A aventura de aprender e as condições para um bom aprendizado Universidade de Santiago de Compostela INTRODUÇÃO O aprendizado costuma parecer um processo que tem muito de miraculoso. No começo, sendo crianças e, depois, como adultos, vamos crescendo, vamos desenvolvendo as nossas capacidades, vamos projetando desafios cada vez mais importantes e quase sem nos darmos conta vamos dominando com grande autoridade o nosso entorno. Na maior parte das vezes seria impossível contar como foi que tudo isso aconteceu. Com certeza ainda podemos lembrar a nossa infância e a sensação de incapacidade que nos transtornava diante de situações complexas demais que não conseguíamos entender. É claro que sempre há coisas que nos superam, inclusive quando somos adultos, mas, em geral, podemos dizer que assim, de mansinho e em poucos anos, fomos passando de uma situação geral marcadamente carente no que se refere a conhecimentos e destrezas para outra na qual podíamos nos movimentar com extraordinária desenvoltura em boa parte das atividades intelectuais e práticas da vida. Aprendemos muitas coisas, ainda que nos seja bastante difícil explicar como ou por meio de quais mecanismos. Muitos desses aprendizados aconteceram na escola e como consequência da atuação docente dos nossos professores. Frequentemente, nós, professores, temos essa mesma sensação de mistério e prodígio a respeito dos aprendizados dos nossos estudantes. Quando as crianças são pequenas e as vemos crescer e avançar no domínio das diversas competências (linguísticas, motrizes, artísticas, sociais etc.) só resta nos maravilhar com elas. Depois vão progredindo nas sucessivas etapas da escolaridade e, apesar de a intervenção dos docentes ficar mais clara e próxima, nunca cessa a surpresa diante da capacidade humana para aprender e apoderar-se de competências cada vez mais complexas e diversas. Aprender é, assim, um processo complexo, rico e enriquecedor. Uma enorme aventura. Algo que se produz, em parte, como conseqüência do próprio crescimento e expansão das capacidades humanas e, em parte, como consequência das oportunidades que se nos vão oferecendo (por parte da nossa família, dos nossos professores, dos nossos amigos) para ampliar nossa bagagem de experiências e conhecimentos. Boa parte desses aprendizados acontece na escola e depende da qualidade da oferta formativa que a escola desenhe e desenvolva através do seu currículo. Depende também, obviamente, de como nós professores levemos à frente nosso trabalho docente. Por isso, é tão importante se aprofundar o máximo possível nos mecanismos através dos quais se produz o aprendizado. Com certeza, nunca deixaremos de nos admirar pela maravilhosa capacidade humana para se adaptar aos novos desafios e aprender a dominá-los. Mas quanto mais soubermos sobre como se produz o aprendizado em melhores condições estaremos para melhorá-lo ou, pelo menos, para abrir novas e melhores oportunidades para que os estudantes possam incrementá-lo. De outro lado, quanto mais soubermos sobre como os indivíduos aprendem, mais saberemos também sobre o que acontece quando os indivíduos não aprendem e o que poderíamos fazer para ajudá-los a superar as dificuldades. Esse é o objetivo deste texto. Vamos falar do aprendizado e das condições que facilitam ou limitam o seu desenvolvimento. Muitas das coisas que serão tratadas aqui têm muito a ver com outras coisas que já ouviram em outras partes e a respeito de outras questões. Tudo o que já se sabe sobre as famílias, sobre a juventude, sobre a escola, sobre os processos do ensino-aprendi- zado, sobre a interação entre professores e alunos são questões muito interessantes para poder entender melhor algumas das coisas que acontecem com o aprendizado. 1. Os alunos como pessoas e cidadãos que aprendem A primeira consideração que se deveria fazer, inclusive antes de aprofundar na análise do processo do aprendizado, é partir de uma visão mais ampla da identidade e natureza dos estudantes. Nós vamos falar deles e delas como aprendizes, mas não é essa a única identidade com a que chegam à escola nem é unicamente como aprendizes que se substancia sua integração nela. Vou tentar dizer isto com palavras simples. Os alunos são, antes de mais nada, pessoas. E também são cidadãos. Ambas as qualidades lhes dotam de identidade e direitos que são superiores àqueles que decorrem da sua condição de aprendizes. O que nós poderemos fazer com eles quanto aprendizes vai estar sujeito à consideração que devemos ter com eles como pessoas ou cidadãos. O aprendizado como processo técnico pode se desenvolver através de dispositivos e artefatos de diversos tipos. Pode se ensinar (e conseguir que aprendam) aos animais, às máquinas, às pessoas (adultos ou crianças), mas as condições em que esse aprendizado pode ser encarado não dependem somente das exigências técnicas do processo, mas também das condições particulares que, como sujeitos do aprendizado, possuem os próprios aprendizes. O fato de poder negociar com um sujeito os conteúdos a serem aprendidos ou o ritmo dos aprendizados não é uma questão técnica (algo que tenha a ver com a técnica do aprendizado), mas uma condição decorrente do seu direito como cidadão a ser o protagonista do seu próprio itinerário formativo (sobretudo quando é um aprendiz adulto, mas também quando é uma criança). O fato de que os meninos e as meninas com necessidades educativas especiais aprendam em escolas “normais” e com colegas “normais” não tem a ver com a técnica do aprendizado e sim com considerações de tipo ideológico e político que decorrem dos particulares direitos que todo cidadão tem de participar na vida social e de se beneficiar dos dispositivos de que ela dispõe. Seria possível que nós aprendêssemos mais ou mais rapidamente através de implantes eletrônicos nos nossos cérebros ou através de descargas elétricas que agissem como fatores dissuasórios cada vez que cometemos erros, mas é claro, isso seria totalmente contra os nossos direitos como pessoas. Como pessoas, temos o direito de aprender sem que seja prejudicada nossa autoestima por pressões excessivas, a aprender com os outros, a receber o apoio dos outros etc. Quer dizer, aprender (pelo menos quando falamos de aprendizados humanos) é um processo que se desenvolve num marco de condições que vão além do que o próprio processo de aprender importa. E como vamos fazer referência principalmente a aprendizados que se encontram nas fases iniciais da vida (crianças ou jovens que freqüentam às escolas) esse tipo de condições são um fator fundamental na hora de nos situar a respeito do aprendizado. Outra consideração importante nesta mesma linha é a que nos leva a situar o aprendizado no marco do processo educativo em geral: competências e habilidades. Aprender, neste marco, é antes de tudo e principalmente se desenvolver como pessoa, melhorar a si mesmo. Resultaria um pouco absurdo pretender que o importante fosse “aprender” a qualquer preço, inclusive à custa de outro tipo de desenvolvimentos pessoais (a segurança em si mesmo, a autoestima, o bem-estar pessoal, as relações com os outros, a saúde mental, a possibilidade de desfrutar do jogo e de outro tipo de atuações lúdicas etc.). E, ainda que isso pareça evidente, muitas vezes o esquecemos. Achamos certo que um menino ou menina entregue o melhor da sua infância para adestrar-se em “ginástica rítmica” embora seja à custa de outros valores fundamentais do seu desenvolvimento como pessoa. Ou que seja um “sabichão” nos computadores, ou no teatro, ou na publicidade, embora isso traga como consequência ficar “alheio” a si próprio e à sua qualidade de menino ou menina. O aprendizado não contextualizado, aquele não situado num marco adequado de limitações (as decorrentes das outras identidades que qualificam aos aprendizes) pode deixar de ser uma extraordinária oportunidade para a melhora pessoal e virar uma espécie de pena. Se quem lê este texto é ou vai ser educador, eu gostaria muito que parasse um momento para pensar nesta questão. Talvez você possa lembrar algum caso no qual tenha se hipertrofiado a tensão por aprender à custa de outras dimensões do sujeito, desnaturando seu sentido. E com certeza concorda comigo em que essa não é uma conduta aceitável. Aprender não é só aprender coisas ou adquirir 2. O aprendizado como tarefa compartilhada entre professores e alunos Para os professores em geral, começar a considerar esse aspecto (que os resultados do aprendizado dos nossos alunos dependem também de nós) resulta fundamental e, apesar de parecer uma questão óbvia, é notavelmente uma novidade. Como em muitos casos nossa formação e nossa identidade como profissionais têm se constituído em torno do ensino dos conteúdos, é acerca disso que, no melhor dos casos, nos preocupamos. Ser professor(a), inclusive ser um professor ou professora de qualidade, costuma estar ligado, sobretudo, a conhecer bem as disciplinas e saber ministrar boas aulas. Mas ao falar do profissionalismo docente, devemos levar em conta não somente os processos ligados ao ensino, mas também aqueles ligados ao fato de aprender. O professor de uma matéria, se além de conhecê-la é um bom comunicador, pode levar à frente uma boa apresentação dos conteúdos da sua disciplina. Mas, para ser um bom docente, ainda lhe falta adequar a dita apresentação e as atividades ligadas a ela ao processo de aprendizado dos estudantes1. Algo nós devemos saber de como os estudantes aprendem e sob quais condições o aprendizado melhora2. Sem dúvida, esse é um dos traços distintivos do docente. Por isso, essa outra dimensão pessoal de como é que os alunos aprendem, como transitam pela sua cabeça e pelo seu coração os conteúdos que lhes explicamos de jeito nenhum deve resultar para nós algo “alheio” e fora do nosso espaço de preocupações e saberes. Essa costuma ser, justamente, uma reação bastante habitual de muitos docentes a respeito dos processos do aprendizado dos estudantes: considerá-lo como algo “alheio”, algo que não lhes cabe diretamente. E sobre essa consideração, notavelmente defensiva, gerou-se toda uma visão do aprendizado como algo que depende do aluno, não do professor. Os professores simplesmente ensinam. O aprendizado depende da inteligência, da motivação, do esforço etc. que o aluno esteja em condições de aplicar para sua formação. Já dizia o ditado que “quod natura non dat salmantica non prestat”. Evidentemente, a perspectiva da qual se encara aqui o aprendizado está bastante longe desse enfoque. Não porque se pretenda defender que o papel dos alunos e suas capacidades e motivação seja uma questão secundária. Trata-se, é claro, de um fator básico para que o aprendizado seja produzido, uma espécie de conditio sine qua non. Mas, além disso, é necessária também uma intervenção precisa e bem orientada pelos professores. O aprendizado surge na confluência de ambas as atuações, a do professor e a do aluno, e ambos agindo no marco de um contexto determinado (uma instituição, um programa, certos recursos, um sentido da formação, um ambiente etc.) que constitui o terceiro fator de influência. Obviamente, não se devem esquecer os fatores sociais que igualmente condicionam os processos de aprender. Esta união intrínseca entre o ensino e o aprendizado é muito bem resumida pelo idioma galego, que nós falamos. Para dizer que “o nosso professor nos ensinou muito”, dizemos em galego que “o noso profesor aprendeunos moito”. Quer dizer, o seu mérito não foi nos explicar bem, falar de maneira descontraída. O que fez bem foi conseguir que nós aprendêssemos. Isso é ensinar: fazer que os seus estudantes aprendam. Uma preocupação básica para aqueles que, como nós, temos de desenvolver nosso trabalho formativo na escola, seja qual for o nível educativo em que estivermos, é a reconsideração constante de quais são os processos e estratégias através dos quais os estudantes chegam ao aprendizado. Somente com um claro conhecimento desses processos estaremos em condições de poder melhorá-lo, reajustando para isso nossos métodos de ensino. Porém os métodos de ensino e os processos que os estudantes realizam para conseguir seus aprendizados pertencem, na maioria das vezes, à esfera das intuições e/ou dos aprendizados práticos (aquilo que a gente acaba aprendendo depois de anos como professor). Estamos, em minha opinião, diante de um tema chave para os docentes. As estratégias que os estudantes utilizam para aprender, os problemas com que vão se deparar nesse processo, a forma em que se vê atingido o aprendizado pelas novas situações de aprendizado (aparecimento de novos conteúdos, priorização de âmbitos formativos não centrados nos saberes, aparecimento de estudantes de diversas culturas, incorporação das novas tecnologias etc.) constituem elementos que ainda permanecem numa área relativamente opaca do conhecimento profissional3. Definitivamente, o objetivo da docência é melhorar os resultados do aprendizado dos alunos e aprimorar sua formação. Isto envolve, sem dúvida, notáveis esforços didáticos para adaptar a organização dos programas e os métodos de ensino utilizados aos diferentes modos e estilos de aprendizado dos alunos (sem desconsiderar seus diversos interesses, necessidades e orientações profissionais). Então, quais aspectos ou variáveis do aprendizado podem servir de referentes para o desenvolvimento de um melhor ensino? De forma muito breve (e consequentemente incompleta, porque este assunto poderia dar lugar a considerações muito mais amplas e matizadas) é importante para nós como docentes levar em conta pelo menos três tipos de fatores que tocam o aprendizado: fatores de tipo cognitivo, fatores de tipo social e fatores de tipo institucional. A primeira questão que é conveniente salientar é que, de uma forma ou de outra, o professorado em geral chega a construir uma determinada imagem sobre o que é aprender e como se aprende. Talvez nossa base seja nossa própria experiência como aprendizes (afinal, todos os docentes possuem um elevado pedigree por ter escalado aos poucos todos os níveis da escolaridade, com sucesso, até chegar à universidade). Além disso, como professores, nós tivemos a possibilidade de ver o aprendizado do outro lado da barreira: pudemos seguir o dia a dia dos nossos alunos, seus esforços por assimilar as coisas, ver suas dificuldades e as condições em que levavam à frente o processo de aprender. Reconheço que o assunto do “aprendizado” é extremamente complexo e não pretendo entrar aqui numa pesquisa acadêmica sobre conceitos e modelos do aprendizado. Prefiro utilizar algumas metáforas que nos coloquem diante das diversas formas de ver o processo através do qual os alunos e nós mesmos aprendemos. a) A metáfora do “puzzle” Nesta perspectiva, aprender significa que vamos juntando pequenas peças de conhecimentos e habilidades até chegar a construir um aprendizado mais complexo. É um aprendizado que se vai produzindo por aproximações sucessivas, cada vez de maior nível de profundidade e complexidade, aos assuntos a serem aprendidos ou aos objetivos a serem atingidos. Esta visão do aprendizado é bastante habitual e serve de base para boa parte dos modelos de ensino. Começa com a ideia de que qualquer aprendizado ou habilidade complexa está composto por estruturas simples que a gente deve ir assimilando progressivamente até alcançar o domínio global de todo o conjunto. Acabo de ver uma fita de vídeo que ensina a dançar rumba cubana. É constituída por um conjunto de lições nas quais se vai avançando progressivamente nos diversos movimentos que fazem parte da dança. Os alunos devem ir se exercitando, lição a lição, nos diversos movimentos parciais em que se divide a rumba. Cada novo aprendizado parcial vai se integrando aos anteriores, e em cada lição há exercícios para levar à frente, de uma forma integrada, todos os movimentos trabalhados até esse momento. Supõe-se que, uma vez que possuam todos os movimentos simples, os aprendizes estarão em condições de seguir o ritmo completo da rumba cubana. Conta a literatura psicológica que foi assim que Skinner ensinou a jogar tênis de mesa a pombas no seu laboratório. Primeiro, identificou as unidades de conduta que fazem parte do jogo: colocar-se num extremo da mesa, olhar para o lado oposto, pegar a raquete, empurrar a bola com a raquete na direção contrária, devolver a bola que te enviou o oponente etc. Progressivamente, através de mecanismos de reforço (premiando as condutas pertinentes), foi fixando uma a uma aquelas condutas que faziam parte do catálogo de condutas a serem aprendidas. Finalmente, segundo se conta, as pombas do experimento foram capazes de “jogar tênis de mesa”. Como pode ser constatado, trata-se de um processo de aprendizado muito controlado de fora. O aprendiz segue uma espécie de partitura com protocolos dos diversos passos que deverá dar no seu caminho para o aprendizado. Exige um esforço forte de planejamento (porque se vai partir dos conhecimentos ou destrezas mais simples ou básicas para ir progredindo até as mais complexas sem que sejam produzidos pulos no vazio) e o estabelecimento de um contexto de aprendizado muito controlado. Muitos aprendizados desenvolvidos por computador ou através de simuladores funcionam desta maneira. Esta estratégia acumulativa de domínios e informações propiciou-se a partir dos enunciados do behaviorismo da psicologia. b) A metáfora do “lego” “Lego” é aquele jogo de peças que faz com que vamos desenvolvendo construções de diversos tipos. As construções iniciais dão lugar a outras mais sofisticadas e complexas. Aprender, segundo Develay (1991)4, é passar de uma representação para outra. À medida que vamos aprendendo, abandonamos algumas representações da realidade ou algumas competências para aceder a outras mais complexas. Ou seja, vamos construindo e reconstruindo as nossas estruturas conceituais e de competência prévias à medida que assimilamos novos elementos. Porém não é o fato de recebermos novos inputs o que faz o aprendizado acontecer, mas sim essa reestruturação que se produz na nossa capacidade. Não é o que os professores dizem o que produz o nosso aprendizado, mas o fato de que nós, com esses novos elementos, reestruturemos as ideias que já tínhamos ou as coisas que já sabíamos fazer. Assim, cada nova fase no processo implica uma dupla habilidade. Do outro lado, essa nova aquisição nos coloca numa situação de poder aprender coisas mais complexas e ascender, assim, ao próximo patamar. O processo que seguimos para a melhoria do nosso “condicionamento físico” é similar. Com certeza, não podemos fazer uma atividade física muito rigorosa de cara. O nosso condicionamento físico inicial marca certos limites. As pessoas menos “malhadas” ficam com a língua de fora depois de correr os primeiros 50 metros. Mas, se repetirem o exercício, aos poucos verão que o seu estado físico vai melhorando. Os primeiros 50 metros serão coisa de criancinha pequena. O novo condicionamento físico atingido permite que enfrentem tarefas mais complexas: já não serão 50, mas poderão ser 80, e poderão fazê-lo em um tempo muito menor, sentindo-se menos cansados. Ou seja: atingir um alvo significa encontrar-se em melhores condições para enfrentar metas cada vez mais complexas e exigentes. Salvatis salvandis, assim produz-se também o aprendizado. Com cada nova aquisição, se a mesma for aproveitada, serve para poder reestruturar o nosso equipamento anterior. Permite, por conseguinte, melhorá-lo. E essa melhora nos coloca em situação de poder avançar nos aprendizados (sabemos mais, e quanto mais soubermos, estaremos em melhores condições para saber mais ainda). O importante no processo de aprendizado, de acordo com os construtivistas, é justamente essa atividade mental que leva o aprendiz a reestruturar constantemente os seus conhecimentos e destrezas. Por isso destacam o importante papel principal do próprio aprendiz no seu aprendizado. O papel dos docentes é apoiar o processo, dar dicas, estimular o aprendiz, oferecer situações nas quais cada nova estrutura conceitual possa ser testada e desequilibrada de forma de que o aprendiz se veja em situação de ter que introduzir novos reajustamentos em seus conhecimentos prévios. “Os erros de vocês nos interessam”, escreveu Astolfi (1997)5, ecoando o seu interesse frente à reestruturação das ideias e conhecimentos prévios. Os erros não são perdas de tempo ou fracassos no processo, mas oportunidades para restabelecer o ponto de partida. Posto que o objetivo é ir recompondo as estruturas prévias, os erros fazem parte importante da estratégica didática (De la Torre, 19936, 20007). c) A metáfora da “conversa” ou do “coral” O aprendizado aparece aqui como um jogo social no qual são fundamentais os partenaires. Mesmo que aprender seja sempre uma coisa que acontece dentro de si mesmo (é uma experiência subjetiva de aquisição e mudança), trata-se também de uma coisa que não acontece no vazio social, mas em um contexto de troca com os outros. Aprendemos em um marco cultural, dentro de instituições (no caso, a escola), num relacionamento de troca com os outros (professores e colegas). Daí a metáfora da conversa. Aprender é como conversar: a gente vai gerando o seu próprio discurso em relação ao discurso dos outros. O que os outros dizem ou fazem influencia o que eu mesmo digo ou faço. Em outro caso, seria um “diálogo de tolos” (onde cada um intervém sem levar em conta nem o que outro diz nem o que a gente disse em frases anteriores da conversa) ou de uma “conduta louca” (atuo à margem das condições que o próprio contexto determina ou das condutas das outras pessoas com as que interajo). O aprendizado, sob essa perspectiva, é um processo mediado pela nossa interação com o entorno e com as pessoas que fazem parte do mesmo, especialmente professores e colegas. Por isso as escolas e universidades constituem cenários privilegiados de aprendizado, pois elas se especializam nesses processos de mediação e criam as condições adequadas para que os diversos momentos da “conversa” resultem efetivos. Face ao sentido mais personalista e subjetivo dos processos de aprendizado defendido por Piaget, nos últimos anos destacou-se o componente social do aprendizado salientado por Vygotsky. Poderíamos dizer que, em última instância, é o sujeito individual quem aprende e assimila cada nova aquisição. Por isso não podemos esquecer que, para que essa aquisição individual seja produzida, o sujeito obtém e troca informação no marco dos seus relacionamentos com os outros. Por isso, geralmente, acontece que quanto mais rica seja tal informação, tanto mais se transforme em espaço de troca (de experiências, de ideias prévias, de hipóteses, de crenças, de dúvidas etc.), mais e melhor fica habilitado cada sujeito que elaborar seu próprio aprendizado a partir da comparação de ideias de experiências (seus conhecimentos prévios) com as dos outros. Vygotsky chamou isso de “aprendizado coral”. Situações desse tipo costumam ser muito “visíveis” entre as crianças. Quando lhes é oferecida a chance de iniciar uma conversa sobre algum tópico, imediatamente começam a produzir ideias que expressam os seus próprios conhecimentos sobre o assunto (por que sai o sol, como voam os aviões, por que o cachorro de Félix teve filhotes...). As ideias das crianças fluem com facilidade e elas não sentem constrangimento algum em retomar e repetir o que quem falou antes disse, e incorporam algum comentário próprio. No processo dessa nutritiva troca, cada uma delas vai colocando nuances às suas próprias ideias e no final é bem provável que tenha incorporado novas nuances ao que pensava sobre o assunto. Nuances derivadas do que os outros falaram (afirmando ou negando possibilidades). Assim, o conhecimento, embora se mantenha como uma aquisição pessoal, vai surgindo das contribuições dos outros e do contraste entre as próprias ideias (quando já se possuem) e as dos outros. Assim, a metáfora da “conversa” é fundida com a do “lego”. Vamos construindo as nossas próprias ideias e dando sentido às nossas experiências a partir do contraste com as dos outros. Desta maneira o que acaba se consolidando como um aprendizado individual precisa dessa fase prévia do aprendizado coral. O grupo e a interação entre os seus membros atuam como catalisador de ideias e experiências que quando se tornam públicas permitem que nós reajamos perante elas e tomar delas aquilo que estimamos conveniente. A consequência fundamental dessa condição do aprendizado é a necessidade de criar espaços e tempos onde a interação e a troca dos aprendizes possam ser possíveis. Frequentemente, os modelos de aprendizado “isolados” resultam carentes de oportunidades de interação, o que acaba empobrecendo as próprias oportunidades de aprendizado. Os sujeitos acabam dependendo da sua própria bagagem experiencial e correm o risco de ir desenvolvendo um sistema de aprendizado excessivamente endogâmico (sem a possibilidade de contrastar as próprias ideias preliminares e as próprias hipóteses com as dos outros). No final, vemos que os alunos aprendem através de um processo que vai enriquecendo progressivamente os seus recursos prévios. Não se começa do nada. Recebemos nas escolas sujeitos com uma bagagem de conhecimentos e experiências prévias tais que estaremos em condições de aproveitar. E ali começa o processo de aprendizagem, retomando aquilo que eles possuem e enfrentando aquilo que carecem. Não é aberta, nesse sentido, uma nova etapa, separada das anteriores. A cada nova etapa escolar, por muito que mudem as condições curriculares do processo, os estudantes não fazem outra coisa a não ser continuar com a sua formação em um novo contexto e com um novo marco de exigências e expectativas. Sobre esta ideia foram construídos os sistemas mais inovadores de aprendizado. Salientando o papel principal do aluno na construção do seu próprio aprendizado e redefinindo o papel do docente como um sistema básico de apoio e facilitação do processo no conjunto. Resumindo, o aprendizado é um processo complexo e mediado. E entre as diferentes estruturas de mediação, o próprio estudante é, com certeza, a mais importante, visto que ele filtra, organiza, processa os estímulos e com eles constrói os conteúdos do aprendizado e, no final, opera a partir dos conteúdos, habilidades etc., assimilados. Por outra parte, a mediação não só é cognitiva. Também se interpõe entre ensino e resultados de aprendizagem uma mediação afetiva (que depende do próprio estado de ânimo do aprendiz e de suas relações interpessoais com os outros, especialmente com o/a seu/sua próprio/a professor/a). Para a melhora do aprendizado é fundamental salientar este papel principal do aluno em seu próprio aprender. E isso não só porque ao se sentir protagonista melhora o seu rendimento (teorias do “locus of control”), mas também porque, em qualquer caso, o aluno intervém como “causa próxima” de seu próprio aprendizado, algo que resulta impossível de substituir pelas estratégias de ensino, por mais elevado que seja o seu nível de eficácia. Esta orientação se vê, aliás, especialmente reforçada, pelos levantamentos cognitivistas nos quais se baseia boa parte das atuais propostas didáticas. Como apontam Weinstein e Mayer (1986)8, o modelo cognitivo traz três mudanças importantes na concepção do processo de ensino-aprendizado. Elas são: • em vez de ver o aluno como alguém que grava passivamente os estímulos que o professor apresenta, o ato de aprender é visto como um processo ativo, que acontece dentro do aluno e que é influenciado pelo aprendiz. • em lugar de ver os resultados do aprendizado como algo que depende principalmente do que o professor apresenta ou faz, se vê tal resultado como algo que depende tanto da informação que o professor apresenta como do processo seguido pelo aprendiz para processar tal informação. • por conseguinte, são configurados dois tipos de atividade que condicionam o processo de aprender, as estratégias de ensino (como é apresentado o material em um tempo e em uma forma determinada) e as estratégias de aprendizado (como o aprendiz, através da sua própria atividade, organiza, elabora e reproduz tal material). Então, o aprendizado é, em sentido estrito, uma atividade de quem aprende e somente dele. Porém, apesar de isso ser verdade, também é verdade o fato de que, em um contexto didático, o aprendizado é efeito de um processo ligado ao ensino e, por conseguinte, ao(à) professor(a) que o desempenha. Por isso, as modernas tendências didáticas insistem na necessidade de orientar o processo de aprendizado para a “autonomia do sujeito”. No aprender a aprender enraíza-se esse equilíbrio entre ensino e aprendizagem a que venho me referindo repetidamente. Esse é também o foco que as futuras inovações no ensino deverão passar a adotar. É muito interessante para romper falsos tópicos a esse respeito o livro de Don Finkel: Dar clase con la boca cerrada. Valencia: Edições da Universidade de Valencia, 2008. 2 Aconselho aos professores (sobretudo do Ensino Médio) que olhem o interessante livro de Howard Gardner: La Educación de la mente y el conocimiento de las disciplinas. Buenos Aires: Paidós, 2000. 3 Muito interessante a esse respeito é o recente filme francês de Laurent Cantent: Entre os muros da escola (Entre les murs), cuja estreia foi em 2008. Um professor de língua num Liceu francês deverá encarar um grupo muito heterogêneo de estudantes que colocarão mais à prova sua perícia como docente do que sua competência como linguista. 4 Develay, M. De l’apprentissage à l’enseignement. Paris. ESF, 1991. 5 Astolfi, J. P. L’erreur, un outil pour enseigner. Paris: ESF, 1997. 6 De la Torre, S. Aprender de los errores. Madrid: Escola Espanhola, 1993. 7 De la Torre, S. “El error como estrategia didáctica”, em De la Torre, S. e Barrios, O. (coords.). Estrategias didácticas innovadoras. Barcelona: Octaedro, 2000, pp. 211-228. 8 Weinstein, C. E. e Mayer, R. E. “The Teaching of Learning Strategies”, em Wittrock. M.C. (dir.): Handbook of Research on Teaching. Nova York: McMillan, 1986, pp. 315-327. 1 Miguel Zabalza é doutor em Psicologia pela Universidade Complutense de Madri. Aprendizagem: uma experiência compartilhada Desde a criação e o desenvolvimento das principais pedagogias e psicologias do século XX, a educação encontra-se num dilema que a coloca numa incoerência entre as descobertas e as práticas. Refletindo sobre tal dilema, é possível considerar algumas possibilidades de superá-lo. A incoerência consiste no fato, simples e raso, de que tendo descoberto e proposto as enormes vantagens da aprendizagem como construção de conhecimento no espaço interpessoal da experiência compartilhada nós, ainda assim, mesmo perante todas as evidências, continuamos tentando propor o aprender como produto do ensinar, e não como processo de experienciar a construção pessoal do próprio saber. Por que será? Por que continuamos a tentar ensinar tomando o conhecimento como objeto, passando-o como coisa em si, ao invés de aplicar massivamente métodos que consideram a aprendizagem acima do ensino e o processo acima do produto? Diversas respostas têm surgido entre os especialistas; vejamos as três principais. A primeira, porque é realmente difícil formar professores capazes de manterem-se fiéis a métodos que demandam mais energia, mais tempo e novos paradigmas fundamentais, contrários àqueles para os quais os professores foram capacitados. A segunda, porque não só na educação e na aprendizagem os hábitos cristalizam-se, as práticas adquirem sulcos inerciais e com isso tendemos a conservar as mesmas formas ao invés de rompê-las. A terceira, mais grave já que mais estrutural, porque evoluir para uma educação fundada na aprendizagem construtiva implica valorizar, e no mínimo suportar, o aumento da criatividade e da inovação por parte dos alunos, realidade que tendemos a enaltecer apenas em teoria, incapazes que somos de sustentá-la nas práticas em virtude do nosso apreço por um dos aspectos mais controvertidos da educação: o controle. Aprofundemos essa terceira causa, a meu ver fundante das outras duas. A educação, e com ela o processo de aprendizagem, tem historicamente servido a propósitos paradoxais. De um lado, ela é essencialmente coerção. Feliz e infelizmente, a apropriação e o controle do processo de aprendizagem por parte das macroinstituições sociais – a família, o Estado, a Igreja, a empresa, a escola e, recentemente, as ONGs – têm sido historicamente a regra, ficando as exceções criativas e inovadoras fora do sistema. De fato, é fácil percebermos quantos daqueles indivíduos que celebramos como realmente inovadores e criativos precisaram afastar-se das macroinstituições, em especial das escolas, para, livres do jugo coercitivo da aprendizagem vista como ensino, criarem suas novas ciências, artes e filosofias, e mesmo suas novas religiões. É fácil perceber a falta de espaço para o novo que nossas instituições tendem a configurar. Do lado compreensivo, de fato, tendo as instituições o papel de realmente sustentar, consolidar, fazer permanecer seus conceitos e práticas, é razoável que procurem a tradição mais que a ruptura e o conservadorismo mais que a inovação. É, pois, justamente assim que se justificam, como razoáveis, os mesmos atributos condenados como coercitivos. Como resolver? Como evoluir para uma educação que realmente tome a aprendizagem como compartilhamento da construção do conhecimento? Antes de mais nada, compreendendo de forma profunda onde se instala, em nosso inconsciente, o comodismo que leva à recorrência. Ou seja, compreender que são as mesmas características, em que vemos virtudes que nos garantem, que constituem os defeitos que nos limitam. A educação serve tanto para coagir, garantindo a repetição, quanto para estimular criar, tentando a renovação. A primeira decisão, portanto, envolve o risco inescapável que assumem os líderes criativos. Mas por que tememos tanto assim? Por que tememos inovar mais que cristalizar? Porque supomos conhecer melhor o que já temos pronto, com suas desvantagens e vantagens, ainda que com mais daquelas que dessas, e porque tememos o que não temos pronto. Porque nos algemamos mutuamente a cada vez que perguntamos o que ocorreria se a inovação escapasse da mão, porque nos ameaçamos mutuamente com o medo que a responsabilidade pelo novo inevitavelmente implica; enfim, porque somos essencialmente covardes quando se trata de inovação profunda e essa covardia é perfeitamente justificada por uma falsa virtude: a pretensa responsabilidade daqueles que defendem deixar as coisas como sempre estiveram pelo simples fato de sabermos como estarão. Suponhamos, agora, o oposto. Suponhamos que seja muito mais perigoso deixar as coisas como sempre estiveram justamente pelo fato de que elas sempre estarão assim mesmo. É justamente nesse espaço, nesse vão precioso, nesse luminoso interstício, que o líder criativo é capaz de penetrar e dizer: – Eu não gosto das coisas como estão! Eu não quero que elas estejam sempre assim porque elas não estão bem da forma que estão. Elas podem ser melhores. São esses os profissionais que, inconformados mais que conformistas, a aprendizagem compartilhada é capaz de formar. Temos então o aspecto mais profundo, e mais vicioso, do paradoxo. Como não temos aprendizagem como experiência compartilhada em volume suficiente, então não temos os profissionais capazes de sustentar uma educação que a proponha e a mantenha. Não tendo quem aprendeu aprendendo, não temos quem possa estimular o aprender aprendendo. Não havendo quem sabe, não parece haver quem saberá. Educados para a repetição, e bons alunos, repetimos a mesma educação. Como quebrar? Desenvolvendo a habilidade de escolher quais as rupturas máximas para susto mínimo. Introduzindo rupturas de forma palatável. Evitando renovar de forma violenta porque, sabemos, a transgressão agressiva, a ruptura seca, acaba funcionando mais negativamente que a inovação gradual, na medida em que, assustando mais, dá mais poder aos conservadores com seus argumentos tão conservadores e responsáveis. Evitando as fantasias de renovar sobre escombros e cultivando as competências necessárias para reformar a casa morando nela. Trabalhando em grupos, escolhendo coletivamente, melhorando nossos métodos de avaliação ao introduzir avaliações que meçam competências ao invés de apenas conteúdos. Medir competências, habilidades integradas, auxilia o desenvolvimento do processo construtivista porque evidencia o enorme prejuízo para a criatividade envolvido em ensinar apenas conteúdos tomados como objeto. Repetindo, o educando dá a impressão de saber, e até mesmo sabe, repetir, com notável volume e precisão, na medida em que sua memória seja mais capaz, mas esse estudante, esse humano que detém, no presente, o futuro social, embora repita com exatidão o que lhe ensinamos, terá dificuldade em relacionar disciplinas com transdisciplinas, isolando essências fora dos parênteses disciplinares para inovar e surpreender. Terá dificuldades em visitar os fundamentos estruturais da construção do saber, apresentará inibições intelectuais severas quando exposto às incertezas e às adversidades naturais da vida, ao trabalho criativo em equipe, à consideração daquilo que ainda não se sabe como fonte de novos possíveis saberes. Enfim, justamente porque foi ensinado no entupimento e no ruído, terá enorme dificuldade com o silêncio e com o vazio, fatores essenciais de toda criação. Assim, ignorantes do possível – que nunca viram – postos como sujeitos passivos do ensino, perde-se neles o mecanismo mais primordial de toda construção de conhecimento: a curiosidade. Ao contrário, a aprendizagem como experiência compartilhada mantém-se capaz de conservar a curiosidade o tempo todo, na medida em que, até mesmo por contágio – o contágio do encantamento intelectual do professor – além do interesse direto pelo conhecimento em construção, podem ter espaço. Esse espaço não é pessoal, é interpessoal. Como espaço interpessoal em constante celebração, outra imensa vantagem da aprendizagem por compartilhamento construtivo é sua capacidade socializadora. Vejamos. O tempo todo, independente do conhecimento em si que se esteja construindo de forma consciente, o aluno está aprendendo, de forma inadvertida e inconsciente, a relacionar-se, a interagir construindo saber, a respeitar e fazer-se respeitar ao ritmo dessa construção, a ousar, a conterse, a insistir, a desistir, a transigir, a propor e a ouvir. É justamente essa capacidade – inconscientemente adquirida na distração da relação construtiva – disfarçada pelo véu do conhecimento, ali tomado como pretexto mais que apenas como texto, essa capacidade interativa, confiante, intelectualmente gentil, curiosa, positivamente surpreendente, que irá transmitir, sem jamais falar dela, a autoconfiança intelectual capaz de auxiliar a autoestima com a qual esse pequeno humano enfrentará sua vida. Ele, ou ela, será capaz de pensar em redes de possibilidades, será capaz de transversalizar saberes, será capaz de saltar de estante em estante nos escaninhos apertados das bibliotecas disciplinares para as não bibliotecas transdisciplinares, considerando possibilidades que os disciplinados disciplinares, os conformados conformistas, não conseguirão considerar. Com o tempo, com a vida, com a chegada dos desafios profissionais, eles, ou elas, lá na frente, estarão bem equipados, terão tido sua curiosidade conservada, sua autoconfiança intelectual consolidada cedo, sua autoestima social excitada por sua maior capacidade interativa, sua própria capacidade de, por sua vez, também compartilhar o aprender, plenamente disponível para sua utilização. No entanto, não param aí as vantagens da aprendizagem como experiência compartilhada na solução interativa de problemas livremente formulados a partir da curiosidade espontânea. Há uma vantagem ainda maior. A construção do conhecimento tomado como aprendizagem pela experiência compartilhada, além de facilitar a percepção e a formulação essencialmente transdisciplinar de todo conhecimento, facilita a expressão multimidiática desse conhecimento. Dois conceitos essenciais apresentam-se aqui: transdisciplina e multimídia. Tornar-se progressivamente capaz de perceber e formular problemas e soluções, de maneira a superar os cárceres disciplinares acaba estimulando outra capacidade, a de expressar-se, comunicando-se em diversas mídias. Esse pequeno humano, ou essa pequena humana, de hoje será grande em um futuro próximo, grande em diversos sentidos, além de físico e profissional, também intelectual e sociocultural. Isso porque essas duas características, pensar de forma transdisciplinar e expressar-se em diversas mídias além da simples prova de avaliação, já são, e serão cada vez mais, atributos mais que apreciados pela cultura profissional e social das próximas décadas. É compreensível. A tendência disciplinar, especialista, tendo atingido seus limites, reclama agora sua reversão. Transdisciplina e multimídia são atributos tão apreciados porque ainda raros. Já não é mais possível uma descoberta, uma criação relevante, sem o concurso de diversas formas de conhecimento integradas. Já não será possível comunicar apenas com palavras, ou apenas com imagens, ou apenas com esboços e desenhos, nada que venha a ser amplamente relevante como compartilhamento, como contrato coletivo relativo ao saber. Como primeira evidência, basta acompanhar o fenômeno de construção de novas linguagens na internet. Vejamos. A uma velocidade que surpreende até mesmo as vanguardas mais ousadas, os internautas navegam, construindo e desconstruindo, por palavras, imagens, vídeos, recortando, interferindo, editando, interditando, por milhões de vias que se cruzam em redes, num processo no qual meio e mensagem, conteúdo e forma, figura e fundo, já não se dissociam. Não há disciplina, não há mídia. O que há é transdisciplina em multimídia, desafiando a educação a correr em socorro das essências. Como ficarão, nesse universo complexo, aqueles que não conseguem prospectar, recrutar, selecionar e sintetizar conhecimento? Como ficarão, iniciados e treinados na ilusão arrumadinha da disciplina monomídia, perante a transdisciplina multimídia? Como ficarão sem as bases estruturais da construção só possível na interação hipertextual, treinados somente nas limitações da transmissão textual? Como ficarão os conteudistas superficialistas, sem as competências construtivistas? Como ficarão os edifícios visíveis, mesmo que aparentemente enormes, sem as estruturas invisíveis que lhes dão suporte, mesmo que invisivelmente condensadas? Como ficará o volume, sem a densidade? E a densidade, sem a intensidade? Para superar todas essas questões, a aprendizagem como compartilhamento ainda é a melhor resposta. Mas é preciso implantá-la e aplicá-la. Na média, os humanos mais hesitam que ousam. Enquanto muitos hesitam, poucos ousam. Embora frequentemente confundam rapidez com precipitação, velocidade com ansiedade, a história mostra que os humanos são lentos. Um século realiza o anterior. Isso porque, para que se monte um novo mundo, o maior problema não é o que já se sabe, que possa construí-lo de melhor forma. O problema é a dificuldade de destruir o que aí está já em sua pior forma. É frequen- te, em alguns aspectos, que o presente seja decadente. Tal problema acentua-se em épocas de maior velocidade. Criamos logo soluções melhores, mas não é logo que as implantamos. Quanto mais coletivo, mais conservador, quanto mais universal, mais lento. Por isso são necessários líderes inovadores. Professores que ousem sair da caixa, rever a sala de aula, aplicar o que já sabemos mas ainda não aplicamos. Para isso é preciso valorizar, a ponto de utilizar, as vantagens da aprendizagem como experiência compartilhada. Para isso é preciso uma virtude: coragem! *José Ernesto Bologna é graduado e pós-graduado em Psicologia e Administração de Empresas, com extensões pela Bowling Green State University, Ohio, Estados Unidos, e pela University of Kalamazoo, Michigan, Estados Unidos. Consultor e conferencista nacional e internacional em Psicologia do Desenvolvimento aplicada à Gestão e à Educação. Autor de diversos artigos, livros e vídeos. É titular da empresa Ethos Desenvolvimento Humano e Organizacional. Convivência, diálogo, participação: condição de aprendizagem Nas últimas décadas, todos os países industrializados, incluindo o Brasil, atravessaram reformas educacionais. Através de novas políticas educacionais e transformações no currículo, tais nações estabeleceram um processo longo e profundo de transição nas escolas, que está produzindo alguns avanços singulares no processo de ensino-aprendizagem. Mas qual o sentido dessa mudança? A iniciativa de reforma reflete tanto uma visão de futuro quanto um horizonte presente de crise. Assim, novas abordagens no processo de ensino-aprendizagem teriam a função de melhorar a relação dos alunos com o conhecimento, mas também deveriam proporcionar novos desenhos para a convivência em sala de aula, por exemplo. É nesse sentido que podemos afirmar que, no centro da transição pela qual passam as escolas, estaria um desafio relacionado às questões de convivência no ambiente escolar. Mas o que está ocorrendo com a convivência em sala de aula? Um conjunto de estudos realizados na primeira década deste século sugere transformações nas relações e no ambiente de sala de aula. Isso, entretanto, parece refletir causas complexas, algumas das quais ainda precisam ser investigadas. Mas é interessante observar que nas escolas parece estar ocorrendo uma confluência de forças de transformação. Ali é perceptível uma turbulenta transição em direção a relações mais democráticas, mais criativas, mas também a uma configuração multicultural de escola. Mas é sob o signo da inquietude que essa transição vem ocorrendo nas escolas. Outro aspecto a destacar refere-se à percepção dos professores quanto a supostas transformações em curso no perfil dos estudantes. Isso é algo que deveríamos considerar com atenção. Há alguns meses, no final de 2009, o presidente Barak Obama anunciou uma nova campanha, intitulada “Educar para inovar”, destinada a estimular o interesse dos estudantes pelo estudo das matérias de Ciências na Educação Básica. Um dos aspectos interessantes dessa campanha reside em modificar a imagem que crianças e jovens têm sobre Ciências. Um argumento central sugere que, embora as disciplinas de Ciências sejam reconhecidas como importantes pelos estudantes, os professores precisam falar sobre elas de um modo diferente em sala de aula se desejam que aqueles efetivamente aprendam e estabeleçam relações de interesse que persistam ao longo dos seus trajetos educacionais e de formação profissional. Então, na escola, é preciso ensinar e inspirar os alunos. Mas a campanha apresenta uma estratégia de apoio ao trabalho das escolas, envolvendo parceiros e personagens importantes da mídia, incluindo empresas que produzem games, com a finalidade de enviar uma mensagem que efetivamente alcance os estudantes e comunique o fascínio da invenção e da descoberta envolvido no estudo de Ciências. Essa é uma iniciativa histórica, que revela um claro reconhecimento de que estariam em curso mudanças importantes tanto no perfil dos alunos quanto no universo da escola. É precioso um diálogo diferente para ensinar alunos diferentes. Assim, se os professores desejam inspirar interesse nesses alunos, será necessário utilizar outras formas e canais para comunicar a importância do que está no currículo. Isso significa que as escolas precisam não somente de um currículo novo, mas de novas formas de conquistar a atenção dos alunos para aquilo que está no currículo. Mas também há mudanças importantes em curso em algo bastante fundamental e antigo nas escolas: as relações entre professores e alunos. Há séculos os professores enfrentam diariamente o desafio de conseguir o engajamento dos alunos no processo de ensino-aprendizagem. E como obter esse engajamento? Talvez por ser antiga, essa pergunta tem recebido diferentes respostas ao longo dos últimos séculos, e certamente tem sido muito revisitada nas últimas décadas. Há várias respostas interessantes produzidas por educadores e estudiosos na atualidade. Entre elas gostaríamos de mencionar a noção de que o engajamento dos estudantes solicita novas formas de estimulação e desenvolvimento cognitivo que sejam capazes de articular a elaboração conceitual, por exemplo, através de processos de aprendizagem colaborativa envolvendo processos de simulação e representação que destacam o papel do imaginário dos estudantes. Recorrer ao imaginário seria uma via mais promissora para obter a própria atenção dos alunos em sala de aula, em relação às usuais estratégias de estimulação que superestimam o papel da linguagem visual, por exemplo. Outras respostas sugerem uma direção que conecta novas tecnologias de informação e comunicação aos processos de ensino-aprendizagem, aliadas a transformações no currículo, como estratégia para promover uma transição cultural nas escolas em direção a novas formas de diálogo e participação em processos de “aprendizagem com mobilidade”, dentro e fora da sala de aula. No centro dessa tendência estaria um processo de reinvenção do diálogo com o conhecimento. Em sala de aula, isso implicaria transitar de relações de diálogo linear, baseadas em perguntas retóricas e situações de perplexidade simples, para formas de diálogo complexo, baseadas em experiência de investigação e simulação participativa, que solicitam atitudes e perguntas efetivamente reflexivas. Há muitas outras respostas a explorar e outras a construir. Estas serão importantes na medida em que nos estimulem a pensar e transformar a escola e os sujeitos que ali estão. Os professores, figuras centrais dessa transição na educação, precisam ensinar pressupondo um aluno diferente, capaz de criação intelectual, que necessita de uma escola capaz de alimentar sua imaginação, desafiar sua inteligência e que proporcione um encontro com um horizonte cultural que o ultrapasse. Joe Garcia é mestre em Educação pela Universidade do Paraná e doutor em Educação pela PUC-SP. Atualmente é professor adjunto da Universidade Tuiuti do Paraná e realiza pesquisas sobre práticas pedagógicas com foco em indisciplina escolar e interdisciplinaridade, teorias de currículo, práticas pedagógicas inovadoras e formação de professores.