ISSN 012-7751 REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS DO DISTRITO FEDERAL R. Trib. Contas Distrito Federal Brasília v.27 p9-248 2001 Os conceitos emitidos em trabalhos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores REVISTA EDITADA PELA SEÇÃO DE DOCUMENTAÇÃO SUPERVISÃO: Conselheiro Manoel Paulo de Andrade Neto COORDENAÇÃO: Vânia de Fátima Pereira (Chefe da Seção de Documentação) ORGANIZAÇÃO: Lilia Márcia Pereira Vidigal de Oliveira (Bibliotecária) REVISÃO: Carmen Regina Oliveira de Souza Cremasco (Bibliotecária) Toda correspondência deve ser dirigida a esta Seção - TRIBUNAL DE CONTAS DO DISTRITO FEDERAL - 70070-500 - SEÇÃO DE DOCUMENTAÇÃO - Praça do Buriti - Ed. Costa e Silva - subsolo - Brasília-DF. [email protected] Revista do Tribunal de Contas do Distrito Federal, nº 1 - 1975 Brasília, Seção de Documentação, 2001. CDU 336.126.55(81)(05) ISSN 012-7751 TRIBUNAL DE CONTAS DO DISTRITO FEDERAL COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL - 2001 Conselheiros: Marli Vinhadeli - Presidente Manoel Paulo de Andrade Neto - Vice-Presidente José Eduardo Barbosa Ronaldo Costa Couto Jorge Caetano José Milton Ferreira Maurílio Silva Auditor: José Roberto de Paiva Martins Procuradores: Jorge Ulisses Jacoby Fernandes - Procurador-Geral Márcia Ferreira Cunha Farias Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira SUMÁRIO DOUTRINA MANOEL ANDRADE Dispensa de licitação - habitação de interesse social - cooperativas habitacionais ................................................................................................. 09 JORGE ULISSES JACOBY FERNANDES Idade limite para conselheiro e ministro dos tribunais de conta ........................ 29 Lei de Responsabilidade Fiscal e os recursos públicos pelo Ministério Público e os Poderes Legislativo e Judiciário ............................................................... 33 Uma reflexão sobre a eficiência dos tribunais de contas ................................... 43 SEBASTIÃO BAPTISTA AFFONSO Princípios regedores da Administração Pública ................................................... 51 JAYME BENJAMIN SAMPAIO SANTIAGO Comunicações dos atos processuais nos processos de contas .......................... 57 VOTOS MARLI VINHADELI Contrato de prestação de serviços celebrados entre a CEB e o Escritório de Advocacia Inocêncio Márites Coelho - Advogados Associados .................... 65 PARECER JANE MAIR SILVA FERNANDES DE SOUSA Pensão especial temporária - habilitação tardia ................................................ 79 JULIANO RICARDO DE VASCONCELLOS COSTA COUTO Averbação de tempo de serviço na área federal para todos fins ....................... 85 Correlação da função exercida na área federal com cargo desse Tribunal ....... 89 Licença para trato de interesses particulares ..................................................... 95 RODRIGO SIMÕES FREJAT Retificação de aposentadoria ........................................................................... 101 SEBASTIÃO BAPTISTA AFFONSO Alteração de dispositivos da Resolução nº 113/99 ........................................... 109 Ascensão funcional, prevista na Lei/DF nº 2/88 ............................................... 113 Minutas de modelos para padronização de acordãos ...................................... 123 Projeto formulado pela CESACE, para disciplinar a votação em bloco ........... 131 CONTRIBUIÇÃO IVAN BARBOSA RIGOLIN Despesa total com pessoal: o art. 18 da Lei de Reponsabilidade Fiscal ............ 139 FRANCISCO CARLOS RIBEIRO DE ALMEIDA A renúncia de receita como fonte alternativa de recursos orçamentários ....... 145 Verdadeira função do Tribunal de Contas da União no processo orçamentário .. 161 VALDECIR FERNADES PASCOAL Crônica de uma aposentadoria “Severina” .......................................................... 177 O remédio legal para os agentes da saúde ........................................................ 183 RENATO MONTEIRO DE REZENDE Quintos e aposentadoria-prêmio: acumulação legítima ................................... 187 DANIEL BLUME PEREIRA DE ALMEIDA Natureza jurídica das decisões dos tribunais de contas ................................... 223 DOUTRINA DISPENSA DE LICITAÇÃO - HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL COOPERATIVAS HABITACIONAIS* Manoel de Andrade Conselheiro do TCDF Ao cumprimentar as Senhoras e os Senhores Congressistas, quero registrar a imensa satisfação de ter sido designado relator de Tese com tamanho alcance social, que, certamente, trará repercussão de igual importância para a sociedade. O parecer em causa dar-se a propósito da bem lançada tese apresentada pelo eminente Auditor Substituto de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, tendo como escopo a dispensa de licitação na permissão de uso de bens imóveis destinados a Programas Habitacionais de Interesse Social, para Cooperativas Habitacionais, tendo em conta a hermenêutica do artigo 17, inciso I, alínea f da Lei nº 8.666/93, da Constituição Federal, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, do Ordenamento Jurídico Infraconstitucional, da Doutrina e da Jurisprudência. A referida tese nasceu, segundo informa o seu competente autor, a propósito de inúmeras consultas formuladas por Administrações Municipais acerca da dispensa de licitação a que alude o art. 17, inciso I, alínea f da Lei nº 8.666/93, destacando ente elas a seguinte: *Parecer emitido sobre a tese de Virgílio Perius, apresentada no XXI Congresso dos Tribunais de Contas, Cuiabá, de 3 a 7 de julho de 2001. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 9 “1) Qual a interpretação que esse Egrégio Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul oferece às regras contidas no artigo 17, inciso I, letra f, da Lei nº 8.666/93, artigo 174, parágrafo 2. Da Constituição Federal e artigo 175 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul? 2) Pode o Município ceder, sem processo licitatório, área de terras para programas habitacionais?” Fornecendo extraordinário embasamento jurídico, doutrinário e jurisprudencial, o insigne autor aborda a matéria dividindo-a em três temas nucleares, quais sejam: a) A exegese do artigo 17, inciso I, alínea f da Lei nº 8.666/93; b) A questão da permissão de uso de bem imóvel, destinado a Programas Habitacionais de Interesse Social; c) A abordagem da conceituação de cooperativa, em especial, de Cooperativa Habitacional. No tocante ao primeiro e ao segundo temas, o nobre auditor transcreve as regras exigidas para a alienação de bens imóveis pertencentes à Administração Pública, como avaliação prévia, autorização legislativa e licitação, sendo que, segundo atesta, entendeu o legislador em dispensar a licitação, na hipótese de alienação, inclusive na forma de permissão de uso, quando se tratar de imóveis construídos, destinados ou efetivamente utilizados para programas habitacionais de interesse social, cujas operações ou negócios sejam realizados por entidades criadas para esse fim. Segundo ele, a letra f do inciso I do artigo 17 constitui clara exceção à regra geral da licitação e, desse modo, os bens imóveis da Administração Pública construídos, destinados ou utilizados para a finalidade proposta, podem passar para o domínio privado, desde que por preço não inferior ao da avaliação e mediante autorização legislativa, tendo que ser destinados para construção, ou utilização no âmbito da habitação social. Para sustentar seu entendimento, ele apresenta as razões que justificam a dispensa de licitação, que se verifica em dois programas: o da reforma urbana e o da reforma agrária. De acordo com ele, o propósito de ambos os programas se vincula a promover uma melhor distribuição da terra, seja rural, seja urbana. E será difícil atingir esse desiderato mediante procedimento licitatório, porquanto este 10 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 sempre tem por escopo a proposta mais vantajosa. Pela concorrência se um conflito de interesse entre os beneficiários da reforma agrária e os da reforma urbana, que não visam a ser competidores. Na reforma agrária visa-se atender ao Princípio da Justiça Social e ao aumento da produtividade (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964). Na reforma urbana, busca-se concretizar o direito à moradia (Lei nº 4.380/64), sendo que ambas as reformas buscam a função social da terra, razão pela qual a Constituição Federal ofereceu poderes ao Estado para interferir no processo de sua utilização, objetivando uma melhor distribuição, como se denota dos artigos 182 e 184. No tocante ao último tema arrolado o defensor da tese traz à tona os dispositivos legais e doutrinários que norteiam a matéria, destacando entre eles a Lei nº 5.764/71, que conceitua e caracteriza a sociedade cooperativa de maneira geral, ressaltando que tudo que se aplica para os demais tipos de cooperativas também se aplica para as cooperativas habitacionais, que é a espécie objeto de discussão. Em sua linha de raciocínio o autor ressalta que, historicamente, as cooperativas habitacionais vinculam-se ao esforço para superação da carência de moradias, que tem suas origens, de um lado, no modelo estrutural sócio-econômico excludente e concentrador, que se traduz em desigualdades de renda e acesso à urbanização e, por outro lado, no processo de crescimento urbano segundo a lógica da maximização da renda da terra e da moradia. Por falta de uma política habitacional, iniciativas públicas e privadas não acompanham o incremento demográfico, nem contemplam principalmente as camadas mais carentes, situação esta agravada pelas migrações para os pólos de maior densidade populacional. Segundo ele, a intervenção dos órgãos habitacionais tradicionais, SFH, COHAB, Secretarias Municipais de Habitação, mostra-se acanhada, frente à intensidade da demanda, acrescendo, ainda, a desarticulação do Governo Federal, que redundou na ausência de uma política habitacional, enquanto recursos do FGTS estão comprometidos para outros setores. Prosseguindo, chama atenção para o fato de a Constituição de 1988, ao descentralizar os recursos da União, possibilitou aos Municípios parcela maior do bolo orçamentário, sem uma conseqüente distribuição de atribuições para atender às demandas dos cidadãos, residindo, fundamentalmente, o déficit habitacional nas sub-habitações concentradas nas periferias dos grandes centros urbanos, contribuindo para isto as diferenças existentes entre as condições de vida urbanas e rurais e a expansão industrial dos grandes centros urbanos, provocando as R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 11 migrações para as cidades maiores, e a causa desse desequilíbrio reside, fundamentalmente, na ausência de um planejamento para o desenvolvimento integral entre o rural e o urbano, pois, nem sempre, as novas habitações concorrem para reduzir o problema habitacional. Continuando, chama atenção para o fato de que, ao lado do fenômeno da concentração urbana, nota-se que as populações de renda mais baixa vão sendo empurradas para as periferias das cidades, cada vez mais longe das benfeitorias urbanas. E, de sua parte, as empresas construtoras não consideram como parte do mercado potencial de compradores famílias com renda abaixo de 200 dólares mensais. Assim, prossegue, a habitação na economia de mercado torna-se mais um bem-de-troca do que um bem-de-uso, afastando as possibilidades das famílias de baixa renda, que ficam na dependência de iniciativas dos órgãos governamentais, que promovem habitações populares com recursos provenientes do FGTS. Desses recursos, 60% deveriam ser alocados para a produção de habitações populares, e o restante para as áreas de saneamento, planejamento urbano, transportes, apoio à indústria de construção, à constituição de pólos econômicos e recuperação urbana. Dos 3 milhões de moradias financiadas pelo BNH, a maior parte não pertence à faixa de interesse social. Com a extinção desse órgão, em 21 de novembro de 1986, a ausência de uma política habitacional, a nível nacional, ficou patente. Finalizando seu raciocínio, acerca do último tema da tese, o autor formula a seguinte pergunta: Face a esse quadro, qual o papel das Cooperativas Habitacionais?. Traz como resposta o posicionamento de João Machado Fortes: “Dentro dessa idéia básica da necessidade de apoio financeiro às famílias participantes, em que a procura dos menores dispêndios torna-se fundamental para as de mais baixa renda, a Cooperativa Habitacional representa o instrumento ideal para os programas habitacionais destinados a tais famílias, já que a sua atuação, assumindo elas mesmas a direção das operações executivas do programa, deverá obter os mais baixos custos possíveis, pela eliminação do fator lucro na ação de diversos intermediários que poderão ser evitados. Por outro lado, haverá vantagens em que essas comunidades sejam numerosas, provocando redução nos custos operacionais e beneficiando-se dos resultados oriundos de produção em série. Para as famílias mais pobres, porém, será necessária e indispensável a intervenção do Estado, através de uma Política de Planejamento Urbano que regule, através de estímulos ou de cargas fiscais, e até de desapropriações, quando necessária, o uso da terra, (...)”. 12 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 O autor prossegue na defesa de sua tese, sempre enaltecendo a importância das cooperativas habitacionais, concluindo que suas relações com o Estado devem ultrapassar meras parcerias e apoio, e, trazendo pronunciamento do especialista do assunto, Rubens Héctor Rubio, justifica que muitas vezes: “o próprio Estado, com toda sua força paternalista, não seria capaz de solucionar, porque não conta com a participação do cooperado na solução do seu problema, ou seja, concretamente julga importantíssimo que o movimento cooperativo deva ter, no Estado, um participante indireto no apoio ao seu desenvolvimento”. Para ele, a proteção do direito à habitação é uma responsabilidade social do Estado. Trata-se de estruturar programas habitacionais que permitem primeiro o acesso à moradia. Esta não se situa como um fim, pela filosofia do plano habitacional cooperativo, mas como meio para elevação econômica e social das populações beneficiadas. A casa é sempre o fundamento para uma sadia convivência familiar, e para uma solidária convivência comunitária. É na casa que o homem se sente bem. Sua construção tem uma relação com a história do homem. Perante a construção da primeira casa, o homem repousava na natureza como uma criança no ventre materno. A consciência desse estado de repouso na casa – foi o primeiro sinal da cultura do conhecimento planejado. Não existe construção sem planejamento de construção. A entrega da casa cooperativada não encerra os vínculos entre os associados e a cooperativa, pois esse não é o objetivo exclusivo e final das cooperativas habitacionais. Programas comunitários, orientação dos condomínios, obras sociais, conservação dos conjuntos e dos imóveis, merecem trabalho e assistência das cooperativas. A vinculação jurídica também não cessa, com a entrega dos imóveis, porque a relação jurídica é de natureza cooperativa, e não contratual (compra e venda). Assim, pela entrega de produtos (cooperativa de produtores) não se realiza um contrato, mas ato cooperativo, também pela entrega de casas (cooperativa habitacional), não se realiza um contrato, mas ato cooperativo. Aliás, a entrega de casas pelas cooperativas habitacionais é um ato cooperativo mais sério e mais solene e de maior conteúdo cooperativista. Se a entrega de casas não constitui contrato, o vínculo jurídico entre sócios e cooperativa não cessa com a respectiva entrega. Se as relações jurídicas não se extinguem é porque o fim da cooperativa se identifica com o de sua clientela, funcionando a sociedade como instrumento de satisfação das necessidades domésticas e empresariais dos cooperativados. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 13 Num verdadeiro passeio pela doutrina, o ilustrado autor traz ao conhecimento os mais bem fundamentados pareceres jurídicos, da lavra de renomados procuradores; de delegações de prefeituras municipais, do Estado do Rio Grande do Sul, e de Tribunais de Contas de outros Estados, todos consentâneos com a tese da dispensa de licitação para alienação de imóveis do Poder Público, destinados à habitação popular, desde que precedido de autorização legislativa, destacando, entre eles, o Parecer nº 8.904/98, de Delegações de Prefeituras Municipais – D.P.M, (RS), em que oferece reflexão sobre a abrangência do termo imóveis construídos, verbis: “Registre-se que a norma supra disse menos do que quis, pois, na aparência, limitou a dispensa de licitação para imóveis construídos, quando se sabe, até pelas linhas de financiamento oficial na área da habitação, que a política governamental, não se limita à produção e oferta de imóveis construídos, mas também de terrenos ou lotes urbanizados. Não deve, assim, prevalecer a interpretação literal, limitativa da dispensa da licitação para alienação de imóveis edificados. Deve alcançar, também, através de leitura significante e integrativa, a oferta de terrenos para edificação pelos beneficiários. O conteúdo normativo não se limita à dicção do texto legal”. Cita, ainda, importante trabalho sobre o título Doação de Bens Municipais à População Carente e a Lei de Licitações, de José Rubens Costa, em que afirma: “Tanto a alienação de bens imóveis, quanto móveis, comporta a dispensa do procedimento licitatório (parte final do inc. II do art. 17, com respectivas alíneas). Na regulamentação da dispensa, cometeu a Lei nº 8.666/93 equívocos de constitucionalidade, aliás também existentes no estatuto anterior (Dec-Lei nº 2.300, de 21.11.86. O principal deles consiste em permitir a dispensa do procedimento licitatório para a doação de bens imóveis apenas e exclusivamente para outro órgão ou entidade da Administração Pública, de qualquer esfera de governo (alínea b do inc. I do art. 17). Se, conforme a Constituição fosse a norma, ou seja, se a doação – com dispensa de procedimento licitatório – fosse apenas permitida ao próprio Governo (do Município a Estado, da União ao Município, e suas autarquias, etc.), impossível se tornaria, por exemplo, a alienação de áreas à população de baixa e principalmente nenhuma renda”. Mais na frente, cita trecho da obra Temas Polêmicos sobre Licitações e Contratos, de Maira Sylvia Zanella Di Pietro, que enfatiza: 14 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 “Não teria sentido que a lei exigisse licitação para permissão de uso precário e silenciasse quanto à autorização de uso. Aplica-se, aqui, o princípio de interpretação segundo o qual, sendo os mesmos os motivos, a norma também é a mesma. Além do mais, é bem evidente que, no caso da letra f, introduzida no inc. II do art. 17, a permissão de uso apresenta-se como verdadeiro contrato, única forma compatível com a destinação referida no dispositivo: programas habitacionais de interesse social”. Prosseguindo com o seu rol de bons doutrinadores, traz à colação excelente estudo sobre a matéria, realizado por Antônio Roque Citadini, informando: “A letra f trata especialmente dos imóveis construídos e destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programas habitacionais de interesse social, dispensando, também, da licitação a alienação, a concessão de direito real de uso, a locação e a permissão de uso, desde que tais sejam realizados por órgãos ou entidades da Administração Pública criados para esse fim”. Mais na frente, informa o posicionamento do grande Hely Lopes Meirelles, que examinando o tema com profunda análise, esclarece: “Licitação Dispensada é aquela que a própria lei declarou-a como tal (art.17, I e II). Com relação a imóveis nos casos de dação em pagamento, investidura, venda ou doação a outro órgão público, alienação, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de habitações de interesse social”. Arremata o autor, trazendo o posicionamento de Marçal Justen Filho, que afirma: “O interesse de beneficiar parcelas de mais baixa renda afasta licitação norteada a obter o preço mais elevado”. Na parte jurisprudencial, o nobre membro da Corte de Contas do Rio Grande do Sul traz o entendimento do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, com a seguinte ementa: “Município. Doação de terrenos para fins habitacionais. Exigência de subordinação ao interesse público, autorização legislativa e avaliação prévias. Renúncia de receita de impostos municipais. Possibilidade de R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 15 concessão de incentivo à instalação de indústrias. Sujeição ao exame do Tribunal de Contas quanto à economicidade, legalidade e legitimidade das respectivas renúncias e concessões”. Por seu turno, o Tribunal de Contas do Paraná, informado pelo ilustrado autor, tem o seguinte posicionamento: “Bem imóvel. Alienação. Dispensa. Casas populares. Concessão de direito real de uso. Possibilidade da dispensa de licitação para alienação de casas populares, tendo em vista o disposto no art. 17, I, f da Lei Federal nº 8.666/93, alterada pela Lei Federal nº 8.883/94”. Procedida a análise dos efeitos jurídicos do art. 17, I, f da LF nº 8.666/93 e alterações, no instituto da Permissão de Uso de bem imóvel da Administração Pública, da instituição de sociedadededeIcooperativa habitacional, o nobre auditor conclui sua tese, que representa o entendimento do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, conforme decidido em sessão de 22.3.2000, nos seguintes termos: • A alienação de bem imóvel da Administração Pública, destinando a programas de habitação de interesse social, realizados por órgãos ou entidades criadas para esse fim, dispensa o processo licitatório, nos termos do artigo 17, I,f, da Lei nº 8.666/93. • A escolha da modalidade de alienação, como no caso, a Permissão de Uso, é da competência da Administração Pública. • A dispensa de licitação para fins de alienação de bens imóveis da Administração está contemplada em dois programas de natureza social: o da reforma agrária e o da reforma urbana. Ambos visam a uma melhor distribuição da terra, seja rural, seja urbana, e não a proposta mais vantajosa para o Estado. • Regras do comando do procedimento licitatório, tornam, sob o ponto de vista técnico, inaplicáveis alguns princípios (igualdade entre os licitantes, sigilo de apresentação das propostas, julgamento objetivo, habilitação dos licitantes) quando se tenta a alienação de bens imóveis destinados a programas de interesse social. • O conceito de sociedade cooperativa, à luz do ordenamento jurídico que rege esse tipo societário implica em que entre os associados e a 16 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 cooperativa inexiste mercado, visto ser a cooperativa a extensão dos próprios associados. Assim, não ocorre intermediação, mas ato cooperativo, praticado sem nenhuma finalidade lucrativa. A Sociedade Cooperativa Habitacional, além de possuir as mesmas características, constitui-se, ainda, em Agente do Plano Nacional da Habitação Popular – PLANHAP. • Inexistindo a figura do intermediário e caracterizando-se a ausência de fins lucrativos, a alienação de bens imóveis da Administração Pública, destinados a Programas de Habitação de Interesse Social, em favor de Cooperativas Habitacionais, dispensa a licitação, pois a finalidade da cooperativa, de um lado, se identifica com a dos associados, na satisfação das necessidades habitacionais, e, do outro, com os objetivos dos Programas Habitacionais de Interesse Social, dos quais é agente, por determinação legal, tanto de ordem federal (Lei nº 4.380/64 – artigo 8º, IV) quanto de ordem estadual e municipal. Finalmente, arremata: “observadas as disposições da lei nº 8.666/93, quanto a autorização legislativa e avaliação prévia, à luz do ordenamento jurídico, pode a Administração Pública ceder (alienar), na forma de permissão de uso, área de terras destinada a Programas Habitacionais de Interesse Social, para Cooperativas Habitacionais, dispensando a licitação, nos termos do art. 17, I, f, da Lei nº 8.666/93.” PARECER A palavra cooperativa deriva do latim cooperativus – de cooperari (cooperar, colaborar, trabalho com outros). Trata-se de sociedade de natureza civil, sem objetivo de proveito financeiro, que tem por finalidade qualquer espécie de atividade. As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados. Verdadeiras aliadas do Estado, na consecução dos seus fins sociais, as Cooperativas ganharam formidável destaque na constituição de 1988, com dispositivos altamente expressivos nesse sentido. E já se pode sentir, na realidade fática, as suas conseqüências, com o surgimento de inúmeras cooperativas, sobretudo de habitação, de trabalho e de crédito. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 17 Claro está que esta situação decorre também do problema do desemprego e da excessiva carência de crédito e de moradias. Estas com um déficit assustador, que se arrasta ao longo dos anos. Assim, com a Constituição Federal de 1988, pode-se dizer que se iniciou um novo período no ciclo legislativo do regime jurídico das sociedades cooperativas até então presas e submetidas às imposições estatais decorrentes do regime autoritário. Vários artigos da Constituição referem-se às cooperativas no sentido não só de reconhecê-las, de livrá-las das peias estatais, como também para apoiá-las. De todos eles pode ser destacado o art. 5 o, XVIII, que dispõe: “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas, independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento:” Tal dispositivo resplandece como uma auréola de liberdade daquelas que viveram engessadas durante mais de vinte anos. Outros dispositivos não são menos importantes. Valendo anotar os seguintes: 1. Art. 146. III, c, dispondo que: “cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo”; 2. Art. 174, § 2 o que, dispõe: “A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo”; 3. Art. 174, § 3 o : “O Estado favorecerá a promoção da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros”; e 4. Art. 192, VIII, dispondo que: “Lei complementar regulará o funcionamento das cooperativas de crédito e os requisitos para que possam ter condições de operacionalidade e estruturação próprias das instituições financeiras”. 18 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 Para Waldírio Bulgarelli: “o Estado brasileiro tem sido de uma falsidade inacreditável em relação ao sistema cooperativo nacional, tanto que, embora tenha apoiado todas as resoluções internacionais, visando à proteção do movimento cooperativo, como, por exemplo: a Resolução nº 127, de 1966, da Organização Internacional do Trabalho, OIT; a Resolução nº 2.359, de 1968, da ONU. A Carta de Buenos Aires, de 1969, da Organização dos Estados Americanos, que entrou em vigor em 27 de fevereiro de 1971 e, finalmente, a Resolução nº 1.413, de 1969, do Conselho Econômico e Social da ONU, em que se formulava a atuação das cooperativas às metas visadas na chamada Década do Desenvolvimento. Sem contar que em maio de 1970, o Brasil, juntamente com mais cinco países: Índia, Bulgária, Indonésia, Paquistão e Sudão, apresentou um projeto de resolução perante o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, recomendando que a organização mundial dê especial atenção às solicitações de assistência que os países em desenvolvimento formulem para desenvolver as cooperativas, jamais as cumpriu, pelo contrário, ainda, hoje, as persegue, sobretudo, pela imposição de óbices burocráticos e fiscais. Por derradeiro, havemos de não esquecer que o futuro próximo aponta para as relações internacionais das sociedades cooperativas, sobretudo, com referência ao MERCOSUL, o que impõe que se adaptem para tal mister.” A doutrina do cooperativismo como é conhecida, certamente, não se afasta da doutrina jurídica. Pelo contrário, vem se esforçando, neste século, para consolidar os princípios básicos de organização e funcionamento das cooperativas e, por isso, tendo dado significativa contribuição para que os ordenamentos jurídicos recepcionassem esse novo tipo de associação. Nesse sentido, é bastante evidente que a história da doutrina cooperativista e das legislações que regulam as cooperativas se relacionam estreitamente, demonstrando a influência daquela nesta e, se nem sempre foi obtida uma harmonização completa, não se pode deixar de ver que houve um ajuste coerente. No ordenamento jurídico brasileiro, apesar dos desvios eventuais ocorridos, nota-se bem o afirmado. Veja-se que é a partir do Congresso de Paris, da AIC, em 1937, que aprovou pela primeira vez os chamados princípios cooperativistas, que promulgou-se o Decreto-lei nº. 581 de 1.8.1938, o qual alterou o Decreto nº 22.239, R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 19 de 19.12.1932, instituindo, ainda que toscamente, o princípio do retorno. Com o Decreto-lei nº 69, de 21.11.1966 e o seu regulamento, o Decreto nº 60.597, de 19.4.1967, foram consagrados os princípios aprovados pela AIC, no Congresso de Viena de 1966, robustecidos pela Lei nº 5.764/71 e, finalmente, com o Congresso de Manchester, de 1995, várias decisões intensificaram a recomendação do princípio da integração. Numa visão geral, princípios cooperativistas exprimem o alto sentido social do sistema cooperativo. As cooperativas, desta forma, se apresentam como entidades de inspiração democrática, em que o capital não constitui o determinante da participação associativa, mas, mero instrumento para a realização dos seus objetivos. Elas são dirigidas democraticamente e controladas por todos os associados, não perseguem lucros e seus excedentes são distribuídos proporcionalmente às operações de cada associado. Nelas se observa a neutralidade político-religiosa, o capital é remunerado por uma taxa mínima de juros e os hábitos de economia dos associados são estimulados pelas aquisições a dinheiro, dando-se destaque ao aperfeiçoamento do homem, pela educação. Importante é, para robustecer o tema, trazer à colação os princípios cooperativos aprovados no Congresso de Manchester, em 1995, pela Aliança Cooperativa Internacional que são: 1o Princípio – Adesão livre e voluntária – Cooperativas são organizações voluntárias abertas a todas as pessoas aptas a usar seus serviços e dispostas a aceitar as responsabilidades de sócio, sem discriminação social, racial, política ou religiosa e de gênero. 2o Princípio – Controle democrático pelos sócios – As cooperativas são organizações democráticas controladas por seus sócios, os quais participam ativamente no estabelecimento de suas políticas e na tomada de decisões. Homens e mulheres, eleitos como representante, são responsáveis para com os sócios. Nas cooperativas singulares os sócios tem igualdade na votação (um sócio, um voto). 3o Princípio – Participação econômica dos sócios – Os sócios contribuem de forma eqüitativa e controlam democraticamente o capital de suas cooperativas. Parte desse capital é propriedade comum das cooperativas. Usualmente os sócios recebem juros limitados (se houver algum) sobre o capital, como condição de sociedade. Os sócios destinam as sobras aos seguintes propósitos: desenvolvimento das cooperativas, possibilitando formação de reservas; retorno aos sócios na 20 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 proporção de suas transações com as cooperativas e apoio a outras atividades que forem aprovadas pelos sócios. 4o Princípio – Autonomia e independência – As cooperativas são organizações autônomas para ajuda mútua, controladas por seus membros. Entretanto, em acordo operacional com outras entidades, inclusive governamentais, ou recebendo capital de origem externa, elas devem fazê-lo em termos que preservem o seu controle democrático pelos sócios e mantenham sua autonomia. 5o Princípio – Educação, treinamento e informação – As cooperativas proporcionam educação e treinamento para os sócios, dirigentes eleitos, administradores e funcionários, de modo a contribuir efetivamente para o seu desenvolvimento. Eles deverão informar o público em geral, particularmente os jovens e os líderes formadores de opinião, sobre a natureza e os benefícios da cooperação. 6o Princípio – Cooperação entre cooperativas – As cooperativas atendem seus sócios mais efetivamente e fortalecem o movimento cooperativo, trabalhando juntas através de estruturas locais, nacionais, regionais e internacionais. 7o Princípio – Preocupação com a comunidade – As cooperativas trabalham pelo desenvolvimento sustentável de suas comunidades, através de políticas aprovadas por seus membros. A Constituição Federal de 1988 alterou basicamente a disciplina jurídica das sociedades cooperativas. Assim, aos períodos históricos que caracterizaram a evolução das normas sobre as cooperativas, deve-se acrescentar, agora, o que o Doutor Waldírio Bulgarelli chamou de período de liberalização, decorrente da não intervenção do Estado na constituição e funcionamento das cooperativas. Numa tentativa de analisar o processo de evolução das cooperativas perante a legislação cooperativista brasileira, Waldírio Bulgarelli elabora uma classificação que entendo válida para a compreensão global de suas repercussões no meio cooperativista. Ele divide em cinco períodos básicos, a saber: 1o Período de Implantação – Instaura-se sob o advento da primeira Lei Orgânica de 1907, o Decreto nº 1.637, de 5 de Janeiro, que cuidava também dos sindicatos rurais. Profundamente influenciado pela Lei francesa de 1867, não atribuía forma própria às cooperativas, devendo estas se constituírem sob a forma das sociedades comerciais, em nome coletivo, em comandita e anônima. DavaR.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 21 lhes porém ampla liberdade de constituição e funcionamento, sem subordinação a nenhum órgão estatal, bastando, para funcionar validamente, que depositassem em duplicata, na Junta Comercial, os seus atos constitutivos, tendo apenas como obrigação posterior, a de semestralmente fazer o depósito da lista dos sócios e as alterações estatutárias verificadas. 2o Período de Consolidação Parcial – Vai da promulgação do Decreto 22.239 de 19.12.1932 até a promulgação do Decreto-lei nº 59 de 21.11.1966. Trata-se de período bastante movimentado em termos legislativos, repleto de marchas e contramarchas em relação à manutenção do Decreto nº 22.239, de 1932. Este decreto, apesar de casuístico e com vários defeitos, dava às cooperativas razoável liberdade de constituição e funcionamento, e foi graças a ele (além, é claro, da própria fase histórica repleta de reformas na estrutura social e política do país, e a constituição das grandes levas de emigrantes europeus e japoneses) que puderam as cooperativas desenvolver-se amplamente. Não se deve esquecer que, neste período também foram assinaláveis vários incentivos fiscais em alguns Estados, sobretudo no sul. 3o Período de Centralismo Estatal – Esse período é de profunda crise para o sistema cooperativista brasileiro. O Decreto-lei nº 59 de 1966 foi uma parte importante nesse período, que tantos problemas trouxe ao cooperativismo, pois fora antecedido por algumas leis importantes, como a Lei da Reforma Bancária (Lei nº 4.595 de 1964), a Lei de Reforma Tributária (Lei nº 5.892 de 25.10.1966, com base na Emenda Constitucional nº 18 de 1.12.1965), todas elas afetando duramente as cooperativas, dentro de uma orientação excessivamente centralizadora do Poder Público. Não se limitaram a cancelar subitamente alguns incentivos tributários de que gozavam as cooperativas, indo ao ponto de estabelecer uma nova regulamentação, sobremaneira restritiva, principalmente em relação ao crédito cooperativo, retirando das cooperativas todas as possibilidades de manterse nos moldes anteriores e, de outro lado, cerceando-lhes as possibilidades de desenvolvimento. 4o Período de Renovação das Estruturas – Com o fechamento do Congresso por força do Ato Institucional 5, não tiveram tramitação os projetos citados, sendo posteriormente substituídos por um anteprojeto elaborado pela já então existente Organização das Cooperativas Brasileiras, que bastante modificado pelos técnicos governamentais, foi encaminhado ao Congresso e promulgado, após a sua aprovação, em 16.12.1971, convertendo-se na Lei nº 5.764, que ora rege os destinos do cooperativismo brasileiro. 22 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 5o Período de Liberalização – Este período se inicia com a Constituição Federal de 1988, que dispõe, em vários dispositivos, não só a divisa de que o Estado deve apoiar o cooperativismo, como o libera dos controles estatais e ainda dispõe sobre vários aspectos do sistema cooperativo, como o do adequado tratamento tributário ao ato cooperativo, às cooperativas dos garimpeiros e às cooperativas de crédito. De minha parte, quero registrar a imensa satisfação que tenho, neste momento, de relatar a presente tese, de indiscutível alcance social, tratando da dispensa de licitação para alienação de bens imóveis, destinados a Programas de Assentamento Habitacional. Minha satisfação cresce, ainda mais, porque, verdadeiramente, acredito em tudo o que escrevi, e porque comungo com a tese levantada pelo ilustrado autor. É que, enquanto exerci o mandato de Deputado Distrital, por duas legislaturas, fui um dos primeiros parlamentares a apresentar proposições voltadas a assegurar o acesso à moradia, sobretudo, para pessoas de baixa ou de nenhuma renda, por considerar a moradia como o maior bem da vida. Como visto, o tema tem sido objeto de preocupação em todo o mundo, e o Brasil não poderia ser exceção, principalmente porque, como País em desenvolvimento, tem sua política de crescimento toda voltada para o setor urbano, em detrimento do setor rural ou agrícola. Com isto, crescem os movimentos migratórios, do campo para a cidade, em busca de melhores condições de vida, que não são oferecidas no campo, gerando forte pressão social pelos mais diversos serviços públicos oferecidos pelo Estado, o qual, por seu turno, acaba não oferecendo a contento nenhum deles. O problema se agrava, ainda mais quando falta aquilo que oferece ao cidadão o mínimo de dignidade: a moradia. Todos hão de concordar que é inadmissível num País com as dimensões territoriais do Brasil existir tantos patrícios sem um pedacinho de terra para construir sua moradia. Ocorre que a propriedade, seja ela rural, seja urbana, lamentavelmente, está concentrada nas mãos de uma pequena parcela de pessoas, que acha que o problema social é de obrigação exclusiva do Estado resolver. Enganam-se profundamente os que assim pensam. Todos devem contribuir com sua parcela na busca pelo oferecimento de melhores condições de vida àqueles que não tiveram a oportunidade de se incluírem socialmente. Por isto, rendo minhas homenagens ao Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, na pessoa do Senhor Auditor, Substituto de Conselheiro, Dr. Vergílio Perius, R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 23 por ter propiciado a oportunidade de os demais Tribunais de Contas oferecer sua parcela de contribuição com essa incansável luta dos menos favorecidos por melhores condições de vida. Afinal, não é nos encastelando nos gabinetes com ar refrigerado e, de maneira fria, sem nos preocupar com o alcance social das nossas decisões, que vamos galgar o reconhecimento do nosso silencioso, mas tão árduo trabalho. Enganam-se, repito, os que pensam ser de responsabilidade exclusiva do Estado encontrar soluções para o problema social. A habitação não é problema apenas nesta ou naquela Unidade da Federação, rica ou pobre. Umas, evidentemente, priorizam a sua solução mais do que a outra. Brasília, por exemplo, com apenas 41 anos de existência, devido a sua peculiar situação de ter sido construída para abrigar a sede dos Poderes da República , durante a fase inicial, foi ocupada por pessoas de todos os recantos do País; dos mais diversos níveis sociais e culturais. Umas, as que foram transferidas pelos órgãos públicos federais em que trabalhavam, ganharam imóveis funcionais no Plano Piloto, centro da cidade e considerado um dos metros quadrados de área dos mais caros do Brasil. Outras, os operários da construção, chamados carinhosamente de “candangos”, inicialmente morando nos acampamentos das obras, começaram a trazer seus familiares e, conseqüentemente, começaram a pressionar o governo por moradias, dando início às primeiras favelas da cidade e ao primeiro processo de assentamento, em bairros distantes do centro, que no Distrito Federal são chamados de cidades-satélites, como foram designadas por Oscar Niemayer. De lá para cá a luta dos governantes distritais tem sido acirrada, com o intuito de suprir o déficit habitacional. Uns atacando com mais ênfase o problema do que outros, como no caso atual, em que o governo erradicou as mais de 60 favelas então existentes no Distrito Federal, mediante a remoção das famílias para lotes semiurbanizados, em áreas dotadas de infra-estrutura, que, com o apoio estatal e dos próprios assentados, já se consolidaram como cidades, nada deixando a desejar, em se comparando com as outras cidades construídas no início de Brasília. Esta eficiente ação do Distrito Federal proporcionou o reconhecimento das Nações Unidas, a ponto de convidar o Governador para falar na Assembléia Geral da ONU para Revisão e Avaliação da Agenda HABITAT, sobre a experiência levada a cabo no Distrito Federal. O convite partiu da Dirigente do centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos – HABITAT, que visitou em Brasília a cidade de Samambaia, a qual, com seus 250 mil habitantes, foi construída para assentar a população de baixa renda, constituída basicamente de ex-moradores de favelas, 24 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 de cortiços e de fundo de quintal, como são chamados em Brasília aqueles que moram de aluguel em minúsculos compartimentos nos fundos dos lotes residenciais já construídos. Foram criadas oito novas cidades, com infra-estrutura de água, luz, escolas, postos de saúde e de polícia, abrigando mais de 200 mil famílias, ou quase 600 mil habitantes. Esses assentamentos, ocorriam entregando-se o lote, mediante o instituto da concessão de direito real de uso, depois de o interessado submeterse a rigorosos critérios de seleção, dentre os quais: a renda familiar; não ser e nem ter sido proprietário de imóvel no Distrito Federal nos últimos 5 anos; não ter participado de outros programas de assentamento anteriormente; número de dependentes, e residir em Brasília há mais de 5 anos. Mais tarde, mediante lei aprovada na Câmara Legislativa, esses lotes foram transferidos aos legítimos ocupantes, mediante escritura de doação. Atualmente, a política de Assentamento está se realizando por intermédio das chamadas Associações Solidárias para Habitação, que são as Associações e Cooperativas Habitacionais. Problema tão sério no Distrito Federal, a Habitação ganhou capítulo especial na sua Lei Orgânica, que, verbis, assim dispõe: “Art. 327. A política habitacional do Distrito Federal será dirigida ao meio urbano e rural, em integração com a União, com vistas à solução da carência habitacional, para todos os segmentos sociais, com prioridade para a população de média e baixa renda; Art. 328. A ação do Governo do Distrito Federal na política habitacional será orientada em consonância com os planos diretores de ordenamento territorial e locais, especialmente quanto: I – à oferta de lotes com infra-estrutura básica; II – ao incentivo para o desenvolvimento de tecnologias de construção de baixo custo, adequadas às condições urbana e rural; III – à implementação de sistema de planejamento para acompanhamento e avaliação de programas habitacionais; IV – ao atendimento prioritário às comunidades localizadas em áreas de maior concentração da população de baixa renda, garantido o financiamento para habitação; R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 25 V – ao estimulo e incentivo à formação de cooperativas de habitação popular; VI – à construção de residências e à execução de programas de assentamento em áreas com oferta de emprego, bem como ao estimulo da oferta a programas já implantados; VII – ao aumento da oferta de áreas destinadas à construção habitacional. Parágrafo Único. As cooperativas habitacionais de trabalhadores terão prioridade na aquisição de áreas públicas urbanas destinadas a habitação, na forma da lei. Art. 329. Lei disporá sobre contratos de transferência de posse e domínio para os imóveis urbanos em programas habitacionais promovidos pelo Poder Púiblico, observadas as seguintes condições: I – o título de transferência de posse e de domínio, conforme o caso, será conferido a homem ou mulher, independentemente do estado civil; II será vedada a transferência de posse àquele que, já beneficiado, a tenha transferido para outrem, sem autorização do Poder Público, ou que seja proprietário de imóvel urbano; III – o título de domínio somente será concedido após completados dez anos de concessão de uso. Art. 330. O plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e orçamento anual garantirão o atendimento às necessidades sociais por ocasião da distribuição dos recursos para aplicação em projetos de habitação urbana e rural pelos agentes financeiros oficiais de fomento. Art. 331. É vedada a implantação de assentamento populacional sem que sejam observados os pressupostos obrigatórios de infra-estrutura e saneamento básico, bem como estudo prévio de impacto ambiental”. Como é de se notar, a habitação ganhou status de matéria constitucional no Distrito Federal. E a cooperativa habitacional, com o merecido reconhecimento estatal, tem se tornado a grande parceira do governo, na incansável busca da 26 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 solução do problema da falta de moradias. Registre-se que o apoio não se verifica, apenas às cooperativas voltadas à construção de moradias populares. Cooperativas Habitacionais formadas por profissionais liberais, executivos, empresários, servidores públicos e outras pessoas dos mais variados segmentos sociais, têm sido responsáveis pela construção de um dos mais modernos bairros da Capital Federal, que é Águas Claras, onde, pela força do associativismo, verdadeiros edifícios de luxo são construídos, para abrigar a população de classe média, que, provavelmente, se não fosse o sistema cooperativo, jamais, teria acesso à casa própria. Como sempre preconizei ao longo de minha vida, seja como mero cidadão, seja como homem público, o associativismo foi a maneira mais eficiente já encontrada para solucionar os problemas mais graves da humanidade, como é o da falta de habitação. Para finalizar trago à reflexão dos nobres congressistas entendimento doutrinário que afirma ser um dos métodos mais inteligentes de se aplicar a lei é o da interpretação teleológico, segundo a qual o intérprete deve questionar “o porquê” e o “para quê” da lei. O que há de efetivamente jurídico na norma é o seu fim, o seu alcance social. Alcance este que tenho, comungando com a tese apresentada acerca da dicção do. artigo 17, inciso I, alínea ‘f’ da Lei 8.666/93, quanto à destinação de área pública, sem licitação, para programas habitacionais de interesse social, seja de forma direta, seja por intermédio de Cooperativas Habitacionais. Assim, meu PARECER é no sentido de que a presente tese seja aprovada, com louvor, no âmbito deste XXI Congresso dos Tribunais de Contas. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:9-27, 2001 27 28 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:29-31, 2001 IDADE LIMITE PARA CONSELHEIRO E MINISTRO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Procurador-Geral do Ministério Público junto ao TCDF O Congresso Nacional está apreciando a proposta de excluir para os integrantes da carreira de auditores – ou Conselheiros e Ministros-substitutos o limite de idade de 65 anos, como requisito para ocupar o cargo de Conselheiro e Ministro das Cortes de Contas. (Proposta de Emenda Constitucional, na Câmara com nº 281-A-00) A primeira vista, trata-se de proposta casuística por excluir requisito genérico para o cargo de Ministro, beneficiando apenas os integrantes de uma carreira. Daí porque parece injustificável que essa proposta esteja ocupando a pauta de conversações de todos os Tribunais de Contas, no Brasil inteiro. Cabe trazer a reflexão oportuna advertência de Thomas Huxley: é comum as novas verdades começarem como heresias.... E, no caso, há muito mais do que a simples retirada do limite de idade. É preciso esclarecer: entre as peculiaridades de que se revestem os Tribunais de Contas, uma delas consiste exatamente em possuir em seus quadros o cargo de Auditores, os quais como já decidiu reiteradamente o Supremo Tribunal Federal devem ser providos por concurso público de provas e títulos1. Essa categoria 1 Auditor de Tribunal de Contas. Nomeação sujeita à prestação de concurso público. (art. 37, II da Constituição Federal.) Informativo STF, 12.5.99, nº 148, p. 4, ADIN nº 1.966 - ES - Relator: Min. Octávio Gallotti. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:29-31, 2001 29 funcional, tanto quanto os Analistas de Finanças e Controle, constituem um excelso substrato de agentes técnicos e devem, conforme já decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em um dos mais belos julgados, ser necessariamente convocados para compor o plenário quando ausente Ministro ou Conselheiro, por período igual ou superior a trinta dias.2 A própria Constituição Federal estabelece que o cargo de Auditor tem por natureza a função de substituto de Conselheiro e Ministro quando assegura que: “auditor, quando em substituição a Ministro, terá as mesmas garantias e impedimentos do titular e, quando no exercício das demais atribuições da judicatura, as de juiz de Tribunal Regional Federal.”3 Em breve estudo comparativo da situação dos Tribunais de Contas dos Estados é fácil verificar que a vaga de Conselheiro, reservada para Auditores, encontrará o seus integrantes no final de carreira, até com tempo de serviço para se aposentarem e, as vezes, com mais de 65 anos. Na verdade, muitos dos Auditores passam a maior parte do tempo substituindo os Conselheiros e Ministros porque é inevitável ausência por férias e outros motivos de pelo menos um integrante do plenário durante o ano todo. Assim, a proposta corrige uma grave distorção que certamente ocorrerá se mantido o limite de idade, para quem já exerce a função; corresponderá na prática a uma compulsória aposentadoria aos 65 anos. A Câmara dos Deputados, para tornar mais legítimo o exercício do poder legislativo, promoveu recentemente audiências públicas acerca desse relevante tema. Foram uníssonos os ouvidos, entre os quais grandes expoentes do controle como o Ministro Paulo Affonso, e o Presidente da Associação dos Tribunais de Contas, Flávio Régis. O registro histórico da importância dos Ministros e Conselheiros-substitutos foi feito pelo Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, aposentado, Sebastião Baptista Afonso, em alentado estudo que promoveu. Respondendo com mestria as poucas objeções feitas a essa PEC, em mais uma demonstração da sua capacidade de expender sólida argumentação o Ministro-substituto José Antonio Barreto Macedo, demonstrou cabalamente a inexistência de óbice legal e constitucional, a aprovação. Nessa audiência surgiram outros importantes argumentos como o fato de que se os auditores não puderem ter acesso ao cargo de Conselheiro ou Ministro 2 O art. 63 da Lei Complementar n° 1/94 não tem caráter facultativo no tocante à substituição dos Conselheiros do Tribunal de Contas do Distrito Federal pelos Auditores nem poderia tê-lo, porquanto o § 5° do art. 82 da Lei Orgânica do DF, que disciplina, é cogente. Mandado de Segurança n° 4.041 - DJ de 21.6.95. 3 Art. 73, § 4º, da Constituição Federal. 30 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:29-31, 2001 simplesmente se estará expungido da relação dos candidatos os que devotaram maior tempo a instituição e angariaram maior experiência. Os que como nós integrantes do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas, convivem com a intimidade dessas Cortes têm o direito de aplaudir essa iniciativa do Senado e, mais do que isso, o dever de tornar público o avanço que representa. Os auditores, que no cotidiano de seu labor integram o plenário apresentado proposta de decisão, e quando no exercício da função de Conselheiro e Ministro, substituem, valorizam ainda mais a atuação da Corte de Contas. Constituem um dos motivos da ausência de continuidade dos trabalhos, porque completam o quorum, sempre com competência e profissionalismo. Se, como temos defendido, a sociedade deve muito aos Tribunais de Contas, – que sistematicamente pecam pela exagerada discrição de suas relevantes atuações em favor da sociedade, – é fato que a sociedade também deve a essa categoria funcional que tem natureza substitutiva do corpo de julgadores. A Proposta de Emenda faz Justiça e representa importante avanço no aperfeiçoamento dessas instituições. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:29-31, 2001 31 32 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:33-41, 2001 LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E OS RECURSOS PÚBLICOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO E OS PODERES LEGISLATIVO E JUDICIÁRIO Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Procurador-Geral do Ministério Público junto ao TCDF No Brasil, desenvolveu-se a idéia de que restrições de gasto somente afetam os órgãos e entidades da Administração Pública, expressão que procuram restringir ao Poder Executivo. Por esse motivo, desenvolveu-se, após a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal, duas expressivas correntes de opinião. Pela primeira, à luz de notícias veiculadas pela imprensa oficiosa, apontando episódicos desmandos na gestão dos órgãos do Ministério Público, do Poder Judiciário e do Poder Legislativo, procura-se sustentar que o esforço no controle das contas públicas deve açambarcar, necessariamente, estes órgãos. Pela segunda, qualquer tentativa de restrição da gestão financeira deveria ser desconsiderada, por ofensa ao princípio da separação de poderes. Diversos órgãos vêm dedicando o esforço e a inteligência de seus agentes com o objetivo de definir o ponto de equilíbrio entre essas vertentes. O valor dessas iniciativas se faz indispensável, neste momento, em que ainda não se firmou a melhor exegese, notadamente na medida da possibilidade de influenciar os órgãos que estão constitucionalmente encarregados de decidir o entendimento definitivo e irrecorrível dessas fronteiras. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:33-41, 2001 33 I - Impactos imediatos da Lei de Responsabilidade Fiscal Disciplinando o tema finanças públicas, a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, parecia destinada a definir apenas arrecadação, despesa e endividamento. Como os Poderes Legislativo e Judiciário e o Ministério Publico, incluindo os Tribunais de Contas, detém pequena participação na aplicação de recursos públicos, – como regra nunca mais de 7% do total geral da despesa, em todas as unidades federadas, natural que dedicassem ao tema menor atenção. A Lei de Responsabilidade Fiscal, contudo, iniciou disciplinando pontos importantes, no cotidiano prático desses órgãos, muito além das pretensões do Congresso Nacional, pois os vetos impostos pelo Presidente da República cuidaram de forçar medidas de impacto imediato, como se observa. a. limite da despesa de pessoal Na elaboração da norma, o Congresso Nacional tratou de garantir a autonomia dos poderes e do Ministério Público, consagrando a oportunidade de disciplinamento específico, em cada unidade federativa, dos limites da despesa de pessoal, colocando apenas percentuais indicativos de distribuição, a serem considerados, na medida dos interesses regionais próprios, sempre por meio de lei. A norma que garantia autonomia foi consagrada no art. 20, § 6º que dispunha: “Art. 20. A repartição dos limites globais do art. 19 não poderá exceder os seguintes percentuais: ... § 6º. Somente será aplicada a repartição dos limites estabelecidos no caput, caso a lei de diretrizes orçamentárias não disponha de forma diferente” No ato de promulgação da LRF, decidiu o Exmo. Sr. Presidente da República vetar esse parágrafo, acolhendo a manifestação dos seus órgãos de assessoramento, nos seguintes termos: “Razões do veto: A possibilidade de que os limites de despesas de pessoal dos Poderes e órgãos possam ser alterados na lei de diretrizes orçamentárias poderá resultar em demandas ou incentivo, especialmente 34 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:33-41, 2001 no âmbito dos Estados e Municípios, para que os gastos com pessoal e encargos sociais de determinado Poder ou órgão sejam ampliados em detrimento de outros, visto que o limite global do ente da Federação é fixado na Lei Complementar. Desse modo, afigura-se prejudicado o objetivo da lei complementar em estabelecer limites efetivos de gastos de pessoal aos três Poderes. Na linha desse entendimento, o dispositivo contraria o interesse público, motivo pelo qual sugere-se a oposição de veto.” Em relação ao limite de despesa de pessoal do Poder Legislativo, a repartição proporcional entre Poder Legislativo e Tribunal de Contas, mantendo a situação dos três últimos exercícios, ficou garantida na própria Lei de Responsabilidade Fiscal.1 Até hoje repousam dúvidas sobre a constitucionalidade do art. 20 e, ainda mais, sobre a impossibilidade de a lei de diretrizes orçamentárias dispor de modo diferente. Isso porque a Constituição Federal autoriza à lei complementar dispor sobre limites da despesa de pessoal da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, mas formalmente não autoriza a interferir na economia interna das unidades federadas. Por isso, multiplicaram-se os entendimentos de que a norma do art. 20 seria inconstitucional. O Supremo Tribunal Federal após ampla discussão decidiu: “...prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, vencidos os Senhores Ministros Ilmar Galvão (Relator), Sepúlveda Pertence, Octavio Gallotti, Néri da Silveira e o Presidente (Ministro Carlos Velloso), indeferiu a medida cautelar de suspensão dos efeitos do artigo 20 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Retificou o voto proferido anteriormente o Senhor Ministro Marco Aurélio. Em seguida, o julgamento foi adiado por indicação do Relator. Plenário, 11.10.2000.” É importante notar que: • esse julgamento, – do pedido de liminar, – em relação aos demais dispositivos ainda não foi concluído; 1 Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000: Art. 20 ... § 1o. Nos Poderes Legislativo e Judiciário de cada esfera, os limites serão repartidos entre seus órgãos de forma proporcional à média das despesas com pessoal, em percentual da receita corrente líquida, verificadas nos três exercícios financeiros imediatamente anteriores ao da publicação desta Lei Complementar. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:33-41, 2001 35 • o fundamento dos voto dos Ministros vencidos (Ministros Carlos Velloso, Ilmar Galvão, Sepúlveda Pertence e Octavio Gallotti) foi no sentido de que a Constituição reservou à lei complementar a fixação de limites de despesa nos três poderes nas esferas federal, estadual e municipal. Por isso, justifica-se que, mais recentemente, venha sendo bastante discutida a possibilidade do §5º do art. 20 ser entendido dissociado da interpretação histórica que o ligava ao § 6º, aqui referido e vetado. Dispõe essa norma o seguinte: Art. 20... “§ 5o Para os fins previstos no art. 168 da Constituição, a entrega dos recursos financeiros correspondentes à despesa total com pessoal por Poder e órgão será a resultante da aplicação dos percentuais definidos neste artigo, ou aqueles fixados na lei de diretrizes orçamentárias.”2 Interpretada isoladamente essa norma, parece admitir a possibilidade de a lei de diretrizes orçamentárias definir limites próprios para a despesa de pessoal do Poder Legislativo, como um todo. Como a repartição dentro desse poder está assegurada no § 1º desse mesmo dispositivo, restaria a possibilidade de a LDO alterar as regras do próprio artigo 20, para assegurar entre os Poderes e Ministério Público percentuais diferentes. Por esse motivo, o tema ainda merece debates, especialmente no que se refere a fixação de outros limites, mesmo que numa interpretação histórica, que leve em conta as razões do vetos, a parte em epígrafe do § 5º, do art. 20, não pudesse ensejar essa conclusão. Juridicamente, quando a norma é promulgada adquire vida própria, podendo ser interpretada, num dos meios consagrados pela doutrina, dissociada de suas razões originais. Lança luzes nessa direção, o fato de que, na continuação do julgamento dessa mesma ADIn, o Supremo Tribunal Federal deixou clara a ofensa do § 3º do art. 9º, ao princípio da separação dos poderes. De fato, noticia o informativo da Excelsa Corte: “O plenário do STF suspendeu hoje (22/02) dispositivo da LRF que autorizava o Executivo a limitar os valores a serem repassados para o Legislativo, Judiciário e o Ministério Público. A decisão foi tomada pelo 2 Grifos não são do original. 36 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:33-41, 2001 STF ao conceder liminar em Ação Direta de Inconstitucionalidade (2.238) ajuizada pelo PC do B, PT e PSB, derrubando o parágrafo 3º do artigo 9º da Lei Complementar nº 101, de maio de 2000. O dispositivo suspenso diz que no caso de os Poderes Legislativo e Judiciário e o MP não promoverem a limitação no prazo estabelecido no “caput”, é o Poder Executivo autorizado a limitar os valores financeiros segundo os critérios fixados pela Lei de Diretrizes Orçamentárias. O artigo 9º da lei estabelece que se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo das Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão por ato próprio e montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação, empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela LDO. Na ação, os partidos políticos sustentam que a limitação da movimentação financeira do Legislativo e do Judiciário contraria o princípio constitucional da separação dos poderes. Os demais artigos questionados pelos partidos serão examinados nas próximas sessões plenárias do Tribunal.” Considerando o dinamismo dos fatos e que ainda pende de julgamento a decisão, nesse momento, já é possível assentar as seguintes conclusões: • a distribuição dos limites de despesa de pessoal, feito no art. 20, da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, por decisão adotada liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal, é constitucional; • embora constitucional o dispositivo, não foi decidido, ainda, se esses percentuais podem ser alterados por norma específica das demais esferas de governo, ou seja, se a lei de diretrizes orçamentárias estadual, distrital ou municipal, pode estabelecer, à luz do § 5º do art. 20, percentuais diferentes entre o Poder Executivo, Poder Judiciário, Poder Legislativo e Ministério Público. Se for pretendida essa alteração, por força do § 1º, do mesmo artigo, a distribuição da parte do Poder Legislativo, entre si e o Tribunal de Contas, devem observar a repartição proporcional feita no ano de 1999; • Poder Executivo não pode restringir a transferência de recursos a esses órgãos, caso não limitem o empenho na forma do art. 9º, da Lei de Responsabilidade Fiscal. Continuam, no entanto, válidas as demais prescrições desse artigo, podendo o Poder Executivo recomendar que seja limitado o empenho, caso se verifiquem os fatos indicados nesse dispositivo. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:33-41, 2001 37 Por outro lado, só ficaram garantidos os valores previstos na lei orçamentária anual, nos termos dos arts. 2º, 99 e 168 da Constituição Federal. É importante notar que os gastos de uma estrutura de poder (Legislativo, Judiciário e Ministério Público e de Tribunal de Contas) não é diretamente proporcional ao volume de recursos geridos pela unidade federada. Numa representação gráfica não se apresentaria de forma linear. Isso porque, para as pequenas estruturas, há necessidade de maior investimento, assim como a partir de certo valor, torna-se quase uma constante. Por esse motivo, compreende-se que é comum que quanto maior o Estado ou Município, em termos de arrecadação, o órgão, proporcionalmente consuma menos na sua manutenção. Inversamente, em unidades federadas menor, cada um dos poderes vai consumir mais recursos proporcionalmente à receita corrente líquida. Nesse ponto, a Lei Complementar nº 101/2000 foi insensível. Há nesse passo um aspecto importante a considerar. Mesmo reconhecendo que a Lei de Responsabilidade Fiscal tem forte conteúdo moralizador pode a camisa de força do art. 20 ensejar tal redução de despesa de pessoal que implique na extinção do órgão ou impossibilidade da continuação das funções. Considere-se, por exemplo, uma região carente onde a aplicação do percentual ensejasse na remuneração apenas dos membros do Plenário de um Tribunal de Contas. Ora, a aplicação dos limites da LRF impediria a própria continuidade do Tribunal! Se tal ocorresse, parece possível buscar o entendimento de que a norma, propositadamente genérica, não regulou uma tal situação de conflito entre a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, que limita a despesa de pessoal, e a norma constitucional que obriga a existência de um Tribunal de Contas. Desse modo, embora considere-se que a norma do art. 20 da Lei de Responsabilidade Fiscal não é inconstitucional, será possível flexibilizar sua aplicação exatamente para atender à própria Constituição. b.outros limites de despesa com pessoal Há ainda outras restrições, que estão aquém do limite máximo permitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Em relação aos chamados limites prudenciais, se atingido 95% do limite estabelecido no art. 20, não poderá o órgão ou Poder conceder vantagem, prover cargo ou contratar horas extras, nos moldes definidos no §1° do art. 22. Se atingido 90% do limite estabelecido nos art. 20, deverá o Tribunal de Contas alertar a autoridade a respeito. 38 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:33-41, 2001 Especificamente, em relação aos reflexos da Emenda Constitucional nº 25 sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal3, cabe asserir que a mesma foi promulgada antes da Lei de Responsabilidade Fiscal. Portanto, aplica-se aqui a vetusta regra de hermenêutica segundo a qual a lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior (art. 2º, § 2º da Lei de Introdução ao Código Civil4).Obiviamente o legislador da Lei Complementar nº 101/2000, merece censuras pelo desacato à Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, de acordo com o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação de atos normativos que menciona.5 Desse modo, ambas as normas co-existem no mundo jurídico e ambas são limitativas do poder de gasto. Não há conflito porque possuem bases de cálculo diferentes e amplitudes diferentes, mas será comum atender o limite de uma e não de outra norma. Em síntese, a despesa do legislativo deve estar abaixo dos dois limites. Como regra, os limites da Emenda Constitucional são mais rigorosos. c. restos a pagar em final de mandato dos membros do Poder Legislativo, Poder Judiciário e Ministério Público Outro aspecto interessante, objeto de restrição do art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, está na vedação dirigida ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20 de, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito. Em princípio, a disponibilidade de caixa desses órgãos é ditada pelo repasse feito pelo Poder Executivo. Como regra, inclusive, estariam afastados do uso eleitoreiro de verbas públicos, comumente ocorrido no final de mandato do Poder Executivo. Assim, a vedação, em princípio, não teria o fundamento justificador suficiente para impor na prática concreta. Aliás, como a maioria desses mandatos é de um ano, ou dois, a norma em tela acarretaria sérios transtornos à atividade administrativa fora do Poder Executivo. Em boa hora, a lei de diretrizes orçamentárias federal para o ano 2001 3 DOU de 15.2.2000. Decreto-Lei nº 4.657, de 4.9.1942. 5 DOU de 27.2.98 4 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:33-41, 2001 39 - Lei nº 9.995, de 25 de julho de 2000 - pretendeu dispor que as restrições do art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, não se aplicaria aos Poderes Legislativo e Judiciário e ao Ministério Publico. Contudo, como não poderia deixar de ser, – face a contrariedade à Lei Complementar, – a norma foi vetada, mantendo o entendimento de que são aplicáveis a todos os Poderes essa restrição. Essa é, pois, a inteligência que decorre do veto imposto ao parágrafo único do art. 74 da Lei nº 9.995, de 25 de julho de 2000. d. demais disposições São aplicáveis aos Poderes Legislativo e Judiciário e ao Ministério Publico as regras de direito financeiro instituídas pela Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, das quais cabe destacar; • necessidade do ordenador de despesas fazer a declaração de compatibilidade, prevista no art. 16, na ocasião de emissão de empenhos ou realização de licitações, ressalvados os casos de despesas consideradas irrelevantes. Sobre o assunto, insta notar que despesa irrelevante na esfera federal foi definida como a inferior à prevista nos arts. 24, I e II, da Lei nº 8.666/93, nos termos do parágrafo único do § 4º do art. 16, ao comando do caput do mesmo artigo. Parece mais acertada, porém, a exegese que amplia a exigência a todos os casos de licitação e empenho, em face do que dispõe o próprio art. 74 da Lei nº 9.995, de 25 de julho de 2000; • restrições ao aumento de pessoal, impostas pelo art. 71, da Lei de Responsabilidade Fiscal para os Poderes Legislativos e Judiciário e ao Ministério Publico que estiverem abaixo do limite definido no art. 20 do mesmo diploma legal; • restrições ao aumento de despesa com serviços de terceiros efetuada com vistas a substituição de empregados e servidores6; • restrições à criação de despesa de caráter continuado, na forma do art. 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal; • obrigação de zelar pela conservação do patrimônio público – art. 45 –, antes de iniciar novos projetos. 6 Veja a propósito os comentários ao art. 18, § 1º e 72 no livro: FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby . Responsabilidade Fiscal, na função do ordenador de despesas, na terceirização de mão-de-obra e na função do controle administrativo. Brasília: Brasília Jurídica, 2001. 40 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:33-41, 2001 II – Conclusões Dois órgãos terão primazia na definição das diversas interpretações da Lei de Responsabilidade Fiscal, até a criação do Conselho de Gestão Fiscal, previsto no art. 67 da mesma: o Poder Judiciário e os Tribunais de Contas. O primeiro, no controle concentrado e difuso da constitucionalidade, e na aplicação das penalidades impostas na aplicação da Lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000, que tipificou os crimes de desobediência à Lei de Responsabilidade Fiscal. O segundo, pelo controle difuso da constitucionalidade, na forma permitida pela súmula 347 da Supremo Tribunal Federal,7 e na interpretação da norma, com caráter vinculante, quando responder consulta, na forma prevista8 no art.1º, inc. XXVII, da Lei nº 8.443, de 16 de julho de 19929, – Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, – normalmente repetida nas leis orgânicas dos demais Tribunais de Contas. É imperioso que, respeitado o esforço pela gestão fiscal responsável, sejam as interpretações adotadas com parcimônia a fim de que a concretização da norma se opere com inteligência e de modo a resguardar a independência dos poderes. 7 O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público. 8 Art. 1º Ao Tribunal de Contas da União, órgão de controle externo, compete, nos termos da Constituição Federal e na forma estabelecida nesta Lei: ... XVII - decidir sobre consulta que lhe seja formulada por autoridade competente, a respeito de dúvida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes à matéria de sua competência, na forma estabelecida no Regimento Interno. 9 DOU de 17.7.1992. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:33-41, 2001 41 42 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:43-49, 2001 UMA REFLEXÃO SOBRE A EFICIÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE CONTAS Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Procurador-Geral do Ministério Público junto ao TCDF Com freqüência vem a balha a questão pertinente a eficácia do controle externo da Administração Pública e, quase sempre indissociada, a forma de escolha dos Ministros e Conselheiros dos Tribunais de Contas. Há pouco tempo, veículos da imprensa oficiosa noticiaram questionamentos do então Presidente do Congresso Nacional - Antônio Carlos Magalhães - acerca da eficiência e eficácia do Tribunal de Contas da União. O tempo e o convívio próximo a essas instituições trouxeram o dever de análise parcimoniosa e refletida sobre a importância que deve ser dispensada à imagem destas instituições. Como Procurador do Ministério Público junto a um Tribunal de Contas, sinto-me no dever de tentar induzir a sociedade a um processo de reflexão construtiva de forma a abrir os horizontes à novas perspectivas e fazer das críticas um elemento de construção. Muitas censuras têm merecido o atual critério de escolha dos dirigentes dos órgãos de controle externo no Brasil. Também reconheço que os Tribunais de Contas merecem críticas, desde a forma de escolha de seu corpo julgador até o desenvolvimento dos processos e execução de suas decisões. Porém, na linha evolutiva histórica, é ainda merecedor de aplausos: com a Constituição de 1988, deixou-se para traz um critério de escolha de exclusiva interferência do Chefe do Poder Executivo para criar R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:43-49, 2001 43 um sistema com origens distintas em quatro extratos: indicação do Legislativo, indicação do Executivo, escolha entre auditores de carreira e escolha entre membros do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas. Predominando, em termos quantitativos – dois terços do total – o primeiro extrato, aos três, remanescentes, coube a fração resultante, igualmente, dividida. Ademais, assegurou-se, de forma razoavelmente objetiva, os requisitos a serem preenchidos pelos candidatos. Ainda não se atingiu, contudo, um critério livre de interferências, pois que o Poder Legislativo e o Executivo também prestam contas e, por isso mesmo acaba por existir uma relação que embora útil ao sistema de checks and balances, pode degenerarse em promiscuidade. Certamente é indefensável o argumento de que o homem faz o cargo e que homens há que jamais deixariam envolver ou comprometer seu discernimento de justo por qualquer relação estranha ao mundo do processo. Aliás, para o presente debate, nada poderia ser mais ruinoso do que evidenciar fatos precisos, situações particulares, pessoas determinadas que adotaram essa ou aquela conduta irregular. A filosofia ensina que não é desse modo que se constrói a theoria; ao contrário exige-se amadurecida reflexão, distanciamento de paixões, sabedoria haurida da contemplação, sob pena de trazendo a exame o caso concreto reduzir-se o vigor do debate e a construção do ethos. Justificável sob o aspecto jurídico-filosófico, que predomine o Poder Legislativo, que se compõe de legítimos representantes do povo, única instituição legitimada a instituir tributos e definir, por meio da lei orçamentária, as prioridades da aplicação dos recursos públicos. Por esse motivo, é também a mais legitimada a escolher a maioria dos membros do órgão técnico, independente e autônomo, que auxilia no desempenho da função do controle externo da Administração Pública. Tem se verificado, entretanto, que vigora entre as várias esferas do Poder Legislativo o costume da indicação desses membros recair sobre parlamentares ou ex-parlamentares. Esta prática costumeira, deve ser esclarecido, não encontra respaldo em nenhuma norma jurídica posta, não necessitando, pois de reforma de leis para alteração deste critério, mas de conscientização dos componentes deste Poder. O Constituinte inovou também, para melhor, ao estabelecer critérios pelos quais infere-se o conhecimento, a maturidade intelectual e a experiência dos indicados. Regrando estes requisitos, estabeleceu no § 1o do art. 73 da Constituição Federal que: “§ 1o Os Ministros do Tribunal de Contas da União serão nomeados dentre brasileiros que satisfaçam os seguintes requisitos: 44 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:43-49, 2001 I - mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade; II - idoneidade moral e reputação ilibada; III - notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública; IV - mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos mencionados no inciso anterior.” A imprensa e a sociedade, em geral, têm apresentado críticas ao modelo em vigor, seja em relação as vagas reservadas à indicação do Poder Legislativo, seja em relação a única vaga de livre provimento do poder Executivo. Por vezes, fundadas no comprometimento político-ideológico, com prejuízo a isenção, por vezes pela equivocada presunção de capacidade técnica com resultado negativo sobre os próprios julgamentos. Inegável, porém, que o atual sistema representou significativos ganhos para o cidadão, na medida em que avançou na linha da transparência e definiu critérios aferíveis. A demonstrar a evolução, basta uma análise comparativa da qualidade das decisões no espaço de tempo da última década. Os Tribunais de Contas evoluíram, sem laivo de dúvida; se a trajetória operou em maior ou menor consonância com a expectativa da sociedade pode-se discutir, mas mesmo os mais ásperos críticos reconhecem como válida a premissa assentada. Se é possível captar essas críticas e absorver delas o que possui de construtivo, cabe obtemperar que aos Conselhos de fiscalização das profissões regulamentadas pode ser imputada capital omissão em detrimento da sociedade e de seus próprios integrantes. Em mais de uma oportunidade já observei que a Ordem dos Advogados do Brasil, o Conselho Federal de Administração, o Conselho Federal de Contabilidade e o Conselho Federal de Economia, - e seus correspondentes regionais – assim como os Partidos Políticos, com uma única exceção, têm permanecido distantes do processo de escolha. No entanto, seus componentes sentem-se no Direito de exercer o poder de crítica. Que tal a autocrítica? Já houve pleito por parte de alguns seguimentos políticos, no sentido de que a escolha de Ministros fosse através de concurso público. A iniciativa de alterar o critério de seleção vem contando com expressivas simpatias no país, inclusive com defensores integrantes dos próprios tribunais, além de parlamentares de renome. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:43-49, 2001 45 Aqui vale lembrar uma importante evolução registrada recentemente no sistema português, o qual aproxima uma combinação de provas de títulos, abertas ao público, com posterior seleção e escolha. Considerando que a preservação dos candidatos e suas relações devem ser buscadas na estruturação de um modelo, mostra-se conveniente levar em consideração a possibilidade de seleção por diferentes extratos originários, variados critérios de seleção, com predominância do concurso. No estudo intitulado Regime de Controle Jurisdicional de Contas Públicas estruturamos um sistema capaz de atender essas pretensões. Como essas inquietantes questões ainda não chegaram a um termo, há um longo caminho a percorrer. Particularmente entendo que o sistema de escolha ainda pode evoluir, mas é forçoso reconhecer que na atualidade tal responsabilidade encontra-se corporificada na instituição que de forma mais legítima representa o povo. Os apontados vícios de escolha, quando procedentes devem ser imputados a quem deu causa, não isoladamente como uma falha estrutural do modelo. O Brasil tem parlamentares sérios, como tem parcelas do povo esclarecida. É dever de todos – inclusive da imprensa – dar espaço a esse segmento e envidar esforços para ampliá-lo. Portanto, soa infantil querer criticar este ou aquele escolhido quando a própria sociedade se omitiu no processo. Se o povo foi capaz de retirar, pelo processo democrático um Presidente da República porque não há mobilização quando se tratar de escolher um controlador de contas? Sobre a estrutura do controle e da corrupção há várias formas, mas até o momento nenhuma mais avançada do que o modelo estruturado sob a forma de Tribunal de Contas. Como lembra o eminente Ministro Lincoln Magalhães da Rocha, a comunidade européia ao delinear sua estrutura, nos mais modernos postulados de modernidade, ao lado do Banco Central e do seu Parlamento criou uma Corte de Contas. Divergindo do modelo que lhe é oposto do controlador representado por um só agente público, o Tribunal de Contas – atua sabiamente de forma colegiada, para que a tentação do abuso do poder não perverta; para que a solidão do processo decisório não isole da realidade do mundo; para que o valor da comunhão imponha o freio à tirania, tantas vezes própria à falível natureza humana e para que o sentimento de repartir o peso da decisão seja igualmente dividido com a satisfação do dever cumprido. Decidindo de forma colegiada, o TCU conta com um corpo técnico, para inspecionar e auditar, do mais alto nível, selecionado após rigoroso concurso público. 46 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:43-49, 2001 É dotado ainda, de Ministério Público com fisionomia distinta daquele que atua junto ao Poder Judiciário. O modelo representa o que de mais avançado se estruturou para exercer a função do controle, até o momento. A função dos Tribunais de Contas é até hoje pouco compreendida. Está na Constituição Federal que auxilia o Congresso Nacional; não é órgão auxiliar, porque julga as contas dos agentes dos três Poderes. Julga sim e com todas as letras; não o faz porque houve equívoco na redação da Constituição Federal, mas porque essa em respeito à tradição histórica do Brasil, como de vários outros países, garantiu a possibilidade das contas serem julgadas por um corpo técnico. Por esse motivo não é assegurada a ampla revisibilidade judicial das decisões dos Tribunais de Contas pelo Judiciário, havendo o Constituinte estabelecido que a lei não excluirá da apreciação do Poder judiciário lesão ou ameaça a Direito”, embora na própria Constituição Federal encontrem-se as exceções definidas. Somente em relação as contas anuais do País, - impropriamente denominadas de contas do Presidente da República – é que se limita a emitir parecer prévio, cabendo o julgamento ao Poder Legislativo. É verdade que os Tribunais de Contas estão aquém do seu dever de combater a corrupção. Não é menos verdade, porém, que diariamente em todos os Tribunais de Contas membros e servidores lançam luzes numa perspectiva de aperfeiçoamento. Com todo o espectro de uma legislação retrógrada, vislumbram-se firmes direcionamentos na busca da efetivação de princípios constitucionais do mais elevado valor. Foi, por exemplo, o Tribunal de Contas da União que determinou que as taxas de inscrição em concurso deveriam ater-se aquém dos limites legais, e apenas o suficiente para cobrir os custos do concurso, bem como que as mesmas deveriam ser recolhidas ao tesouro, para evitar a indústria da esperança em que os realizadores recebiam diretamente os valores, sem prestação de contas. Foi, por exemplo o Tribunal de Contas do Distrito Federal que determinou que o prazo de inscrição num concurso deveria ter prazo compatível com a clientela a ser recrutada. Também foi esse Tribunal que numa decisão corajosa deu interpretação ampliativa do art. 57, inc. II, da Lei n° 8.666/93, para permitir que o fornecimento contínuo tivesse o mesmo tratamento dos denominados serviços contínuos. Também deve-se aos Tribunais de Contas terem erigido o fator previsibilidade como elemento descaracterizador das chamadas emergências R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:43-49, 2001 47 fabricadas numa das mais relevantes auditorias já feitas no Brasil, com o objetivo de por termo as obras inacabadas. Coube, mais recentemente ao Tribunal de Contas da União, em mais uma demonstração de valoração de causas e de julgamento justo, recomendar ao repassador dos recursos que os liberasse em tempo suficiente para que fosse cumprido o procedimento licitatório, diante de uma compra emergencial, feita pela impossibilidade temporal de realizar o processo licitatório. Espera-se, assim, por fim às famosas multas aos ordenadores de despesa que, premidos pelo tempo, tentavam utilizar recursos contingenciados por longo tempo pelo repassador. E o que dizer da auditoria de programas da saúde, da merenda escolar, dos recursos da educação, dos recursos do FGTS e do FAT, cujas conclusões impuseram o redirecionamento das ações do governo? Não foi por acaso o TCU que no passado chegou a impedir o aumento das alíquotas da previdência? Não foi essa mesma Corte que conseguiu em apenas dois anos recompor o erário lesado pelo escândalo da mandioca, que ceifou a vida de um Procurador da República, enquanto a Justiça levou mais de vinte anos só para decidir quem vai julgar os assassinos? São exemplos de decisões que exigem a ponderação dos vetores qualitativos da eficiência e eficácia, bem como da economicidade e que ao Poder Judiciário não competiria, vez que sujeitos ao exame estrito da legalidade. Se o modelo estrutural sob a forma de Tribunais de Contas, se as funções, se o valor das suas decisões forem compreendidos, poderão ser aperfeiçoados. Muito o TCU tem feito e muita mais há por fazer. O combate à corrupção somente é eficaz se resultar no resgate da função de punir, no profissionalismo no serviço público, na justa e adequada remuneração dos agentes públicos e controladores. É, portanto, dever da sociedade e vetor direto do amadurecimento de um povo. Nesse rumo, a instituição Tribunal de Contas também caminha e precisa da crítica construtiva da sociedade e dos seus segmentos organizados que devem também reconhecer os progressos havidos. O Direito presume que todos leiam o Diário Oficial. É justo exigir-se dos críticos que se dediquem mais a conhecer e que tenham a permanente compreensão de que o trabalhado de demolidores não edificará um País. Os órgãos de controle têm uma função essencial na manutenção dos valores éticos de uma sociedade e podem alavancar a restauração dos mais nobres 48 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:43-49, 2001 valores da cultura moral, inclusive servindo-se da indignação popular para colocá-la a serviço da dignidade. Nesse árido tema, mais do que em outros, a parcimônia e o equilíbrio de espírito se impõem. É de fundamental importância que a imprensa, como elemento de expressão da sociedade, esteja vigilante e manifeste-se para influenciar o processo decisório. Em passado recente, a Folha de São Paulo inibiu pretendida nomeação de Ministro, argüindo inclusive, sua condenação em contas regulares com ressalvas pelo Tribunal de Contas da União. Também foi a imprensa, inclusive no Distrito Federal, o Correio Braziliense, que muitas vezes motivou auditorias. Os questionamentos do Presidente do Congresso Nacional, Senador Antônio Carlos Magalhães, merecem ser considerados, quando busquem aperfeiçoar o modelo, já em linha evolutiva, dos Tribunais de Contas. Quem controla a corrupção exerce papel fundamental nos desígnios da democracia, por isso os tribunais de contas são tão importantes. Também a sociedade e a imprensa não podem deixar de contribuir: devem aproveitar o calor do debate para cobrar mudanças eficazes que contribuam para o melhoramento das instituições e da nação. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:43-49, 2001 49 50 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:51-56, 2001 PRINCÍPIOS REGEDORES DA ADMINISTRAÇAO PUBLICA * Sebastião Baptista Affonso Consultor Jurídico do TCDF A Constituição, de 5.10.1988, ao dispor sobre a ADMINISTRAÇÃO PUBLICA, no contexto da Organização do Estado, inovadoramente, explicitou a sua necessária subordinação aos denominados princípios fundamentais da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, mais adiante acrescido o da eficiência, pela Emenda Constitucional n.° 19, de 4.6.1998, sendo certo que este último e mais o da eficácia, como ainda os da legitimidade e economicidade, já estavam previstos, respectivamente, nos artigos 74, item II, e 70 da mesma Carta Magna, que dispõem sobre os aspectos do exercício das funções dos controles interno e externo. Como é sabido, os institutos próprios do Direito Administrativo, assim como os seus princípios informativos e as suas teorias, de um modo geral, ao longo dos tempos, estavam sendo objeto apenas de desenvolvimento doutrinário e construções pretorianas, sem haver sobre isso um tratamento mais específico e aprofundado, em termos de direito positivo. O próprio conceito de Administração Pública e sua abrangência, bem como sua repartição em Direta e Indireta, só passou a ter um tratamento legal mais explicitado, com o advento da chamada reforma administrativa, implantada a partir do Decreto-lei n° 200, de 25.2.1967, * Palestra proferida, dia 21.6.2001 no Curso de Aperfeiçoamento dos Assistentes Jurídicos, promovido pelo Centro de Estudos Victor Nunes Leal, da Advocacia Geral da União. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:51-56, 2001 51 que ainda mesmo assim limitou-a a, equivocadamente, ao âmbito restrito do Poder Executivo Federal. De igual modo a necessidade de observância dos princípios da legalidade e moralidade administrativa, por parte da Administração Pública, passou a ter suporte legal e instrumento jurídico próprio de controle judicial, com o surgimento da Lei n° 4.717, de 29.6.1965, que praticamente criou a intitulada Ação Popular. Desde os primórdios da existência do Tribunal de Contas da União, criado no início da República, as normas constitucionais e legais relativas à competência desse órgão já lhe conferiam poder de controle da legalidade de atos e contratos administrativos. O Mandado de Segurança, também, surgiu da necessidade de haver um remédio judicante de controle da legalidade dos atos, de quaisquer autoridades administrativas, que acarretassem violação de direito individual líquido e certo. Um dos mais notáveis administrativistas, o Professor Ruy Cirne Lima, na sua preciosa obra Princípios de Direito Administrativo. 4ª ed. Livraria Sulina ed. 1964, ressalta como princípio fundamental, que faz do Direito Administrativo ser um ramo especial e uma disciplina autônoma, o da utilidade pública, a qual constitui a finalidade própria da Administração Pública, cuja preterição no ato administrativo acarreta sua nulidade, conforme veio depois a assim ser preceituado no artigo 2°, letra c, na citada Lei da Ação Popular. Alguns autores famosos dão ênfase, ainda, aos princípios da auto-tutela, da hierarquia (do qual decorrem as relações de coordenação e subordinação entre servidores, com oportunidade ao exercício de Poder Disciplinar ) e ao da especialidade, pelo qual os órgãos públicos e as entidades da Administração Pública só podem exercer poderes funcionais e atividades, para alcançar os seus fins, determinados e limitados no seu ato de criação (cfr. Lições de Direito Administrativo do Prof Sérgio de Andréa Ferreira, Editora Rio, 1972, p. 3 8 e 44). O professor Hely Lopes Meirelles, de saudosa memória, considerou como princípios básicos da Administração os da legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade, dos quais tratou com destaque na sua monumental obra Direito Administrativo Brasileiro. Já o eminente Professor José Afonso da Silva, constitucionalista emérito, considerou como relevantes princípios constitucionais da Administração Pública os da legalidade, finalidade, impessoalidade, moralidade, probidade, publicidade, eficiência, licitação, prescrição de ilícitos, responsabilidade civil, participação e autonomia gerencial (cfr. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18 ª ed. Malheiros, 2000, p. 650/660 ). O Professor José dos Santos Carvalho Filho, também, destaca como princípios fundamentais expressos os da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, considerando princípios reconhecidos os da supremacia do interesse público, auto-tutela, indisponibilidade, 52 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:51-56, 2001 continuidade e razoabilidade (Ver Manual de Direito Administrativo. 4ª ed. Lumen Juris, 1999, p. 12/20). Outros administrativistas ilustres e não menos famosos, como é o caso do Professor Diógenes Gasparini, ampliam o rol dos princípios, além desses já referidos da auto-tutela, legalidade, moralidade e publicidade, indicam mais os da continuidade, finalidade, igualdade, impessoalidade, indisponibilidade, licitação e supremacia do interesse público (cfr. Direito Administrativo. 4ª ed. Saraiva, 1995, p. 617, 10/14 e 286), como também do Professor Diogo de Figueiredo, que além de todos esses acrescenta os da descentralização, discricionariedade, executoriedade, modicidade, motivação, oficialidade, presunção de veracidade e legalidade, razoabilidade, realidade, recorribilidade, disciplina, aperfeiçoamento, contraditório , devido processo legal, dentre vários outros (cfr. Curso de Direito Administrativo. 9ª ed. Forense, 1990, p. 70/85, 107, 173/77, 368/69 etc). De igual modo, o Professor Nagib Slaibi Filho, em suas Anotações a Constituição de 1988, comenta vários destes e outros princípios extraídos do texto constitucional (2.ed. Forense, 1989). Agora bem mais recente, editou-se a Lei n° 9.784, de 28.1.1999, que veio regular o processo administrativo, no âmbito da Administração Pública Federal, impondo-lhe a observância dos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança judicial e eficiência, mas deixou de incluir nesse rol os da impessoalidade, publicidade, eficácia, legitimidade e economicidade exigidos nos artigos 37, 70 e 74/II da Constituição. A Constituição e toda legislação pertinente preceituam a necessidade da observância dos princípios que mencionam, por parte da Administração Pública, mas não definem, propriamente, em que eles consistem, tarefa essa delegada à doutrina e a jurisprudência, daí buscar-se fazer uma síntese condensada do que dizem os doutos, em especial aqueles aqui antes mencionados, como segue: 1) Legalidade - consiste em que qualquer ato da Administração esteja de conformidade com as regras editadas pelo Estado, como condição essencial de sua validade, não podendo nenhuma autoridade tomar decisão alguma contrariando norma vigente do ordenamento jurídico (a observância desse principio fundamental é constatada com a correta indicação em cada ato da sua devida fundamentação legal, já que a Administração Pública só pode atuar nos limites do que a lei lhe autorize ou permita fazer). R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:51-56, 2001 53 2) Impessoalidade - é a atuação da autoridade administrativa sem objetivar fins pessoais, devendo a Administração buscar sempre os melhores resultados, de interesse coletivo, consubstanciado na finalidade de interesse público, que também é um dos elementos essenciais de validade dos atos administrativos (esse principio, de certa forma, se confunde com o da isonomia no trato dos administrados pelo administrador). 3) Moralidade - é a necessidade de que a gestão da coisa pública seja feita de forma a atender aos padrões de conduta normalmente aceitos pela sociedade, em determinado momento, como relevantes para a própria existência social, condizentes com as regras morais de boa administração (esse principio decorre de um conjunto de normas éticas e regras de conduta, devendo o Administrador agir com honestidade e pugnar pelo que for melhor e mais útil ao interesse público, o qual com a moralidade integram, de certa forma, o conceito amplo de legalidade, porque estão implícitos no modo correto de cumprir a lei. 4) Publicidade - é a satisfação da necessidade de transparência na atuação dos agentes do Poder Público, como condição de legalidade dos seus atos, para propiciar o chamado controle popular vinculado ao direito de informação a todos assegurado, ressalvados os atos cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (os atos do domínio público devem ser publicados no órgão oficial, também, para ensejar os recursos cabíveis, ainda que em resumo, do que decorrem efeitos jurídicos, como a presunção de conhecimento público e o decurso dos prazos de recurso, decadência, prescrição etc ). 5) Eficiência - é mais propriamente a maneira correta e produtiva do agente da Administração agir, na gestão da coisa pública, com vistas à boa qualidade dos serviços prestados, obtendo os melhores resultados possíveis. 6) Eficácia - é não só a capacidade, que deve ter o ato administrativo de estar apto, para produzir todos os seus devidos efeitos jurídicos, como a de dar bons resultados práticos. 7) Legitimidade - é algo mais que a simples legalidade, porque representa a conformidade do ato da autoridade administrativa com a teoria do poder ou a própria ordem democrática, no atendimento do interesse público, em conjugação com a finalidade, a discricionariedade e a razoabilidade. 8) Economicidade - é a parcimônia ou modicidade no gastos públicos, evitando-se desperdícios e procurando-se obter bons resultados na atuação da 54 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:51-56, 2001 Administração com o menor custo possível, sendo o procedimento licitatório um dos seus instrumentos básicos. 9) Finalidade - é a obrigatória orientação da atividade administrativa para o atendimento do interesse público especificamente expresso ou implícito na lei, cuja omissão no ato administrativo causa sua nulidade. 10) Motivação - é a enunciação expressa, explicita ou implícita dos pressupostos fáticos e jurídicos de cada ato administrativos, que constitui elemento essencial de sua validade, razão pela qual a preterição causa nulidade. 11) Razoabilidade - é um desdobramento da lógica racional aplicável ao direito, conduzindo valorações subjetivas, para uma tomada de decisão, em especial no campo da discricionariedade, conducente à escolha do que for mais eficiente, conveniente, oportuno ou apto a atender o interesse público. 12) Proporcionalidade - é a dosagem razoável, na aplicação de quaisquer sanções administrativas, em especial no exercício dos poderes disciplinar e de polícia, vedada a medida superior ao estritamente necessário (esse princípio é recomendado no art. 71, item VIII da Constituição, que autoriza o TCU a aplicar sanções, inclusive multa proporcional ao dano causado ao erário). 13) Ampla defesa - é a garantia assegurada aos litigantes e acusados em geral, com os meios e recursos a ela inerentes, como parte de observância do devido processo legal (essa garantia está assegurada no art. 5/LV da Constituição ). 14) Contraditório - é a garantia assegurada aos litigantes e acusados em geral, com os meios e recursos a ela inerentes, como parte de observância do devido processo legal (essa garantia está assegurada no art. 5/LV da Constituição ). 15) Segurança jurídica - é, também, uma garantia inerente à observância do devido processo legal, pela qual as relações jurídico-adminitrativas não só devem propiciar os recursos cabíveis e possíveis, como ainda devem ser protegidas por preclusão, decadência, prescrição, coisa julgada, direito adquirido, bem como o respeito ao ato jurídico perfeito e acabado (essa garantia decorre do art. 5/XXXVI da Constituição). Além desses princípios, poder-se-ia acrescentar o da especialidade, a qual consiste na limitação imposta aos órgãos públicos e às entidades da Administração indireta, de só atuarem nos limites e com a finalidade a que se destinarem, conforme R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:51-56, 2001 55 previsto na sua lei de criação ou de regência (esse princípio decorreria do previsto nos artigos 5/LXIX e 37/XIX, que dispõem sobre o Mandado de Segurança, para proteger abuso de poder, e a definição legal das áreas de atuação das entidades da Administração Pública). Na verdade, os termos de eficácia e eficiência, assim como os de proporcionalidade, ampla defesa, contraditório e segurança jurídica, como princípios regedores da Administração Pública, ainda carecem de conceituação doutrinária mais consolidada. Vê-se, todavia, na recente Lei n° 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, a trilha da observância do devido processo legal, bem como dos princípios cuja obediência ela impõe à Administração Pública (cfr. art. 2° e seu parágrafo único). Por se tratar de um diploma legal, que versa sobre Direito Processual Administrativo, o ideal seria se pudesse ser de âmbito nacional e não só federal. Isto, o que em síntese comporta aqui ponderar. 56 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:51-56, 2001 COMUNICAÇÕES DOS ATOS PROCESSUAIS NOS PROCESSOS DE CONTAS Jayme Benjamin Sampaio Santiago Inspetor da 2ª ICE do TCDF As comunicações dos atos processuais são de fundamental importância para o regular desenvolvimento do processo. A falta de ciência da parte pode acarretar nulidade do ato e dos demais que dele dependam, sob alegação de prejuízo em decorrência de não se ter estabelecido o contraditório. Neste trabalho, apresentamos um cotejo entre as comunicações utilizadas nos ritos dos processos de contas do Tribunal de Contas do Distrito Federal e os institutos de Processo Civil que a eles se assemelham. Da citação e da audiência A Lei Complementar nº 1/94 elenca quatro espécies de comunicação aos interessados: a) citação; b) audiência; c) cientificação; d) notificação. Os dois primeiros estão previstos no art. 12, que estabelece: “Art. 12. O Conselheiro Relator presidirá a instrução do processo, determinando, mediante despacho singular, de ofício ou por provocação do órgão de instrução, o sobrestamento do julgamento, a citação ou a audiência dos responsáveis, ou outras providências necessárias ao saneamento dos autos, fixando prazo, na forma estabelecida no Regimento Interno, para o atendimento das diligências, após o que R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:51-56, 27:57-61, 2001 57 submeterá o feito ao Plenário ou à Câmara respectiva, para decisão de mérito.” Não contendo a lei expressão sem significado jurídico, é de se entender que citação e audiência são institutos diversos. A confirmação vem no dispositivo seguinte, incisos II e III: “Art. 13. Verificada irregularidade nas contas, o Relator ou o Tribunal: I - definirá a responsabilidade individual ou solidária pelo ato de gestão inquinado; II - se houver débito, ordenará a citação do responsável para, no prazo estabelecido no Regimento Interno, apresentar defesa ou recolher a quantia devida; III - se não houver débito, determinará a audiência do responsável para, no prazo estabelecido no Regimento Interno, apresentar razões de justificativa; IV - adotará outras medidas cabíveis.” Como se vê, citação e audiência são excludentes entre si. Note-se que a Lei Complementar nº 1/94 não trás a definição de citação ou de audiência, apenas estabeleceu a diferença entre uma e outra: havendo débito, citação; senão, audiência. Ao contrário, o Código de Processo Civil define citação no art. 213: “Citação é o ato pelo qual se chama a juízo o réu ou interessado, a fim de se defender.” Segundo Antônio Dall’Agnol1, no nosso direito positivo a estrutura da citação apresenta-se dúplice: é chamamento (in ius vocatio) e comunicação (editio actionis). Objetiva não apenas o chamamento de alguém a juízo para defesa dos seus interesses, como, também, cientificá-lo da pretensão deduzida. Veja-se que a citação não se destina somente ao réu, mas também a interessados na causa, como ocorre nos autos de inventário (art. 999 do CPC). 1 in Comentário ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 2, p.471. 58 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:57-61, 2001 Voltando ao rito processual no TCDF, verificamos que citação e audiência têm também estrutura complexa, constituída de in ius vocatio e editio actionis. Aliás, é precisamente nesta última figura que reside a distinção entre os institutos: na citação se estará comunicando uma pretensão ressarcitória; na audiência, pretensão punitiva. Entretanto, além do ressarcimento do débito e da aplicação de multa, que chamaremos de pretensão imediata, vislumbramos outra espécie de pretensão, de caráter mediato, qual seja, a de verificar a existência de mácula insanável nas contas, o que acarreta julgamento no sentido de sua irregularidade. Pois bem, a distinção que fizemos linhas atrás, entre citação e audiência, somente se verifica na pretensão imediata. Isso porque as contas submetidas ao Tribunal podem ser julgadas irregulares independentemente da existência de débito (arts. 17, III, a e b, e 20, parágrafo único). Com efeito, tanto na citação quanto na audiência, os responsáveis devem defender-se tanto da pretensão imediata (ressarcimento, no caso de citação; multa, no caso de audiência), quanto da pretensão mediata (irregularidade das contas, em ambas as comunicações). O mesmo raciocínio é cabível no caso da pretensão mediata de aposição de ressalva na contas, na medida em que de menor magnitude a irregularidade da qual decorrer o débito ou que ensejar a multa. Pelo que se vê, no processo de contas, audiência e citação stricto sensu podem ser encaradas como espécies do gênero citação lato sensu. Dos efeitos da citação De acordo com o art. 219 do CPC, a citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição. Tais efeitos podem ser separados em processuais e materiais. São efeitos processuais: a prevenção, a litispendência e a litigiosidade da coisa; são materiais: a constituição em mora e a interrupção da prescrição. Com relação ao procedimento nos processos de contas, a citação apenas apresenta o efeito material da interrupção da prescrição. Os efeitos processuais acima apontados não se aplicam por duas razões: a) nas matérias submetidas às Cortes de Contas não há falar em conflito de competência ratione loci; b) os processos que neles tramitam não resolvem sobre direitos reais. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:57-61, 2001 59 No que tange à constituição do devedor em mora, o procedimento atinente aos processos de contas admite três hipóteses, ex vi do art. 175 do Regimento Interno do TCDF: “Art. 175. Sobre as importâncias dos débitos fixados em acórdão serão cobrados correção monetária e juros de mora de um por cento ao mês, sobre o valor atualizado, até o efetivo pagamento, inclusive no caso de parcelamento, observados os seguintes critérios: I - quando se tratar de retenção ou desvio de valores, a correção monetária e os juros incidirão a partir do dia seguinte àquele em que deveriam ter sido recolhidos; e II - nos casos de sonegação ou alcance, a correção monetária e juros correrão da data em que ficar definida a responsabilidade. Parágrafo único. Na hipótese do inciso II, comprovado que o evento decorreu de ato doloso, a data será a da sua ocorrência; se desconhecida, a do término do período a que se referir a prestação ou a tomada de contas em que se houver apurado o débito.” Da cientificação e da notificação Dispõe o art. 13, § 1º, da LC nº 1/94: “O responsável cuja defesa for rejeitada pelo Tribunal será cientificado para, em novo e improrrogável prazo estabelecido no Regimento Interno, recolher a importância devida.” Atente-se, neste ponto, para o sentido amplo da palavra defesa acima empregada, pois o dispositivo aplica-se tanto aos responsáveis chamados por citação, quanto aos chamados por via de audiência. Assim, a cientificação tem efeito dúplice: dar ciência ao responsável acerca da rejeição de sua defesa e, também, intimá-lo a recolher a importância devida, seja ela decorrente de débito ou de multa. A notificação, por seu turno, está prevista no art. 26: “O responsável será notificado para, no prazo estabelecido no Regimento Interno, efetuar e comprovar o recolhimento da dívida a que se refere o art. 20 e seu parágrafo único desta Lei.” 60 R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:57-61, 2001 O dispositivo a que remete versa sobre julgamento definitivo no caso de contas irregulares, em que há débito cumulado ou não com multa (art. 20, caput) ou simplesmente multa (art. 20, parágrafo único). Deduz-se que a notificação é posterior à cientificação. Entretanto, sendo revel o responsável, suprime-se a fase de cientificação, devendo o Tribunal, se for o caso, julgar as contas irregulares e determinar a notificação do responsável. No processo civil, uma vez estabilizada a relação processual, os atos são levados ao conhecimento da parte e de outros interessados por meio de intimação. Ao contrário da LC nº 1/94, que não define expressamente os institutos da cientificação e notificação, o art. 234 do CPC assim estabelece: “Intimação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém dos atos e termos do processo, para que faça ou deixe de fazer alguma coisa.” Aponta Dall’Agnol2 que o Código abandonou a distinção entre notificação e intimação, adotada no CPC de 1939. Na lei velha, intimação referia-se a atos passados, enquanto notificação, a atos futuros. Voltando ao processo de contas, observamos que cientificação e notificação não se distinguem quanto a sua essência, mas apenas no nomen iuris, podendo ambas serem classificadas como intimação, notificação ou cientificação, as duas últimas em sentido amplo. A diferença se dá não entre os institutos, mas na possibilidade de sua repetição, haja vista que o responsável cientificado que não vem aos autos recolher o que deve deverá ser notificado, nos termos do art. 26 c/c o art. 20, ambos da LC nº 1/94. Conclusão Deste breve ensaio, podemos concluir: a) citação e audiência não diferem substancialmente, podendo ambas serem classificadas como citação em sentido amplo; b) isso ocorre também entre cientificação e notificação, que podem ser tidas como atos de intimação, notificação ou cientificação, sendo certo, porém, que a diferença no nomen iuris identifica a fase em que se encontra o processo de contas: se antes ou após o julgamento. 2 Op. cit., p. 592. R.Tribunal de Contas do Distrito Federal 27:57-61, 2001 61