Ensino de gramática: das polêmicas às proposições Adriana Dickel (Universidade de Passo Fundo – Brasil) Introdução Em nossos trabalhos de investigação, situados no campo da pesquisa educacional, mais precisamente das didáticas e metodologias do ensino da língua portuguesa, orientamo-nos pela proposição segundo a qual as crianças, na escola, devem encontrar condições para aprender a considerar que a língua é um objeto que se pode manipular, sobre o qual se pode falar e sobre o que é fundamental ter conhecimentos explícitos. Essa perspectiva da língua condiciona a ampliação dos limites estabelecidos pelo mundo cultural mais próximo e as possibilidades de uso da e de intervenção pela linguagem nos diversos contextos socioculturais dos quais esses sujeitos participam ou venham a participar. A possibilidade que temos de operar sobre a língua (por meio de reflexões metalinguísticas), além de operar com a língua, traz para a educação linguística, concebida como o “conjunto de fatores socioculturais que, durante toda a existência de um indivíduo, lhe possibilitam adquirir, desenvolver e ampliar o conhecimento de/sobre sua língua materna, de/sobre outras línguas, sobre a linguagem de um modo mais geral e sobre todos os demais sistemas semióticos” (Bagno; Rangel, 2005, p. 63), uma diversidade de desafios e de possibilidades didáticas, passível de incrementar de modo substancial o processo de ensino-aprendizagem da língua. Dentre essas questões em aberto, está a do papel do ensino da gramática nos diferentes níveis da Educação Básica, responsável que é pelo atendimento das “necessidades básicas de aprendizagem”. Segundo o Documento Mundial sobre Educação para Todos, da Unesco (1990, p. 2-3), tais necessidades compreendem “tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas), quanto os conteúdos básicos da aprendizagem (como conhecimentos, habilidades, valores e atitudes), necessários para que os seres humanos possam sobreviver, desenvolver plenamente suas potencialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas e continuar aprendendo”. Em que medida, então, o ensino de gramática contribui para que os instrumentos essenciais para a aprendizagem, relativos especificamente ao domínio da língua, sejam apreendidos? Atravessada por discussões polêmicas e por pressupostos nem sempre suficientemente esclarecidos, a temática do ensino de gramática aparece e se dissolve, principalmente, ao sabor das críticas feitas à inoperância da escola em dotar os sujeitos dos instrumentos que lhes permitam aprender, sobreviver e se desenvolver em uma sociedade em constante transformação, cujos problemas são produzidos e reproduzidos, requerendo de cada geração importantes contribuições para que as condições de continuidade sejam mantidas. É nosso intuito, neste trabalho, sistematizar algumas das principais contribuições dadas por intelectuais e pesquisadores brasileiros a essa discussão. Orienta-nos a expectativa de, através de um estudo bibliográfico de caráter exploratório e dentro dos limites impostos a este texto, congregar diferentes posições acerca do tema, elucidar as concepções de língua e gramática que a ela subjazem e reconstruir as propostas para o seu ensino na escola. Para tanto, recuperaremos os caminhos dessa discussão no Brasil, focalizando nessa reconstrução algumas obras que demarcaram posições acerca do tema e que se constituíram referência de estudos posteriores. Ainda nesse tópico, situaremos as definições curriculares elaboradas na década de 1990 pelo Ministério da Educação, para a área do ensino de língua portuguesa no Ensino Fundamental. Em seguida, analisaremos um corpus constituído de artigos científicos, publicados nos últimos cinco anos no Brasil, que tem como objeto de reflexão e análise práticas de ensino de gramática em curso em escolas e propostas didáticas que visam à superação da abordagem centrada na gramática normativa – alvo de críticas desde meados da década de 1980. 1. A língua portuguesa como objeto de conhecimento a ser tratado pela escola remonta uma tradição inaugurada no século XVIII pela reforma do Marquês de Pombal (que atingiu não somente Portugal, mas também as suas colônias, entre elas, o Brasil), e adentra o século XX. A sua introdução no currículo, segundo Bunzen (2011, p. 891), justificou-se pela necessidade de garantir a preservação da língua e a sua disseminação aos povos dominados, tendo sido a maior responsável pelo ensino obrigatório tanto em Portugal como no Brasil. Mesmo tendo esse papel, o estudo da gramática da língua portuguesa, juntamente com a retórica, foi incorporado ao currículo, segundo Soares (2004, p. 157165), como recurso para a aprendizagem da gramática do latim, basilar para os estudos em nível secundário e superior, ofertados pelos jesuítas durante o Brasil Colonial. Já entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, o ensino da gramática passa a ter como objetivo a aprendizagem sobre o sistema da língua, atuando paralelamente aos estudos sobre retórica e poética, voltados ao estabelecimento de preceitos sobre o falar bem e depois, em virtude da perda de destaque da oratória, sobre o escrever bem. Conviviam no ambiente da aula os manuais de gramática e os manuais de textos selecionados. Em um contexto em que tinham acesso à escola somente filhos de famílias abastadas, tais conhecimentos mantinham-se como úteis e necessários. À medida que as condições sociais e políticas se alteram, no início da segunda metade do século XX, observa-se uma mudança significativa no que se considera conteúdo da disciplina “português”. A democratização do acesso à escola, resultante, dentre outros elementos, dos movimentos reivindicatórios protagonizados pelas camadas populares, leva para dentro dela também os filhos de trabalhadores. Isso produziu necessidades e exigências diversas daquelas até então enfrentadas pela escola, repercutindo não somente na ampliação do número de escolas e de vagas, mas também no número de docentes recrutados para o ensino e na constituição das disciplinas escolares. Nesse contexto, a abordagem dos conteúdos da disciplina “português” modificase profundamente: “gramática e texto, estudo sobre a língua e estudo da língua começam a constituir realmente uma disciplina com conteúdo articulado: ora é na gramática que se vão buscar elementos para a compreensão e a interpretação do texto, ora é no texto que se vão buscar estruturas linguísticas para a aprendizagem da gramática” (Soares, 2004, p. 167). Essa fusão demarca uma ruptura com a tradição jesuítica e provoca alterações significativas nos manuais didáticos, que passam a ser mais valorizados do que em períodos anteriores, dividindo com o professor a tarefa de planejar as aulas, constituídas de exercícios de vocabulário, de interpretação, de redação e de gramática. Logo no início dos anos de 1970, sob a égide e em conformidade com a ideologia do regime militar instalado em 1964, todo o sistema educacional passa por profundas mudanças. Uma delas se faz notar no âmbito do ensino da língua portuguesa. Concebida pelo regime como instrumento de desenvolvimento, a disciplina passou a ter como quadro de referência de análise da língua a teoria da comunicação, a qual reorienta o foco do ensino da análise do sistema linguístico para o problema do uso da língua e das diferentes formas de manifestação verbal e não-verbal. a concepção da língua como sistema, prevalente até então no ensino da gramática, e a concepção da língua como expressão estética, prevalente no ensino da retórica e da poética e, posteriormente, no estudo de textos, são substituídas pela concepção da língua como comunicação. Os objetivos passam a ser pragmáticos e utilitários: trata-se de desenvolver e aperfeiçoar os comportamentos do aluno como emissor e recebedor de mensagens, através da utilização e compreensão de códigos diversos – verbais e não-verbais. Ou seja, já não se trata mais de estudo sobre a língua ou de estudo da língua, mas de desenvolvimento do uso da língua. (Soares, 2004, p.169). Os livros didáticos diminuem o espaço anteriormente dado ao estudo da gramática, estendem a seleção de textos para outros gêneros além dos literários e incluem o tratamento de textos não-verbais e da linguagem oral. O enfraquecimento do regime militar, que culmina com a sua dissolução em 1985, juntamente com as novas teorias desenvolvidas no âmbito das ciências linguísticas, traz consigo uma forte reação a esse modelo. Em profusão no âmbito dos currículos de formação de professores, a Linguística, Sociolinguística, Psicolinguística, Linguística Textual, Pragmática, Análise do Discurso começam a estender suas análises ao ensino da língua. Passam a constar das discussões a problemática das variações linguísticas – evidentes com a ampliação do acesso das camadas populares à escola e com a heterogeneidade linguística que passa a compor as salas de aula – e da pertinência e observância da modalidade padrão da língua como objeto de ensino. Outro elemento que atinge fortemente o ensino da gramática na escola provém dos estudos descritivos da língua portuguesa, os quais remontam outras concepções de gramática que remetem, por exemplo, à gramática da língua falada. Por fim, a Linguística Textual impõe uma ampliação do campo dos estudos da gramática para além das estruturas fonológicas e morfossintáticas por meio da introdução de uma nova maneira de tratar o texto, a escrita e a oralidade. O universo a que esta última influência teórica remete o ensino da língua, em especial da gramática na escola, recebe impulso com a presença cada vez maior no âmbito acadêmico da Pragmática, da Teoria da Enunciação e da Análise do Discurso. Soares (2004) destaca, no cenário pós-década de 1980, a presença de estudos sobre a história, a sociologia e a antropologia da leitura e da escrita, os quais remetem às práticas históricas e sociais da leitura e da escrita e aos usos e funções que essas atividades possuem em diferentes grupos culturais. Essa proximidade dos estudos acadêmicos com o mundo da escola ocorreu concomitantemente ao que se convencionou chamar de “crise da escola”. Organizada para atender às necessidades das camadas privilegiadas da população, a escola e o seu currículo se viu invadida por um contingente massivo da população, antes distante dos bancos escolares, e passa a mostrar os seus limites para atender a essa nova realidade, expostos nos crueis índices de reprovação e evasão escolares. Esse quadro fez surgir um discurso contundente de crítica ao ensino tradicional e a seu papel na produção do fracasso escolar. Segundo Angelo (2005), nesse contexto de crise, coube ao ensino de língua portuguesa a sua parcela de culpa, uma vez que os índices de retenção se avolumavam na primeira série do Ensino Fundamental e que as competências de leitura e de escrita com que chegavam os estudantes ao final desse nível de ensino eram precárias. Por sua vez, muitos linguistas assumiram a tarefa de criticar os modelos que orientavam o ensino da língua da escola, principalmente aquele pautado na concepção normativa de língua, representante de uma única variedade da língua, a padrão, e em uma única modalidade da língua, a escrita (Pietri, 2010, p.74). Além disso, endereçaram denúncias ao tempo investido no estudo dessa variedade, em um contexto de heterogeneidade linguística, sem que isso repercutisse sobre o desempenho dos estudantes na leitura e na produção de textos. 2. Como pudemos observar, estava criado o ambiente intelectual para o surgimento da controversa questão: “deve-se ou não ensinar gramática na escola?”. Entre os anos 1980 até o momento, muitas são as produções sobre o assunto. Desse período, destacaremos três obras – Geraldi (1984a), Possenti (1996) e Perini (2010) – que a nosso ver são representativas dessa polêmica, ao mesmo tempo em que explicitam posições distintas em relação a essa crise. De Geraldi (1984a) consta um conjunto de artigos amplamente debatido nos foros acadêmicos e, além disso, nas instâncias responsáveis pelas definições curriculares, principalmente secretarias de educação. Nessas produções estão explícitas, por um lado, a crítica ao ensino tradicional da língua e, por outro, a reivindicação da Linguística como a base para uma proposta de ensino que “resulte positivo”. Faraco, autor de um dos artigos constantes na obra, combate o ensino da gramática na escola, identificando-o como “uma das sete pragas do ensino de Português” (Faraco, 1984). Para ele, O ensino de português tem se mostrado inútil (os resultados negativos nos autorizam tal classificação). Recursos humanos e materiais têm sido criminosamente desperdiçados numa atividade vazia de significado: onze anos de escola e o indivíduo está menos instrumentalizado linguisticamente que ao entrar na escola. (1984:18). O autor elege a teoria gramatical como o alvo de suas críticas, uma vez que, reportada ao ensino, isola o estudante do contato com a “língua em si”. Segundo ele, na escola se fala sobre a língua, numa crítica explicita à metalinguagem, ao invés de se investir esforços no domínio da língua. A teoria gramatical, nesse contexto, além de desnecessária para a aprendizagem da língua, é incompleta, absurda e confusa. Na mesma obra, com uma preocupação de fornecer elementos para projetar o ensino sobre novas bases, estão dois artigos de Geraldi (1984b, 1984c). Neles há a percepção da necessidade de a escola, num contexto de diversidade linguística como o que marca o uso da língua portuguesa no Brasil, “oportunizar o domínio do dialeto padrão”, mas não mediante estratégias adotadas pelo ensino tradicional, ou seja, “com exercício de regras e hipóteses de análise de problemas que mesmo especialistas não estão seguros de resolver” e por meio de “conceitos e metalinguagens a partir dos quais se fala sobre a língua, se apresentam suas características estruturais e de uso”. Segundo ele, esses conhecimentos deveriam se fazer presente no ensino da língua “apenas subsidiariamente”, somente “quando a descrição da língua se impõe como meio para alcançar o objetivo final de domínio da língua, em sua variedade padrão” (Geraldi, 1984, p. 46-47). Como desdobramento de sua posição, manifesta a necessidade de abrir espaço para práticas de análise linguística, produzidas com base nos textos produzidos pelos alunos, dos quais serão selecionados os problemas a enfrentar. Essa obra influenciou fortemente as reformas curriculares de diversos estados brasileiros, servindo, inclusive, como veremos mais adiante, de referência à elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), elaborados no final da década de 1990, por iniciativa do Ministério da Educação. Possenti (1996), por sua vez, em “Por que (não) ensinar gramática na escola?”, insere-se no debate sistematizando algumas descobertas “científicas” no domínio da Linguística, bastante sólidas, porém, ainda não suficientemente difundidas, sobre o que seja uma língua e o seu processo de aprendizado. O autor, assim como seus pares da época, defende que o domínio ativo da língua prescinde do estudo da gramática e que ensinar língua não é a mesma coisa que ensinar gramática. Para ele, a opção por ensinar gramática e o tempo destinado a essa atividade, em detrimento do trabalho com o texto (leitura e produção escrita), remetem a concepções sobre o papel da língua numa sociedade de contrastes como a brasileira e aos objetivos atribuídos à escola (1990, p.62-63). Partindo desse pressuposto, o autor oferece “uma perspectiva de ensino de gramática destinado especificamente a quem tem como utopia alunos que escrevam e leiam, mesmo em situações relativamente precárias, isto é, antes da alteração das condições sociais atuais” (Possenti, 1996, p.60). Para abordá-la, apresenta três concepções de gramática, a normativa, a descritiva e a internalizada i, e afirma que o ensino de gramática na escola ainda é um objetivo válido desde que se inverta a prioridade que normalmente é dada à gramática normativa, a favor primeiramente da gramática internalizada e, em segundo lugar, da gramática descritiva. Para ele, cabe ao ensino oferecer condições para que o “aluno possa vir a dominar efetivamente o maior número possível de regras, isto é, que se torne capaz de expressar-se nas mais diversas circunstâncias, segundo as exigências e convenções dessas circunstâncias”. Para tanto, não cabe substituir o ensino de uma variedade por outra, mas de “criar condições para que os alunos aprendam também as variedades que não conhecem, ou com as quais não tem familiaridade, aí incluída a que é peculiar de uma cultura mais „elaborada‟” (Possenti, 1996, p.83). A posição de Possenti, que pode ser observada em trabalhos de outros linguistas, tais como Soares (1989) e Travaglia (1995), dota a polêmica sobre o ensino da gramática de uma perspectiva política, situando-a em um contexto de luta pela transformação social - bastante intensa nos anos de 1980 e princípio dos anos 1990 -, por meio, também, da conquista do direito a uma educação de qualidade para todos. Já Perini (2010), atribui ao ensino da gramática uma conotação distinta. Para ele, a gramática deve ser incorporada ao currículo por razões culturais. Essa posição é exposta em obra de 1985, Para uma nova gramática do português, e recentemente, retomada em Gramática do português brasileiro, um importante estudo sobre a gramática do português falado. Assim como Possenti (1996), Perini (2010) denuncia a inconsistência da crença segundo a qual cabe à gramática levar por meio de seu domínio à apropriação da variedade padrão da língua e ao aprimoramento das capacidades de ler e escrever. Para justificar a presença da gramática no currículo, diz-se que é preciso estudar gramática para se falar ou escrever melhor (leia-se: no português padrão). Nenhum linguista questiona a necessidade de se adquirir competência em português padrão, aquela língua escrita que é tão diferente da que realmente se fala. A questão é se estudar gramática é o caminho para se adquirir essa competência. E toda a evidência indica que não é. (Perini, 2010, p.35). Essa condição de aplicabilidade não é exigida de outros conhecimentos para que mereçam ser estudados e não deveria sê-lo em relação ao conhecimento gramatical. Para o autor, a gramática é uma disciplina científica, isto é, assim como a biologia estuda os seres vivos (...) e a química estuda os elementos e suas combinações, a gramática estuda um aspecto da linguagem [sua estrutura formal e semântica] – um fenômeno tão presente em nossas vidas quanto os seres vivos ou os elementos químicos. (2010, p.35). Segundo ele, o conhecimento de uma língua é parte do conhecimento do mundo, acessível à observação através do comportamento e dos julgamentos dos falantes. A gramática “é uma disciplina científica, pois tem como finalidade o estudo, a descrição e a explicação de fenômenos do mundo real” (2010, p.37). Ela não esgota o estudo da língua, nem o da comunicação humana, mas toma parte de ambas uma vez que “nenhuma sociedade humana prescinde de comunicação, nenhuma existe sem uma língua, e todas as línguas têm gramática.” (2010, p.19). Como disciplina científica, ela faz parte da formação científica dos alunos, algo indispensável para a vida em pleno século XXI, o que justifica a sua presença independentemente dos resultados que o seu estudo venha a produzir junto às habilidades de ler e escrever. O autor parte da análise de que a ciência é fonte de poder e, portanto, a formação cientifica é um elemento fundamental da educação nos dias atuais. Mesmo que nem todos venham a se tornar cientistas, o sujeito alfabetizado cientificamente torna-se capaz de analisar e emitir opinião e de tomar posição acerca de diferentes situações que afetam a vida em sociedade. Segundo ele, o cidadão de hoje, pelo menos nas democracias, participa das decisões importantes de sua comunidade. E uma das guias quer nos orientam nessas decisões é nossa alfabetização científica. O analfabeto científico é uma criatura indefesa, joguete de opinião e dos interesses claros ou escusos de outras pessoas. (...) A democracia, para sobreviver, precisa estender a educação política, humanística e científica a toda a população. (Perini, 2010, p.31-32). Nessa perspectiva, a ciência “não é um corpo de conhecimentos e resultados; é um método de obter conhecimentos e resultados” (Perini, 2010, p. 32; grifos do autor). O professor de matemática não ensina (e faz decorar) os resultados das multiplicações, por exemplo, mas ensina o processo para chegar ao resultado. Já no caso do ensino de gramática, a lógica encontra-se não raras vezes invertida, cabendo ao aluno decorar resultados sem acessar o método que levou à sua obtenção. O ensino de gramática que se pratica nas escolas contribui para o analfabetismo cientifico por lidar com dados fictícios, desencorajar a dúvida e encorajar “a crença acrítica em doutrinas aprendidas, mas não justificadas” (2010, p.35). Para Perini, além disso, outros resultados são percebidos: nas aulas de gramática não se aprende gramática, nem sequer se estuda gramática. Não é de espantar que os alunos (e os professores, que também são vítimas do sistema) não saibam gramática, não se interessem por gramática e, para resumir tudo, detestem a gramática. (2010, p. 34). Para romper com esse ciclo e instaurar a curiosidade cientifica no interior do estudo da língua, o autor considera fundamental não somente aprender ciência, mas fazer ciência. Para ele, uma disciplina cientifica não é somente fonte de informações sobre o mundo, mas “um campo de treino do pensamento independente, da observação isenta e cuidadosa, do respeito aos fatos – habilidades preciosas, cada vez mais necessárias, mas que brilham pela ausência no ensino tradicional de gramática” (2010, p.39). Nesse sentido, o autor sugere que se trabalhe a gramática, primeiramente, abandonando a ideia de que, ao estudá-la, o desempenho no uso da linguagem escrita será melhor e de que a gramática é um sistema plenamente conhecido e pronto; assumindo uma atitude científica em relação à linguagem, dando lugar à dúvida, a justificativas para as afirmações feitas e ao questionamento; e, por fim, permitindo a observação, a manipulação, o estudo de fatos da língua, com o objetivo de formular hipóteses a respeito de como ela funciona (2010, p.39-40). 3. Com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996, em substituição à de 1971, promulgada em pleno regime militar, passa a existir uma base comum nacional que referenciará as propostas curriculares em todos os níveis e sistemas de ensino. Até então, com exceção do ensino superior, sujeito ao Conselho Federal de Educação, as definições curriculares eram de responsabilidade dos Estados. Publicados entre 1997 e 1998, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) incorporaram a crítica à escola, que atravessa a década de 1980 e invade a seguinte. A crise da escola e a produção do fracasso escolar têm como resposta no documento um conjunto de orientações fundamentadas nas conquistas científicas das diferentes áreas do conhecimento e uma tentativa de aproximação entre a escola e a academia. Não é nossa intenção aprofundarmos a análise desse fenômeno, mas nos interessa destacar algumas proposições que dizem respeito ao ensino da gramática na escola e à configuração que os PCN dão a essa questão.ii Os PCN da área de língua portuguesaiii incorporam alguns discursos e abordagens teórico-metodológicas atuais no momento de sua elaboração. Deles constam conceitos tais como: condições de produção, gênero de texto, texto, textualidade, discurso, reflexão sobre a linguagem, variação linguística, competência discursiva, linguística e estilística, análise linguística, entre outros postos em evidência pelos estudos linguísticos daquele momento. Concebem a linguagem como atividade discursiva e o texto como unidade de ensino, adquirindo centralidade no trabalho pedagógico as diversas práticas de linguagem. Constituem como eixos articuladores dos conteúdos de língua portuguesa o uso da língua oral e escrita e a reflexão sobre a língua e a linguagem. Como conteúdos (com caráter de procedimentos), oferecem a prática de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e a prática de produção de textos orais e escritos, do eixo “uso”, e a prática de análise linguística, do eixo “reflexão”. Dentre as três obras a que fizemos referência no tópico anterior, a que mais repercutiu sobre a elaboração dos PCN foi, sem dúvida, a de Geraldi (1984a). O conceito de análise linguística, exposto originariamente por esse autor, é utilizado claramente como substituto da expressão “ensino de gramática”. Essa substituição tem em vista assegurar que o estudo da língua não ocorra desvinculado das práticas sociais de linguagem, da produção e recepção dos diferentes gêneros de textos. Pretendem com isso deslocar o enfoque do ensino da língua para o uso da linguagem e para a reflexão sobre esse uso, ou seja, para os processos comunicativos em curso nas diferentes situações sociais. Isso denota a clara orientação sociointeracionista de linguagem, sustentada pela presença genebrina entre os consultores do Ministério. Segundo Geraldi (1993, 1996), cuja base teórica se assenta na teoria da enunciação bakhtiniana, a prática de análise linguística inclui atividades que todo falante pode fazer com a língua, a saber, atividades linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas. iv As primeiras dizem respeito a “um certo tipo de reflexão que se poderia dizer quase „automática‟”, que ocorre sem que o fluxo da interação entre sujeitos necessite ser suspensa. Já as atividades epilinguísticas dizem respeito à avaliação que todo falante realiza dos recursos expressivos de que se utiliza e que são postos à sua disposição. As últimas são atividades “que tomam a linguagem como objeto não mais enquanto reflexão vinculada ao próprio processo interativo, mas conscientemente constroem uma metalinguagem sistemática com a qual falam sobre a língua”, analisando-a por meio de conceitos, classificações, etc. (Geraldi, 1993, p.2026). Como se trata de atividades acessíveis a todos os sujeitos e não somente a especialistas, nos PCN, essa abordagem assume conotação de estratégia didática com fins de análise linguística a ser encaminhada pelo professor. A atividade mais importante, pois, é a de criar situações em que os alunos possam operar sobre a própria linguagem, construindo pouco a pouco, no curso dos vários anos de escolaridade, paradigmas próprios da fala de sua comunidade, colocando atenção sobre similaridades, regularidades e diferenças de formas e de usos lingüísticos, levantando hipóteses sobre as condições contextuais e estruturais em que se dão. É, a partir do que os alunos conseguem intuir nesse trabalho epilingüístico, tanto sobre os textos que produzem como sobre os textos que escutam ou lêem, que poderão falar e discutir sobre a linguagem, registrando e organizando essas intuições: uma atividade metalingüística, que envolve a descrição dos aspectos observados por meio da categorização e tratamento sistemático dos diferentes conhecimentos construídos. (Brasil, 1998, p.28). Não obstante a exposição acima, predomina nos PCN um discurso que enfatiza muito mais a gramática que não se deve ensinar do que aquela que deve constituir o planejamento do professor; muito mais o que não se deve fazer do que o como se deve proceder para que as práticas tradicionais amplamente combatidas no documento (e fora dele) não sejam reproduzidas. Alguns enunciados ilustram essa afirmação: “Deve-se ter claro, na seleção dos conteúdos de análise lingüística, que a referência não pode ser a gramática tradicional”; “O que deve ser ensinado não responde às imposições de organização clássica de conteúdos na gramática escolar”; “O modo de ensinar, por sua vez, não reproduz a clássica metodologia de definição, classificação e exercitação” (Brasil, 1998, p.28-29). Concordamos com Marinho (2003) quando, após análise criteriosa das estratégias textuais e enunciativas adotadas pelos PCN, denuncia a ambiguidade do documento: ao mesmo tempo em que ocorre o “apagamento da autoria”, em virtude de a maior parte das referências teórico-metodológicas ser omitida ao longo da exposição (inclusive aquelas citadas por nós anteriormente), o leitor se depara com a presença profusa de outras tantas bibliografias – algo inusitado em um documento com esse cunho. Segundo a autora, antes de ser um documento oficial, os PCN podem ser concebidos como um texto de divulgação cientifica, ou como uma proposta de transposição didática ou, ainda, como um texto acadêmico. O fato, independentemente da opção que fizermos para defini-lo, é que por ele falam muitas vozes, principalmente aquelas que ainda hoje detêm a hegemonia do pensamento sobre o ensino de língua portuguesa na escola. 4. Como vimos, no debate sobre o ensino de gramática na escola há duas posições convergentes: o ensino tradicional da gramática não eleva as condições de uso e de compreensão da língua por parte dos aprendizes; e à escola cabe abordar esse campo do conhecimento sistematicamente. Já os objetivos e os desdobramentos desses pressupostos tendem a ser diversos. Se a língua é um legítimo objeto de ensino, que lugar tem no processo ensinoaprendizagem o estudo e a reflexão sobre a gramática da língua? Se o ensino da gramática não assegura aquisições que se transponham para o uso adequado e eficiente da língua, seja oral ou escrita, o que justificaria a sua presença no currículo? Que áreas de conhecimento contribuem para a explicitação dessa problemática e para a formulação de suas respostas? Como as produções científico-acadêmicas mais recentes enfrentam as questões relacionadas a que gramática ensinar, com que objetivo e de que forma? Sem o intuito de esgotar as perguntas acima formuladas e o(s) campo(s) que possivelmente poderia(m) nos fornecer respostas satisfatórias, colocamo-nos a necessidade de identificar como tem sido tratada a inserção da gramática na escola nos trabalhos acadêmicos mais recentes, verificando em que termos aquelas premissas para as quais convergem as discussões se articulam com o trabalho efetivo de sala de aula. Para tanto, fizemos uma busca na base de dados Scielo, mediante o recurso às seguintes palavras-chave: gramática, ensino de gramática, reflexão linguística, metalinguagem, reflexão metalinguística, língua portuguesa, língua materna, ensino, aprendizagem, análise linguística, utilizadas de modo combinado ou isoladamente. O resultado nos colocou diante de sessenta e sete artigos, veiculados por periódicos da área da Linguística e da Educação, no período de 2005 a 2011. Após a leitura dos títulos e dos resumos dos artigos, foram selecionados somente os trabalhos que, a princípio, voltavam-se para o ensino da gramática (ou para a análise linguística, conforme os PCN), tratando-o de um ponto de vista didático. Resultaram dessa primeira triagem dezoito (18) textos. Com a leitura dos materiais, fez-se necessária outra seleção, uma vez que no curso da exposição a expectativa formulada a partir da leitura dos resumos não se cumpria. Dessa forma, constituíram o corpus do estudo que apresentaremos a seguir seis (6) artigos voltados à problematização de práticas de ensino ou de inovações relativas ao trabalho com a gramática. Produzidos entre 2010 e 2011, cinco (4) deles foram publicados pela Revista Brasileira de Linguística Aplicada (UFMG), um (1) pela revista Trabalhos em Linguística Aplicada (Unicamp) e um (1) pelo periódico Educação e Pesquisa (USP). Podemos observar que a circulação de trabalhos sobre o ensino da língua portuguesa, para além daqueles que constituem o nosso corpus, ocorre em periódicos tanto da área de Educação como da área de Linguística, fundamentalmente, Linguística Aplicada. Essa constatação reiterou uma suspeita anterior segundo a qual, na ausência de um campo como o da Didática da Língua, para o qual possam convergir trabalhos dessa natureza e temática, a produção sobre o ensino da língua portuguesa encontra-se dispersa entre a área da Educação e a área de Letras/Linguística. Talvez concorra para isso, ainda, o fato de, no Brasil, a formação profissional para atuar em Anos Iniciais do Ensino Fundamental estar a cargo dos cursos de Licenciatura em Pedagogia e, para atuar nos Anos Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, estar sob a responsabilidade dos cursos de Licenciatura em Letras. Outro elemento de destaque foi o número restrito de trabalhos com o enfoque que buscávamos. Isso pode indicar que as práticas didático-metodológicas na área do ensino de gramática não aproximam muitos dos pesquisadores brasileiros, os quais em sua maioria, como observamos, reportam-se a problemas de fundamentação e de pesquisa básica, ou que o estudo do ensino da gramática, no contexto das políticas curriculares atuais, cede espaço a produções didático-metodológicas voltadas às práticas de leitura e produção de textos, em especial ao trabalho com os gêneros textuais, objeto de estudo para o qual converge a maior parte dos artigos resultantes da primeira fase do processo de seleção descrito anteriormente. Tanto uma hipótese como outra somente poderia ser investigada caso superássemos a fase exploratória de nosso estudo e ampliássemos o universo de investigação para outros campos, tais como o Banco de Teses e Dissertações da Capes (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), os anais de eventos consolidados do campo da Linguística e da Educação (por exemplo, Reunião Anual da Anped – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação – e da Anpoll – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística), os periódicos qualificados em ambas áreas que não constam da base Scielo. A seguir, procederemos à descrição dos documentos com base em dois indicadores: A crítica ao ensino tradicional da gramática e a incorporação de outras concepções e de novos enfoques teóricos e As práticas de ensino de gramática: convergências e divergências. Como o nosso critério era o de localizar trabalhos que enfrentassem claramente o desafio de propor uma abordagem para a gramática na sala de aula, entrando de preferência para dentro dela, verificando o que nela acontece ou explicitando de modo organizado como se daria um ensino que não orientado pela abordagem tradicional, este último indicador receberá maior atenção. Usaremos os seguintes códigos para nos referirmos aos trabalhos que constituem o nosso corpus: para Aparício (2010), T1; para Brito (2011), T2; para Cerqueira (2010), T3; para Fairchild (2010), T4; para Gonçalves, Saito & Nascimento (2010), T5; e para Silva (2010), T6. A crítica ao ensino tradicional da gramática e a incorporação de outras concepções e de novos enfoques teóricos Todos os autores dos textos em análise inserem os seus trabalhos no contexto da crítica ao ensino tradicional da gramática e da busca de referências e justificativas para novas abordagens nas contribuições provenientes dos estudos linguísticos e nas propostas oficiais (PCN). As características atribuídas a esse ensino não diferem daquelas que reconstruímos em tópicos acima, neste artigo. Menciona-se, para caracterizá-lo, a ênfase à descrição, à classificação, à metalinguagem, à prescrição, a determinados tópicos gramaticais cuja abordagem se repete ano após ano, à tendência de separar o estudo da língua das condições efetivas nas quais ela se realiza, ao estudo da língua como sistema em detrimento do estudo do seu funcionamento e de práticas de produção de textos. No T6, algo se destaca em relação a isso. A autora parte do princípio de que o debate acadêmico expôs à crítica o ensino tradicional da gramática, mas não produziu resultados consensuais sobre qual deveria ser o objeto de estudo da aula de português, dando origem a um “clima de desalento” entre os professores. Reconhece o esforço de Geraldi (1984b; 1984c) de enfrentar esse desafio, mas afirma que sua abordagem não se constitui ainda uma tendência dominante no ensino de língua no país. O T5 também considera que, apesar da “virada pragmática ou comunicativa”, os conteúdos das aulas voltados à gramática normativa continuam resistindo fortemente. Diante disso, as autoras propõem que à perspectiva sociointeracionista (Schneuwly, Dolz, Bronckart) e à teoria da enunciação bakhtiniana seja associada a perspectiva funcionalista, uma vez que ela proporciona análises linguísticas que partem da concepção de língua como “uma estrutura maleável, sujeita às pressões do uso e constituída de um código não totalmente arbitrário” (p. 1004). Para atestar a viabilidade de trabalhar com os gêneros discursivos em uma perspectiva funcionalista, as autoras apresentam a análise de textos do gênero propaganda institucional, extraídos de uma edição especial da Revista Veja. A exposição pauta-se pela análise descritiva de cinco textos, mediante a qual são apresentadas as relações entre os sistemas discursivos, semânticos e gramaticais, articulados à interação produtor/leitor situados em um contexto de produção/recepção. Para elas, essa é uma prática possível de ser feita em aula e que permitirá aliar o trabalho realizado ao trabalho prescrito. As práticas de ensino de gramática: convergências e divergências Um tema em comum entre quatro trabalhos (T1, T2, T6 e T3) remete à relação em sala de aula entre os princípios de um ensino pautado pela abordagem normativa da língua e um ensino inovador, imbuído do discurso de mudança presente nas produções acadêmicas e nos documentos oficiais. Tanto o T6 quanto o T1 e T2 voltam-se para os professores, em sua docência ou em formação inicial. Considerando os PCN e a inovação na concepção de ensino de gramática que eles provocam, em T1, a autora aborda a compreensão que os professores têm desse novo contexto, a incorporação que fazem desse discurso e as mudanças que efetivamente produzem em suas práticas. A pesquisa, qualitativo-interpretativista de natureza etnográfica, tem como corpus um conjunto de aulas registradas por sete professoras de escolas públicas, atuantes nos Anos Finais do Ensino Fundamental. A análise das aulas evidencia o percurso de construção do objeto de ensino e as estratégias utilizadas pelas docentes. Constata em muitas delas o esforço de levar os alunos à observação e à reflexão de determinadas categorias e funções gramaticais por meio do recurso a textos, fragmentos de textos e sentenças. Não foram observadas práticas em que se vê a palavra como unidade de análise ou a identificação e classificação de categorias gramaticais em estudo. As professoras reconhecem os limites do ensino tradicional da gramática, mas demonstram dificuldade em perceber o que pode ser realizado no âmbito das práticas de reflexão linguística. Conclui, ainda, que, imbuídas da tarefa de realizar o que os documentos oficiais consideram como tratamento didático do objeto de ensino, as inovações apresentam os seguintes traços comuns: - desenvolvem a análise linguística somente com categorias da gramática tradicional, ainda que as demandas de inovação proponham também o trabalho com outras categorias, como as da gramática funcional e as da linguística de texto, por exemplo; - para o estudo de categorias da gramática tradicional lançam mão de modos de descrição/análise disseminadas pela linguística, focalizando sobretudo a dimensão semântica da língua, além da dimensão morfossintática. (p. 904). Resulta de sua análise uma concepção de ensino de gramática como um trabalho para o qual convergem várias lógicas e temporalidades e que se realiza em um coletivo (aula, escola). Para a autora, a aula de gramática é um espaço dinâmico, onde não há fronteiras entre o inovador e o tradicional, mas um “embaralhamento” do que, em termos acadêmicos e científicos e conforme as determinações oficiais, é concebido como excludente. Em T6, o problema de investigação é muito semelhante ao do T1. A autora propõe-se a entender como os professores se comportam diante dos embates entre a tradição gramatical escolar e os discursos que tentam superá-la, por meio da investigação da prática de dois professores de escolas públicas dos Anos Finais do Ensino Fundamental. Com a mesma abordagem metodológica, a pesquisadora reitera algumas das conclusões de T1 e afirma que resultam da tentativa de construção da identidade profissional dos docentes, nesse contexto de mudança, reflexões que têm por eixo o que ela denomina “solidarização de noções teórico-metodológicas”, provenientes da tradição gramatical e da teoria linguística. Essa solidarização, segundo a autora, pode ser observada por meio da: “1) variação de perspectivas teóricas para abordar um mesmo conteúdo; 2) adoção de posturas diferentes por parte do docente, conforme o conteúdo que esteja ensinando; e 3) abordagem de um mesmo conteúdo por quadros referenciais diversos perseguindo objetivos diferentes” (p. 961). Em T2, o objetivo de analisar a confluência entre as concepções tradicionais de gramática e os demais modelos que permitem embasar o ensino de língua volta-se para o ambiente da formação inicial de docentes, precisamente, no curso de Letras. Indagados, por meio de questionário, sobre a necessidade de ensinar a gramática normativa (GN), os estudantes revelam uma concepção de gramática como a “concretização perfeita e autêntica” da língua. Segundo eles, a condição para ser professor de português é o domínio da GN. Na análise feita pela pesquisadora, utilizando-se das referências teórico-metodológicas da Análise do Discurso de linha francesa, a gramática está para os futuros alunos como algo que não faz sentido, que não se historiciza, e cujo aprendizado necessita de um professor que os motive para aprender por meio de uma “pedagogia interessante, dialógica e democrática”. Essa perspectiva, segundo a autora, confronta-se com o discurso da mudança, característico dos anos de 1980 e 1990, que emerge dos comentários sobre o papel do professor de língua. Segundo os entrevistados, cabe a esse docente respeitar a linguagem do aluno e possibilitar a apropriação da norma culta pelas camadas empobrecidas da população. Cabe-lhe, portanto, o ensino respeitoso da norma padrão. Em certa medida, as conclusões de T2 vão na direção dos dois trabalhos anteriores: no percurso de sua formação, os sujeitos não substituem um conhecimento por outro, mas os entrecruzam. O estudo apresentado por T4 tem por elemento desencadeador um caso, construído com base em situações vividas pelo autor como supervisor de estágio no curso de Letras. Em uma aula, os alunos fazem uma interpretação inusitada da palavra “rataria”, presente num texto de Monteiro Lobato. A partir do relato, o autor passa a detalhar uma série de possíveis ações que poderiam ser desenvolvidas a partir das respostas dadas pelos alunos. Com isso, ele pretende expor de modo prático a que levariam os postulados teóricos que orientam atualmente o ensino da língua portuguesa. O autor denuncia que, nas interações com os estudantes, frequentemente os seus erros são concebidos como déficit e não como algo a que se pode “dar consequência”, que revela procedimentos de construção do conhecimento e que oferece oportunidades para que o professor se inclua na palavra do aluno. Diante das críticas feitas ao ensino tradicional, o autor, a exemplo do T6, indaga-se sobre que propostas alternativas são oferecidas aos professores e de que conhecimentos eles necessitam para desenvolver um ensino que se oriente por outra abordagem. Segundo ele, o professor necessita de conhecimentos técnicos, de um repertório teórico que lhe dê condições de explicitar o trabalho linguístico subjacente ao erro ou de utilizar o erro como pretexto para outras atividades e reflexões. Além disso, precisa elaborar um tipo de prontidão que lhe permita lidar taticamente com o inusitado de modo a conseguir mobilizar os conhecimentos sobre a linguagem adequada e produtivamente. Ressalta, ainda, que não há como subtrair um tipo de conhecimento do outro. Ambos são fundamentais ao ensino. Versando sobre o conflito entre as abordagens professadas pelos livros didáticos e aquelas que efetivamente emergem das propostas de trabalho neles contidas, o T3 analisa quatro obras orientado pela hipótese segundo a qual nelas se fazem presentes exercícios e atividades que remontam, respectivamente, a uma concepção tradicional do ensino da língua e a uma prática que ultrapassa as preocupações gramaticais e se volta para a utilidade desse conhecimento para a vida dos alunos. A autora recorre às áreas de Linguística, Pedagogia e Psicologia para sistematizar a diferença entre os conceitos de exercício e atividade. Segundo ela, as atividades permitem realizar a proposta dos PCN, na medida em que preveem a análise linguística e situações de reflexão epilinguística e metalinguística. Já o exercício está a serviço do ensino de gramática normativa uma vez que leva o aluno a operar com a língua partindo de um estímulo provocado pelo professor e chegando a uma resposta já prevista. A prioridade, nesse caso, é formar hábitos automáticos, baseando-se em uma concepção behaviorista de aprendizagem. A autora, após análise de várias propostas contidas nas obras, conclui que, mesmo em se tratando de obras posteriores aos PCN e algumas delas produzidas por linguistas pertencentes ao movimento de mudança, o trabalho em “sala de aula de língua portuguesa esteve voltado, na maioria das vezes, ao exercício, tendo em vista um fim específico, desarticulado, muitas vezes, de uma função social mais ampla, bem como desarticulado da perspectiva de conceber os alunos como sujeitos produtores de textos” (p. 141). Para ela, o ensino de língua portuguesa necessita ser problematizado não apenas em relação ao papel do professor e do aluno, mas em relação a todos os elementos constituintes do processo de ensino e aprendizagem. Considerações finais Ao abordarmos elementos da trajetória do ensino de gramática no Brasil, observamos que as concepções de gramática se modificaram ao longo dos anos, chegando a diluírem-se em meio à atividade de reflexão linguística. Ao mesmo tempo, vimos que parte dos discursos oficiais e acadêmicos projeta esse corpo de conhecimentos para margens de difícil acesso às produções do campo didático-metodológico, mantendo-se imersos na polêmica a respeito da pertinência ou não de ensiná-lo. Entre os trabalhos que conseguimos localizar com o filtro que impusemos ao campo, destaca-se o esforço por superar o estado de rejeição ao ensino tradicional da gramática, que explicita o que não se deve fazer, mas que pouco apresenta as possibilidades do ensinar. Para tanto, recorrem a conhecimentos provenientes de diferentes áreas, seja da Linguística, da Psicologia e/ou da pesquisa educacional. De nossa parte, entendemos que à escola cabe criar condições para que os sujeitos assumam um controle cada vez maior sobre a pertinência e o uso dos conhecimentos linguísticos, fundamental para atuar com a língua nas diversas e complexas situações sociais. Essa tarefa traz consequências para a atividade científicoacadêmica nas áreas implicadas, cujo tratamento não pode ser postergado. Os resultados das avaliações em larga escala, as denúncias veiculadas por professores que atuam nos diferentes níveis de ensino e os testemunhos dados por estudantes se voltam todos para um mesmo quadro: as apropriações linguísticas que na escola os jovens têm protagonizado não são suficientes para atender sequer às demandas próprias da instituição escolar, quanto mais aos desafios de um entorno que lhes exige estratégias de elaboração, expansão e socialização de conhecimentos. Sobre esse contexto, podemos dizer que há um duplo movimento a ser realizado em relação ao ensino da língua: um deles vai no sentido de ampliar as situações de uso da linguagem de modo que se explicitem para o sujeito e se desenvolvam nele estruturas linguísticas complexas, passíveis de serem utilizadas em situações comunicativas concretas não somente dentro da escola, mas também fora dela; o outro, orienta-se no sentido de aprofundar e expandir a capacidade fundamentalmente humana de poder voltar-se sobre a linguagem, inquirindo-a, reconhecendo-a, pensando sobre ela, capacidade esta que a criança carrega para dentro da escola e que nela é necessário aprimorar e expandir. Se considerarmos que a escola é uma instituição a serviço da humanização do homem (por mais redundante que isso possa parecer!), também é ela um dos lugares apropriados para o exercício da ação intencional sobre os processos psicológicos, dentre os quais – mais uma vez – agir com e sobre a própria língua. Em que isso consiste, mediante que propostas se realiza e que efeitos produz sobre a formação e a atuação dos sujeitos são alguns dos problemas a serem enfrentados solidariamente pelas áreas cujos conhecimentos se imbricam na complexidade que é o aprendizado sempre inconcluso da língua. Referências bibliográficas Angelo, G. L. de. Revisitando o ensino tradicional de língua portuguesa. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2005. Aparício, A. S. Modos individuais e coletivos de produzir a inovação no ensino de gramática em sala de aula. Revista Brasileira de Lingüística Aplicada, Belo Horizonte, v. 10, n. 4, p. 883-907, 2010. Bagno, M.; Rangel, E. de O. Tarefas da educação lingüística no Brasil. Revista Brasileira de Lingüística Aplicada, v. 5, n. 1, p.63-81, 2005. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília : MEC/SEF, 1998. 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A terceira definição, a gramática como um conjunto de regras que o falante domina, tem por objetivo explicitar “os aspectos dos conhecimentos linguísticos dos falantes que têm propriedades sistemáticas”, sem conotação valorativa. (Possenti, 1990). ii Para uma análise mais ampla das concepções presentes nos PCN da área de Língua Portuguesa, podese consultar Marinho, 2003; Bunzen, 2011; Aparício, 2010. iii Os PCN de Língua Portuguesa estão expostos em duas publicações: uma dirigida aos Anos Iniciais do Ensino Fundamental (EF) e outra referente aos Anos Finais do EF, ambas informadas pelas mesmas abordagens teórico-metodológicas. As citações diretas de que nos utilizaremos foram feitas da edição dos PCN dos Anos Finais do EF (Brasil, 1998). iv Geraldi (1993) atribui os conceitos de atividade epilinguística e metalinguística ao linguista francês Antoine Culioli (1999).