O FATO ORGANIZACIONAL COMO FATO SOCIAL TOTAL Autoria: Maurício Serva RESUMO Atualmente parece ser consenso que nunca vivemos numa sociedade em que o indivíduo depende tanto da ação de organizações formais para a satisfação de suas necessidades. Assim, analisar as organizações passa a ser uma tarefa desafiadora, necessitando a teoria das organizações do apoio das demais ciências humanas, tal como a antropologia e a sociologia. Baseado nos estudos de Marcel Mauss, Émile Durkheim e Guerreiro Ramos, proponho o tratamento dos fatos organizacionais como "fatos sociais totais", visando aperfeiçoar os estudos e ampliar os horizontes da teoria das organizações. INTRODUÇÃO Desde os anos 50, o estudo das organizações, dos seus fenômenos intrínsecos e das suas interfaces com a sociedade vêm sendo objeto de estudo da sociologia. Baseados na obra de Max Weber, autores como Talcott Parsons, Amitai Etzioni, Philip Selznick, Peter Blau, Robert Merton, dentre outros, desenvolveram vários estudos que vieram a constituir o campo da sociologia da burocracia, mais tarde ampliado e rebatizado como sociologia das organizações. A partir de então, fica implícito que todos os autores filiados a tais campos de estudos consideravam o fato organizacional como um fato social, pois digno de ser objeto da sociologia. Todavia, a necessária explicitação do fato organizacional como fato social, apontando devidamente as consequências epistemológicas desse ponto de vista analítico não foi fornecida por nenhum dos autores acima mencionados, e sim pelo sociólogo brasileiro Alberto Guerreiro Ramos. Em sua abordagem do "fato administrativo" — como ele mesmo o denominava — Guerreiro Ramos retorna à tradição durkheimiana, sintetiza os elementos que compõem o referido fato e apenas sinaliza rapidamente que o considera também como um "fenômeno social total" na acepção de Marcel Mauss. Ao fazê-lo, Guerreiro Ramos elege a categoria da totalidade como fundamental para a análise científica de qualquer fenômeno; em seguida, o autor envereda pelo tratamento da totalidade inerente ao fato administrativo pautando-se na teoria de sistemas. Neste estudo, pretendo demonstrar que o fato organizacional — como prefiro denominar o que Guerreiro Ramos chamava de fato administrativo — pode ser tratado como um fato social total. Primeiramente, me reporto a Durkheim e sua definição clássica de fato social para situar o fato organizacional no âmbito dos fatos sociais, como o fez Guerreiro Ramos. Em seguida, visito o trabalho de Mauss, sintetizando a gênese do seu conceito de fato social total para acoplá-lo aos conceitos de sociedade de organizações e de sociedade salarial, ambos difundidos pela sociologia. Assim procedendo, afasto-me relativamente da abordagem de Guerreiro Ramos, pois embora trate o fato organizacional como fato social total, não o faço a partir da teoria de sistemas, e sim da antropologia de Mauss. Ao final, aponto algumas implicações que uma abordagem dessa natureza pode ter para a atual teoria das organizações. FATO SOCIAL EM DURKHEIM Na introdução do seu famoso estudo As Regras do Método Sociológico publicado em 1895, Durkheim lamenta que grandes teóricos que o antecederam, tais como Spencer e Mill, elaboraram estudos genéricos sobre a natureza das sociedades sem demonstrar nenhuma preocupação com o método que aplicavam à análise dos fatos sociais. Fazia então apenas dois 1 anos da divulgação de Da Divisão do Trabalho Social, trabalho que notabilizou Durkheim nos meios científicos, o qual já manifestava implicitamente o cuidado do autor com as questões metodológicas. Não satisfeito, Durkheim julga por bem demonstrar os princípios metodológicos da observação e análise sociológicas numa obra à parte, destinada a submetêlos à discussão. Imbuído dessa intenção, o autor escreve As Regras…, uma demonstração detalhada e rigorosa de como deveria o sociólogo proceder na construção definitiva da sociologia como ciência. A forte preocupação de Durkheim é perfeitamente compreensível: àquela época, a sociologia ainda não ocupava um espaço plenamente reconhecido no conjunto das ciências. Com a publicação de As Regras…, Durkheim fornece a primeira grande sistematização da sociologia, estabelece os contornos dessa disciplina científica e faz escola, dando prosseguimento a aplicação rigorosa dessa metodologia em vários estudos posteriores, como é o caso de O Suicídio publicado em 1897. Logo no título do primeiro capítulo de As Regras… Durkheim lança a seguinte questão: o que é um fato social ? Argumenta o autor que antes de discutir qual é o método que se adequa ao estudo dos fatos sociais, deve-se conhecer os fatos assim designados. Daí, elabora a seguinte definição: "é um fato social toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coação exterior; ou ainda, que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais" (Durkheim, 1978, p. 92-93). Para Durkheim, as características distintivas do fato social são a sua exterioridade em relação às consciências individuais e a ação coerciva que ele exerce sobre o indivíduo. Assim, exterioridade e coerção compõem a essência do fato social. A primeira característica indica que os fatos sociais são fenômenos coletivos e como tais brotam da vida em comum; levando essa característica às últimas consequências, Durkheim isola totalmente a emergência do fato social do nível do indivíduo e chega a afirmar que a primeira e a mais fundamental regra para observação desses fatos é considerá-los como coisas. Uma tal reificação do fenômeno social sofreu críticas severas ao longo do desenvolvimento das ciências sociais, enquanto que a indicação da segunda característica — a coerção — tem sido aceita sem maiores restrições até então. De todo o modo, a contribuição de Durkheim representou o marco definitivo do estabelecimento da sociologia como uma ciência autônoma. Após esta sumária apresentação da definição elaborada por Durkheim, tomo por base o estudo de Guerreiro Ramos para caracterizar o fato organizacional como fato social. FATO ORGANIZACIONAL COMO FATO SOCIAL Apesar do notável desenvolvimento da sociologia das organizações observado nos Estados Unidos em meados deste século, deve-se ao sociólogo brasileiro Guerreiro Ramos o detalhamento do fato organizacional enquanto fato social. Partindo do pressuposto de que uma disciplina científica existe desde que se evidencie que lhe corresponde um objeto próprio, um fato específico, Guerreiro Ramos brinda a tradição durkheimiana ao defender como primeiro passo para a construção de uma sociologia especial da administração a definição do fato administrativo. Mesmo advertindo que não pretendia chegar a uma definição final do objeto, o autor apresenta o seu conceito: "é um complexo de elementos e de suas relações entre si, resultante e condicionante da ação de diferentes pessoas, escalonadas em diferentes níveis de decisão, no desempenho de funções que limitam e orientam atividades humanas associadas, tendo em vista objetivos sistematicamente estabelecidos" (Guerreiro Ramos, 1983, p. 7). Guerreiro Ramos afasta-se declaradamente de Durkheim no que tange à consideração da primeira característica proposta para o fato social: a exterioridade absoluta face às consciências individuais. Afirma o sociólogo baiano que a concepção do fato social como 2 tendo uma existência própria, independente de suas manifestações individuais é insustentável, sob pena de se incorrer num positivismo fisicalista, o qual inclusive levou Durkheim a considerar os fatos sociais como coisas. Argumenta Guerreiro Ramos que a Durkheim teria escapado "a visão dialética das relações entre o indivíduo e a sociedade, dois aspectos inseparáveis de uma mesma totalidade, ou de um mesmo processo de totalização" (idem, p. 24). Ainda assim, Guerreiro Ramos destaca que dessa concepção resta um resíduo válido: a explicação do fato social não pode ser obtida mediante simples introspecção ou por redução à psicologia dos indivíduos, ela só pode ser elaborada à luz de critérios imanentes ao próprio fato social, o que equivale dizer que tais fatos necessitam de uma ciência específica para a sua análise. Afirma o autor que "do ponto de vista teórico e metodológico, são distintos os fenômenos sociais dos fenômenos psíquicos, aos quais correspondem distintas disciplinas, com regras, critérios e conceitos próprios" (idem, p. 25). Quanto à segunda característica, a coerção, o autor aceita-a, ressaltando que ela é sobretudo uma nota da especificidade desse fato e que a sua aceitação não implica reificá-lo. Guerreiro Ramos é taxativo ao declarar que "os fatos sociais são coercitivos. Embora nele estejam imanentes as consciências individuais, impõem-se a estas, como sociais que são. Se não admitirmos essa imposição, desaparece a socialidade desses fatos. […] Ora, os fatos administrativos satisfazem o requisito que Durkheim sintetiza com o termo coerção. Eles se incluem entre os mais impositivos dos fatos sociais. Ninguém logra furtar-se ao alcance de sua força coercitiva" (idem, p. 25). Face às concepções de Guerreiro Ramos, gostaria de tecer algumas considerações. Em primeiro lugar, focalizo a definição do fato administrativo visando transmutá-la em definição do fato organizacional. Decorridos trinta e quatro anos da publicação da primeira edição do texto elaborado por Guerreiro Ramos, creio estarmos num ponto em que a evolução da teoria das organizações e também do cenário organizacional autorizam algumas reparações e/ou atualizações da definição proposta por aquele autor. Percebo na sua definição uma preocupação exagerada com o aspecto operacional da administração, posição que talvez explique a inserção de traços nítidos do paradigma funcionalista no seu conceito de fato administrativo. Estudos mais recentes no âmbito da teoria das organizações permitem a identificação desses traços 1, dentre os quais dois estão presentes na referida definição: a concepção sistêmica e sincrônica e a concepção teleológica. Ao apontar o escalonamento das pessoas "em diferentes níveis de decisão", o autor replica a concepção funcionalista da organização como um conjunto cujas partes são interrelacionadas através da coordenação obtida por uma estrutura de autoridade hierárquica. Isto conduz à legitimação da hierarquia na ação administrativa no interior das organizações, aceitando-a a priori como um dado. Essa é, resumidamente, a essência do conteúdo da concepção sistêmica e sincrônica. A concepção teleológica é decorrente da anterior: a coordenação de atividades realizada por meio da estrutura hierárquica é orientada para o alcance de certos objetivos. As organizações são então coletividades estabelecidas para perseguir objetivos específicos, sobre uma base mais ou menos contínua. Aí se insere parte da definição de Guerreiro Ramos ao indicar que o desempenho de funções tem em vista "objetivos sistematicamente estabelecidos". Não estou querendo dizer com isso que Guerreiro Ramos foi um autor que pautou sua obra nos estreitos ditames do paradigma funcionalista, do qual, inclusive, ele foi um dos maiores críticos 2. O que quero é chamar a atenção para esses traços funcionalistas na sua definição do fato administrativo, visando erradicá-los de uma provável definição do fato organizacional. Mais de três décadas se passaram desde a publicação da definição proposta pelo célebre autor; durante tal período, a evolução da teoria das organizações, com a contribuição do próprio Guerreiro Ramos, ampliou seus horizontes e seus limites para muito 3 além das fronteiras impostas pelo paradigma funcionalista. Hoje, a organização pode ser concebida de forma muito mais complexa e variada do que aquela que contém as visões sistêmico-sincrônica e a visão teleológica. O que equivale a dizer que também foi ampliada a diversidade do que chamamos ação administrativa, pois organizações diferenciadas (substantivas, alternativas, não-governamentais, fenonomias, etc.) ganharam um espaço significativo no cenário social contemporâneo, face às organizações burocráticas tradicionais. Assim, a partir da definição do fato administrativo elaborada por Guerreiro Ramos, proponho a seguinte definição para o fato organizacional: um complexo de elementos e de suas relações entre si, resultante e condicionante da ação de diferentes pessoas no desempenho de funções que limitam e orientam atividades ligadas à vida humana associada. A intencionalidade em considerar o fato em questão como organizacional reside na imagem mais fluida e, portanto menos mecânica e operacional que aquela porventura sugerida pelo termo administrativo. Partindo do pressuposto de que um conceito sociológico de organização já contém implícita e dinamicamente em si as variáveis inerentes a ação administrativa (tomada de decisões, comunicação, negociação, etc.), tento ampliar o imaginário que se pode utilizar como substrato para a análise do fato organizacional contemporâneo. A definição aqui proposta é tributária daquela elaborada por Guerreiro Ramos para o fato administrativo. Ela mantém a discordância do autor brasileiro face à primeira característica do fato social (exterioridade) na acepção de Durkheim. Enquanto complexo de elementos e de suas relações entre si, resultante e condicionante das ações de pessoas, o fato organizacional assim definido revela uma concepção dialética da realidade humana, expressa como o queria Guerreiro Ramos: "uma totalidade aberta, ou totalização, isto é, como conjunto de elementos e interações, conjunto no qual um aspecto interno e outro externo são teoricamente distintos mas, de fato, se influenciam reciprocamente" (idem, p. 25). Além de concordar com Guerreiro Ramos no que tange à validade de um "resíduo" da primeira característica — a explicação do fato organizacional através dos critérios científicos específicos para os fatos sociais —, chamo a atenção para um outro "resíduo": o fato organizacional é, por natureza, um produto coletivo, tanto quanto o fato social brota da vida em comum, como bem sinalizou Durkheim. Para este, o substrato do fato social é "a sociedade política na sua íntegra ou um dos grupos parciais que engloba: ordens religiosas, escolas políticas, literárias, corporações profissionais, etc." (Durkheim, 1978, p. 88). Ora, as organizações contemporâneas se encaixam perfeitamente na condição de grupos parciais englobados pela sociedade política geral. Quanto à segunda característica, não posso deixar de admitir o caráter coercitivo do fato organizacional. Todos os indivíduos que já vivenciaram situações prolongadas em organizações produtivas, principalmente naquelas mais burocratizadas, sabem que a coerção — mesmo que indireta — é uma dos atributos essenciais do cotidiano desses ambientes sociais. Portanto, ratifico a posição de Guerreiro Ramos quando afirma que os fatos ligados a ação administrativa estão entre os mais impositivos dos fatos sociais. A imposição, a coerção é a condição sine qua non da socialidade do fato. Gostaria de ressaltar que a coerção exercida pelo fato organizacional varia muito em intensidade face à racionalidade predominante na organização: numa organização substantiva a intensidade da coerção tende a ser inegavelmente menor que numa organização onde predomina a razão instrumental, pois naquela a maior parte das interações são marcadas pelas ações comunicativas, o que implica a negociação permanente através do debate racional, sem a imposição inquestionada de autoridade 3. Durkheim já chamava a atenção sobre a singularidade da coerção nas organizações econômicas: "com efeito, a coação é fácil de constatar quando se traduz exteriormente por uma reação direta da sociedade, como é o caso do direito, da moral, das crenças, usos e até das modas. Mas, quando é apenas indireta, como a que exerce uma 4 organização econômica, a coação nem sempre é evidente" (idem, p. 91). É por esta razão que a definição aqui proposta para o fato organizacional mantém a elaboração inicial de Guerreiro Ramos no tocante à coerção exercida por esse fato, pois apresenta-o também como condicionante da ação de diferentes pessoas no desempenho de funções que limitam e orientam atividades humanas. Embora referendando-me no pensamento de Guerreiro Ramos, dele me afasto em certos aspectos. Como demonstrei acima, a discordância em embutir elementos típicos do paradigma funcionalista na definição do fato administrativo me conduziu a refazê-la, rebatizando-o como fato organizacional e modificando o seu conteúdo. Um outro aspecto importante que me leva a afastar-me da formulação de Guerreiro Ramos é a forma pela qual o autor decide abordar a categoria da totalidade inerente ao objeto em questão. Após demonstrar que o fato administrativo atende aos requisitos que permitem considerá-lo como um fato social, o autor opta pelo arcabouço da teoria de sistemas para analisar a totalidade subjacente a esse fato. Aqui reside, então, um outro fator que nos separa: não opto pela teoria dos sistemas, dou preferência ao que emerge do estudo de Marcel Mauss sobre a dádiva e a troca nas sociedades arcaicas, em particular ao seu notável conceito de fato social total. Em seguida, apresentarei brevemente o estudo de Marcel Mauss que deu origem ao citado conceito, o qual se revela muito útil à discussão que empreendo neste trabalho. FATO SOCIAL TOTAL EM MAUSS Dentre os estudos mais significativos elaborados por Marcel Mauss, destaca-se o Ensaio sobre a Dádiva - forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. Publicado pela primeira vez em 1923 no renomado periódico Année Sociologique, esse trabalho de Mauss é considerado ainda hoje como um dos mais importantes textos da ciência da antropologia. Ele é fruto de vários anos de pesquisa empreendida por Mauss na tentativa de explicar o regime de direito contratual e o sistema de prestações econômicas entre diversas seções ou subgrupos de que se compõem as sociedades ditas primitivas e/ou arcaicas. Ao notar que no seio de povos tão diferentes e distantes entre si, tais como escandinavos, melanésios, polinésios, tribos indígenas do Oeste do Canadá, tribos do Noroeste americano, do Alaska, da América do Sul e povos africanos a prática de dar e receber presentes entre clãs, tribos e demais grupos sociais era sistematicamente observada, Mauss dedicou-se a estudá-la com duplo objetivo. O primeiro diz respeito à compreensão da natureza dessas transações humanas nas sociedades que nos precederam imediatamente, chegando a conclusões morais e econômicas. O segundo objetivo é voltar-se para nossa própria sociedade, constatando que essa moral e essa economia ainda funcionam nas sociedades modernas de maneira constante, ensejando a inferência de conclusões morais sobre alguns problemas colocados pela crise do nosso direito e de nossa economia. Um estudo, portanto, de natureza reflexiva, uma vez que a análise do outro pode nos ajudar a pensar sobre nós mesmos. Empregando o método comparativo e elegendo como problema básico de pesquisa a tentativa de responder o que leva o recebedor a retribuir a dádiva, Mauss percebe que muito mais que a simples operação econômica de troca de bens materiais, aquelas práticas envolviam dimensões fundamentais da vida social dos partícipes, como o estabelecimento de alianças políticas, a demarcação de espaços de poder, a comunicação de interesses, a sucessão de bens, os vínculos de direito, dentre outros. Assim, o autor afirma que "nesses fenômenos 'totais', como nos propomos chamá-los, exprimem-se, ao mesmo tempo e de uma só vez, toda a espécie de instituições: religiosas, jurídicas, morais (estas políticas e familiais ao mesmo tempo), econômicas (supondo formas particulares de produção e de consumo, ou antes, de 5 prestação e de distribuição), sem contar os fenômenos estéticos nos quais desembocam tais fatos e os fenômenos morfológicos que manifestam essas instituições" (Mauss, 1974, p. 41). Resumindo arbitrariamente algumas das conclusões do estudo de Mauss, sigo a classificação proposta pelo próprio autor: a) Conclusões de moral: — "O sistema de prestações totais constitui o mais antigo sistema de direito e de economia. Ele forma o fundo do qual destacou-se a moral da dádiva-troca"; — "Uma parte considerável de nossa moral e de nossa vida continua estacionada na atmosfera da dádiva, da obrigação e da liberdade misturadas. A dádiva não retribuída inferioriza aquele quem a aceitou"; b) Conclusões de sociologia econômica e de economia política: — "A economia da dádiva-troca não pertencia ao quadro do utilitarismo"; — "Interesse e desinteresse, numa relação complexa, explicam a forma de circulação de riquezas e da circulação arcaica dos signos de riqueza que as seguem. As pessoas eram interessadas, mas de uma forma muito diferente das de nossa época"; — "Foram nossas sociedades ocidentais que, muito recentemente, fizeram do homem um 'animal econômico' ". c) Conclusões de sociologia geral e de moral: — "As sociedades progrediram na medida em que elas mesmas, seus subgrupos e, enfim, seus indivíduos aprenderam a estabilizar suas relações, a dar, receber e, enfim, retribuir"; — "Foi assim que o clã, a tribo, os povos, aprenderam — e é assim que, amanhã, em nosso mundo dito civilizado, as classes e as nações, bem como os indivíduos, devem aprender a opor-se sem massacrar-se e a dar-se sem sacrificarem-se uns aos outros. Este é um dos segredos de sua sabedoria e solidariedade". Com relação ao princípio da coerção exercida pelo fato social sobre o indivíduo, Mauss demonstrou que aparentemente os atos de dar, receber e retribuir eram voluntários; em profundidade, eles eram obrigatórios e sanções sociais afetavam aqueles que não observavam tal obrigatoriedade. Analisando, por exemplo, as práticas de troca de várias tribos norteamericanas — o potlatch — o autor demonstra que: "a obrigação de dar é a essência do potlatch. Um chefe deve dar potlatch, por si mesmo, por seu filho, seu genro ou sua filha, por seus mortos" (Mauss, 1974, p. 104-105). A doação era, inclusive, um meio imprescindível de conservação da sua autoridade de chefe. Quanto ao ato de receber, destaco uma passagem bastante elucidativa: "A obrigação de receber não é menos coercitiva. Não se tem o direito de recusar o potlatch. Agir assim á manifestar que se teme ter de retribuir, é temer ser 'achatado' na medida em que não se retribui. Na verdade, é já ser 'achatado'. É 'perder o peso' do próprio nome…" (idem, p. 110). O mesmo com relação à retribuição: "A obrigação de retribuir dignamente é imperativa. Perde-se a 'face' para sempre se não se retribui…" (idem, p. 112). Após ter analisado a dádiva como um fato social no sentido durkheimiano, Mauss fornece uma das maiores contribuições à ciência social ao nos legar o conceito de fato social total: "Os fatos que estudamos são todos, permita-se-nos a expressão, fatos sociais totais […] todos esses fenômenos são ao mesmo tempo jurídicos, econômicos, religiosos e mesmo estéticos, morfológicos, etc. […] são, portanto, mais do que temas, mais do que elementos de instituições, mais do que instituições complexas, mais até do que sistemas de instituições divididas por exemplo em religião, direito, economia, etc. São 'todos', sistemas sociais inteiros cujo funcionamento tentamos descrever" (idem, p. 179-180, grifo do autor). 6 Assim como Mauss estudou fatos que exprimiam um amplo conjunto de instituições de determinadas sociedades, classificando-os como totais, penso que pode-se proceder igualmente para com as sociedades ocidentais atuais. Existiriam fatos sociais que exprimiriam uma variada e complexa gama de instituições, a ponto de espelhar uma configuração institucional tal que nos permita uma melhor compreensão da dinâmica de nossas sociedades ? Acredito que sim. Além disso, penso que os fatos organizacionais pertencem a esse gênero de fatos. Na próxima seção, tentarei indicar, com a ajuda da sociologia, que a organização constitui uma das instâncias que mais exprimem uma grande diversidade de instituições sociais na atualidade. SOCIEDADE DE ORGANIZAÇÕES E SOCIEDADE SALARIAL Pode-se apontar como algumas das características essenciais das sociedades ocidentais contemporâneas a quantidade, a diversidade e a importância das organizações formais que as compõem. O fenômeno organizacional expandiu-se extraordinariamente nestas sociedades, principalmente ao longo do século XX, ocupando espaços do cotidiano dos indivíduos nunca antes preenchidos por organizações formais. A densidade desse fenômeno constitui uma das marcas distintivas de nossas sociedades. Não é por outra razão que no interior da sociologia, já na metade desse século, foi criado um campo específico: a sociologia das organizações. O fenômeno organizacional interroga, questiona por si mesmo a ciência que se incumbe de explicar a sociedade. Amitai Etzioni, um dos fundadores da sociologia das organizações, abre o seu livro Organizações Modernas lançado em 1964 e considerado como um dos textos "clássicos" desse campo, com a seguinte constatação: "A nossa sociedade é uma sociedade de organizações". A expressão ganhou notoriedade tornando-se uma espécie de máxima nos estudos posteriores que consubstanciaram esse campo. Argumenta o autor que em geral nós nascemos em organizações, passamos a vida trabalhando, nos divertindo, enfim frequentado organizações diversas. Assim, Etzioni afirma que a civilização moderna depende em grande parte das organizações, o que as leva a criar, em seu conjunto, um poderoso instrumento de controle social através da coordenação de um grande número de ações humanas. Encontramo-nos no final do século e neste ponto é totalmente seguro afirmar que o fenômeno organizacional cresceu assustadoramente desde o estabelecimento da sociologia das organizações e o consequente estudo de Etzioni. Atualmente parece ser consenso que nunca vivemos numa sociedade em que o indivíduo depende tanto da ação de organizações formais para a satisfação de suas necessidades. Nesse contexto, a expressão "sociedade de organizações" é ainda mais adequada que nos anos 60, período em que Etzioni a divulgou. Na últimas quatro décadas, o processo de expansão da urbanização em todo o mundo concorreu decisivamente para a configuração da sociedade de massa que hoje conhecemos. Por sua vez, expandiu-se também a chamada comunicação de massa, atingindo um grau de sofisticação nunca antes sequer pensado, além da ampliação do seu alcance afetando um número cada vez maior de indivíduos em toda a parte. Mas, inegavelmente, os indivíduos que habitam nas aglomerações urbanas das sociedades ocidentais são os membros por excelência da chamada sociedade de organizações, o tipo ideal que está na sua base e sendo por ela o mais afetado, por que não dizer, dela sendo o mais dependente. Esse indivíduo sofre todas as pressões geradas pela densidade organizacional que o cerca. Etzioni reconhece que as organizações em si não constituem um fenômeno recente, uma invenção moderna, pois elas existem há milhares de anos. Todavia, o que há de novo na sociedade moderna é que ela contém proporcionalmente uma quantidade maior de organizações a fim de satisfazer uma diversidade mais significativa de necessidades sociais e pessoais, incluindo um número maior de cidadãos e assim influindo mais amplamente em 7 suas vidas. O autor constata que a sociedade moderna exige um tipo específico de personalidade — o "homem organizacional" — cujos principais traços são os seguintes: a) Adaptabilidade a mudanças constantes de papéis, devido ao permanente ir e vir cotidiano entre diferentes unidades organizacionais; b) Grande tolerância à frustração; c) Significativa capacidade de adiar recompensas; d) Orientação permanente pela realização, aqui entendida como necessidade psíquica de obtenção de maiores recompensas materiais e simbólicas. O próprio autor admite que os três últimos traços, combinados, configuram uma personalidade conformista. Assim, o conformismo seria uma das consequências das pressões da sociedade de organizações sobre o indivíduo. Não vou me alongar aqui na abordagem das consequências individuais observadas a partir da ação das organizações formais, pois este não é o objetivo deste estudo. Gostaria, agora, de fazer menção ao conceito de sociedade salarial, muito em voga atualmente e que creio poderá auxiliar a argumentação que ora empreendo. As transformações drásticas observadas nas últimas décadas no âmbito da economia e, em particular, na esfera do trabalho têm provocado grande impacto, ampliando substancialmente a turbulência já sentida nas sociedades ocidentais desde os anos 60. O agravamento da crise do fordismo — modelo de desenvolvimento socioeconômico implantado nos EUA e Europa Ocidental após a II Grande Guerra, que vingou durante trinta anos — ensejou profundas mudanças de rumo na marcha histórica do capitalismo, desembocando, por sua vez, numa revisão radical da utilização do fator trabalho na contexto da produção. Uma das suas consequências mais graves tem sido o desemprego em massa. Os reflexos desse processo histórico na estrutura social é tema primordial na agenda da sociologia contemporânea. Aponta-se o risco crescente do declínio da coesão social, em razão do acréscimo espantoso do número de excluídos em todo o mundo. Assim, trabalho, coesão social e exclusão ocupam espaços centrais no debate atual. No bojo desse debate, alguns conceitos revelam-se fundamentais, pois representam eixos em torno dos quais as diversas abordagens e correntes buscam demonstrar a força de seus argumentos. Um desses conceitos é o de sociedade salarial. Popularizado nos anos 90, na França, esse conceito tem como um de seus maiores expoentes o sociólogo Robert Castel, diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Por sociedade salarial, diversos autores querem caracterizar a configuração social instituída com o advento da industrialização e do capitalismo tardio. Dando ênfase na dialética indivíduo-sociedade e no trabalho, Castel (1995) identifica os elementos principais da sociedade salarial: o contrato de trabalho, a chamada "identidade social", a cidadania, o Estado-Providência, o individualismo e a "competitividade social". O contrato de trabalho afirma o indivíduo autônomo, separado da comunidade. Essa individualidade, entretanto, é dialeticamente revestida de uma forte dimensão coletiva heterônoma representada na ordem jurídico-institucional, pois o indivíduo ganha um status e proteção assegurados pelo direito trabalhista. Dessa forma, o contrato permite ao indivíduo existir enquanto pessoa privada, mas com status profissional público e coletivo, proporcionando no conjunto da sociedade uma certa estabilização dos modos de vida. A "identidade social" indica uma posição na estrutura social referente à divisão do trabalho, devidamente reconhecida pelo direito. Por conseguinte, contrato e "identidade social" proporcionam as condições para o pleno exercício da cidadania embasada no direito, referendada pela ação no mercado de trabalho. O Estado-Providência é o ideal de instituição garantidora e provedora das proteções coletivas previstas em lei. Por último, o emprego formal propicia o desenvolvimento do individualismo e, ao mesmo tempo, a participação em certas redes de sociabilidade que funcionam como 8 verdadeiras "zonas de integração social". O individualismo, elevado à categoria de valor, substrai o comunitário como fonte de recursos objetivos e despreza a dimensão ético-política da vida social, supervalorizando a "competitividade social", corolário da competitividade econômica. Aqui, neste ponto, percebo pontos de interseção entre o estudo de Castel e o conceito de "sociedade centrada no mercado" elaborado por Guerreiro Ramos 4. A crise da sociedade salarial se manifesta pela supressão crescente dos postos de trabalho — uma contradição, já que o trabalho foi eleito como a dimensão social mais importante pela sociedade produtivista contemporânea —, bem como pela precarização do emprego. Assim, nega-se a milhões de indivíduos o direito de acceder ao pretendido status de trabalhador e, em consequência disso, retira-se-lhe a possibilidade de contar com uma valorizada fonte de "identidade social", além da acessibilidade à proteção legal. Tal é a gravidade da crise, que ela fragiliza e compromete a coesão social como um todo. Ao precarizar o trabalho, arrisca-se demasiadamente fazer ruir um dos pilares fundamentais da sociedade atual. Além do drama causado pelas dificuldades econômicas vividas pela massa dos desempregados e o consequente aumento da pobreza, Castel aponta o risco social que o desemprego e precarização do trabalho implicam: a "desafiliação" social. O desemprego desconecta o indivíduo de redes de sociabilidade importantes e da proteção do Estado (legislação do trabalho), reenviando-o bruscamente à esfera comunitária de solidariedade, a qual, na maioria dos casos é marcada por sérios limites materiais e institucionais. Quero chamar a atenção para um aspecto que julgo de grande importância: a dimensão organizacional da sociedade salarial. Tal dimensão não foi abordada por Castel, talvez por esse não ser o foco central do seu estudo. Ao observar a construção do conceito e o que ele representa, pode-se perceber claramente o papel curcial que as organizações formais exercem na sociedade atual. Em primeiro lugar, aponto o elemento contrato. Embora reconheça que o contrato de trabalho possa ser firmado entre duas pessoas físicas, é inegável que a imensa maioria dos contratos trabalhistas envolvem ao menos uma organização formal. O contrato "típico" de trabalho é aquele firmado entre uma organização formal — o empregador — e um indivíduo — o empregado. A "identidade social" que advém do contrato de trabalho é reforçada pela imagem da organização que subjaz ao próprio contrato. É fato corriqueiro em nossa sociedade salarial os indivíduos serem apresentados como "fulano, gerente de vendas da Empresa X", ou "sicrano, professor da Universidade Y", ou simplesmente "beltrano, da Empresa Z", e assim por diante. Castel dispara um alerta para a situação crítica em que se vê um desempregado nos dias de hoje: a perda da "identidade social". O desempregado, principalmente aquele de longa duração, tende a tornar-se um pária, um indivíduo sem referência numa sociedade em que o mercado de trabalho é o pano de fundo privilegiado da "identidade social". Ora, não seria a organização onde o indivíduo mantém a sua relação contratual a instância última e objetiva dessa "identidade" ? Não é senão pela referência a ela — organização formal empregadora — que os indivíduos são apresentados socialmente ? O status social de um indivíduo não provém em grande intensidade justamente do tipo, do ramo de atividade, do tamanho e da imagem pública da organização onde ele trabalha, como também da sua inserção profissional e posição hierárquica ocupada na estrutura dessa organização ? Daí que afirmo o papel decisivo exercido pela organização no processo de construção da "identidade social". Um indivíduo sem vínculo empregatício ou qualquer outra espécie de vínculo profissional com uma organização formal tende a ser um indivíduo sem referência, sem ponto de apoio na densa teia organizacional que marca a sociedade contemporânea. O que constitui uma séria desvantagem relativa face aos seus pares. Quanto ao individualismo, não se pode deixar de reconhecer que ele é a mola mestra do comportamento organizacional típico. Ainda que as modernas técnicas gerenciais clamem pela cooperação no trabalho, pelo trabalho em equipe, tal cooperação é limitada ao âmbito e 9 às exigências operacionais relativas ao cumprimento da tarefa imposta pela organização e, acima de tudo, delimitada pela impessoalidade. Como ilustração, relato uma situação bem comum na atualidade: o trabalhador deve cooperar ao máximo com a equipe, esforçar-se para ajudar a organização atingir os objetivos definidos pela hierarquia, mas não deve se sensibilizar — seja diminuindo sua produtividade ou protestando de forma evidente — com demissões (sem justa causa legal) de seus colegas. A tão pretendida cooperação tem parâmetros bem definidos: a primazia absoluta da organização e das exigências operacionais sobre o indivíduo. Para além de tais parâmetros o que é implicitamente indicado é o individualismo como norma e valor básico do comportamento na organização. A lealdade e a fidelidade a um grupo/equipe são, no fundo, elementos de natureza essencialmente comunitária, resquícios históricos da esfera da produção artesanal précapitalista, da doutrina cooperativista, ou ainda da chamada consciência operária das primeiras etapas da Revolução Industrial. Hoje, o que é imposto pelas organizações formais da sociedade salarial é uma espécie de "cooperação seletiva", permeada integralmente pelo individualismo, não seria esta mais uma das grandes contradições dessa sociedade ? A "cooperação seletiva", tal como caracterizada acima, pressupõe e impulsiona a "competitividade social" indicada por Castel. Inspirada na competitividade econômica das empresas e demais agentes econômicos, ela libera e incentiva os indivíduos a lançarem-se livremente com todas as sua energias e sem limites éticos na disputa pelo sucesso, pelo êxito, entendidos como mobilidade social ascendente no interior das organizações formais. As recompensas diretas são os ganhos materiais e simbólicos, aqui compreendendo também o acesso ao poder — a possibilidade de tomar decisões sobre os destinos da organização bem como os das pessoas que dela participam. As recompensas indiretas são exatamente os reflexos das recompensas diretas no ambiente social mais amplo (fora da organização) em que o indivíduo está inserido. Quanto maior for a organização, mais importância relativa ela tenha, melhor for a sua imagem junto à opinião pública, tão maior será o status social que tende a gozar aquele indivíduo e mais bens materiais e simbólicos ele ostentará para sustentar essa posição obtida. Os efeitos individuais e sociais da "competitividade social" não são menos perversos que o seu próprio processo. Eles aparecem comumente sob a forma de patologias. A despeito disso, inúmeros indivíduos encontram-se totalmente imersos nesse processo, tornando até muito fácil identificá-los no interior das organizações formais nas quais trabalhamos ou simplesmente transitamos. Não é por outra razão que a ciência se debruça atualmente sobre tais questões; estudos recentes como os que compõem a chamada psicopatologia do trabalho, como também a identificação da neurose profissional e a análise da corrosão do caráter já fazem parte da agenda daqueles que intentam examinar profundamente as organizações contemporâneas 5. Por meio das considerações acima, tentei demonstrar que as organizações constituem em seu conjunto um dos aspectos de grande relevância quando se pensa criticamente a sociedade atual por meio do conceito de sociedade salarial. As organizações tomam parte ativamente de diversos processos instituintes e mantenedores da dita sociedade salarial. Creio que a inserção da organização como mais uma categoria poderá enriquecer a análise da sociedade que se pode realizar a partir desse conceito. Pondo-se em perspectiva os conceitos de sociedade de organizações e de sociedade salarial, ambos elaborados pela sociologia, ressalta-se a influência que as organizações formais exercem tanto na moldagem institucional da sociedade atual como a sua participação ativa na dinâmica que caracteriza tanto a vida social como a trajetória individual do homem urbano contemporâneo. A seguir, gostaria de complementar esse raciocínio, ao abordar o fato organizacional a partir da dimensão da totalidade. 10 FATO ORGANIZACIONAL COMO FATO SOCIAL TOTAL Como disse acima, Guerreiro Ramos defendia a abordagem do fato administrativo como um fato social total. Segundo o autor, "nossa análise do fato administrativo ilustra com clareza o nem sempre facilmente apreensível conceito de 'fenômeno social total', proposto, de início, por Marcel Mauss…[…] Para nós, o fato administrativo é um fenômeno social total. […] O que é cientificamente imprescindível na análise de qualquer fenômeno é examiná-lo como manifestação de uma totalidade, não importa o nome que se dê a esta: fato ou sistema" (Guerreiro Ramos, 1983, p. 25). Embora fazendo referência ao conceito elaborado por Mauss, Guerreiro Ramos opta por abordar a totalidade do fato em questão segundo o arcabouço da teoria de sistemas. Argumentava o autor que a utilização da abordagem sistêmica resultava em vantagens específicas no conhecimento daquele fenômeno. Malgrado as vantagens que poderia auferir da utilização da teoria de sistemas, faço a opção aqui pela abordagem inaugurada por Mauss. Para tanto, emprego o recurso metodológico da analogia. Mauss justificou a expressão "fato social total" pela afirmação de que os processos de dar/receber/retribuir por ele estudados punham em movimento a totalidade de uma dada sociedade e de suas instituições ou ainda, de um grande número de instituições. Para muitos autores da teoria das organizações, estas são consideradas como as instituições centrais e mais importantes do mundo moderno. Não quero afirmar aqui a centralidade das organizações formais na vida social; penso que a sociedade contemporânea é extremamente complexa, e por conseguinte configura uma dinâmica marcada pelo entrelaçamento dialético e multicêntrico de diversas instituições. Sob este ponto de vista, as organizações formais põem em movimento um grande número de instituições e demais dimensões da vida social contemporânea, afetando cada vez mais os espaços sociais disponíveis aos indivíduos. São, portanto, instituições de grande importância relativa e podem ser examinadas como uma das mais substanciais manifestações da totalidade social. Partindo desta premissa, tentarei seguir analogamente os passos de Mauss, o qual apontou na constituição dos sistema de prestações totais a existência de fatos de vários tipos, tais como econômicos, jurídicos, políticos, etc. O fato organizacional é fato jurídico. Quer seja de direito privado ou de direito público, o fato organizacional encerra uma moralidade consubstanciada pelo direito. Ele diz respeito às relações sociais no trabalho, representadas no contrato e enquadradas numa em legislação específica. Um extenso aparelho burocrático-institucional foi erguido para tratar os aspectos jurídicos do fato organizacional, não só abrangendo as questões relativas às relações sociais do trabalho, mas também para regular as relações comerciais e institucionais entre organizações. Em princípio, todos os fatos organizacionais evidentes podem ter uma expressão jurídica própria. A forma jurídica e a extensão do aparato legal pelos quais cada sociedade trata o fato organizacional revela o grau de importância e complexidade que tal fato assume numa sociedade dada. O fato organizacional é fato econômico. Esta, talvez, seja a mais evidente das correspondências. Isso se deve não somente por ser a organização o locus privilegiado no capitalismo para a geração da riqueza material. Mas também pela primazia acordada a dimensão econômica na formação de profissionais do campo administrativo. Nas grandes organizações capitalistas, como naqueles fenômenos analisados por Mauss, "a idéia de valor, do útil, do interesse, do luxo, da acumulação e, por outro lado, do consumo, e mesmo do gasto puro, puramente suntuário, estão sempre presentes…" (Mauss, 1974, p. 179). Mesmo em não se tratando de grandes corporações capitalistas, as organizações formais estão sempre envolvidas com o trabalho, compreendendo as atividades de produção, distribuição, consumo, investimento ou ainda a regulação de tais atividades. No limite, é crença generalizada nos dias 11 atuais que as organizações devem funcionar economicamente, mesmo que não sejam focalizadas para a economia de mercado. O fato organizacional é fato técnico/tecnológico. Como no caso do fato econômico, o fato técnico/tecnológico que caracteriza a realidade organizacional é bastante difundido. As escolas de administração, de economia e assemelhados pautam geralmente a formação de profissionais na assunção do caráter técnico da ação organizacional. Além do aspecto técnico da organização e da realização do trabalho, a produção e o emprego de novas tecnologias tem um lugar privilegiado: a organização formal. Numa sociedade onde a inovação tecnológica foi institucionalizada, a organização que a produz e a difunde ganha uma posição destacada no cenário social como um todo. O fato organizacional é fato político. Os fatos e atos organizacionais são marcados pelo interesse, tanto individual como coletivo. Eles interessam aos indivíduos, às classes e demais grupos sociais direta e indiretamente envolvidos nas lutas simbólicas que se manifestam no interior das organizações. Nesse sentido, poder e controle são aspectos constitutivos das organizações formais. Gerir, trabalhar, participar, ou simplesmente transitar em organizações significa estar sujeito às relações de poder e teias de interesses que engendram coalisões formais e informais interferindo nos rumos dessas organizações e nas condutas individuais e grupais. Em outra perspectiva, vê-se que em seu conjunto, tais organizações configuram um poderoso instrumento de controle social. As empresas, principalmente, exercem um papel crucial de coordenação social, uma vez que a sociedade complexa não tem meios suficientes para estabelecer um mecanismo geral de coordenação/controle (Braverman, 1977). Assim, os fundamentos dos objetivos organizacionais, os meios para alcançá-los, os comportamentos individuais e grupais requeridos, a lógica racional instrumental e outros aspectos da ideologia produzida e proferida pelas organizações formais tendem a serem transferidos para a sociedade como um todo, uniformizando uma visão global de mundo, principalmente quando lembramos que vivemos numa sociedade de organizações. Enriquez destaca que "a partir do momento em que a empresa se transforma em instituição, ela se torna um conjunto que não visa apenas a concepção e venda de 'objetos', mas também a elaboração de uma cultura interna, de um simbólico e de um imaginário que devem ser partilhados por seus membros. Ela visa influenciar os fenômenos sócio-políticos e ela torna-se criadora de valor, de leis e de normas. Tudo isto vai transformar radicalmente as condutas dos seus membros e dos clientes, e terá um forte impacto sobre os outros participantes da vida social" (Enriquez, 1998, trad. livre). O fato organizacional é fruto do fato social geral. Se as organizações influenciam a sociedade, o inverso é também verdadeiro. As ligações entre organizações e sociedade são complexas, marcadas pela mútua causalidade e só uma abordagem dialética pode assim concebê-las (Benson, 1992). Gostaria de ressaltar as ligações que os fatos organizacionais têm com os fatos oriundos da estrutura e dos processos que caracterizam a sociedade da qual a organização faz parte. Por exemplo, a estrutura de classes que explica a desigualdade social acaba sendo refletida na organização, uma vez que o recrutamento das elites organizacionais se faz via de regra a partir dos estratos sociais mais elevados. Assim, a distribuição social dos privilégios se vê quase que intacta se partimos da estrutura social para a organização; os membros das classes sociais mais favorecidas possuem muito maior acesso ao poder organizacional, ocupando posições elevadas na hierarquia. Os processos que marcam uma dada sociedade, tais como as questões étnicas, as clivagens sexuais, as questões relativas ao direitos das minorias, as lutas sociais em geral são refletidas nas organizações. De outro modo, como explicaríamos a pequena quantidade relativa de negros e mulheres ocupando posições hierárquicas no tôpo das organizações brasileiras ? Os preconceitos raciais, sexuais e outros, tão presentes na nossa sociedade, são reproduzidos no ambiente interno das organizações. 12 O fato organizacional é fato histórico e cultural. Os fatos organizacionais se inscrevem num determinado contexto histórico, portanto estão sujeitos às dimensões de tempo, espaço e cultura. O desenrolar dos fatos organizacionais, compondo a história da organização, não pode ser dissociado da história da sociedade na qual a organização se insere. Na mesma perspectiva, a cultura que singulariza uma dada sociedade se manifesta através da plasticidade dos fatos que particularizam a organização. A condição de membro ativo de uma organização formal não transforma o indivíduo num homem organizacional autônomo e estranho face ao contexto histórico e cultural da sociedade em que ele vive. A aceitação desse ponto de vista abre caminho para a compreensão dos processos de construção social da realidade organizacional. Finalizarei propositadamente por um aspecto que não é essencialmente institucional, mas que aponta para uma dimensão fundamental da vida humana associada. Como afirmei acima, não acato a condição de exterioridade radical proposta por Durkheim. Os fatos organizacionais são de ordem psicológica. São produtos da dimensão psíquica dos indivíduos e, ao mesmo tempo, produtores de condições e de situações psíquicas vivenciadas pelos membros da organização. Os fatos organizacionais têm estreita ligação tanto com questões relacionadas ao caráter como à personalidade. Richard Sennett faz uma distinção importante entre estas duas instâncias: a personalidade refere-se a desejos e sentimentos que podem apostemar por dentro, enquanto o caráter concentra-se sobretudo no aspecto de longo prazo de nossa experiência emocional. Segundo o autor, o caráter é expresso pela lealdade e o compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo, ou pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro: "caráter são traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem" (Sennett, 1999, p. 10). Analisando as mudanças ocorridas recentemente no campo do trabalho — em particular, a flexibilidade — impostas pelas organizações, Sennett conclui que tais mudanças têm afetado negativamente o desenvolvimento do caráter nos indivíduos, uma vez que ele depende de compromissos de longo prazo, lealdade, confiança e ajuda mútua. Para o autor, a flexibilidade organizacional está corroendo o caráter: "como se podem manter lealdades e compromissos mútuos em instituições que vivem se desfazendo ou sendo continuamente reprojetadas ?", questiona. No que tange à personalidade, percebe-se que a participação ativa e continuada nas organizações formais produzem consequências dignas de destaque. Para Eugène Enriquez, "a palavra desejo é ausente na vida das empresas. Falar de desejo é, de fato, fazer referência à vida interior de cada um, aos fluxos de paixões e de pulsões que animam constantemente o ser humano, pois o desejo é por definição não extinguível" (Enriquez, 1998, trad. livre). O autor denuncia a repressão do desejo nas organizações, apontando como causa o medo do conflito. Dessa forma, os indivíduos são forçados a trabalhar sob a égide da racionalidade instrumental, evacuando seus sentimentos e paixões. Entretanto, "a organização é um lugar onde se exprimem as paixões mais loucas: o desejo de poder […] o poder do desejo […] a empresa não é este lugar incolor e sem sabor de que nos falam os consultores de organizações. Ela é cheia de de barulhos e de furores e nesse sentido ela é, ao mesmo tempo, espaço de vida e espaço de morte" (idem, trad. livre). A repressão de algo tão presente e humano, marcando o cotidiano das organizações, só poderia desembocar na produção de contradições afetando a estrutura psíquica do indivíduo e, por extensão, afetando também o relacionamento com os seus pares. Ainda no âmbito da personalidade, gostaria de ressaltar o estudo de Nicole Aubert sobre patologias psíquicas geradas e alimentadas no ambiente organizacional. A definição elaborada pela autora para o distúrbio neurose profissional é significativa para a discussão desenvolvida aqui: "afecção psicogênica persistente na qual os sintomas são a expressão simbólica de um conflito psíquico no qual o desenvolvimento está ligado a uma situação organizacional ou profissional determinada" (Aubert, 1993, p. 87). A autora ilustra este 13 conceito com casos reais de psicopatologias desenvolvidas e comumente observadas no interior das organizações, denominados neurose profissional traumática, psiconeurose profissional, neurose de excelência. No mesmo campo da psicopatologia do trabalho, é um outro conhecido autor quem afirma categoricamente: "a análise da articulação entre a organização da personalidade e organização do trabalho passa por uma referência privilegiada pela clínica psicanalítica" (Dejours, 1996, p. 155). Num outro ângulo de observação da personalidade, faz-se também alusão à relação existente entre a gestão de organizações e a interioridade: "… a gestão é também uma prática que repousa fundamentalmente sobre a realidade psíquica do dirigente, sobre sua interioridade. O dirigente atua sobre o exterior a partir de sua própria realidade interior. […] Quer seja no plano do indivíduo, da prática da direção ou da própria organização, a interioridade é uma dimensão sutilmente negada" (Lapierre, 1994, p. 265). CONCLUSÕES A intenção de trabalhar com a categoria de totalidade na análise organizacional não é nova. Conforme ressaltei acima, Guerreiro Ramos esboçou uma tentativa nos anos 60. Recentemente, Vergara & Branco (1993) reelegeram a totalidade como categoria fundamental para a teoria das organizações. Estes autores constatam a pobreza do paradigma dominante na administração — o funcionalismo —, causa principal da formação reducionista que é dada ao administrador. Em seguida, Vergara & Branco pregam uma revisão dos programas de formação e desenvolvimento de administradores, no sentido de compor as dimensões física, intelectual, emocional e espiritual de forma integrada, em busca de uma visão de totalidade. Após tentar demonstrar que o fato organizacional pode ser analisado como fato social total, gostaria de indicar algumas implicações que uma tal abordagem poderá ter para a teoria das organizações. Antes de mais nada, quero deixar claro que essa abordagem constitui apenas mais um ponto de vista que pode ser utilizado para a interpretação dos fenômenos organizacionais. Desde os anos 70 o paradigma funcionalista vem perdendo força de explicação dos fenômenos que afetam as organizações. Novos desdobramentos, novos enfoques e sobretudo disciplinas que nunca se interessaram pelas organizações vêm produzindo estudos e até estabelecendo novos campos de análise nessa área. As ciências humanas e até mesmo as ciências da saúde estão redescobrindo a organização como objeto de estudo. O interesse por este objeto parece ser geral. A primeira consequência disso é a fragmentação que sofre a teoria das organizações; concebida por alguns como uma "teoria geral da administração", esta área do conhecimento expandiu-se e fragmentou-se, dando claros sinais de que nunca se tratou de uma teoria geral, nem tampouco um saber unificado. No meu entender, a fragmentação atual, além do questionamento ao funcionalismo, é decorrente também da importância crescente que a organização formal tem face ao conjunto das instituições da sociedade ocidental contemporânea. Na medida em que a sociedade de organizações ou sociedade salarial avançam, as organizações tornam-se foco de interesse para diversas disciplinas. Porém, muitos estudiosos mostram-se profundamente preocupados com a fragmentação atual da teoria, sentem-se um tanto quanto perdidos. A primeira implicação da abordagem sugerida neste trabalho, creio, vai de encontro a esta preocupação: tratar o nosso objeto como um fato social total, significa lidar madura e conscientemente com a diversidade e a fragmentação. Tal abordagem não irá propiciar a unificação da teoria das organizações, pois a situação atual é fruto do seu próprio desenvolvimento; pelo contrário, abre caminho para trabalhar responsavelmente com os conhecimentos anteriores e os novos desdobramentos, abarcando uma totalidade possível e orientada pela coerência epistemológica. Daí, quadros de análise mais ousados e mais 14 completos poderão ser elaborados, mas sempre com a certeza de que a realidade organizacional será mais ampla do que nossa capacidade de enquadrá-la e interpretá-la. Outra possível implicação para a teoria das organizações provém da fonte de inspiração da abordagem em questão: o trabalho de Mauss. Marcel Mauss, ao final do Ensaio sobre a Dádiva… declara ter encontrado os pilares fundamentais da vida social moral: a reciprocidade e a solidariedade. Tenho afirmado há algum tempo que as organizações têm sido um dos palcos privilegiados do drama humano na contemporaneidade, elas estão fortemente presentes em nosso cotidiano, nelas passamos boa parte do nosso tempo e portanto para elas levamos muitos de nossos sonhos e expectativas, nelas sofremos, nos alegramos, vivemos. Abordar os fatos organizacionais como fatos sociais totais poderá nos ajudar a compreender um pouco mais o homem por inteiro, desafio da antropologia que podemos assumir para quem sabe, um dia, poder até ratificar a percepção de Mauss e assim empregar a teoria das organizações para ajudar a reconstrução da reciprocidade e da solidariedade, dimensões que parecem ofuscadas na grande maioria das organizações modernas. NOTAS Ver os estudos de Chanlat & Séguin (1992); Burrel & Morgan (1979); Serva (1991). 2 Ver as ácidas críticas ao paradigma funcionalista expressas em Guerreiro Ramos (1981). 3 Estudos detalhados sobre racionalidade nas organizações, incluindo o conceito de organizações substantivas podem ser encontrados em Serva (1997); Guerreiro Ramos (1981). O estudo da ação comunicação é parte da obra de Jürgen Habermas, ver Habermas (1987). 4 O detalhamento do conceito de "sociedade centrada no mercado" está em Guerreiro Ramos (1981). 5 Ver, dentre outros, os estudos de Sennett (1999); Aubert (1993); Dejours (1996). 1 BIBLIOGRAFIA AUBERT, N. (1993) "A neurose profissional", in Revista de administração de empresas. São Paulo, FGV, 33(1):84-105. BENSON, J.K. (1992) "Les organisations: un point de vue dialectique", in Chanlat & Séguin, L'analyse des organisations, une anthologie sociologique. Tome I. Montreal, Gaetan Morin. BRAVERMAN, H. (1977) Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro, Zahar. 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