IMPLEMENTAÇÃO DE TECNOLOGIAS SUSTENTAVEIS NA HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL Márcio R. D’Avila Doutorado em Arquitetura e Urbanismo - Formado pela Universidade de Kassel, Alemanha e-mail: e-mail: [email protected] - homepage: www. mrdavila-architecture.com Resumo Proposta: Este trabalho tem como objetivo relatar a experiência com a construção de três habitações prototípicas no Estado do Rio Grande do Sul. Método de pesquisa/Abordagens: A partir de hipóteses envolvendo sustentabilidade, materiais e técnicas de construção não convencionais, possibilidade de participação efetiva, sensibilização, cooperativismo, autonomia e geração de renda relacionadas à habitação de interesse social, optou-se pela metodologia da pesquisa-ação, conciliando-se teoria e prática no intuito de garantir a participação de diversos atores da sociedade em todo o processo construtivo. Os referenciais teóricos que sustentaram o estudo do processo de sensibilização dividemse em três eixos: sustentabilidade, geração de renda e participação. Resultados: Das hipóteses elaboradas como ponto de partida para investigar o processo de sensibilização para implementação de tecnologias sustentáveis na habitação de interesse social, as experiências realizadas demonstraram que três delas foram inteiramente confirmadas e uma confirmou-se parcialmente. O cooperativismo habitacional demonstrou ter um bom potencial para a implementação de uma construção alternativa sustentável, na medida em que a reflexão e o questionamento possam, paralelamente, restabelecer os princípios de autogestão como base de sua organização. Contribuições/Originalidade: Estudo do processo de sensibilização para implementação de tecnologias sustentáveis na habitação de interesse social com ênfase às cooperativas habitacionais. Palavras-chave: habitação de interesse social; sustentabilidade; cooperativismo habitacional; tecnologias alternativas. Abstract Propose: The objective of the present paper is to report three experiences with prototype buildings at the state Rio Grande do Sul. Methods: The scientific method of investigation used in this work was the research-action method that reconciles the theoretical and practical work. Findings: The residential building societies can be a possibility for implementation of sustainable alternatives in social buildings if the principles of self-administration are available. Originality/value: Study of sensitization process for implementation of sustainable technologies in the social buildings with emphasis in residential building societies. Keywords: social housing; sustainability; residential building societies; alternative technologies. - 336 - 1 INTRODUÇÃO O difícil acesso de grande parte da população brasileira à aquisição da casa própria, uma política habitacional que não corresponde à efetiva resolução do déficit habitacional1, a renda familiar insuficiente para cumprir os requerimentos dos contratos dos financiamentos habitacionais2 existentes e o desemprego compõem o quadro de uma população que, não tendo onde morar, ocupa áreas não urbanizadas. Os projetos habitacionais de interesse social financiados pelo Estado, através de programas de combate ao déficit habitacional, apresentam uma tipologia habitacional limitada e a ausência da integração de aspectos mais sustentáveis. A utilização de materiais de construção manufaturados gera efeitos ambientais significativos. A produção de materiais de construção utiliza fontes de energia quase sempre não renováveis e mais, esses materiais e componentes provêm de matérias-primas subtraídas e obtidas com alterações ambientais por vezes irreversíveis. As dimensões das habitações não correspondem às necessidades dos moradores. A escolha dos materiais utilizados na construção e o planejamento arquitetônico não levam em conta as variações climáticas do local e seus efeitos sobre o conforto térmico dos moradores. Por outro lado, está ausente, na construção da habitação de interesse social a participação ativa do futuro morador no processo de decisão e na concepção do projeto habitacional. Isto decorre da condução centralizadora das políticas públicas habitacionais, limitando o desenvolvimento dos princípios participativos e cooperativos das famílias beneficiadas. Ademais, a resolução do déficit habitacional não está circunscrita à mera construção de moradias sem considerar aspectos de ordem socioeconômico, ambiental e participativo. Ante esta realidade, a população tem criado alternativas para resolver a problemática habitacional. Uma destas alternativas é a criação de cooperativas habitacionais. 2 OBJETIVO Neste artigo, pretende-se relatar parte das experiências realizadas com a construção de três habitações prototípicas no Estado do Rio Grande do Sul, tendo como objetivo apresentar os resultados obtidos no processo de sensibilização para a utilização de tecnologias sustentáveis na construção de uma das habitações prototípicas executada na cooperativa habitacional COOHAP, no município de São Leopoldo. 3 METODOLOGIA A escolha da cooperativa habitacional COOHAP, como objeto de estudo do processo de sensibilização, deve-se ao fato de ser o cooperativismo habitacional uma alternativa crescente ao acesso à terra e à habitação. Como propostas institucionais para a solução do problema habitacional, as cooperativas já usufruem de estrutura que favorece a organização, participação e implementação de tecnologias sustentáveis na habitação de interesse social. A metodologia utilizada foi a Pesquisa-ação, onde procurou-se garantir a participação de cooperados, Estado, empresas locais e instituições em todo o processo construtivo da habitação prototípica. Foram utilizados no protótipo materiais e técnicas não convencionais na elaboração e execução do projeto instigando a participação de todo o grupo. 1 O déficit habitacional no país foi estimado em 6.656.526 unidades no ano de 2000. A maior incidência é urbana e corresponde a 81,3 % do montante brasileiro (IBGE, 2003). 2 Dentre os Brasileiros diretamente afetados pelo déficit habitacional 97,2% não tem acesso ao crédito (KHOTARI, 2004). - 337 - 3.1 Apresentação gráfica da metodologia Primeira experiência com Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra-MST, integrantes de diferentes movimentos sociais e cooperados da COOHAP. Pesquisador Segunda experiência com a cooperativa COOHAP, Estado, empresas locais e instituições. Sensibilização da esfera pública e sociedade civil para o desenvolvimento sustentável, o trabalho participativo, a geração de trabalho e renda e discussão sobre a política habitacional de interesse social vigente. Figura 1 - Metodologia de pesquisa “Pesquisa-Ação” (D`AVILA, 2006). 4 REFERENCIAL TEÓRICO Os referenciais teóricos que sustentaram o estudo do processo de sensibilização na cooperativa habitacional COOHAP dividem-se em três eixos relacionados complementarmente entre si: o conceito de sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável a partir de Joan Martinez Alier; a pedagogia dos oprimidos no processo de transformação social a partir do pensamento de Paulo Freire e o conceito de economia solidária elaborado por Paul Singer. Estes referenciais foram fundamentais por configurarem pressupostos para a busca da sensibilização dos envolvidos na implementação da sustentabilidade no ambiente construído e para a multiplicação da construção alternativa sustentável em projetos habitacionais, levando os futuros moradores à compreensão da importância da utilização de técnicas alternativas e materiais não convencionais de forma coletiva, participativa e autogestionária. 5 HABITAÇÕES PROTOTÍPICAS No período entre agosto de 2002 e fevereiro de 2005 foram realizadas as atividades de pesquisa e a construção de três habitações prototípicas (Figuras: 1, 2 e 3). Antecedeu à construção da habitação prototípica na cooperativa habitacional COOHAP a construção de uma habitação prototípica em trabalho conjunto com Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra-MST. Após a construção do protótipo em trabalho conjunto com a cooperativa habitacional COOHAP construiu-se uma terceira - 338 - habitação prototípica em conjunto com a Associação de Agricultura Biodinâmica do Sul-ABDSul. A construção deste terceiro protótipo foi resultado das atividades anteriores realizadas. - Primeira habitação prototípica- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra-MST: O projeto foi realizado em trabalho conjunto com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e o Grupo de Estudos de Bioarquitetura GEBA, no Assentamento Filhos de Sepé, em Águas Claras no Município de Viamão. Entre 22 e 26 de março de 2004 foi realizada uma oficina teórico-pratica, na qual participaram 26 pessoas de diversos movimentos sociais de diferentes Estados brasileiros, estudantes de universidades, técnicos, engenheiros, arquitetos e cooperados da cooperativa habitacional COOHAP. As atividades que orientaram a oficina teórico-prática foram tecnologias construtivas com a utilização de materiais vernaculares na construção da habitação prototípica com uma área construída de 54m². A participação de três cooperados da cooperativa COOHAP na experiência realizada no assentamento do MST teve como objetivo: proporcionar à esses uma experiência prática na utilização de tecnologias alternativas e sustentáveis; despertar o interesse e confiança do grupo para uma tecnologia não convencional e sensibilizar a direção da cooperativa para a construção da habitação prototípica na cooperativa habitacional3 (Figura 2). - Segunda habitação prototípica- Cooperativa habitacional COOHAP: A habitação prototípica apresenta uma área total de 66,50m² e foi construída no período compreendido entre abril 2004 e fevereiro 2005. Nesse período procedeu-se a organização da comunidade através da formação de grupos de trabalho para a produção dos materiais e construção do protótipo. Para atingir tal objetivo realizaram-se oficinas com os associados da cooperativa para a capacitação da mão-deobra, bem como palestras de formação e conscientização sobre a construção sustentável. Os materiais de construção utilizados na habitação prototípica foram matérias primas oriundas da região, materiais de construção convencional e elementos construtivos produzidos ou fornecidos por empresas locais. O processo de construção da habitação prototípica foi conduzido por dois grupos de trabalho. O primeiro grupo foi responsável pela produção dos adobes para o protótipo e o segundo grupo ficou responsabilizado pelos trabalhos da construção da habitação prototípica. O número total de integrantes, em ambos os grupos de trabalho, oscilavam entre 12 a 15 pessoas (Figura 3). - Terceira habitação prototípica- Sentinela do Sul: A habitação prototípica foi construída no período compreendido entre março e novembro de 2005 no município de Sentinela do Sul. O protótipo desenvolvido em conjunto com a Associação de Agricultura Biodinâmica do Sul-ABDSul apresenta uma área construída de 48,90m². Entre 17 e 22 de outubro de 2005 foi realizada uma oficina teórico-pratica. A formação profissional dos participantes desta oficina eram, em sua maioria, engenheiros, arquitetos e estudantes de Arquitetura, num total de 15 participantes. Os objetivos desta oficina foram: a) a formação de mão-de-obra para a execução de outros projetos e b) a divulgação da tecnologia de construção com fardos de palha para a comunidade e para a esfera pública local. Foram incorporados neste projeto elementos construtivos aplicados na construção da habitação prototípica realizada na cooperativa habitacional COOHAP (Figura 4). 3 O grupo além de ter contato prático com as tecnologias utilizadas na construção desta habitação prototípica, tiveram também, a possibilidade de conhecer outros sistemas alternativos, como por exemplo: cisternas para a coleta da água da chuva, sistema de esgoto anaeróbico e paisagismo produtivo. - 339 - Figura 2 - Habitação prototípica - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra-MST. - 340 - Figura 3 - Habitação prototípica - cooperativa habitacional COOHAP. - 341 - Figura 4 - Habitação prototípica - Associação de Agricultura Biodinâmica do Sul-ABDSul. - 342 - 6 ANÁLISE DE RESULTADOS As conclusões, aqui apresentadas, fazem parte da tese de doutorado do autor, que teve como objetivo geral sensibilizar a sociedade para a questão da sustentabilidade no objeto construído, através da participação dos futuros moradores, dos órgãos públicos, dos institutos e das instituições de ensino buscando o fomento à implantação de tecnologias não convencionais com menor impacto ambiental no ambiente construído. Trabalhou-se, principalmente, nas seguintes hipóteses: a) Através da construção de uma habitação prototípica, utilizando materiais e técnicas de construção não convencionais, é possível sensibilizar a sociedade civil e o Estado na implementação da sustentabilidade no ambiente construído; b) A sensibilização para a implementação da sustentabilidade nos projetos de habitação é possível através da participação efetiva dos futuros moradores e dos órgãos públicos no processo construtivo; c) A utilização de técnicas alternativas e materiais não convencionais, trabalhadas coletivamente em oficinas práticas, possibilitam a aceitação e a identificação das pessoas para com estas tecnologias e materiais sustentáveis; d) As cooperativas habitacionais, como via institucional para a solução dos problemas de moradia, poderiam ser multiplicadoras dos processos alternativos de construção sustentável, por usufruírem de uma estrutura que favorece a organização, a participação e a implementação da construção sustentável. As três primeiras hipóteses confirmaram-se integralmente, a última, parcialmente. A participação das pessoas no processo da construção da habitação prototípica não demonstrou somente o êxito na sensibilização para uma alternativa de habitação sustentável, a viabilidade na geração de renda, mas, para além disso, provocou a reflexão sobre os princípios do cooperativismo e o questionamento do papel do cooperado. A capacitação dos cooperados e o acompanhamento do Estado foram fundamentais, conferindo credibilidade e confiabilidade ao projeto por parte do grupo. A estrutura organizacional da cooperativa habitacional COOHAP apresentou limitações nos processos de decisão, sendo estas centralizadas, configurando uma práxis que excluía seus cooperados da participação e do sentimento de responsabilidade. A centralização das decisões induz o cooperado à dependência da estrutura administrativa desarticulando o grupo cooperado e, conseqüentemente, dificultando a autonomia. A descentralização organizacional em uma estrutura que tenha como princípio básico a autogestão requer uma revisão a qual, percebeu-se nesta pesquisa, é alcançável através de um processo prático e contínuo. O cooperativismo demonstrou ter um bom potencial para a solução dos problemas habitacionais e para a implementação de uma construção alternativa sustentável, na medida em que a reflexão e o questionamento possam, paralelamente, restabelecer os princípios de autogestão como base de sua organização. A divulgação do projeto produziu uma dinamicidade nas discussões sobre outros parâmetros que possam vir a determinar as políticas públicas, quais sejam: o déficit habitacional, numa perspectiva mais abrangente; a sustentabilidade; a geração de renda e a participação. O processo de construção da habitação prototípica na cooperativa habitacional COOHAP gerou no grupo uma reflexão sobre esses parâmetros levandos, a partir dessa, a indagação do grupo aos órgãos responsáveis pela política pública habitacional sobre uma outra forma de habitação, que lhes proporcione além da moradia, renda e um meio ambiente sustentável. Como resultados alcançados através das ações decorrentes do processo de construção da habitação prototípica, considera-se fundamentalmente importantes os que dizem respeito à compreensão e à crença na aplicabilidade material dos princípios teóricos, tanto por parte das pessoas que participaram das oficinas de construção dos protótipos, quanto das autoridades governamentais e técnicos. A sensibilização da sociedade civil, a qual induziu à reflexão sobre as políticas públicas habitacionais, foi um primeiro passo para um processo que implemente aspectos sustentáveis na habitação de interesse social. A habitação prototípica, a partir da prática, possibilitou a integração de elementos, que nesse caso são os referencias teóricos. Os grandes desafios nesta pesquisa foram a diversidade de - 343 - interesses nos variados níveis da esfera pública e a presença de centralização de poder na cooperativa habitacional investigada. 7 REFERÊNCIAS ALIER, J.M. The environmentalism of the poor. New Delhi: Oxford University Press, 2005. 312 p. ALIER, J.M. Varieties of Environmentalism. London: Earthscan Publications Ltd. 1997. 256 p. D’ AVILA, M.R. Zur Einsatzmöglichkeit nichtkonventioneller Bauweisen im genossenschaftlich organisierten sozialen Wohnungsbau für Rio Grande do Sul, Brasilien. Kassel: Kassel Univesity Press GmbH, 2006. 207 p. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). DUMKE, E.M.S.; KRÜGER, E.L. Avaliação Paramétrica de Desempenho Térmico na Vila Tecnológica de Curitiba. 1997. Disponível em: <http://www.ppgte.cefetpr.br/dissertacoes/ 2002/dumke.pdf;>. Acesso em: 05 abr. 2006. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987. 107 p. IBGE: IBGE lança estatísticas do século XX. 2003. <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/ noticias/29092003estatisticasecxxhtml.shtm>. Acesso em: 21 nov. 2003. JORNAL VS. O que acha da construção de casas ecológicas? São Leopoldo. 21.10.2004. KOTHARI, M. Economic, Social and Cultural Rights. Report of the Special Rapporteur on adequate housing as a component of theright to an adequate standard of living. 2004. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/view_news.php?id= 554www.polis.org.br/>. Acesso em: 10 jan. 2005. RIVERO, R. Acondicionamento Térmico Natural Arquitetura e Clima. 2. ed. Porto Alegre: D. C. Luzzatto Ed., 1986. 240 p. SINGER, P. Introdução a Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo. 2003. 128 p. SINGER, P. Globalização e Desemprego: Diagnóstico e Alternativas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1998. 139 p. THIOLLENT, M. Metodologia da Pesquisa-ação. 14. ed .São Paulo: Cortez, 2005. 132 p. 8 AGRADECIMENTOS O autor gostaria de agradecer a Prof.ª Maria Dagmar Laus pela revisão deste artigo. - 344 -