro 8: pós-teste Comparando-se as respostas do pré e do pós-teste, verifica-se que dois aprendizes mudaram de opinião, passando a mencionar a dimensão interacional da língua, enquanto outros quatro permaneceram com as noções anteriores, ou seja, gramática ou gramática e cultura. Observa-se nesse grupo uma sensibilidade especial para as questões culturais envolvidas na lição, talvez supondo que o entorno cultural seja suficiente para situar a língua como atividade. Pré-teste, questão (2) Quanto à concepção de língua que embasa a lição do material analisado, as respostas dos alunos apontaram os seguintes aspectos: Conceitos construídos pelo aluno a partir de uma “base” apresentada. Focalizam o uso da língua. O foco dos autores é da língua como comunicativa. O autor introduz a unidade de maneira comunicativa e abordando aspectos culturais. Os autores acreditam que os alunos aprendam a língua estrangeira com base nos princípios da aquisição da linguagem e teorias de cognição. A língua é um fato social, deve refletir a realidade do aprendiz, que é, em primeiro lugar, comunicação. Na percepção dos alunos, a concepção de língua implícita no material analisado corresponde às noções resumidas no quadro 9. Respostas quanto à concepção de língua na lição RESPOSTAS Comunicativa/ uso Construção do aluno Princípios da aquisição e cognição Quadro 9: pré-teste 202 Carmem Luci da Costa Silva, et al. FREQUÊNCIA 4 1 1 Quanto à concepção de língua, quatro alunos apontaram língua como atividade, enquanto outros dois pontuaram aspectos cognitivos. Percebe-se nessas respostas ausência de distinção entre fundamentos linguísticos e cognitivos. Pós-teste, questão (2) No pós-teste, as respostas quanto à concepção de língua foram as seguintes: A língua é apresentada como função e como estrutura. A lição tem a concepção de língua como estrutura e como função. Língua como estrutura. Língua como função. Aprendizagem através da aquisição da linguagem. Abordagem sociointerativa. Um resumo desses dados é apresentado no quadro no quadro 10. Respostas quanto à concepção de língua na lição RESPOSTAS Função e estrutura Função/interação Estrutura Aquisição FREQUÊNCIA 2 2 1 1 Quadro 10: pós-teste Comparando-se as respostas produzidas pelo segundo grupo no pré e no pós-teste, verifica-se que, basicamente, não houve modificação das percepções sobre a concepção de língua presente na lição analisada, permanecendo duas escolhas relacionadas a aspectos discursivos, duas à associação entre função e estrutura, uma à estrutura e uma a aspectos do processo de aquisição. Para dois alunos ainda não há clareza quanto à noção de língua como atividade, nem quanto aos níveis de análise envolvidos. Teorias do Discurso e Ensino 203 Análise comparativa entre os dois grupos Analisando o percurso de construção teórico-crítica desses dois grupos de alunos que receberam insumos idênticos quanto a conteúdos, em termos de textos de apoio, atividades e exposições didáticas, percebe-se que o primeiro grupo apresentou uma capacidade de discriminação mais elevada, embora nem todos os alunos tenham conseguido compreender de fato a distinção entre língua como sistema e língua como discurso para aplicá-la à análise do material instrucional. Há muitas variáveis em jogo numa situação formal de aprendizagem, muitas delas de natureza individual, entre as quais motivação, estilo cognitivo e conhecimento prévio relevante organizado numa estrutura cognitiva estável. Esse parece ter sido o caso de alguns alunos que não evidenciaram ter conceitos estáveis de apoio que lhes permitissem reavaliar suas compreensões prévias e integrar o conhecimento novo, com a finalidade de buscar uma avaliação mais adequada do material didático submetido à análise. Do ponto de vista da criticidade, o primeiro grupo também revelou maior competência em perceber a coerência entre o objetivo da lição e a concepção de língua que lhe servia de base, enquanto que o segundo grupo apresentou mais respostas discrepantes. Esse dado é revelador da capacidade de observação e raciocício do aluno que, juntamente com a base de conhecimento, servem de suporte ao senso crítico. Além disso, é preciso considerar também aspectos inerentes ao processamento da informação. De acordo com abordagens cognitivas informacionais, a relação entre insumo (input), internalização (intake) e resultado/produto (output) não implica que uma etapa ocorra necessariamente na mesma proporção que a anterior, ou que haja uma correspondência direta entre elas. Há muitos fatores em jogo nesse processamento, especialmente os de ordem sociocognitiva e afetiva, que podem afetar o processo (percepção, atenção, memória, habilidades cognitivas, conhecimento prévio, interesse, propósito, relevância, gosto, ritmo de aprendizagem, entre outros). Assim, a quantidade e a qualidade do insumo não garantem internalização na mesma medida, nem idiossincráticas. 204 produto Pelas no mesmo mesmas Carmem Luci da Costa Silva, et al. nível, razões (e o que outras, resulta em condutas socioculturais e até procedimentais), pode até haver ocasiões em que o produto supere o insumo fornecido. No caso dos grupos analisados, o primeiro grupo superou o segundo nos resultados, sugerindo ter havido internalização bastante adequada dos insumos apresentados, o que se configurou nas respostas. O fato de o segundo grupo não ter apresentado os mesmos resultados não significa, porém, que não tenha feito suas elaborações no nível teórico nem progredido no desenvolvimento de atitudes autônomas. Significa, mais provavelmente, que a construção das competências que dão suporte à autonomia estava ainda em processo no momento do pós-teste. 7 Considerações finais Alguns aspectos da construção da autonomia podem ser destacados, a partir dos dados empíricos deste estudo, embora os resultados não sejam, a rigor, generalizáveis. Nesse contexto, é importante mencionar que a situação de autoformação docente é extremamente complexa, exigindo a realização de inúmeros estudos, sob diferentes ângulos de análise. Talvez a explicação mais adequada sobre ensino nos venha de Heidegger apud Paviani (2003): ensinar é deixar aprender. Por que “deixar aprender”? Porque a aprendizagem verdadeira é a realizada pelo sujeito aprendente, de forma significativa, e não a imposta de fora para dentro. Aprender é sinônimo de liberdade e de autonomia. “O ato de aprender, no sentido mais elevado, implica escolha, decisão, responsabilidade” (PAVIANI, 2003, p.15). Nesse sentido, o aluno precisa querer aprender e assumir a própria construção. Quanto aos resultados, o estudo evidencia, uma vez mais, que a ensino não corresponde necessariamente aprendizagem. Além do grau e qualidade do comprometimento do aluno, esse fato pode, até certo ponto, ser entendido a partir da distinção entre as etapas de insumo, internalização e produto no processamento da informação, que estão associadas a múltiplas variáveis individuais e contextuais, entre as quais a intervenção pedagógica. Na verdade, em se tratando de situação de aprendizagem, deve-se também considerar as Teorias do Discurso e Ensino 205 variáveis do ensino e o modo como cada aluno foi afetado por elas. A forma como os insumos foram apresentados e trabalhados (a mediação realizada pelo professor) pode ter sido mais significativa para alguns alunos e menos para outros; pode ter deixado a desejar quanto à clareza; pode ter oferecido quantidade insuficiente de prática, ou ter sido pouco desafiadora, entre outros fatores. No estudo que relatamos, insumo variado, explícito e implícito, foi fornecido aos dois grupos no módulo de intervenção, compreendendo exposição teórica, estabelecimento de relações entre aspectos compatíveis com as visões teóricas, exemplificação, análise de planos de ensino e de aulas observadas, sempre contemplando a relação teoria-prática e aspectos metacognitivos. Esses insumos, tratados de forma idêntica nos dois grupos, foram aparentemente internalizados, o que ficou evidenciado em atividades orais e escritas sobre os tópicos específicos em discussão, tanto teóricos quanto aplicados a diversos aspectos referentes ao processo do ensino. No entanto, quando foi apresentado o desafio de aplicar o que foi internalizado, de forma autônoma, nem todos os alunos atingiram os mesmos níveis de resposta. O fato parece estar relacionado não só ao conhecimento pré-existente, ao processamento da informação e à apropriação do conhecimento novo, mas também à dissociação entre teoria e prática, o que resulta em compreensão de aspectos teóricos, mas não na identificação precisa desses pressupostos em atividades práticas. No caso da presente investigação, como algumas competências não se desenvolveram suficientemente, a autonomia necessária para tomar decisões quanto à adequação de materiais didáticos ficou prejudicada. Com efeito, percebe-se que a interface teoria-prática nem sempre é evidente para o aprendiz que chega ao estágio com quase todos os créditos de seu curso de licenciatura concluídos, presumivelmente com um bom repertório teórico no que diz respeito aos estudos da linguagem. Quando se apresenta a oportunidade de identificar e aplicar esses princípios teóricos a atividades práticas (por exemplo, tomar decisões no momento de planejar uma aula, ou analisar criticamente materiais didáticos e aulas observadas), verifica-se que nem sempre os conceitos-chave estão devidamente estruturados e sistematizados. E 206 Carmem Luci da Costa Silva, et al. quando falta conhecimento/competência, falta uma condição fundamental para o desenvolvimento da autonomia. Por outro lado, os resultados do pós-teste deste estudo, analisados do ponto de vista cognitivo, sugerem a existência de ideias de esteio ainda não perfeitamente claras, apesar da inclusão de aspectos antes não identificados por alguns aprendizes, evidenciando que a apropriação do conhecimento relevante ainda não se concretizara totalmente. O componente cognitivo da competência (os conhecimentos ou saberes propriamente ditos) revelou ser talvez o requisito mais importante na construção da autonomia. Observou-se que alguns alunos utilizaram seu conhecimento prévio para identificar objetivos e avaliar o material didático em estudo, em vez de se apoiarem em pressupostos teóricos já disponibilizados e supostamente construídos. A cadeia da autonomia 3 constrói-se na integração de alguns fatores como: a conscientização, o desenvolvimento de competências e de senso crítico, requisitos para o estabelecimento de objetivos, a tomada de decisões e a avaliação, inerentes a um comportamento autônomo. Nesse processo de construção, se algum requisito não estiver presente há um comprometimento no desenvolvimento pleno da ação autônoma. Posto de outro modo, os diferentes fatores ou etapas da autonomia se retroalimentam: a conscientização, ou a reflexão crítica, encontra apoio não apenas na observação e no repertório de experiências pessoais e sociais, mas também em referencial teórico, que lhe confere suporte científico. Se a construção ou apropriação do conhecimento falham na composição das competências, os demais estágios não encontram condições favoráveis de realização. Por outro lado, o exercício da reflexão crítica, como postura permanente nessa etapa de formação do educador, pode direcionar, orientar e qualificar as construções posteriores, sendo, pois, um requisito indispensável na promoção de competências que possam realmente conduzir à autonomia. Além de conhecimento de várias ordens, a crítica fundamentada requer uma base ética e habilidades cognitivas complexas (entre as quais análise, síntese, avaliação e metacognição). 3 A cadeia da autonomia, como aqui concebida, é descrita no artigo “Autonomia: requisito na formação do professor de línguas para fins específicos” (FONTANA, no prelo) a ser publicado na revista The ESPecialist. Teorias do Discurso e Ensino 207 Em síntese, com base no estudo realizado e nos referenciais teóricos, é possível concluir que a construção da autonomia pelo professor-aluno resulta da integração de várias etapas: de conscientização, de desenvolvimento de competências e de reflexão crítica, que o capacitem a identificar e estabelecer objetivos para suas ações, a avaliar teorias, metodologias, recursos e condutas, de modo consistente e justo, possibilitando tomadas de decisão coerentes em contextos de situação desafiadores, como são os contextos das práticas educacionais, particularmente as que envolvem práticas de linguagem. Mas, cabe lembrar que a autonomia não se restringe à área educacional: é meta a ser atingida por todos os que desejam sair da “menoridade” e realizar-se plenamente como indivíduos e cidadãos. REFERÊNCIAS ALLAL, L. Aquisição e avaliação das competências em situação escolar. In: DOLZ, J.; OLLAGNIER, E. (Orgs.). O enigma da competência em educação. 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Sempre restam dúvidas, tanto para o professor quanto para o aluno, que podem ser observadas no momento da utilização dessas expressões de forma acurada, de modo a se obter uma comunicação precisa e fluente. Então se verifica que os alunos não conseguem empregá-los com segurança, visto não distinguirem um do outro, e que o professor tem dificuldade de explicitar essa diferença. Durante o estudo da Teoria da Argumentação na Língua (de agora em diante, abreviada para TAL), vislumbramos a possibilidade de uma nova abordagem para os quantificadores em questão, que ajudaria tanto alunos como professores no entendimento desse assunto. Isso se deve ao fato de que esses operadores modificadores2, conforme nomenclatura utilizada por Oswald Ducrot 3 (2002, p. 11), são, provavelmente, ensinados de acordo com uma ótica teórica de caráter informacional, a qual descreve a significação dessas palavras com um valor semântico permanente, * Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade de Passo Fundo – RS. Quantificadores são expressões de quantidade, ou que expressam quantidade (SOARS, 1992, p. 54). 2 Few, a few, little e a little (pouco e um pouco) são chamados de operadores argumentativos por Ducrot, conceito que explicitaremos logo a seguir. 3 Filósofo semanticista que criou, juntamente com Jean-Claude Anscombre, a Teoria da Argumentação na Língua. 1 desvinculado dos contextos possíveis, perspectiva em que os pares significariam pequena quantidade. Há, no entanto, outra forma de explicação, que se crê, seja mais eficaz: a ótica da Teoria da Argumentação na Língua (DUCROT, 1988, p. 49 – 64), segundo a qual a significação de uma frase é constituída pelo conjunto de encadeamentos possíveis. Esse ponto de vista não aborda as palavras no nível denotativo, ao descrever ou informar coisas e fatos, mas no nível argumentativo (subjetivo e intersubjetivo). Para demonstrar que o sentido fundamental das palavras é argumentativo e não informativo, a TAL compara enunciados com pouco e um pouco, que são categorizados como operadores argumentativos. Nessa teoria, é operador argumentativo uma palavra Y que, aplicada a uma palavra X, produz um sintagma XY cujo sentido é constituído de aspectos contendo só as palavras plenas 4 já presentes na argumentação interna e na argumentação externa de X. Em outras palavras, o operador só combina de um modo novo, arranja, reorganiza os constituintes semânticos de X. (DUCROT, 2002, p. 11) Para entender a conceituação de operador argumentativo, observem-se os seguintes enunciados, num contexto em que, quando alguém está lesionado, a fisioterapia faz bem, isto é, quanto mais fisioterapia, melhor: (a) O jogador de futebol contundido fez pouca fisioterapia. (b) O jogador de futebol contundido fez um pouco de fisioterapia. Como se pode perceber, a significação informativa desses termos é de pouca quantidade. No entanto, seu uso aponta para diferentes conclusões, reorganizando os constituintes semânticos da frase. Se, para (a) o jogador contundido fez pouca fisioterapia, pode-se estabelecer a conclusão: ele não vai se recuperar tão rápido; para (b), 4 Palavras plenas são palavras “que se caracterizam freqüentemente pelo fato de possuírem um ‘conteúdo’”, como, por exemplo, o adjetivo prudente, cujo conteúdo poderia ser expresso pelo encadeamento perigo PORTANTO precaução. (Ibid., p. 11) 212 Carmem Luci da Costa Silva, et al. estabelece-se a conclusão contrária: o jogador contundido fez um pouco de fisioterapia, tem chances de se recuperar mais rapidamente. Como se pôde perceber, o uso de um ou de outro operador, que têm a mesma significação de “pouca quantidade”, leva a conclusões opostas. Constituíram-se, assim, os objetivos deste trabalho: a) verificar como os materiais didáticos selecionados para esta pesquisa descrevem os operadores little / a little, few / a few, e propõem os exercícios; b) verificar se a distinção feita tradicionalmente é suficiente para se resolverem os exercícios; c) verificar se uma abordagem baseada na TAL produz efeitos mais eficazes no uso desses operadores. Este trabalho está baseado na fundamentação teórica do filósofo e semanticista Oswald Ducrot. Sua teoria descarta o sentido descritivo e referencial das palavras e sustenta o sentido argumentativo, segundo o qual a significação de uma palavra depende dos encadeamentos que evoca em um determinado contexto, como, por exemplo, os encadeamentos evocados pela palavra “chuva” em um contexto de seca. Ora, nesse caso, só se pode pensar em coisas positivas, pois, em um período de seca, a chuva é sempre bem-vinda, já que, provavelmente, nessa circunstância, não há água suficiente para abastecer as cidades, para alimentar os animais no campo, para o desenvolvimento das plantações, etc. Por outro lado, se pensarmos em um contexto de cheia, “chuva”, evocando mais água, significaria mais alagamentos, desmoronamentos, isto é, mais catástrofe. Sob essa perspectiva, “chuva” não significa apenas “Precipitação atmosférica formada de gotas de água, por efeito da condensação do vapor de água contido na atmosfera” (AURÉLIO, 1985). O caminho percorrido por Ducrot para defender sua Teoria da Argumentação na língua, iniciada com Jean-Claude Anscombre (1983), vai da concepção da Teoria da Polifonia, passa pela Teoria dos Topoi, para finalmente, chegar à Teoria dos Blocos Semânticos, com a importante contribuição de Marion Carel5. 5 A proposta de Marion Carel amplia a forma recente da TAL, mantendo-a estruturalista, na medida em que dispensa o recurso aos topoi (elementos externos à língua), que justificariam a passagem de um argumento a uma conclusão. Teorias do Discurso e Ensino 213 Os estudos gramaticais tradicionais distinguem no sentido dos enunciados o dictum (o conteúdo descritivo) e o modus (a atitude do sujeito falante frente a esse conteúdo). No entender de Ducrot, gramáticos e filósofos deveriam refutar desde o início uma concepção veritativa, ou descritivista, ou ainda informativa da descrição semântica das línguas, uma vez que se decida integrar a semântica à pragmática, pois a concepção descritivista da significação está longe de permitir uma via científica global da atividade da linguagem, sendo, então, unicamente uma das imagens que essa atividade de linguagem elabora para pensar-se a si própria. Isso conduziria a uma transformação completa do verbete de dicionário: não se trata mais de encontrar traços pertinentes a um conceito, mas de mostrar a qual tipo de discurso conduz o emprego de uma palavra (DUCROT, 2005, p. 921). Ducrot apresenta dois conceitos que permitem descrever o nível semântico primeiro, anterior à distinção do modus e da proposição. São eles a polifonia e o conceito de topos. A noção de polifonia, segundo Ducrot, visa substituir a análise semântica “horizontal”, típica da teoria do “modus” ou dos “atos de linguagem” por uma análise “vertical”. A ideia de base é que o sentido de um enunciado é constituído pela superposição de diversos discursos elementares, cujos supostos responsáveis, às vezes chamados “enunciadores”, podem ser diferentes do responsável que o enunciado atribui a si mesmo, que é chamado de locutor. Em outras palavras, sob a frase mais simples pode haver um tipo de diálogo imaginário. Na análise vertical, ao contrário, a cada um dos componentes é atribuída uma autonomia enunciativa, constituindo a significação de um discurso possível. Em comparação com a polifonia musical, vozes diferentes se fazem entender simultaneamente no enunciado. O valor informativo do enunciado adquire um caráter de fenômeno derivado. No nível mais profundo, o sentido de um enunciado se reduz à superposição das vozes de diferentes enunciadores. Para evitar a interpretação horizontal, define-se o enunciador como a fonte de um ponto de vista, que consiste em evocar, a propósito de um estado de coisas, um princípio argumentativo, que Ducrot, retomando o termo de Aristóteles, chama de topos. É esse topos, considerado comum à coletividade 214 Carmem Luci da Costa Silva, et al. onde o discurso ocorre, que permite extrair argumento do estado de coisas para justificar essa ou aquela conclusão. A descrição de uma frase (estrutura abstrata que caracteriza a língua) indica, de um lado, o aspecto polifônico, as grandes linhas do cenário segundo o qual os enunciadores deverão ser postos em cena, cada um com seus enunciados particulares; e de outro, o aspecto argumentativo, especificando o tipo geral de topoi que os enunciadores têm à sua disposição. Com a noção de topos, Ducrot entrevê a possibilidade de uma semântica desvencilhada das condições de verdade. Cada ponto de vista consiste em situar argumentativamente o referente (o estado de coisas de que se fala), comparando esse referente a outros eventuais estados de coisas, no interior de uma escala determinada por um topos. “Não se pode separar à maneira dos cartesianos, a idéia que representa da vontade que toma partido: o mundo aparece, no enunciado, por meio da exploração discursiva do qual é objeto” (DUCROT, 2005, p.9-21). Ducrot propôs, então, dois conceitos para descrever o nível semântico profundo, contrário às dicotomias contexto X atos de fala, dictum X modus, objetivo X subjetivo: o conceito de polifonia e o conceito de topos. A Teoria dos Blocos Semânticos surge em seguida com Marion Carel e resolve certos aspectos problemáticos da Teoria dos Topoi, levantados pelo próprio Ducrot. A Teoria dos Blocos Semânticos foi proposta por Marion Carel e constituiu uma solução para se “retirar” os topoi da TAL, já que estes significariam uma entidade externa à argumentação, pertencente ao mundo, e que poderiam, dessa forma, descrevê-lo e informar seu valor exato. A argumentação, que anteriormente considerava a existência de um argumento (A) que levava a uma conclusão (C) através de um topos, não mais se justifica, pois é o sentido de A que determina o de C e vice-versa. Sob esse ponto de vista, C serve para construir o sentido de A, e A serve para construir o sentido de C. No encadeamento argumentativo, há apenas um objeto semântico, mesmo que se possam distinguir dois segmentos: o argumento e a conclusão. Nesse caso, a justaposição do argumento e da conclusão forma uma entidade semântica única, que é o objeto semântico único, construído pelo encadeamento, isto é, constitui o próprio bloco semântico. Teorias do Discurso e Ensino 215 Para exemplificar esse conceito, considere-se: “Faz calor lá fora. Vamos passear”. O argumento A seria o calor que faz lá fora. E a conclusão C seria o convite ao passeio. No entanto, deve-se pensar em que tipo de calor se fala em A. Se há um convite para passear, obviamente não se está falando de um calor escaldante que impediria o passeio. Seria um calor agradável para sair à rua. A palavra “calor” aqui é específica para se passear, pois esse calor pode ser proibitivo a outras atividades (correr ou andar de bicicleta, por exemplo). O sentido de C ajuda a compreender o sentido de A, e a recíproca também é verdadeira. Caso se diga “Está calor demais. Não vamos passear”, compreendese que o tipo de calor não é adequado ao passeio, e que o passeio não pode ser feito com esse tipo de calor. Talvez se possa nadar, ou apenas dormir ou ainda, assistir à televisão. Esse raciocínio impede que descrevamos a palavra “calor” com um valor informativo fixo, pois ela pode representar diversas temperaturas ao redor do mundo e ser sentida de diversas formas pelos seres humanos. No nordeste, um gaúcho que não está acostumado ao calor que faz lá, pode desidratar-se facilmente. Um bloco semântico é, portanto, um conjunto semântico. Por sua característica “inteiriça”, blocos semânticos são identificados num enunciado não como a relação de dois conceitos, dois termos metalinguísticos, como se pensaria, mas como representações unitárias de princípios, conforme Carel (1995). Um bloco semântico pode ser expresso por encadeamentos em donc e em pourtant. 6 Retomando os exemplos anteriores, “Faz calor, vamos passear”, exprime um encadeamento em PORTANTO. Por outro lado, “Faz calor, mesmo assim não vamos passear”, exprime um encadeamento em MESMO ASSIM. Note-se que no encadeamento em MESMO ASSIM o tipo de calor continua o mesmo do encadeamento em PORTANTO: trata-se do calor específico para passear. Esses encadeamentos exprimem qualidades, que podem ser positivas ou negativas, como, por exemplo, mais calor, menos calor, mais passeio, menos 6 Os encadeamentos em donc e pourtant, em francês, são traduzidos para o português, neste trabalho, como encadeamento em PORTANTO e MESMO ASSIM, respectivamente. 216 Carmem Luci da Costa Silva, et al. passeio. Quando unirmos o bloco semântico calor e passeio às qualidades, teremos as regras. As regras, em princípio, seriam duas, a saber: regra 1 quanto mais calor, mais vamos passear; regra 2 - quanto menos calor, menos vamos passear. Cada regra expressa dois aspectos: um é normativo, e outro é transgressivo. O aspecto normativo da regra 1 é aquele expresso em PORTANTO: “Faz calor, vamos passear”. O aspecto transgressivo da regra 1 é expresso em MESMO ASSIM: “Faz calor, mesmo assim não vamos passear”. Por outro lado, o aspecto normativo da regra 2 é: “Não faz calor, portanto não vamos passear”. E o aspecto transgressivo da regra 2 é: “Não faz calor, mesmo assim vamos passear”. Destaque-se que outro bloco semântico pode ser constituído com as palavras “calor” e “passeio”. Isso é possível devido à mudança da ação das qualidades positivas e negativas no bloco, que passariam a constituir, respectivamente, a regra 1 – quanto mais calor, menos vamos passear; e a regra 2 – quanto menos calor, mais vamos passear. O aspecto normativo da regra 1 é “Está calor, portanto não vamos passear”. O aspecto transgressivo é o seguinte: “Está calor, mesmo assim vamos passear”. Quanto à regra 2, o aspecto normativo é “Não está calor, portanto vamos passear”. E o aspecto transgressivo é “Não está calor, mesmo assim não vamos passear”. Nesse bloco semântico, o valor da palavra “calor” é muito diferente do seu valor no bloco discutido anteriormente, no qual o calor é agradável ao passeio. Nesse último bloco, o calor é considerado desfavorável ao passeio. É um outro tipo de calor do qual, igualmente ao calor do primeiro bloco, não se sabe a sua intensidade ou quantos graus ele apresenta. Com essa análise, Ducrot demonstra que o valor semântico de um enunciado é argumentativo, e não informacional. 2 A pesquisa Este trabalho consistiu, além da análise de materiais didáticos (tanto os encontrados no mercado e selecionados para a pesquisa quanto os elaborados pela professora pesquisadora), de uma experiência exploratória com estudantes de língua inglesa como língua estrangeira e sua apreensão dos operadores Teorias do Discurso e Ensino 217 argumentativos em questão após sucessivas intervenções em sala de aula. O universo trabalhado foi o curso de Letras da Universidade Regional Integrada, campus Erechim (RS), com alunos da turma de 2001. Como afirma Kurtz dos Santos (2003) em sua tese de doutoramento, na qual trabalha a articulação entre linguística e linguística aplicada ao ensino de inglês, tendo a semântica argumentativa como a teoria linguística que se prestaria a esse papel de modo muito satisfatório, é importante que o aprendiz tenha sua consciência despertada para a concepção argumentativa do sentido, ou seja, para o possível conjunto de discursos que podem ser evocados quando da utilização de certas entidades linguísticas. Os materiais utilizados nas aulas e nos testes foram três gramáticas (Basic Grammar in Use, English Grammar in Use, Grammar Way 1) e dois livros didáticos (American Inside Out, Headway Upper-Intermediate, student’s book e workbook). Na análise do tratamento dado aos operadores argumentativos, foram acrescidos um dicionário (Dictionary of Contemporary English) e uma gramática (English Grammar Practice). 7 Esses livros foram selecionados, por serem amplamente utilizados, tanto em escolas de línguas, quanto em cursos de nível superior em universidades públicas e privadas no Brasil. São materiais importados, com alcance mundial, pois são utilizados em diversos países em todo o mundo, como material didático para o ensino de língua inglesa como língua estrangeira, e suas editoras são renomadas (Macmillan, Longman, Cambridge, Oxford, Express Publishing). Além disso, escolas de língua e cursos de nível superior em universidade privada constam da experiência de trabalho da professora pesquisadora. 7 ALEXANDER, L. G. Longman English Grammar Practice: for intermediate students. 4 ed. Essex: Longman, 1991. DOOLEY, Jenny; EVANS, Virginia. Grammar Way 1. Blackpill: Express Publishing, 1998. KAY, Sue; JONES, Vaughan. American Inside Out Upper Intermediate. Student’s book. Oxford: Macmillan, 2003. LONGMAN Dictionary of Contemporary English. Essex: Longman, 1987. MURPHY, Raymond. Basic Grammar in Use. 7 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. ______. English Grammar in Use. 2 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. SOARS, John & Liz. Headway Upper-Intermediate. Student’s book. 14 ed. Oxford: Oxford University Press, 1992. ______. Headway Upper-Intermediate. Workbook. 21 ed. Oxford: Oxford University Press, 1996. 218 Carmem Luci da Costa Silva, et al. O livro Headway Upper-Intermediate foi selecionado porque os alunos em questão trabalharam, nos semestres anteriores, com o Headway Intermediate, sendo o Upper-Intermediate, a sequência natural. Além desses materiais, explicações e exercícios fundamentados em descrições feitas pela TAL, elaborados pela professora pesquisadora, foram utilizados. A professora pesquisadora, após aula e teste com material didático tradicional, com o objetivo de conduzir os alunos na observação de que um mesmo enunciado com pouco ou um pouco distinguem-se argumentos e não informações, utilizou material baseado na TAL, elaborado por ela mesma, para explicar o conteúdo aos alunos. Distribuiu a eles o material e foi conduzindo a leitura e a resolução das questões. A seguir, a transcrição do primeiro exercício. Few, a few, little, a little Situação 1 – João terá de fazer uma prova. Ele precisa estudar para ser aprovado. Imagine que se pergunte à irmã de João se ele conseguiu estudar e ela responda: - João estudou um pouco. A mesma pergunta é feita à mãe de João, e ela responde: - João estudou pouco. Agora responda: A mãe e a irmã disseram a mesma coisa? Que quantidade João estudou? A que conclusão se pode chegar – sobre se João tem chance de ser aprovado – a partir das duas respostas? Observe: => Resposta da irmã e conclusão que se pode tirar: João estudou um pouco, PORTANTO _________________________________. orientação argumentativa positiva => Resposta da mãe e conclusão que se pode tirar: João estudou pouco, PORTANTO _____________________________________. orientação argumentativa negativa Teorias do Discurso e Ensino 219 Now, in English: The sister’s answer and the conclusion we can reach: John studied a little, so _____________________________________________. The mother’s answer and the conclusion we can reach: John studied little, so _______________________________________________. Esse material possui situações para contextualizar o uso dos operadores argumentativos em questão. As situações 1 e 2 partem da língua materna, o português, para depois fazer-se o mesmo raciocínio na língua alvo, o inglês. As situações 3 e 4 já partem da contextualização em inglês. Após o estudo das situações, foram apresentados aos alunos dois tipos diferenciados de exercícios. O primeiro, de marcar uma ou outra alternativa, utiliza um frame: party (festa). Os frames são comumente utilizados em materiais didáticos de inglês como LE. Seu conceito aparece em Koch & Travaglia (1999, p. 64): Frames são modelos globais que contêm o conhecimento de senso comum sobre um conceito central (por exemplo, Natal, viagem aérea); estabelecem quais as coisas que, em princípio, são componentes de um todo, mas não estabelecem entre eles uma ordem ou seqüência (lógica ou temporal). Ao se pensar em um modelo global de uma festividade como o Natal, ou um conceito central de Natal, o senso comum evoca os componentes desse todo, que podem ser coisas tais como religiosidade, missa, presentes, ceia, comidas, bebidas, música, alegria, descontração, reflexão, família, Papai Noel e assim por diante. Como se percebe, não há qualquer necessidade de ordem ou sequência lógica ou temporal entre os componentes evocados, e mesmo a ausência de algum dos componentes não altera o significado da festividade, apenas a transforma. Cumpre observar que didaticamente todos os recursos foram utilizados com o intuito de tornar o menos trabalhoso possível cada exercício apresentado aos alunos. Os frames foram utilizados por se deterem em apenas um conceito de cada vez fato que, se acredita, ajude a não dispersar a atenção 220 Carmem Luci da Costa Silva, et al. do aluno para diferentes assuntos, fazendo com ele focalize sua atenção diretamente no entendimento do encadeamento argumentativo. No entanto, os frames podem ser totalmente descartados, pois a presença do encadeamento argumentativo já garante a orientação do enunciado: podemos ter um encadeamento sem frame, mas não um frame sem encadeamento, o que se tornaria inútil. Primeiramente, contextualizou-se a situação linguisticamente, isto é, criouse um encadeamento argumentativo, para que depois os alunos escolhessem a alternativa de acordo com esse encadeamento. Se porventura o aluno escolhesse a alternativa errada, significaria que ele não teria percebido a orientação do enunciado, pois a alternativa incorreta necessitaria de mais contextualização que a oferecida. Tomemos como exemplo a primeira situação, lembrando que o frame utilizado foi party (festa). O modelo global de festa se constitui como um evento no qual várias pessoas se reúnem para comemorar alguma data ou acontecimento especial. Nesse evento, há comidas e bebidas e as pessoas confraternizam. A festa em questão é uma festa de aniversário. O problema que se coloca é que o aniversariante quer dar uma grande festa para seus amigos, mas dispõe de poucas cadeiras em sua casa. A conclusão que se pode tirar é que ele não vai poder convidar todas as pessoas que ele quer, muito menos pessoas que são consideradas apenas seus conhecidos. Ele vai poder convidar apenas seus amigos mais chegados devido ao fato de o número de cadeiras que ele tem em casa - seja qual número for, isso aqui não importa - é pouco, pequeno, insuficiente. O bloco semântico seria, então, “ter cadeiras CONECTOR poder convidar”. As regras 1 e 2 seriam, respectivamente, quanto mais cadeiras ele possuir, mais pessoas ele vai poder convidar, e quanto menos cadeiras ele possuir, menos pessoas ele vai poder convidar. No aspecto normativo da regra 1, teríamos: o aniversariante possui cadeiras, portanto pode convidar muitas pessoas para sua festa; e o aspecto transgressivo seria: o aniversariante possui cadeiras, mesmo assim não vai convidar muitas pessoas para sua festa. O aspecto normativo da regra 2 seria o aniversariante possui poucas cadeiras, portanto não vai poder convidar muitas pessoas. O aspecto transgressivo seria que o aniversariante possui poucas cadeiras, mesmo assim vai convidar muitas pessoas. A alternativa correta é a segunda: I can invite only Teorias do Discurso e Ensino 221 close friends. {Eu posso convidar apenas os amigos mais chegados}. Se o aluno escolhesse a primeira alternativa, I can invite all my friends and even the acquaintances, {Eu posso convidar todos os meus amigos e até os conhecidos}, mesmo o aniversariante possuindo poucas cadeiras, ele deveria justificar fora do exercício o porquê de sua resposta, que poderia ser, dentre infinitas possíveis, de que esse aniversariante não é um bom anfitrião, pois muitos de seus convidados teriam de ficar em pé todo o tempo na festa de aniversário. E esse fato não pertence à argumentação apresentada, necessitando de mais contextualização linguística para poder ser escolhido, como por exemplo, um conector MESMO ASSIM explicitado no exercício, destacando-se que o primeiro aspecto lembrado é sempre o normativo. Confiram-se as questões desse exercício. Exercises - Frame: Party Choose the correct option. 1) I want to have a big party for my birthday this year. The problem is that I have few chairs at home. ( ) I can invite all my friends and even the acquaintances. ( ) I can invite only close friends. 2) Another thing is that I have little money. ( ) I need to save money until then. ( ) I don’t need to worry about money. 3) And I want to listen to some lively music. I have a few CDs with lively songs in them. ( ) I must borrow some CDs. ( ) I don’t need to borrow CDs. 4) What if the weather is a little rainy and cold? No problem. ( ) The party will be indoors. ( ) The party will be outdoors. 5) I’m going to bake a cake. I’ll need some flour. There’s a little flour in the cupboard. ( ) I have to go buy some flour. ( ) I don’t need to go buy some flour. O segundo exercício, de preencher as lacunas com os operadores argumentativos em questão, também utiliza a Teoria dos Blocos Semânticos. Fill in the blanks with few, a few, little, a little. 1) I always love when people remember me on my birthday. Last year ___________ people did. I was so sad. 222 Carmem Luci da Costa Silva, et al. 2) I can’t forget about plates and glasses. I have ___________ plates, but ______________ glasses. I need to buy glasses. 3) I have this funny friend of mine, and whenever she goes to parties, she eats _______________ because she feels shy to eat in public. She always leaves the parties feeling hungry. 4) What about Bob’s birthday party last year? _____________ people appeared. His party was a shame. 5) At Mary’s party, the music was ________________ loud. The next door neighbors started to complain about it. Como exemplo, tomemos o primeiro exercício: 1) I always love when people remember me on my birthday. Last year ___________ people did. I was so sad. {Eu adoro quando as pessoas se lembram de mim no meu aniversário. No ano passado, poucas pessoas lembraram. Eu fiquei muito triste}. O bloco semântico “lembrar o aniversário CONECTOR ficar feliz” seria assim constituído: regra 1 - quanto mais pessoas se lembram de mim no meu aniversário, mais eu fico feliz; regra 2 - quanto menos pessoas se lembram de mim no meu aniversário, menos eu fico feliz. O aspecto normativo da regra 1 seria: um pouco de / algumas pessoas se lembraram de mim no meu aniversário, portanto fiquei feliz. O transgressivo, um pouco de / algumas pessoas se lembraram de mim no meu aniversário, mesmo assim não fiquei feliz. O aspecto normativo da regra 2 seria: poucas pessoas se lembraram de mim no meu aniversário, portanto fiquei infeliz. E o aspecto transgressivo seria: poucas pessoas se lembraram de mim no meu aniversário, mesmo assim fiquei feliz. A resposta certa seria few, poucas. Se o aluno escolhesse a few, um pouco, estaria tomando como primeira alternativa os aspectos transgressivos e teria de explicar com maiores detalhes o porquê de sua escolha, que teria se dado por razões externas às razões pertencentes ao bloco semântico em questão. “Um pouco de / algumas8 pessoas se lembraram de mim no meu aniversário, mesmo assim não fiquei feliz”, pode significar muitas coisas, dentre elas, muitos problemas sérios enfrentados pelo aniversariante que 8 A tradução do operador a few quando utilizado com substantivos contáveis no plural, como em a few people, torna-se problemática, pois não se diz “um pouco de pessoas” em português. Nesses casos, o melhor seria utilizar os chamados pronomes indefinidos alguns e algumas. Neste trabalho, as duas versões aparecem concomitantemente, separadas por uma barra: um pouco de / algumas pessoas. Teorias do Discurso e Ensino 223 o impediriam de ficar feliz no seu aniversário, mesmo sendo lembrado por seus amigos. Para o aluno escolher essa alternativa e ela ser válida, deve existir um conector como MESMO ASSIM explícito, relacionando os dois segmentos: Last year ___________ people did. However, I was so sad. {No ano passado algumas pessoas se lembraram de mim no meu aniversário. Mesmo assim, eu fiquei triste}. Isso poderia acontecer num contexto em que o aniversariante estivesse deprimido, ou com problemas diversos, que não vêm ao caso. Após esses exercícios, foi aplicado o teste 2, contendo exercícios iguais ao teste 1, e mais dois exercícios semelhantes aos aplicados, anteriormente, na aula baseada na TAL. Como foi referido antes, os três primeiros exercícios foram os mesmos do teste 1, para que se verificasse a diferença de aprendizagem dos alunos com o mesmo tipo de questão que fora trabalhado anteriormente. Nesse caso, porém, a explicação dada fora baseada na TAL. Os exercícios diferenciados, isto é, baseados na TAL, foram aplicados no teste para se verificar o nível de desempenho dos alunos dentro desse tipo de exercício, que não é encontrado nos livros didáticos. Primeiramente, conforme os objetivos do trabalho, verificamos como os materiais didáticos utilizados nesta pesquisa distinguem os operadores little / a little, few / a few; verificamos também se a distinção proposta é suficiente para se resolverem os exercícios desses materiais e qual a natureza, argumentativa ou informativa, desses exercícios. Neste artigo, mostraremos apenas uma parte da análise do livro didático Headway Upper-Intermediate. No livro Headway Upper-Intermediate, student’s book (p. 54), os operadores argumentativos em questão são apresentados da seguinte forma: 3. A little and a few express a positive concept. Take a little of this medicine every day and you’ll be fine. Little and few express a negative concept. Few people understand the whole problem. It’s too complex. {A little e a few expressam um conceito positivo. Tome um pouco deste remédio todos os dias e você ficará bem. Little e few expressam um conceito negativo. Poucas pessoas entendem todo o problema. É muito complexo.} 224 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Essa explicação afirma que a little e a few expressam um conceito positivo, e que little e few por sua vez, expressam um conceito negativo. No entanto, devese perguntar como uma palavra que designa pouca quantidade de alguma coisa pode expressar um conceito positivo? Esses operadores argumentativos não designam conceitos, sejam eles positivos ou negativos. O que ocorre é que esses operadores, sempre que entram num enunciado, modificam a orientação argumentativa. A few e a little, little e few orientam para conclusões contrárias. Tomemos o primeiro exemplo do livro: “Take a little of this medicine every day and you’ll be fine.” Temos o seguinte bloco semântico (no qual “neg” significa uma negação): Bloco semântico 1: Tomar remédio X ficar bem Qualidade: positividade e negatividade Bloco semântico + qualidade = Regra (R) R1: Quanto + toma remédio + fica bem R2: Quanto – toma remédio – fica bem Aspectos da R1 (Quanto + toma remédio + fica bem) Normativo: X tomou remédio PORTANTO ficou bem Transgressivo: X tomou remédio MESMO ASSIM não ficou bem Aspectos da R2 (Quanto – toma remédio – fica bem) Normativo: X não tomou remédio PORTANTO não ficou bem Transgressivo: X não tomou remédio MESMO ASSIM ficou bem Como o operador a little modifica esse bloco semântico? Tomar remédio, nesse caso, é visto como uma ação positiva, pois leva o indivíduo a ficar bem. Se colocarmos em seu lugar o operador little e analisarmos a consequência, veremos que tomar remédio é uma ação negativa: “Take little of this medicine every day and you’ll be fine”. Sua apreensão tanto pode ser positiva como negativa. Já um enunciado como “Pedro vive tomando remédio, isso não pode fazer bem”, convoca o bloco “tomar remédio prejudica a saúde”. Há possibilidade, portanto, de se convocarem dois blocos semânticos distintos, pertencentes a Teorias do Discurso e Ensino 225 duas culturas diferentes, numa tomar remédio é bom; noutra, tomar remédio prejudica. Bloco semântico 2: Tomar remédio CONECTOR não ficar bem Qualidade: positividade e negatividade Bloco semântico + qualidade = Regra (R) R1: Quanto + toma remédio - fica bem R2: Quanto - toma remédio + fica bem Aspectos da R1: Normativo: X tomou remédio PORTANTO não ficou bem Transgressivo: X tomou remédio MESMO ASSIM ficou bem Aspectos da R2: Normativo: X não tomou remédio PORTANTO ficou bem Transgressivo: X não tomou remédio MESMO ASSIM não ficou bem No segundo bloco semântico, tomar remédio é visto como algo ruim, que leva a pessoa a não ficar bem. Por isso, quanto menos remédio se tomar, melhor. Veja-se, então, que a lacuna do enunciado “Take ________ of this medicine every day and you’ll be fine” pode ser completado por little ou a little, conforme o princípio argumentativo que esse enunciado convoque: tomar remédio faz bem à saúde ou tomar remédio não faz bem à saúde. Como se pode perceber, deve-se ter em mente que os dois blocos semânticos são passíveis de acontecer. Daí a dificuldade de se saber qual operador argumentativo usar. Tem-se, então, a necessidade de contextualizar a situação, para que se procure na língua a chave para seu entendimento. Por “procurar na língua” entende-se o ato de observar ativamente os encadeamentos construídos com o objetivo maior de compreender um enunciado. É importante saber o que exatamente se quer argumentar, para que se escolha o operador adequado para causar o efeito argumentativo desejado. No bloco semântico 1, por exemplo, um possível encadeamento seria o médico dizer algo como “quanto mais remédio se toma, melhor, esse remédio faz bem à saúde”, explicando a importância de se tomar um pouco de remédio. No bloco semântico 2, 226 Carmem Luci da Costa Silva, et al. inversamente, o médico poderia dizer que, quanto menos desse remédio se tomar, melhor, pois ele pode ser perigoso, por isso a necessidade de se tomar pouco desse remédio. Voltando à questão do livro, “Take a little of this medicine every day and you’ll be fine” é possível no contexto em que tomar esse remédio em particular faz bem à saúde, e “Take little of this medicine every day and you’ll be fine” também é possível, só que num contexto em que tomar certo remédio faz mal à saúde. Daí a dificuldade apresentada pelos aprendizes na hora de decidir qual operador usar. No mesmo livro (Headway Upper-Intermediate, p. 54), temos o seguinte exercício de prática controlada sobre como expressar quantidade: 5. Few, a few, little, a little. Complete the following sentences with one of the above. a. I can’t play tennis today. I have _______________ jobs to do around the house. b. Help yourself to a whisky. There’s still _____________ left. c. Nowadays _____________ people have servants in their house. d. I had ______________ time to catch the train, but I just made it. e. I have ______________ friends that I can trust, but not many. (Headway Upper-Intermediate – Student’s book) {5. Pouco, um pouco.} a. Eu não posso jogar tênis hoje. Eu tenho ________ trabalhos para fazer pela casa. b. Sirva-se de whisky. Ainda tem _____________. c. Hoje em dia __________ pessoas têm empregados em suas casas. d. Eu tive _________ tempo para pegar o trem, mas consegui. e. Eu tenho ________ amigos em quem eu posso confiar, mas não muitos. Na letra a. I can’t play tennis today. I have _______________ jobs to do around the house, temos o seguinte bloco semântico, cujo princípio é “primeiro o dever, depois o lazer”: Bloco semântico 1 Ter trabalhos a fazer CONECTOR poder jogar R1: Quanto + trabalhos - pode jogar Teorias do Discurso e Ensino 227 R2: Quanto - trabalhos + pode jogar Aspectos de R1: Normativo: tenho trabalhos PORTANTO não posso jogar Transgressivo: tenho trabalhos MESMO ASSIM posso jogar Aspectos de R2: Normativo: não tenho trabalhos PORTANTO posso jogar Transgressivo: não tenho trabalhos MESMO ASSIM não posso jogar Nesse caso, o aspecto tópico utilizado é o normativo da R1, pois a resposta correta é I can’t play tennis today. I have a few jobs to do around the house. {Eu não posso jogar tênis hoje. Eu tenho um pouco de / alguns trabalhos para fazer em casa.} Poderíamos utilizar o aspecto tópico transgressivo de R1 nesse caso? Somente se houvesse um conector do tipo MESMO ASSIM: I have a few jobs to do around the house, but I can play tennis today. {Eu tenho um pouco de / alguns trabalhos para fazer em casa, mas posso jogar tênis hoje.} No entanto, o verbo can’t (negativo) deveria ser afirmativo: can. E o que aconteceria se usássemos o operador few, sem mudar o verbo can’t e sem mudar o conector PORTANTO? O encadeamento ficaria assim: I can’t play tennis today. I have few jobs to do around the house. {Eu não posso jogar tênis hoje. Eu tenho pouco trabalho para fazer em casa.} Encadeamento esse que resultaria estranho para o interlocutor, podendo ser interpretado como “eu não quero jogar tênis com você”, “eu tenho mais o que fazer”, “estou cansado”, etc. Haveria coerência se mudássemos a primeira parte do encadeamento para I can play tennis today. I have few jobs to do around the house. {Eu posso jogar tênis hoje. Eu tenho pouco trabalho para fazer em casa.} Há, ainda, o seguinte exercício, presente no livro de exercícios do Headway Upper-Intermediate: 4 Few, a few, little, a little. Rewrite the sentences using one of the above forms. Make any necessary changes. Not many people know the answer to that question. Few people know the answer to that question. a. Help yourself to a biscuit. There are one or two left in the tin. 228 Carmem Luci da Costa Silva, et al. b. My days are so busy that I don’t have much time for relaxation. ____________________________________________________ c. She’s exceptionally generous. Hardly anyone gives more money to charity than she does. ____________________________________________________ d. There’s a tiny bit of butter left, but not many. ____________________________________________________ e. He keeps trying, although he doesn’t have much chance of success. ____________________________________________________ f. “I’m afraid you need three or four fillings,” said the dentist. ____________________________________________________ g. He must have made a hundred clocks in his life, but only one or two of them ever worked properly. ____________________________________________________ h. She wasn’t very hungry. She just had one or two spoonfuls of soup. ____________________________________________________ (Headway Upper-intermediate - Workbook) {4 Pouco, um pouco.} Reescreva as frases usando uma das formas acima. Faça as mudanças necessárias. Não muitas pessoas sabem a resposta àquela questão. Poucas pessoas sabem a resposta àquela questão. a. Sirva-se de um biscoito. Há um ou dois sobrando na lata. b. Meus dias são tão cheios que eu não tenho muito tempo para relaxar. c. Ela é excepcionalmente generosa. Quase ninguém dá mais dinheiro para caridade do que ela. d. Há um pequeno pedaço de manteiga sobrando, mas não muito. e. Ele continua tentando, apesar de ele não ter muita chance de sucesso. f. “Eu receio que você precise de três ou quatro restaurações”, disse o dentista. g. Ele deve ter feito uns cem relógios em toda sua vida, mas somente um ou dois deles funcionaram apropriadamente. h. Ela não estava com muita fome. Ela apenas tomou uma ou duas colheres de sopa.} Nesse exercício, os alunos deveriam reescrever as frases utilizando os operadores argumentativos em questão, efetuando mudanças, quando necessárias. No exemplo, Not many people know the answer to that question {Não muitas pessoas sabem a resposta para aquela questão} e sua resposta correspondente Few people know the answer to that question {Poucas pessoas sabem a resposta para aquela questão}, já podemos observar a falta de encadeamentos para que o aluno tenha certeza da orientação argumentativa que Teorias do Discurso e Ensino 229 deve dar à resposta, que poderia ser também A few people know the answer to that question {Um pouco de / algumas pessoas sabem a resposta para aquela questão}. No entanto, se houvesse o adjetivo difficult qualificando o substantivo question, a orientação argumentativa do enunciado ficaria mais óbvia, minimizando a chance de erros ocorrerem. Não podemos esquecer que é sempre a forma normativa que ocorre primeiro em nossas mentes, isto é, o encadeamento em PORTANTO. Na letra a, Help yourself to a biscuit. There are one or two left in the tin {Sirva-se de um biscoito. Há um ou dois sobrando na lata}, não se pode levar em consideração a quantidade irrisória de biscoitos na lata: um ou dois, mas sim o fato de que, quando uma pessoa oferece algo a outra, existe aí um fator de polidez, de educação, que leva a crer que o comensal pode se servir, já que há biscoitos na lata, não importando sua quantidade. A resposta correta é, portanto, Help yourself to a biscuit. There are a few left in the tin {Sirva-se de um biscoito. Há um pouco de / alguns biscoitos sobrando na lata}. Por outro lado, não podemos deixar de pensar que, se o anfitrião não quiser que sobrem biscoitos pois é comum as pessoas não quererem que sobrem alimentos - e disser que “há poucos biscoitos sobrando na lata, sirva-se”, significando “vamos comer para terminar tudo, senão vai fora”, a resposta poderia ficar assim: Help yourself to a biscuit. There are few left in the tin {Sirva-se de um biscoito. Há poucos sobrando na lata}. Necessita-se de um encadeamento para deixar clara a orientação do discurso. Observou-se que, embora tenha sido a primeira vez que os alunos se depararam com esses dois tipos de exercícios em situação de teste, sua média de acerto (82,50% e 85%) foi maior que a média de acerto dos exercícios 1, 2 e 3, retirados de livros didáticos no teste 1 (66,25%, 70,31% e 79,16%). Por outro lado, esses mesmos exercícios, quando refeitos no teste 2, após a aula com base na TAL, obtiveram médias de 93,75%, 96,87% e 93,75% respectivamente. Talvez isso se deva ao fato de a explicação do emprego dos operadores em questão, à luz da TAL, ter ajudado. Além disso, esses exercícios já haviam sido vistos pelos alunos em outra ocasião. Portanto, pode-se concluir, pelo ineditismo dos exercícios 4 e 5, que a explicação do uso dos operadores argumentativos com 230 Carmem Luci da Costa Silva, et al. base na TAL mostrou uma tendência mais facilitadora do entendimento do conteúdo pelos alunos. 3 Considerações finais Os resultados deste estudo dissertativo apresentado ao Mestrado em Letras – Estudos Linguísticos – na Universidade de Passo Fundo, podem interessar tanto aos profissionais ligados à área da semântica argumentativa, quanto aos ligados à área de ensino e aprendizagem de língua estrangeira, sendo as perspectivas de sua aplicação de ordem teórica e prática. A pesquisa aqui desenvolvida partiu do objetivo de facilitar o trabalho do professor e do aluno na sala de aula de inglês como língua estrangeira, quando do ensino de little, a little, few, a few, explorando o potencial metodológico que a TAL apresenta no estudo desses operadores argumentativos. O objetivo primordial foi o de desfazer ao máximo qualquer dúvida ou ambiguidade que pudesse surgir a partir de explicações e exercícios de quaisquer materiais didáticos utilizados com o fim de ensinar esses operadores, tanto por parte dos alunos como por parte dos professores. Acreditou-se que a semântica argumentativa, principalmente na perspectiva da Teoria dos Blocos Semânticos, seria o meio ideal para tanto. Dedicada ao ensino de língua inglesa como língua estrangeira, a professora pesquisadora não poderia deixar de levar a cabo uma experiência exploratória que fosse capaz de lhe fornecer, nem que fosse um vislumbre, de como seria a aplicação de uma explicação de cunho argumentativo sobre os operadores em questão para alunos aprendizes de língua inglesa e de quais seriam os resultados. Os resultados apontam para certa eficácia da explicação, com base na TAL, no entendimento do conteúdo trabalhado com os alunos. Embora esse resultado possa ser contestado, ele representa o início de um questionamento para a professora pesquisadora: em outros contextos, em uma pesquisa com intervenções mais rigorosamente controladas, o resultado ainda apontaria para o mesmo sentido? Entende-se esse questionamento como um Teorias do Discurso e Ensino 231 fato extremamente profícuo, pois dá margem a outros estudos e reflexões nesse campo. O tratamento dado aos operadores little, a little, few, a few, juntamente com os exercícios propostos nos livros didáticos, quando havia exercícios, foi investigado em dois livros didáticos, quatro gramáticas e um dicionário. Neste artigo, apenas uma parte da análise foi transcrita. No que se refere ao tratamento dado a esses operadores nos materiais selecionados, pode-se observar uma forte tendência de descrição semântica informacional, baseada em traços permanentes, num conteúdo fixo, independente da estrutura linguística. Os operadores aparecem, então, classificados como negativos (few, little) ou positivos (a few, a little). Como se constatou, esse tipo de descrição presente nos livros didáticos apresenta um grande problema, pois ignora o contexto no qual essas palavras podem ocorrer e, consequentemente, ignora as orientações de sentido que elas podem dar nos diferentes contextos em que aparecem. O resultado disso é a incerteza quanto ao uso dessas palavras nos exercícios de completar as lacunas, nos quais, a cada enunciado, é mudada a situação, e, além disso, nem sempre a formação de um encadeamento é fornecida. Note-se que, segundo Ducrot, o sentido se estabelece no encadeamento argumentativo, e que, às vezes, era apresentado no material didático apenas um segmento de enunciado. As gramáticas, os livros didáticos e os dicionários, que apenas definem os traços pertinentes a um conceito, deveriam mostrar a que tipo de conclusão o emprego de uma palavra conduz. Além disso, deve-se levar em conta que a função de um enunciado é ajudar a compreender o ponto de vista do locutor, isto é, sua visão de mundo. A complementação do segmento de enunciado, formando um encadeamento argumentativo, é, então, uma necessidade. Um exemplo disso seria acrescentarmos à explicação descritiva do dicionário ou da gramática de um enunciado como Mary worked little today {Mary trabalhou pouco hoje}, uma especificação do tipo de conclusão a que se pode chegar após esse enunciado, considerando-se que Mary tem estado muito doente ultimamente: She is not very well yet {Ela ainda não está muito bem}, ou She will delay all the work of our sector {Ela vai atrasar todo o trabalho do nosso setor}, etc, com encadeamentos levando a um sentido negativo, de não ser bom o tempo trabalhado. Suponha 232 Carmem Luci da Costa Silva, et al. que Mary esteja grávida e impedida de trabalhar normalmente. Ela trabalhou pouco hoje – então ela está se cuidando, atendendo ao pedido do médico. O enunciado conduz a conclusões positivas, embora o trabalho do setor continue atrasado. Se o enunciado fosse Mary worked a little today {Mary trabalhou um pouco hoje}, as continuações possíveis seriam positivas, o tempo trabalhado é razoavelmente bom: She is probably getting better {Provavelmente ela está melhorando} ou The work in our sector won’t be so delayed {O trabalho no nosso setor não vai ficar tão atrasado}. Supondo que Mary esteja grávida e hoje trabalhou um pouco, ela está se cuidando e, concomitantemente, não está atrasando o trabalho no setor. Em um outro exemplo com little, para ficar mais claro, teremos o enunciado I have little money {Eu tenho pouco dinheiro}, cuja provável continuação, dentre todas as possíveis, seria Can you lend me some, please? {Você pode me emprestar, por favor?} Por outro lado, I have a little money {Eu tenho um pouco de / algum dinheiro}, poderia ser continuada assim: I can lend you some {Eu posso te emprestar algum}. No caso de few, pode-se pensar na seguinte enunciação hipotética: The school has few dictionaries {A escola tem poucos dicionários}. E a provável direção do raciocínio seria: There won’t be enough dictionaries for all the group {Não vai haver dicionários suficientes para toda a turma}. Em The school has a few dictionaries {A escola tem um pouco de / alguns dicionários}, o tipo de discurso poderia ser So I can do a dictionary work today with my 5th grade group {Então eu posso fazer um trabalho com o dicionário hoje com minha turma de quinta série}. Da análise dos resultados dos testes dos alunos, depreende-se que deve haver, necessariamente, um encadeamento argumentativo, uma vez que só ele é doador de sentido, para que o aprendiz tenha condições de entender a orientação do enunciado em questão e possa preenchê-lo acuradamente. Além disso, um exercício de completar lacunas se torna menos ambíguo quando o tópico for o mesmo para vários enunciados, como no caso de um frame sobre festa. Observe-se que frames são opcionais, pois podemos ter um encadeamento sem frame, que será devidamente entendido pelo aprendiz, mas não podemos ter um frame sem encadeamento, pois seu sentido continuará em aberto. Teorias do Discurso e Ensino 233 Moita Lopes (1996) advoga uma formação teórica do professor no que se refere a questões de uso da linguagem dentro e fora da sala de aula, além de uma formação crítica com relação a métodos de ensino prontos para serem reproduzidos em sala de aula. A TAL - concepção de linguagem que se alicerça no sentido argumentativo da linguagem, diferente da concepção prescritiva das gramáticas e da concepção informativa e descritiva dos dicionários - na qual o encadeamento é o que de fato traz em si o sentido, é uma ferramenta poderosa na mão do professor, pois ela demonstra como a linguagem funciona e faz pensar sobre a mesma, tirando o professor da mera repetição do que está escrito no material didático, fazendo com que ele tenha mais autonomia linguisticamente e expanda sua capacidade de reflexão sobre os materiais. A concepção de linguagem apresentada neste trabalho, se entendida e assumida pelo professor de LE, poderá mudar toda sua prática e revolucionar sua sala de aula. REFERÊNCIAS ALEXANDER, L. G. Longman English Grammar Practice: for intermediate students. 4 ed. Essex: Longman, 1991. ANSCOMBRE, Jean-Claude; DUCROT, Oswald. La argumentación en la lengua. Madrid: Editorial Gredos, 1994. CAREL, Marion. Argumentation by exception. 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A busca em gramáticas, dicionários e mesmo em livros didáticos parece não ser suficiente para dar clareza ao uso dos três morfemas 2, que, na Teoria da Argumentação na Língua (TAL), proposta por Oswald Ducrot e Jean-Claude Anscombre, são chamados articuladores 3 pero, sino e conector 4 sin embargo. Sabe-se que, em algumas gramáticas e livros didáticos tais termos sequer são mencionados como conteúdos a serem desenvolvidos e trabalhados com os aprendizes não nativos de língua espanhola. Em outras, quando se encontra alguma explicação, é sucinta e comparativa, geralmente tratando de pero e sino. A expressão sin embargo é a menos enfocada nesses materiais, porém é a que os alunos mais gostam de utilizar, por ser, talvez, a que mais difere da língua portuguesa, sendo bem característica da língua espanhola. 1 Artigo baseado na dissertação Descrição de pero, sino, sin embargo, na tradição gramatical e na semântica argumentativa, e implicações pedagógicas. Mestrado em Letras – Estudos Linguísticos, concluído na Universidade de Passo Fundo em 2005, orientado pela professora Doutora Telisa Furlanetto Graeff. * Professora de Linguística e Língua Espanhola da Universidade de Passo Fundo. Mestre em Letras pela Universidade de Passo Fundo. 2 Usa-se morfema com o sentido de signo mínimo de natureza gramatical, por oposição a lexema, conforme terminologia de Martinet (1972). 3 Mais adiante se verificará que pero e sino são chamados de articuladores, pois articulam segmentos de enunciados de blocos semânticos diferentes. Se verá, também, que pero, em determinados enunciados, pode ser um conector, correspondendo, então a sin embargo. 4 Chamado conector, pois relaciona segmentos de um mesmo bloco semântico, constituindo, assim, o encadeamento argumentativo. São conectores DONC (portanto / por lo tanto) e POURTANT (mesmo assim / sin embargo), como se poderá verificar mais adiante. Constatando as dificuldades no uso desses morfemas, sentiu-se a necessidade de fazer um estudo mais aprofundado sobre a questão, norteado pelo seguinte questionamento:se fosse dada ao aluno uma explicação de uso dos articuladores pero, sino e conector sin embargo com base na descrição feita pela Teoria da Argumentação na Língua (TAL), haveria um melhor resultado na aprendizagem? A TAL nasceu praticamente no final dos anos setenta, tendo como mentor o filósofo da linguagem Oswald Ducrot, juntamente com o matemático e linguista Jean–Claude Anscombre. Em sua obra La argumentación en la lengua (1994), esses autores consideram que a língua não informa sobre o mundo, mas que, realmente, comporta indicações de caráter argumentativo, caráter este que constitui a sua função primeira. Desse modo não somente as dinâmicas discursivas, mas também o léxico e a própria estrutura semântica da língua estabelecem um valor argumentativo. Para esses autores, a significação da língua é de caráter instrucional, uma função que contém parâmetros variados a partir dos quais se pode calcular o sentido dos enunciados. Daí afirmarem: Hablar es dirigir el discurso en cierta dirección, hacia ciertas conclusiones, hablar es inscribir nuestros enunciados en una cierta dinámica discursiva. (DUCROT; ANSCOMBRE, 1994, p.56). Essa é a concepção da Teoria da Argumentação na Língua, cujo objetivo é descrever a língua de forma autônoma, sem recorrer a um conhecimento do mundo e do pensamento. Ducrot, em seu artigo “A pragmática e o estudo semântico da língua” (2005), faz um estudo sobre o sentido no enunciado, mostrando que tudo, ou quase tudo, o que diz respeito ao sentido é pragmático, que nada é informação prévia, que a língua sempre aponta o contexto a procurar. Além disso, mostra que a enunciação deixa marcas linguísticas no enunciado, por meio das quais se pode fazer a sua reconstituição. Para isso, Ducrot postula que todo o sentido de um enunciado está relacionado com o uso da língua em um determinado contexto, ou seja, um mesmo enunciado tem sentidos diferentes. Tomem-se três ocorrências da mesma frase como exemplo: (1) João está feliz. (1’) João está feliz ! (1’’) João está feliz ? Teorias do Discurso e Ensino 237 Essa mesma frase só poderá ter sentido determinado dentro de um contexto de fala. Note-se que, nas três ocorrências, o mesmo fato é enfocado (a felicidade de João), mas esse entendimento só se faz possível no momento em que se utilizam uma exclamação, interrogação ou afirmação, que correspondem a entonações diferentes. O mesmo acontece com enunciados mais complexos, constituídos de argumento e conclusão. A conclusão sempre vai depender do encadeamento possível, do contexto em que está inserida e, sobretudo, da intenção do falante, pois, na TAL, o signo completo é uma frase complexa, em que o significado de um segmento de enunciado é definido pelas várias possibilidades de combinações que ele apresenta com outros segmentos de enunciados, passando a constituir, dessa maneira, um encadeamento argumentativo. Por isso, para Ducrot: Pode-se chamar “pragmático”, no sentido de um enunciado, o que diz respeito ao ato de enunciação realizado pelo locutor, todas as informações que o enunciado dá sobre a atitude daquele que fala no momento em que fala, e sobre as relações que sua fala pretende estabelecer ou constatar entre ele e seus interlocutores. (2005, p.12). Já a Teoria dos Blocos Semânticos, proposta por Marion Carel, amplia a TAL incluindo a noção de bloco semântico, realizada no que chama de “encadeamento argumentativo”. Para Carel (2001, p.76), o encadeamento argumentativo é “qualquer sequência de dois elementos que são, de certo modo, dependentes”. Considerem-se os seguintes exemplos: (3) (4) É tarde, portanto o trem está lá. (o trem já chegou) É tarde, portanto o trem não está lá. (o trem já partiu) É possível notar que os enunciados (3) e (4) contêm as mesmas palavras, na mesma ordem, com a diferença apenas de que em (4) há o acréscimo do advérbio “não”, negando o fato de o trem estar lá. Se a questão do sentido de um enunciado fosse informacional, o enunciado (3) afirmaria o fato de o trem estar lá, ao passo que (4) o negaria. No entanto, os sentidos de (3) e (4) são completamente diferentes: (3) expressa a chegada do trem; (4), a sua partida. Os 238 Carmem Luci da Costa Silva, et al. sentidos de (3) e de (4) advêm da interdependência semântica que se forma entre ser tarde e presença /ausência do trem, num caso, (3), mais tarde, mais presente, noutro, (4), mais tarde, mais ausente. Em outras palavras, em (3) argumenta-se que a passagem do tempo provoca a presença das coisas e, em (4), que a passagem do tempo provoca a ausência das coisas. A descrição do sentido dos enunciados gera muita necessidade de estudo e, em virtude disso, juntamente com a dúvida no uso de pero, sino, sin embargo, tanto em leituras de textos de língua espanhola quanto na sua produção, buscase, neste trabalho, um aprofundamento tanto da teoria quanto da aplicação da mesma com relação a esses articuladores e conector. Em vista disso, são objetivos desta pesquisa: investigar se a descrição que é possível fazer de pero, sino e sin embargo com o arcabouço da TAL é mais adequada para ensinar a distinguir esses morfemas, especialmente quando se ensina a língua espanhola para falantes não nativos; auxiliar os usuários de espanhol como língua estrangeira a usarem adequadamente os morfemas pero, sino e sin embargo. Como decorrência desses objetivos, este trabalho pretende delinear uma metodologia que auxilie alunos e professores de língua espanhola a utilizarem adequadamente os articuladores pero e sino e o conector sin embargo, tanto em procedimentos de recepção quanto de produção de textos. 2 Perspectiva da Teoria da Argumentação na Língua 21 Descrição de MAS (SINO) feita por Vogt e Ducrot Carlos Vogt (1980), ao realizar um estudo sobre a origem da conjunção adverbial “mas”, concluiu que ela não deriva do latim (sed), mas do advérbio magis, palavra muito utilizada para formar um grau comparativo de superioridade que, muitas vezes, acaba sendo confundida com a palavra “mais”. Por exemplo: “Não tem mais nem menos”, quando alguém está querendo fazer algumas objeções (mas,... mas...), como se quisesse contra-argumentar em relação a algum assunto. Teorias do Discurso e Ensino 239 Quando as línguas românicas, segundo Vogt (1980), passam a utilizar um derivado do magis (como sino em espanhol) como conjunção adversativa, a complicação aparece, pois sino e pero têm a mesma tradução para a língua portuguesa. A função (retificadora) que vem do espanhol sino e a que vem do alemão (sondern) dão origem à sigla (SN). As outras, que vêm também do espanhol (pero) e do alemão (aber), originam a sigla (PA). No primeiro caso, a conjunção adversativa MAS (SN), sino em espanhol, serve para introduzir uma retificação, uma correção. Pode-se dizer que vem sempre depois de uma proposição negativa p = n-p' e induz a uma determinação ‘q’, que substitui a determinação p’, negada em p e atribuída a um interlocutor real ou virtual. Podese encontrar um exemplo retirado do texto número 07, Mapamundi-2 (conforme Teste 1 - parte A ): [...] Así lo quiere el orden natural de las cosas. En el sur del mundo enseña el sistema, la violencia y el hambre no pertenecen a la historia, SINO a la naturaleza, y a la justicia y la libertad han sido condenadas a odiarse entre sí. (GAI,EANO, 1999, p. 96). Examine-se o enunciado “La violencia y el hambre no pertenencen a la historia, sino a la naturaleza, a la justicia, a la libertad”. Nele há dois segmentos ligados por sino. 1.o segmento 2.o segmento A violência e a fome não pertencem à história SINO à natureza, à justiça, à liberdade. P – positiva (a violência e a fome pertencem à história) Não P’ (a violência e a fome não pertencem à história) SINO Q (à natureza, à justiça, à liberdade) O articulador sino sempre terá uma função retificadora, como se pode ver em outro exemplo, o texto número 05, Los nadies (teste 1 - parte A): (5) Que no hablan idiomas, SINO dialectos. Que no profesan religiones, SINO supersticiones. Que no hacen arte, SINO artesanía. Que no practican cultura, SINO folklore. Que no son seres humanos, SINO recursos. 240 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Que no tiene cara, SINO brazos. Que no tienen nombre, SINO número. Que no figuran en la historia universal, SINO en la crónica roja de la prensa local. (GALEANO, 1999, p.59). Percebe-se que aparece na negação não-B o discurso relatado B. Sabe-se que B é mantido. No fato de B ter sido dito, imaginado ‘recuso que aparece na história universal’, nota-se um peso que a negação gramatical não pode apagar: a afirmação de que ele foi objeto já constitui para B uma espécie de alteridade, que aparece como constitutiva de sentido. (VOGT, 1980, p. 113). Até agora mostrou-se que magis latino pode ser empregado com um sentido muito próximo de ‘mas’ SN (sino). O mesmo não ocorre com o “mas” PA 5 (pero 6), uma vez que não se tem encontrado o emprego de magis com a função PA. Mais adiante, estudar-se-á o possível sentido para MAS com função PA. 2.2 Descrição feita por Marion Carel na Teoria dos Blocos Semânticos Estudos feitos por Ducrot e Carel já comprovaram que o valor semântico profundo de certas palavras, expressões e enunciados é de natureza argumentativa. Na primeira fase do estudo, a relação de sentido de um enunciado era estabelecida entre um argumento e uma conclusão. Por exemplo: “Faz calor: vamos sair”. O argumento lançado “faz calor” leva à conclusão “sair de casa”, pois vários fatores influenciam, dentre eles “não está chovendo”, “vamos aproveitar um ótimo dia”. O sentido do enunciado era dado pela continuação seguinte, ou seja, a conclusão. “Faz calor” não tem sentido referencial, mas, sim, argumentativo. Se o argumento é “faz calor”, de nada adianta procurar no dicionário o sentido de “calor”, porque o sentido é estabelecido pela conclusão 5 Articula segmentos de encadeamentos argumentativos de blocos diferentes. Não se tratará neste trabalho da diferença apontada por Carel em seu artigo “Argumentación normativa y argumentación exceptiva” entre o MAS PA de oposição direta e de oposição indireta. Segundo ela, o primeiro articula o argumento de um bloco com a conclusão de outro e o segundo articula argumentos de blocos diferentes. Exemplo de “mas” de oposição direta seria “Trabalha mas, mesmo assim, não fica rico”. Consideramos que, no enunciado, “Trabalha, mas não fica rico” temse um “mas” substituível por “pourtant” (sin embargo). 6 Mais adiante se verá que existe um pero que poderá ser substituído por sin embargo, cuja função é conectar dois segmentos de um mesmo bloco, constituindo um encadeamento argumentativo. Teorias do Discurso e Ensino 241 possível, como se pode observar no enunciado “É calor: não vamos sair”, em que calor é desagradável para passear. Este é um dos objetivos da TAL: opor-se à concepção tradicional de sentido, ou seja, opor-se àquela concepção que separa os sentidos denotativo (objetivo) e conotativo (subjetivo e intersubjetivo). A TAL aponta para uma impossibilidade de se poder acreditar que a linguagem possua uma parte objetiva, a qual poderia descrever de forma direta a realidade. A partir dessa visão, Ducrot mostra que o aspecto referencial perde totalmente a razão de ser, pois “la manera como el lenguaje ordinario describe la realidad consiste en hacer de ella el tema de un debate entre los individuos” (1988, p.50), o que demonstra a junção dos dois aspectos subjetivo e intersubjetivo no chamado valor argumentativo, que pode ser definido como o conjunto de possibilidades ou impossibilidades da continuação dos segmentos do enunciado. A segunda fase dos estudos está fortemente ligada à Teoria dos Topoi. A relação argumentativa estava concebida em uma relação binária, ou seja, como uma relação entre dois segmentos discursivos na qual o primeiro, chamado de “argumento” (A), era apresentado pelo locutor como destinado a fazer admitir o segundo, chamado “conclusão” (C). O enunciado poderia conduzir a várias conclusões que seriam garantidas pelo topos, princípio argumentativo comum a uma comunidade. Por exemplo: “Pedro levanta cedo”, que seria o argumento (A), poderia ativar o princípio, também chamado de topos “quem cedo madruga tem mais chance de sucesso, pois trabalha mais, está mais disposto, não tem preguiça”, que conduziria à conclusão (C), “portanto Pedro vai conseguir fazer o que quer”. Se o princípio vigente na comunidade fosse “Quem cedo madruga só se cansa mais”, então, a conclusão do argumento “Pedro levanta cedo” seria “portanto não vai ter mais sucesso por isso”, “Isso só vai atrapalhá-lo”, entre outros. Ou seja, todo enunciado A com a garantia de um topos conduziria à conclusão C, pois era esse topos, considerado comum à coletividade onde ocorria o discurso, que permitia extrair argumento do estado de coisas para justificar esta ou aquela conclusão. Aliás, cumpre referir que esse termo foi tomado da Retórica de Aristóteles. Para melhor compreender a fase seguinte, da Teoria dos Blocos Semânticos, proposta por Carel, utilizar-se-á como base um estudo realizado 242 Carmem Luci da Costa Silva, et al. pelos autores já citados em relação ao articulador pero e ao conector sin embargo. Para Anscombre e Ducrot (apud CAREL, 1998, p. 258) os discursos que fazem uso de pero convocam encadeamentos com donc, sendo, dessa maneira, classificáveis como “discursos argumentativos”, que podem ser descritos da seguinte maneira: A pero B: o primeiro segmento A é o argumento de um encadeamento com donc de conclusão R, o segundo segmento B é o argumento de um encadeamento com donc de conclusão não-R. O locutor pode escolher o argumento B em detrimento de A, como no exemplo: No soy inteligente, dice la alumna, pero me gustaría aprobar en el examen. Carel, discutindo a supremacia dos encadeamentos argumentativos em donc, chega à Teoria dos Blocos Semânticos. Para Carel, um bloco semântico é estabelecido por enunciados que apresentam o aspecto normativo da regra (donc) e por enunciados que apresentam conclusões argumentativas transgressivas (pourtant) 7. Desse modo, um bloco semântico pode apresentar quatro aspectos: os recíprocos (positivo e negativo) e os conversos (normativo e transgressivo). Vejam - se os exemplos: A A DC C B Não A DC não C (Falar DC dizer) (Não falar DC não dizer) C D Não A PT C (Não falar PT dizer) A PT não C (Falar PT não dizer) Recíprocos (A e B; C e D) Conversos (A e D; C e B) Podem-se conferir os positivos encadeamento normativo A DC C, Fala DC diz e encadeamento transgressivo A PT não C, Fala PT não diz; os negativos 7 Símbolo PT (pourtant) universal para uso de sin embargo, em espanhol, e mesmo assim, em português. Teorias do Discurso e Ensino 243 encadeamento normativo Não A DC não C Não fala DC não diz e encadeamento transgressivo Não A PT C Não fala PT diz. Dessa maneira, percebe-se nas frases ‘Falar DC dizer e Não falar DC não dizer’ o aspecto normativo da regra e, nas frases ‘Não falar PT dizer e Falar PT não dizer’, o aspecto transgressivo da regra. As descrições semânticas da TAL são instruções sobre que contexto procurar para atribuir sentido a um enunciado, ao passo que livros didáticos, gramáticas e dicionários informam que sentido tal articulador ou conector teria em determinada frase e como deveriam ser utilizados, ou seja, em que contextos. Na seção seguinte, faz-se uma descrição das estruturas com sin embargo (PT), mostrando sua semelhança com as estruturas com portanto (DC), com base em estudos de Carel, dentro da Teoria dos Blocos Semânticos. Como se verá, ambas são unidades semânticas básicas, pois nas duas há interdependência semântica entre os segmentos de um encadeamento argumentativo. 2.3 Uma descrição de Sin embargo Para Marion Carel (1998), uma das primeiras razões que faz pensar que o encadeamento com portanto não é uma justificação é que o argumento não tem sentido em si mesmo. No trecho retirado do texto número 2, Celebración de la voz humana-2, teste 1 - parte A): (6)Tenían las manos atadas, o esposadas, y SIN EMBARGO los dedos danzaban, volaban, dibujaban palabras. Los presos estaban encapuchados; pero inclinándose alcanzaban a ver algo, alguito, por abajo. Aunque hablar estaba prohibido, ellos conversaban con las manos. (GALEANO, 1999, p. 11). Observe-se que tenían las manos atadas não é um enunciado, ao qual seria atribuído um sentido unitário e completo, o qual não é um componente da argumentação que realiza (6). Nota-se que o locutor de (6) utiliza um argumento, o de que as mãos estavam atadas. A partir desse argumento, seria natural concluir que não se poderiam mexer as mãos, muito menos os dedos poderiam dançar, em virtude de que, quando se está amarrado, é difícil o movimento. O 244 Carmem Luci da Costa Silva, et al. sentido da palavra “amarradas” é, justamente, indicar a dificuldade de movimento, mais exatamente, dificulta concluir hay movimiento. Contudo, ocorre justamente o contrário: a conclusão final vai justamente se opor a não poder fazer movimento, ou seja, estão atadas, mas, mesmo assim, é possível movimento. Esse é o papel de sin embargo, no caso, opor-se a uma conclusão normativa (quanto mais preso, menos mexer). Tenían las manos atadas, y sin embargo los dedos danzaban. Pode-se dizer, então, que os encadeamentos com pero realizam estruturas complexas que contêm encadeamentos com portanto (DC), mas os encadeamentos com sin embargo, não. Os encadeamentos com sin embargo não negam a regra, somente a tomam sob um outro aspecto, isto é, mesmo reconhecendo a existência da regra, desobedecem-na.Veja-se o exemplo: (7) 1984 había sido un año de mierda. Antes del infarto, me habían operado la espalda; y Helena había perdido un niño a medio hacer. Cuando Helena perdió el niño, se nos secó el rozal de la terraza. Las demás plantas también murieron, todas, una tras otra, a pesar de que las regábamos cada día. La casa parecía maldita. Y SIN EMBARGO, Nani y Alfredo Ahuerma habían estado allí, por unos días, y al irse habían escrito en el espejo: En esta casa fuimos felices. (GALEANO, 1999, p. 182). A conclusão possível para la casa parecía maldita seria, portanto (donc) não ser feliz lá. No caso apresentaria o aspecto normativo da regra. Porém, em continuação ao enunciado, percebe-se uma oposição do segundo segmento (pourtant ser feliz), a qual é marcada no enunciado pelo conector sin embargo, revela o aspecto transgressivo da regra. Os dois segmentos de um encadeamento com sin embargo compartilham com os dois segmentos de um encadeamento com por lo tanto a propriedade de serem interpretados de forma conjunta. Por fim, não se pode manter a descrição de encadeamentos argumentativos em PT (afirma uma conclusão para negá-la depois) como uma sucessão de dois movimentos. É por esse motivo que Carel propõe outra descrição, para que se possa explicar que, semanticamente, existe um ponto comum entre A por lo tanto C e A sin embargo não C. Pode-se dizer, dessa forma, que ambos os encadeamentos são duas realizações de uma unidade semântica. Teorias do Discurso e Ensino 245 Tomem-se os exemplos: (7) La casa parecía maldita, por lo tanto Nani y Alfredo no fueron felices allí. (7') La casa parecía maldita, sin embargo Nani y Alfredo fueron felices allí. (7") La casa no parecía maldita, por lo tanto Nani y Alfredo fueron felices allí. (7"') La casa no parecía maldita, sin embargo Nani y Alfredo no fueron felices allí. Nos quatro exemplos utiliza-se o mesmo bloco semântico, uma vez que o assunto tratado é o mesmo, ou seja, o que é amaldiçoado não permite felicidade. Em (7) tem-se a afirmação “se é maldita, não é feliz”; em (7") tem-se a negação “não é maldita, mesmo assim é feliz”. Essa afirmação e negação são duas atitudes diferentes com respeito a um mesmo conteúdo. Percebe-se que as ideias são concebidas de maneiras diferentes e podem ser unidas ou não, isto é, ou é maldita ou não é maldita. Pode-se dizer, então, que (7) e (7") expressam o mesmo bloco apreendido em (7) de forma positiva e em (7’’) de forma negativa. Pode-se dizer, então, que A por lo tanto C e A sin embargo no C expressam a mesma regra, mas não sob o mesmo aspecto. O locutor de A por lo tanto C utiliza o aspecto normativo e A sin embargo no C utiliza o aspecto transgressivo. Quando se utiliza o aspecto normativo, não se quer dizer que se utilize normalmente a regra, nem dizer que, utilizando o aspecto transgressivo, se está fazendo uma exceção à regra. A regra não tem nenhum vínculo privilegiado com nenhum dos aspectos nem o bloco semântico tem vínculo com alguma das regras. Para Carel, a regra tem exceção por natureza. A natureza mesma implica que tenha dois aspectos (o normativo e o transgressivo) no sentido de que o normal e o patológico se supõem mutuamente (1998, p. 274). A regra não encontra sua força só na utilização do aspecto normativo, mas a exceção confirma a regra nos casos inesperados. Não se trata só de dizer que, como toda regra tem exceção, sempre se pode manter a validez de uma regra. A regra também encontra sua força na utilização de seu aspecto transgressivo. Os casos inesperados, as situações descritas pelo aspecto transgressivo não são exteriores à regra, ao contrário, são outros tantos casos descritos pela regra, e é por esse motivo que a exceção sempre vem a confirmar a regra. 246 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Tendo em vista que se fez referência várias vezes à existência em espanhol de pero com dois valores, procede-se, a seguir, à distinção que a TAL, especialmente com a contribuição de Carel, aportada pela Teoria dos Blocos Semânticos, faz de Pero (Mas PA) e Pero (sin embargo). 2.4 Distinção entre Pero (Mas PA) e Pero (Sin embargo) Pode-se distinguir o emprego de pero em (8): (8) [...] Allá, alguien le regaló una vieja cámara de fotos. El Chinolope, nunca había tenido una cámara en las manos, PERO le dijeron que era fácil: - Tú miras por aquí y aprietas allí. Y se echó a las calles. Y a poco andar escuchó balazos y se metió en una barbería y alzó y miró por aquí y apretó allí. (GALEANO, 1999, p. 13). Do emprego de pero em (9): (9)[...] Importación, impostación: nuestras ciudades están llenas de arcos de triunfo, obeliscos y partenones. Bolivia no tiene mar, PERO tiene almirantes disfrazados de Lord Nelson. Lima no tiene lluvia, PERO tiene techos de dos aguas y con canaletas (GALEANO, 1999, p. 147). O morfema pero em (8) El Chinolope nunca había tenido una cámara en las manos introduz mediante portanto um segmento do tipo nunca ha sacado foto, logo, le dijeron que era fácil introduz mediante portanto uma conclusão, demonstrando, dessa maneira, dois blocos semânticos diferentes. Já o morfema pero em (9) Bolívia no tiene mar, pero tiene almirantes conecta segmentos do mesmo bloco semântico, porém sob o aspecto transgressivo da regra. Para Carel, (9) não convoca o encadeamento: “não ter mar DC não ter almirantes”; para depois logo abandoná-lo em benefício de “não ter mar PT ter almirantes”. O locutor de (9) manifesta seu espanto pelo fato de, não tendo mar, ter almirantes; mostra sua estranheza diante dessa realidade que não é, não deveria ser, normal. Pode-se dizer, então, que no exemplo (8), El Chinople nunca había tenido una cámara en las manos, pero le dijeron que era fácil, o pero é classificado Teorias do Discurso e Ensino 247 como pero (MAS PA), pois articula dois blocos semânticos diferentes, sob o aspecto normativo da regra; e o pero de (9) Bolívia no tiene mar, pero tiene almirantes é classificado como pero (sin embargo), pois conecta o mesmo bloco semântico, porém sob um aspecto transgressivo da regra. Segundo Carel: Como el aspecto normativo, el aspecto exceptivo afirma, sin recurrir a otro encadenamiento con por lo tanto: A sin embargo no C, a diferencia de A pero no C, no convoca el encadenamiento B por lo tanto no C. El aspecto exceptivo simplemente presenta la situación como extraña. Como una situación sorprendente y no como “muy rara: la regla se mantiene, no porque la excepción pueda ser ignorada, sino porque no existe normalidad sin rareza. (1998, p.278). Durante o estudo, com base na Teoria da Argumentação na Língua, pôdese perceber que a Teoria dos Blocos semânticos fortalece a ideia de que a significação das frases é aberta, instrucional. Somente no enunciado se poderá estabelecer o sentido dos segmentos, uma vez que se sigam as instruções linguísticas sobre como ler o enunciado, sobre o valor argumentativo de seus segmentos, das palavras que eles contêm, o que é apontado pela própria estrutura linguística. 3 A argumentação na sala de aula Para que melhor fosse compreendido o uso dos morfemas foi ministrada uma aula para as alunas concluintes do curso de habilitação de Língua Espanhola da Universidade de Passo Fundo. Para essa aula foi elaborado um teste a partir de uma seleção de textos retirados do livro El libro de los abrazos, de Eduardo Galeano. Os textos foram escolhidos porque neles se fizera uso dos articuladores e do conector já citados. É desnecessário destacar o encanto que causam essas curtas histórias com que Eduardo Galeano abraça as pessoas, que as retêm na memória e no coração. O teste era composto de duas partes: a parte A, de preencher lacunas, tinha o objetivo de verificar se as alunas conseguiam distinguir, no momento do uso, pero, sino e sin embargo, ou seja, se 248 Carmem Luci da Costa Silva, et al. sabiam como utilizá-los e em que momento; já o objetivo da parte B era verificar se conseguiam distinguir pero (MAS PA) de pero (sin embargo–pourtant), uma vez que o teste exigia que, na série de textos, substituíssem pero por sin embargo quando fosse possível. Deveriam, ainda, explicar por que era possível a substituição. É importante ressaltar que as participantes responderam ao mesmo teste (composto da parte A e da parte B) duas vezes: na primeira vez, elas poderiam fazer uso de dicionários, gramáticas e livros didáticos; na segunda, não, pois já teriam tido a aula sobre a descrição dos morfemas em questão, na perspectiva da Teoria dos Blocos Semânticos. Segue o modelo do teste: TESTE – Parte A Textos extraídos de GALEANO, Eduardo. El libro de los abrazos. Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 1999. Complete as lacunas dos textos com pero, sino, ou sin embargo. 1) La función del lector/2 Era el medio siglo de la muerte César Vallejo, y hubo celebraciones. En España, Julio Veces organizó conferencias, seminarios, ediciones y una exposición que ofrecía imágenes del poeta, su tierra, su tiempo y su gente. ............................... en esos días Julio Vélez conoció a José Manuel Constañón; y entonces todo homenaje le resultó enano. José Manuel Costañón había sido capitán en la guerra española. Peleando por Franco había perdido una mano y había ganado algunas medallas. Una noche, poco después de la guerra, el capitán descubrió, por casualidad, un libro prohibido. Se asomó, leyó un verso, leyó dos versos, y ya no pudo desprenderse. El capitán Castañón, héroe del ejército vencedor, pasó toda la noche en vela, atrapado, leyendo y releyendo a César Vallejo, poeta de los vencidos. Y al amanecer de esa noche, renunció al ejército y se negó a cobrar ni una peseta más del gobierno de Franco. Después, lo metieron preso; y se fue al exilio. 2) Celebración de la voz humana/2 Tenían las manos atadas, o esposadas, y ............................... los dedos danzaban, volaban, dibujaban palabras. Los presos estaban encapuchados; ............................... inclinándose alcanzaban a ver algo, alguito, por abajo. Aunque hablar estaba prohibido, ellos conversaban con las manos. Pinio Ungerfeld me enseñó el alfabeto de los dedos, que en prisión aprendió sin profesor: - Algunos teníamos mala letra – me dijo -. Otros eran unos artistas de la caligrafía. Teorias do Discurso e Ensino 249 La dictadura uruguaya quería que cada uno fuera nada más que uno, que cada uno fuera nadie: en cárceles y cuarteles, y en todo el país, la comunicación era delito. 3) Profecías/ 1 En el Perú, una maga me cubrió de rosas rojas y después me leyó la suerte. La maga me anunció: - Dentro de un mes, recibirás una distinción. Yo me reí. Me reí por la infinita bondad de esa mujer desconocida, que me regalaba flores y augurios de éxito, y me reí por la palabra distinción, que tiene no sé que de cómica, y porque me vino a la cabeza un viejo amigo del barrio, que era muy bruto ........................ certero, y que solía decir, sentenciando, levantando el dedito: “A la corta o a la larga, los escritores se hamburguesan”. Así que me reí; y la maga se rió de mi risa. Un mes después, exactamente un mes después, recibí en Montevideo un telegrama. En Chile, decía el telegrama, me habían otorgado una distinción. Era el premio José Carrasco. 4) Celebración de la fantasía Fue a la entrada del pueblo de Ollantaytambo, cerca del Cuzco. Yo me había desprendido de un grupo de turistas y estaba solo, mirando de lejos las ruinas de piedra, cuando un niño del lugar, enclenque, haraposo, se acercó a pedirme que le regalara una lapicera. No podía darle la lapicera que tenía, porque la estaba usando en no sé qué aburridas anotaciones, ..................................le ofrecí dibujarle un cerdito en la mano. Súbitamente, se corrió la voz. De buenas a primeras me encontré rodeado de un enjambre de niños que exigían, a grito pelado, que yo les dibujara bichos en sus manitos cuarteados de mugre y frío, pieles de cuero quemado: había quien quería un cóndor y quien una serpiente, otros preferían loritos o lechuzas, y no faltaban los que pedían un fantasma o un dragón. Y entonces, en medio de aquel alboroto, un desamparadito que no alzaba más de un metro del suelo, me mostró un reloj dibujado con tinta negra en su muñeca: - Me lo mandó un tío mío, que vive en Lima – dijo. - ¿Y anda bien? – le pregunté - Atrasa un poco – reconoció. 5) Los nadies Sueñan las pulgas con comprarse un perro y sueñan los nadies con salir de pobres, que algún mágico día llueva de pronto la buena suerte, que llueva a cántaros la buena suerte; pero la buena suerte no llueve ayer, ni hoy, ni mañana, ni nunca, ni en lloviznita cae del cielo la buena suerte, por mucho que los nadies la llamen y aunque les pique la mano izquierda, o se levanten con el pie derecho, o empiecen el año cambiando de escoba. Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada. Los nadies: los ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre, muriendo la vida, jodidos, rejodidos: Que no son, aunque sean. 250 Carmem Luci da Costa Silva, et al. Que no hablan idiomas, ............................. dialectos. Que no profesan religiones, .................................supersticiones. Que no hacen arte, ..................................... artesanía. Que no practican cultura, ................................. folklore. Que no son seres humanos, ................................. recursos humanos. Que no tiene cara, ................................ brazos. Que no tienen nombre, ............................... número. Los nadies, que cuestan menos que la bala que los mata. 6) La noche/1 No consigo dormir. Tengo una mujer atravesada entre los párpados. Si pudiera, le diría que se vaya;.......................... tengo una mujer atravesada en la garganta.. 7) Mapamundi/2 [...] La democracia es un lujo del norte. Al sur se le permite el espectáculo, que eso no se le niega a nadie y a nadie molesta mucho, al fin y al cabo, que la política sea democrática, siempre y cuando la economía no la sea. Cuando cae el telón, una vez depositados los votos en las urnas, la realidad impone la ley del más fuerte, que es la ley del dinero. Así lo quiere el orden natural de las cosas. En el sur del mundo enseña el sistema, la violencia y el hombre no pertenecen a la historia, ............................ a la naturaleza, y a la justicia y la libertad han sido condenadas o odiarse entre sí. 8) Celebración de las contradicciones/2 Desatar las voces, desensoñar los sueños: escribo queriendo revelar lo real maravilloso, y descubro lo real maravilloso en el exacto centro de lo real horroroso de América. En estas tierras, la cabeza del dios Eleggúa lleva la muerte en la nuca y la vida en la cara. Cada promesa es una amenaza: cada pérdida, un encuentro. De los miedos nacen los corajes; y las dudas, las certezas. Los sueños anuncian otra realidad posible y los delirios, otra razón. Al fin y al cabo, somos los que hacemos para cambiar lo que somos. La identidad no es una pieza de museo, quietecita en la vitrina, ............................ la siempre asombrosa síntesis de las contradicciones nuestras de cada día. En esa fe, fugitiva, creo. Me resulta la única fe digna de confianza, por lo mucho que se parece al bicho humano, jodido ......................... sagrado, y a la loca aventura de vivir en el mundo. 9) La dignidad del arte Yo escribo para quienes no pueden leerme. Los de abajo, los que esperan desde hace siglos en la cola de la historia, no saben leer o no tienen con qué. Cuando me viene el desánimo, me hace bien recordar una lección de dignidad del arte que recibí hace años, en un teatro de Asís, en Italia. Habíamos ido con Helena a ver un espectáculo de pantomima, y no había nadie. Ella y yo éramos los únicos espectadores. Cuando se apagó la luz, se sumaron el acomodador y la Teorias do Discurso e Ensino 251 boletera. Y, ....................................., los actores, más numerosos que el público, trabajaron aquella noche como si tuvieran viviendo la gloria de un estreno a sala repleta. Hicieron su tarea entregándose enteros, con todo, con alma y vida; fue una maravilla. Nuestros aplausos retumbaron en la soledad de la sala. Nosotros aplaudimos hasta despellejarnos las manos. 10) La casa 1984 había sido un año de mierda. Antes del infarto, me habían operado la espalda; y Helena había perdido un niño a medio hacer. Cuando Helena perdió el niño, se nos secó el rosal de la terraza. Las demás plantas también murieron, todas un tras otra, a pesar de que las regábamos cada día. La casa parecía maldita. Y.............................., Nani y Alfredo Ahuerma habían estado allí, por unos días, y al irse habían escrito en el espejo: En esta casa fuimos felices. Y también, nosotros habíamos encontrado la alegría en esa casa ahora jodida por la mala racha, y la alegría había sabido ser más poderosa que la duda y mejor que la memoria, así que esa casa entristecida, esa casa barata y fea, en un barrio barato y feo, era sagrada. 11) Andares/2 No fue un viento errante, de esos que vagabundean sin ton ni son, ...................... un señor ventarrón certeramente disparado desde la lejana costa caliente hasta la ciudad de Medellín, a través de las montañas y los países. El viento llegó a la casa de Jenny y la atravesó de punta a punta: súbitamente se abrió la puerta del frente, como pateada por un borracho, y poquito después se abrió la puerta del fondo, de la misma violenta manera. [...] TESTE – Parte B Textos extraídos de GALEANO, Eduardo. El libro de los abrazos. Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 1999. Todos os textos a seguir apresentam a conjunção pero. Verifique se, em algum texto, pero pode ser substituído por sin embargo. Justifique sua resposta. 1)El lenguaje del arte El Chinolope vendía diarios y lustraba zapatos en La Habana. Para salir de pobre, se marchó a Nueva York. Allá, alguien le regaló una vieja cámara de fotos. El Chinolope nunca había tenido una cámara en las manos, PERO le dijeron que era fácil: - Tú miras por aquí y aprietas allí. Y se echó a las calles. Y a poco andar escuchó balazos y se metió en una barbería y alzó y miró por aquí y apretó allí. En la barbería habían acribillado al gangster Joe Anastasia, que se estaba afeitando, y esa fue la primera foto de la vida profesional del Chinolope. Se la pagaron una fortuna. Esa foto era una hazaña, El Chinolope había logrado fotografar a la muerte. La muerte estaba allí: no en el muerto ni en el matador. La muerte estaba en la cara del barbero que la vio. 252 Carmem Luci da Costa Silva, et al. ................................................................................................................................... ................................................................................................................................... 2) La burocracia/1 En tiempos de la dictadura militar, a mediados de 1973, un preso político uruguayo, Juan José Noueched, sufrió una sanción de cinco días: cinco días sin visita ni recreo, cinco días sin nada, por violación del reglamento. Desde el punto de vista del capitán que le aplicó la sanción, el reglamento no dejaba lugar o dudas. El reglamento establecía claramente que los presos debían caminar en fila y con ambas manos en la espalda. Noueched había sido castigado por poner una sola mano en la espalda. Noueched era manco. Había caído preso en dos etapas. Primero había caído su brazo. Después, él. El brazo cayó en Montevideo. Noueched venía escapando a todo correr cuando el policía que lo perseguía alcanzó a pegarle un montón, le gritó: Dése preso! Y se quedó con el brazo en la mano. El resto de Noueched cayó un año y medio después, en Paysandú. En la cárcel, Noueched quiso recuperar su brazo perdido: - Haga una solicitud – le dijeron. Él explicó que no tenía lápiz: - Haga una solicitud a lápiz – le dijeron. Entonces tuvo lápiz, PERO no tenía papel: - Haga una solicitud de papel – le dijeron. Cuando por fin tuvo lápiz y papel, formuló su solicitud de brazo. Al tiempo, le contestaron. Que no. No se podía: el brazo estaba en otro expediente. A él lo había procesado la justicia militar. Al brazo, la justicia civil. ................................................................................................................................... ................................................................................................................................... 3) La desmemoria/4 Chicago está llena de fábricas. Hay fábricas hasta en pleno centro de la ciudad, en torno al edificio más alto del mundo. Chicago está lleno de fábricas, Chicago está llena de obreros. Al llegar al barrio de Heymarkert, pido a mis amigos que me muestren el lugar donde fueron ahorcados, en 1886, aquellos obreros que el mundo entero saluda cada primero de mayo. - Hay de ser por aquí – me dicen. Pero nadie sabe. Ninguna estatua se ha erigido en memoria de los mártires de Chicago en la cuidad de Chicago. Ni estatua, ni monolito, ni placa de bronce, ni nada. El primero de mayo es el único día verdaderamente universal de la humanidad entera, el único día donde coinciden todas las historias y todas las geografías, todas las lenguas y las religiones y las culturas del mundo; PERO en los Estados Unidos, el primero de mayo es un día cualquiera. Ese día, la gente trabaja normalmente, y nadie, o casi nadie, recuerda que los derechos de la clase obrera no han brotado de la oreja de una cabra, ni de la mano de Dios o del amo. Tras la inútil exploración de Heymarket, mis amigos me llevan a conocer la mejor librería de la ciudad. Y allí, por pura curiosidad, por pura casualidad, Teorias do Discurso e Ensino 253 descubro un viejo cartel que está como esperándome. Metido entre muchos otros carteles de cine y música rock. El cartel reproduce un proverbio del África: Hasta que los leones tengan sus propios historiadores, las historias de cacería seguirán glorificando al cazador. ................................................................................................................................... ................................................................................................................................... 4) El sistema/1 Los funcionarios no funcionan. Los políticos hablan PERO no dicen. Los votantes votan PERO no eligen. Los medios de información desinforman. Los centros de enseñanza enseñan a ignorar. Los jueces condenan a las víctimas. Los militares están en guerra contra sus compatriotas. Los policías no combaten los crímines, porque están ocupados en cometerlos. Las bancarrotas se socializan, las ganancias se privatizan. Es más libre el dinero que la gente La gente está al servicio de las cosas. ................................................................................................................................... ................................................................................................................................... 5) La alineación / 2 Creen los que mandan que mejor es quien mejor copia. La cultura oficial exalta las virtudes del mono y del papagayo. La alineación en América Latina: un espectáculo de circo. Importación, impostación: nuestras ciudades están llenas de arcos de triunfo, obeliscos y partenones. Bolivia no tiene mar, PERO tiene almirantes disfrazados de lord Nelson. Lima no tiene lluvia, PERO tiene techos dos aguas y con canaletas. En Managua, una de las ciudades más calientes del mundo, condenada al hervor perpetuo, hay mansiones que ostentan soberbias estufas de leña, y en las fiestas de Somoza las damas de sociedad lucían estolas de zorro plateado. ................................................................................................................................... ................................................................................................................................... 6) La muerte Ni diez personas iban a los últimos recitales del poeta español Blas de Otero. PERO cuando Blas de Otero murió, muchos miles de personas acudieron al homenaje fúnebre que se le hizo en una plaza de toros en Madrid. Él no se enteró. ................................................................................................................................... ................................................................................................................................... 254 Carmem Luci da Costa Silva, et al. No começo da aula, explicou-se o que é um bloco semântico e como se forma por meio da seguinte frase escrita no quadro: Pedro trabalha, portanto é feliz. Inicialmente conduziu-se as alunas a perceberem que o segmento “Pedro trabalha” não tem sentido sozinho. O sentido é estabelecido na relação com outro segmento que possa ser a ele concatenado, como por exemplo, “ser feliz”. Forma-se, assim, um enunciado complexo, constituído por dois segmentos que compõem um encadeamento argumentativo em que se associaram trabalhar / ser feliz. Mostrou-se que trabalhar e ser feliz não são dois conteúdos tomados separadamente, cada um com seu valor fixo, estabelecido previamente, os quais são reunidos no encadeamento. O sentido de trabalhar e ser feliz é constituído simultaneamente na interdependência existente entre eles no encadeamento. Para explicitar melhor, levou-se as participantes a perceberem que ao segmento “Pedro trabalha” poderiam ser associados ser feliz, ficar cansado, ficar rico, ficar pobre, ter sucesso na vida, e que cada uma dessas associações constituiria um bloco semântico, uma vez que, simultaneamente, dentro do bloco, se definiriam os sentidos de trabalhar e de felicidade, de trabalhar e cansar, de trabalhar e riqueza. Conduziu-se o raciocínio das alunas a fim de que percebessem que, num bloco semântico, os segmentos são semanticamente interdependentes. Também foi a elas explicado que durante as aulas seriam utilizados os símbolos DC (donc–por lo tanto) para portanto e PT (pourtant–sin embargo) para mesmo assim e que os encadeamentos com DC expressariam o aspecto normativo da regra, ao passo que os com PT o aspecto transgressivo da regra. Para explicar aos participantes os aspectos recíprocos (positivo e negativo) e os conversos (normativo e transgressivo) foram tomados os seguintes exemplos: (1) Pedro foi à praia DC tomou banho. (1’) Pedro foi à praia PT não tomou banho. (2) Pedro não foi à praia DC não tomou banho. (2’) Pedro não foi à praia PT tomou banho. Pela análise dos quatro exemplos, os alunos foram levados a perceber que se tratava sempre do mesmo bloco ir à praia / tomar banho (tomado positivamente), não ir à praia / não tomar banho (tomado negativamente). Teorias do Discurso e Ensino 255 A versão positiva do bloco poderia ser apreendida normativa (com encadeamento argumentativo em DC) e transgressivamente (com encadeamento argumentativo em PT) e, da mesma forma, a versão negativa. Daí o seguinte quadrado argumentativo, expressando as possibilidades argumentativas do bloco semântico constituído por ir à praia / tomar banho. A B A DC C Não A DC não C Ir à praia DC tomar banho Não ir à praia DC não tomar banho C Não A PT C Não ir à praia PT tomar banho D A PT não C Ir à praia PT não tomar banho Recíprocos (A e B; C e D) Conversos (A e D; C e B) Portanto, no enunciado dado em espanhol Pedro ha ido a la playa, pero no se ha bañado, percebe-se um pero com valor de sin embargo, pois, nessa frase, pero pode ser substituído por sin embargo, uma vez que relaciona segmentos de um mesmo bloco, os quais formam um encadeamento argumentativo transgressivo, que não nega a regra “Vai-se à praia para tomar banho”, somente a transgride. Após esse exemplo, foi colocado um outro enunciado: (3) Pedro foi à praia MAS estava resfriado. Explicou-se, novamente, que esse enunciado apresenta a seguinte estrutura: A MAS B, e os seguintes segmentos: Segmento 1- Foi à praia Segmento 2 – Portanto DC tomou banho Segmento 3 – Estava resfriado Segmento 4 – Portanto DC não tomou banho Foi à praia MAS DC Tomou banho 256 Carmem Luci da Costa Silva, et al. está resfriado DC não tomou banho A partir dessa explicação, foi possível ver que essa frase apresenta dois blocos semânticos diferentes, pois: Pedro foi à praia DC tomou banho Pedro resfriado DC não tomou banho 1.o bloco – ir à praia / tomar banho (vai-se à praia para tomar banho de mar) 2.o bloco – estar resfriado / não tomar banho (quem está resfriado não deve se molhar) Portanto, se a frase fosse dada em espanhol Pedro ha ido a la playa, pero estaba resfriado, teríamos um pero (MAS PA) que relaciona dois blocos cujas conclusões são contrárias. Nesta frase o pero não pode ser substituído por sin embargo, porque apresenta dois blocos semânticos diferentes, uma vez que são duas conclusões contrárias que pero relaciona. Com base nesses exemplos fica claro que existem dois tipos de pero, pero (Mas PA) que conecta encadeamentos argumentativos normativos de blocos semânticos diferentes, que conduzem a conclusões contrárias, ou seja, duas argumentações inversas, e pero (sin embargo-mesmo assim) que conecta segmentos do mesmo bloco semântico, porém com o aspecto transgressivo da regra. E um último exemplo para trabalhar o articulador sino: (4) Pedro não é inteligente MAS estudioso. A frase em espanhol seria: Pedro no es inteligente sino estudioso. Explicou-se que a utilização de sino sempre será em um enunciado retificador, ou seja, o segundo segmento do enunciado retifica o primeiro, no qual haverá uma negação. Portanto, existem três tipos de MAS, e cada um pode ser resumido através da seguinte estrutura: MAS (sin embargo, pourtant) – mesmo assim A MAS não B – Pedro foi à praia, mas não tomou banho. Teorias do Discurso e Ensino 257 MAS (PA - pero – donc) - portanto A MAS B – Pedro foi à praia, mas estava resfriado. MAS (SN – sino) Não A MAS B – Pedro não é inteligente, mas estudioso. Logo após essa explicação, as alunas fizeram um exercício com três textos, também retirados do livro El libro de los abrazos, de Eduardo Galeano, para que preenchessem as lacunas, utilizando os morfemas em foco e, em seguida, realizaram novamente o teste. Agora, a distinção entre o emprego de cada um deveria ser feita com base na Teoria dos Blocos. 4 Considerações finais Como se mencionou de início, esta pesquisa nasceu de uma preocupação de professores e estudantes da língua espanhola quanto ao uso dos articuladores pero, sino e do conector sin embargo. A partir desse questionamento, constatou-se a necessidade de um maior aprofundamento sobre a descrição linguística dos morfemas e sobre o modo como os alunos estavam aprendendo em sala de aula a distingui-los, para o uso tanto em leitura quanto em produções de textos em língua espanhola. Ao longo da pesquisa, pôde-se verificar que realmente uma explicação dos articuladores pero, sino e do conector sin embargo na a perspectiva da Teoria da Argumentação na Língua, mais especificamente, da Teoria dos Blocos Semânticos, é esclarecedora. Foi possível chegar a essa conclusão atendendo ao objetivo estabelecido para o estudo, de investigar se a descrição dos articuladores e do conector segundo o arcabouço da TAL seria mais apropriada para ensinar a distinção e o uso adequado, se comparada com a descrição apresentada em dicionários, gramáticas e livros didáticos. Nesse sentido, as hipóteses levantadas realmente vieram a se confirmar, pois se percebeu que a descrição encontrada nesses materiais didáticos, tanto dos articuladores quanto do conector, baseia-se num 258 Carmem Luci da Costa Silva, et al. valor informativo, obtido pelo exame de contextos específicos. Já a descrição feita pela TAL favorece e esclarece esse uso, pois apresenta uma descrição instrucional, aberta. Ducrot, na perspectiva da TAL, formula a ideia de que “La significación es esencialmente abierta, dice lo que hay que hacer para encontrar el sentido del enunciado” (1998, p.58). Tome-se o exemplo: Maria estaba, pero con su madre. Esse enunciado diz, em primeiro lugar, que Maria estava e, em segundo lugar, que estava com sua mãe. Mas também pode significar, em muitas outras ocasiões, que, quando Maria está, geralmente não está com a mãe, ou que, quando ela está, isso me agrada, mas, como está com a mãe, então não gosto. Nesse exemplo, as conclusões podem ser diversas como: estava contente por Maria estar com a mãe, e descontente com a presença da mãe. Desse modo, para Ducrot, a descrição de MAS é instrucional: procure um contexto em que as conclusões do 1.o e do 2.o segmento do enunciado sejam contrárias entre si. Se fosse num contexto em que a menina tivesse um namorado: Maria estava MAS DC com sua mãe DC Namorado ---------------- fiquei feliz fiquei triste Ou num contexto em que o pai estivesse preocupado com sua segurança: Maria estava MAS DC com sua mãe DC Pai ----- fiquei preocupado com sua segurança não fiquei preocupado com sua segurança Ou num contexto em que, quando está com a mãe, Maria não bebe: Maria estava DC ia ficar bêbada MAS com sua mãe DC não ia ficar bêbada E assim muitíssimos outros contextos. Teorias do Discurso e Ensino 259 La idea general consiste en decir que la significación indica simplemente el trabajo que debe hacerse para comprender el enunciado. En este sentido digo que la significación es abierta. El sentido del enunciado se produce cuando se ha obedecido a las indicaciones dadas por la significación (DUCROT, 1998, p.60). Promovendo o desenvolvimento dos estudos da TAL, Carel criou a Teoria dos Blocos Semânticos, a qual prevê que o sentido do enunciado somente é constituído na relação estabelecida entre os dois segmentos que o compõem. Tome-se o enunciado: Pedro estuda, portanto passará de ano. O segmento “Pedro estuda” não tem sentido sozinho. O sentido somente será estabelecido na relação com o outro segmento “passará de ano”. Dessa maneira, percebe-se a interdependência existente entre os dois termos. A partir do momento em que se estabeleceu estudar para passar de ano, foi formado um enunciado complexo, constituído por dois segmentos que compõem um encadeamento argumentativo em que se associaram estudar / ser aprovado. Nota-se que não são dois conteúdos tomados separadamente, cada um com seu valor fixo, já estabelecido, porém agora reunidos no encadeamento. O sentido de estudar e ser aprovado é constituído, simultaneamente, na interdependência existente entre ambos no encadeamento. Nessa perspectiva, na descrição dos articuladores pero, sino e do conector sin embargo, verificou-se que pero (mas PA) articula blocos semânticos diferentes, como: Trabaja PERO es perezoso DC tiene un buen sueldo DC no va a ganar un buen sueldo 1.o bloco semântico – trabalhar / ganhar bem 2.o bloco semântico – ser preguiçoso / não ganhar bem Os dois blocos articulados por pero são expressos em encadeamentos argumentativos normativos, pois: 260 Carmem Luci da Costa Silva, et al. 1.o bloco – Trabalhar DC ganhar bem (aspecto normativo da regra) 2.º bloco – Ser preguiçoso DC não ganhar bem (aspecto normativo da regra) Já pero (sin embargo - PT) conecta segmentos do mesmo bloco semântico, porém no aspecto transgressivo da regra, formando encadeamento argumentativo transgressivo. Trabaja pero (PT) Trabaja no gana mucho DC tiene un buen sueldo Bloco Semântico – trabalhar / ganhar bem Aspecto normativo da regra – trabalha DC ganha bem Aspecto transgressivo da regra – trabalha PT não ganha bem Quanto ao articulador sino, verificou-se que apresenta sempre um valor de correção, retificação. Exemplo: No es brasileña, sino portuguesa. Quando realizado o primeiro teste, verificou-se que as participantes tinham muitas dúvidas quanto ao uso de pero, sino e sin embargo. As alunas utilizaram gramáticas e dicionários para auxiliá-las nas respostas, mas percebeu-se que o valor informativo, de contextos fechados da descrição, não as auxiliou na resposta, pois, na maioria das vezes, elas não entendiam a explicação dos dicionários nem das gramáticas, como se pode ver nas justificativas dadas ao teste 1- parte B: “deve permanecer, pois dá ideia de oposição”; “continua pero, pois tem valor de porém”; “tem que substituir por sin embargo porque tem valor de entretanto”. Após a aula sobre esses morfemas, na perspectiva da TAL, foi possível verificar um melhor entendimento, tanto que o resultado na aplicação do mesmo teste, agora denominado “teste 2”, demonstrou essa evolução e veio a comprovar que a descrição dos morfemas, principalmente segundo a Teoria dos Blocos Semânticos, é mais satisfatória. As justificativas, agora, foram mais convincentes: “permanece pero porque muda o bloco semântico”; “pero pode ser substituído por sin embargo porque ocorre uma transgressão”; “apresenta um aspecto transgressivo da regra por isso pode ser substituído por sin embargo”. As Teorias do Discurso e Ensino 261 participantes não recorreram ao uso de materiais didáticos para responder aos exercícios e obtiveram um alto índice de acertos. Esses resultados positivos revelam que a Teoria da Argumentação na Língua, especificamente, no caso deste estudo, a Teoria dos Blocos Semânticos, pode contribuir com suas descrições semântico-argumentativas para facilitar o ensino de língua espanhola para estrangeiros. Além disso, compreender a diferença de sentido argumentativo derivado da escolha de pero ou de sin embargo, seja no processo de recepção, seja no de produção de textos, produz uma diferença de qualidade na construção do sentido. Observe-se, por exemplo, o pero “no tiene mar, pero tiene almirantes”. Na medida em que se lê pero como sin embargo, percebe-se a indignação do locutor do enunciado diante do que expressa. É de se crer que um leitor proficiente faça a substituição de pero por sin embargo na construção do sentido do texto, mas o conhecimento da descrição semântico–argumentativa, sem dúvida, fornece-lhe a segurança de apoiar o resultado da intuição linguística na descrição. Acredita-se que, como a descrição desses morfemas, outros estudos podem ser feitos na perspectiva da TAL para o aprimoramento do ensino de língua espanhola como segunda língua. É, portanto, um campo aberto e especialmente produtivo para outras pesquisas. REFERÊNCIAS CAREL, Marion. Argumentación normativa y exceptiva. Signo & Seña, Faculdade de Filosofia e Letras, UBA, n. 9, jun., 1998. ______. Qu’est-ce qu’argumenter? Revista de Retórica y Teoría de la Comunicación, v.1, n. 1, Enero, 2001. DUCROT, Oswald; ANSCOMBRE, Jean-Claude. La argumentación en la lengua. Madrid: Editorial Gredos, 1994. DUCROT, Oswald. Polifonía y argumentación. Cali: Universidad del Valle, 1998. ______. Semântica e argumentação: diálogo com Oswald Ducrot. Delta, São Paulo, v.14, n. 1, fev./1998. 262 Carmem Luci da Costa Silva, et al. ______. A pragmática e o estudo semântico da língua. Letras de Hoje. Porto Alegre: PUCRS, v.40, n. 1, mar./2005. GALEANO, Eduardo. El libro de los abrazos. 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