UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA Denise Nunes Alves Khalil INTERFACE EDUCAÇÃO / PSICANÁLISE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MOTIVAÇÃO E O FRACASSO ESCOLAR Rio de Janeiro 2011 Denise Nunes Alves Khalil INTERFACE EDUCAÇÃO / PSICANÁLISE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MOTIVAÇÃO E O FRACASSO ESCOLAR Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida por DENISE NUNES ALVES KHALIL, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Orientadora: Profª Drª Vera Pollo Rio de Janeiro 2011 DIRETORIA DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU E DE PESQUISA Rua Ibituruna, 108 – Maracanã 20271-020 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2574-8871 - (21) 2574-8922 FICHA CATALOGRÁFICA K14i Khalil, Denise Nunes Alves Interface educação/psicanálise: considerações sobre a motivação e o fracasso escolar/Denise Nunes Alves Khalil, 2011. 71f. ; 30 cm. Digitado (original). Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de Janeiro, 2011. Orientação: Profª Drª Vera Polo 1. Educação. 2. Psicanálise. 3. Fracasso escolar - Estudo de casos. I. Polo, Vera. II. Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título. CDD – 616.89 BN Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho DENISE NUNES ALVES KHALIL INTERFACE EDUCAÇÃO / PSICANÁLISE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MOTIVAÇÃO E O FRACASSO ESCOLAR Dissertação apresentada ao programa de Pós Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida por DENISE NUNES ALVES KHALIL, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração: Prática em Psicanálise Linha de pesquisa: Prática Psicanalítica Aprovada em 12 de agosto de 2011. BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________________________ Profª Drª Vera Pollo Universidade Veiga de Almeida ___________________________________________________________________ Profª Drª Gloria Sadala Universidade Veiga de Almeida ___________________________________________________________________ Profª Drª Sheila Abramovitch Universidade do Estado do Rio de Janeiro Para minha filha, que através dos seus sonhos me vestiu de luz. Fez-me na prática entender Augusto Cury, quando diz: "Precisará de singelos sonhos para cobrar menos de si e das pessoas que a rodeiam: para elogiar, brincar, cantar e compreender mais." AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar ao Vice-Reitor da Universidade Veiga de Almeida, Tarquínio Prisco Lemos da Silva, e à Eliane Gomes dos Santos, que viabilizaram meus estudos nesta conceituada instituição. À minha mãe Regina Célia que me deu raízes firmes, amor e asas para voar, para que eu me tornasse uma pessoa melhor. Minha grande incentivadora e inspiradora. Ao meu pai Fernando Alves, pessoa singular em minha vida, anjo que nos trouxe luz para quem teve o privilégio de conviver com você, aprendendo o significado: lutar pela vida. Saudades vivas. À minha filha Fernanda Alves, que me ensinou a ser mãe com sua ternura e inspiração de uma filha única e amada. Ao meu amado marido, Marcio Michel, companheiro fiel de todas as horas e pelo prazer demonstrado em seus olhos diante de cada nova conquista minha. À minha orientadora Vera Pollo, por todo o direcionamento de minha pesquisa, pelo privilégio de ser orientada em meus discernimentos e escolhas. À minha grande amiga Eliane Dominguez, parceira e incentivadora, pela paciência e gratuidade com que esteve ao meu lado durante todos os momentos difíceis desta travessia, ajudando-me na concretização deste sonho. À psicanalista Sonia Pucci que soube ser boa perguntadora, nas horas em que eu mais buscava respostas. Aos meus milhares e, ao mesmo tempo, únicos Alunos aos quais hoje devo muito, pois foi por meio de vocês que pude entender o processo de educar, sem rótulos e julgamentos. Aos educadores Daniele, Fabiane, Fabiana, Soraya, Carla, Regina, Rejane, Juliana, Ricardo, Flavio, Débora, Alexandre, Roberta, Bete e Areta pelos quais, de forma inesperada, fui cativada e desafiada a ser uma verdadeira educadora com brilho nos olhos. Agradeço-lhes pelos quase trinta anos de respeito, carinho e confiança. Aos meus companheiros que mantenho como verdadeiras pérolas: Mônica, Marcela, Elizangela e Paulinho, pela amizade, presença forte e marcante desde o dia em que os conheci até sempre. Se a humanidade pudesse aprender pela observação direta de crianças, estes três ensaios não precisariam ser escritos. Sigmund Freud (1905) RESUMO A presente dissertação tem como objetivo construir uma interface da educação e da psicanálise. O primeiro capítulo, intitulado: “Sobre a Educação”, apresenta inicialmente uma abordagem conceitual da motivação e da aprendizagem; discute em seguida o lugar do professor como figura-chave na motivação dos alunos e introduz o tema do fracasso escolar; salienta alguns pontos da legislação brasileira sobre a educação e discorre sobre o desenvolvimento cognitivo e a afetividade de acordo com a ótica de Piaget. O capítulo dois desenvolve as noções psicanalíticas de Complexo de Édipo e transferência e o capítulo três procura ilustrar essas noções por meio do relato de alguns fragmentos de um caso diagnosticado como “fracasso escolar”. Conclui-se que o educador que não levar em conta as dimensões do inconsciente e da possibilidade de que o “fracasso escolar” seja essencialmente um sintoma da criança que “responde ao que há de sintomático no casal parental” (LACAN, 1969), está fadado a ser, ele próprio, o fracasso escolar. Palavras-chave: Motivação, aprendizagem, fracasso escolar, complexo de Édipo, transferência, sintoma da criança. ABSTRACT This dissertation aims to build an interface of education and psychoanalysis. The first chapter, entitled "On Education", initially presents a conceptual approach of motivation and learning, then discusses the place of the teacher as the key figure in student motivation and introduces the theme of school failure, highlights some of the points Brazilian legislation on education and discusses the affective and cognitive development according to Piaget's perspective. Chapter two develops the psychoanalytical concept of the Oedipus complex and the transfer and Chapter three attempts to illustrate these notions by reporting some fragments of a case diagnosed as "school failure". We conclude that the educator who does not take into account the size of the unconscious and the possibility that the "school failure" is essentially a symptom of the child "responds to what is symptomatic of parental couple" (Lacan, 1969), is bound to be himself, school failure. Keywords: Motivation, learning, school failure, the Oedipus complex, transference, the child's symptoms. SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................ 11 1 SOBRE EDUCAÇÃO........................................................... 13 1.1 MOTIVAÇÃO E APRENDIZAGEM UMA ABORDAGEM CONCEITUAL.......................................................................... 13 1.2 A RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO: MOTIVAÇÃO E FRACASSO ESCOLAR .......................................................... 18 1.3 O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.............................. 25 1.4 DESENVOLVIMENTO COGNITIVO E AFETIVIDADE SOB A ÓTICA PIAGETIANA................................................................ 27 2 QUEM É ESSE SUJEITO QUE SE APRESENTA NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR COMO FRACASSADO?........ 38 2.1 O COMPLEXO DE ÉDIPO ....................................................... 44 2.2 A DIFERENÇA DO COMPLEXO DE ÉDIPO NOS MENINOS E NAS MENINAS............................................................................... 47 2.3 A TRANSFERÊNCIA................................................................ 51 3. UM CASO DE FRACASSSO ESCOLAR .......................... 56 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................... 61 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................... 67 11 INTRODUÇÃO A presente pesquisa nasceu após quase trinta anos de trabalho com a Educação. Foi então que decidi ampliar meus estudos e me envolvi com a Psicopedagogia na busca de respostas para as questões que surgiam inevitavelmente. Nessa busca vivenciei um sentimento minimamente intrigante que é acreditar que a aprendizagem estaria para além das palavras “erros” e “acertos”. Ao me deparar com a Psicanálise, novas questões se apresentaram no tocante à verdadeira função da Instituição Escolar. Vislumbrei um caminho que abriu novas formas de pensar questões anteriores. Passei a refletir sobre o processo educativo e sua relação com a repetição de modelos, bem como sobre o fracasso escolar como forma de manifestação da ausência de motivação para aprender. Abriram-se, portanto, as portas da interlocução entre dois campos: a Educação e a Psicanálise, em nome do desejo de um saber sobre a infância. Psicanálise e Educação. O que resulta dessa combinação? Teria a psicanálise algo a apresentar no tocante ao fracasso escolar? Diante deste questionamento nos voltamos para o núcleo primevo do sujeito: a família e sua influência. Nesse contexto, procuramos aprofundar as discussões relacionadas à Educação e à Psicanálise na busca de uma possível interface, de modo a localizar suas implicações no processo de aprendizagem. Toda ação educativa supõe a presença de um professor e um aluno interagindo afetivamente nas mais diversas situações, afetando e sendo afetados um pelo outro. Na relação pedagógica podem surgir sentimentos de aceitação ou de aversão entre educador e educando, o que interferirá na metodologia, no processo de ensino/aprendizagem, na motivação e na relação transferencial. A relação afetiva é enfocada sob a ótica piagetiana e psicanalítica, pois a afetividade está sempre muito presente quando se fala em desenvolvimento emocional. Cada campo foi pesquisado com o objetivo de encontrar pontos que 12 concernem à sua área, evidentemente, esbarrando em várias questões. Questões que são bem-vindas, pois se sustentam em suas diferenças e enfatizam a idéia de não complementaridade. Logo, a heterogeneidade de discursos, a sustentação de uma questão em contraponto a uma resposta, o pulsar do caso, refletem o modo sob o qual se opera a interlocução do dia-a-dia. É a partir dessa perspectiva, da escuta e da concepção de espaços que possibilitem aos sujeitos uma inserção social produtiva, que gostaríamos de refletir de modo mais específico sobre o fracasso escolar. Vale ressaltar que a pesquisa se limita ao campo da neurose. O primeiro capítulo consiste em uma compreensão do efeito motivador agindo no aluno, da aprendizagem concebida essencialmente na ordem da necessidade de aprender, das mudanças oriundas da estrutura cognitiva provocadas por uma aprendizagem significativa e, por fim, do estudo da motivação. Neste mesmo capítulo, procuramos apresentar conceitos de uma sala de aula revestida de uma conotação afetiva permeando todo o processo educacional, através da qualidade do diálogo que poderá, ou não, definir o sucesso ou o fracasso escolar de uma criança. Na terceira parte do primeiro capítulo pretendemos mostrar as relações afetivas como um aspecto necessário, complementar e indissociável do desenvolvimento intelectual do ser humano. Discorremos, no segundo capítulo, a respeito do sujeito que recebemos na instituição escolar e, para tal, buscamos fundamentação teórica na travessia do complexo de Édipo apresentado por Freud. No esforço por articular o universal do Édipo com o mais singular que é o sujeito, procuramos apresentar a diferenciação da travessia edipiana no menino e na menina. Ainda neste capítulo apresentamos o fenômeno da transferência e o seu resultante na instituição escolar. Para ilustrar, apresentamos um caso clínico de fracasso escolar, com o qual pudemos efetuar articulações, utilizando alguns conceitos da Educação e da Psicanálise. Esperamos, com esta dissertação, contribuir para uma visão menos discriminatória e excludente do fracasso escolar, e também elucidar questões intrincadas entre a psicanálise e a educação. 13 1. SOBRE EDUCAÇÃO 1.1 MOTIVAÇÃO E APRENDIZAGEM: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL Segundo Cratty (1984), por motivação compreendem-se os fatores e processos que levam as pessoas a uma ação ou à inércia. Saber motivar para a aprendizagem escolar pressupõe saber como os alunos aprendem. O interesse dos alunos em aprender depende, em grande medida, das decisões que o professor toma no que diz respeito à organização do ensino. Devemos considerar que cada ser humano é diferente e que o aluno, ao chegar à escola, não chega vazio. Ele chega com uma riqueza muito grande que está pronta para ser explorada pelo professor, que promove uma interação de qualidade com os alunos baseada no seu contexto, tanto no que se refere aos contextos da aprendizagem mais próximos como os mais distantes, desde o espaço físico até a família. Queiroz (2008) nos remete ao entendimento de que o termo motivação em educação designa: “(...) aquilo que desperta no aluno o desejo de aprender algo novo. As necessidades orgânicas, as atitudes e os interesses são motivos que instigam o indivíduo à ação e à atividade objetiva. As motivações se processam no interior do indivíduo. A motivação é um impulso ou uma tendência diretiva que se processa no interior do organismo.” (idem, ibidem, p.177). O que nos ajuda a compreender a motivação de nossos alunos é observar seu comportamento. Uns ficam contentes com suas conquistas, outros abaixam a cabeça quando são chamados para ir ao quadro. Há aqueles que pedem ao colega para perguntar a professora, ao invés de perguntarem eles mesmos, e os que 14 gostam de fazer trabalho em grupo. Assim, podemos observar que nossos alunos agem tendo em vista diferentes metas. Para alguns o mais importante é aprender algo que faça sentido: descobrir, por trás das palavras que se constroem, encontrando explicação para um problema relativo a um tema que se deseja compreender. No entanto, para outros a preocupação é preservar sua imagem diante de si mesmo e dos demais. Há também os que somente desejam conseguir a aprovação ou determinada nota. No entanto, esta forma de aprendizagem não tem valor em si mesmo, servindo somente para conseguir algo externo com o objetivo de atingir o fim. Consideramos relevante ressaltar que na adolescência existe a preocupação de agir com autonomia. Os alunos começam a fazer as coisas que acham necessárias, questionando as outras que julgam não ser. E há alunos que agem movidos especialmente para conseguir atenção e aceitação. “A tarefa dos educadores não é a de ensinar às crianças alguns conceitos fundamentais, mas sim, a de colocá-las em circunstancias favoráveis que lhes permitam descobrir aquilo que elas devem saber” (ASSIS, 1987, p.22). Deste modo, realizar tarefas preocupados em aumentar a própria competência e interessados no descobrimento, compreensão e domínio dos conhecimentos e habilidades em que a aprendizagem está em jogo define o tipo de motivação intrínseca à tarefa. O aluno que se preocupa apenas com sua própria imagem tem, e em geral obtém, resultados negativos. Porém, há uma situação em que estar preocupado com a própria imagem tem efeitos positivos: quando o aluno tem a segunda chance de fazer uma prova quando na primeira tentativa não obteve um bom resultado. Na segunda chance geralmente consegue melhorar seu desempenho. Isso quer dizer que quando a preocupação de aprender é maior, os alunos tendem a serem aprovados na primeira avaliação, os demais, na medida em que sua preocupação com a melhoria do seu desempenho aumentava, eram aprovados na segunda tentativa. Então, a preocupação de obter bons resultados, e não ruins, tem efeitos positivos ao menos nesta circunstância. O educador deve possibilitar e motivar adequadamente os alunos, mesmo que na escola seja tudo praticamente imposto: professores, currículo, programas, atividades, colegas, avaliações, etc. Porém, é possível ao professor favorecer a aprendizagem escolar buscando a autonomia dos alunos, apresentando aulas dinâmicas, deixando os alunos assumirem o trabalho escolar, buscando meios alternativos de aprender e progredir, dando oportunidades de opção e alternativas tão numerosas quanto possível, dividindo tarefas em objetivos parciais para que os 15 alunos realmente possam alcançar essas metas, dando-lhes consciência do que significa aprender, se detendo na satisfação que comporta a experiência, na compreensão dos fenômenos e no domínio das estratégias que possibilitam a solução de problemas. A vivência em sociedade é essencial para a transformação do homem de um ser biológico em um ser humano. É pela aprendizagem, através das relações com o outro, que construímos o conhecimento que permite o nosso desenvolvimento mental. Nenhum conhecimento é construído pela pessoa sozinha, mas sim em parceria com o outro que será o mediador. O professor deve criar ambientes facilitadores da motivação para a aprendizagem, despertando curiosidade, fazendo com que o aluno explore o lugar e se interesse pelas aulas tendo atenção e concentração, de modo que os conteúdos estejam relacionados com as experiências, valorizando os conhecimentos prévios dos mesmos, organizando as atividades de acordo com características que repercutem e motivem os alunos a realizá-las. Nas atividades decididas pelo grupo junto ao professor, os alunos se sentem importantes, com autonomia para resolver os problemas e a interação dos alunos é ampla. Os professores devem ser cautelosos ao avaliar em que contexto literário, histórico, cultural e a partir de quais critérios avaliam seu conteúdo e sua forma, ou seja, que avaliação fazer. A avaliação pode motivar ou desmotivar nossos alunos. Assim, devemos planejar permitindo que o aluno, a partir da avaliação, possa se interessar em buscar o que naquele momento ele não havia compreendido. Podemos pensar que na aprendizagem escolar existe mais do que informação acumulada pelo sujeito no decorrer dos tempos. Na verdade, temos uma estruturação sobre como e para que utilizar tais conhecimentos. A motivação do aluno para a apreensão dos conteúdos está muito mais relacionada a aspectos afetivos com o objeto de estudo do que na aplicabilidade deste em sua vida futura. Isto porque é característica das faixas etárias que perpassam nossas séries escolares não perceber a amplitude do futuro e sua relação com o presente. O professor pode ser visto como fundamental na construção do conhecimento pelo educando, pois esta relação do educando com o educador é, em sua maior parte, efetivada na mediação docente. Entendemos por aprendizagem a mudança que se produz em um aluno do estágio inicial para o estágio final da construção de um determinado conhecimento. A aprendizagem acontece na interação, captação e processamento dos estímulos 16 que o aluno recebe do meio. Queiroz (2008, p.22), enfatiza que a aprendizagem seria o “ato de aprender. Os conhecimentos resultam de um processo de construção interno, no qual as crianças pensam e refletem sobre o que desejam aprender” (idem, ibidem, loc.cit.). Tomamos como consequência da aprendizagem algo que um aluno era incapaz de realizar (ex. cálculo, leitura, distinção de cores, etc.) e após o processo de aprendizagem tornou-se apto a realizá-lo. É importante salientar que a aprendizagem tem que nascer de um interesse, de uma necessidade de aprender cada vez mais. Em qualquer aprendizagem podemos distinguir duas dimensões: o processo seguido em sua realização e o produto ou resultado. Quanto à dimensão podemos subdividir em três grupos, segundo o processo que a provocou: aprendizagem por percepção, por descobrimento guiado e por descobrimento autônomo. Sendo estes três processos marcas de determinados intervalos. As aprendizagens por descobrimento autônomo são mais freqüentes nos alunos de pouca idade. À medida que vão se desenvolvendo, as aprendizagens por percepção são cada vez mais frequentes. Independente da forma como tenha sido o acesso ao aprendizado, esta pode ser classificada em função de uma segunda variável: o produto. A aprendizagem significativa – mnemônica ou repetitiva – pode se resumir em incorporação substantiva, esforço deliberado para relacionar os novos conhecimentos com conceitos de nível superior, implicação afetiva para relacionar os novos conhecimentos com aprendizagens anteriores. A aprendizagem significativa apresenta três vantagens essenciais: produz uma retenção mais duradoura da informação, facilita a realização de novas aprendizagens relacionadas e gera mudanças profundas na estrutura cognitiva. Tomamos como características de aprendizagens significativas, a memorização abrangente do que se aprende, uma reflexão crítica por parte do aluno para relacionar a nova informação, a funcionalidade, o aluno que aprende para resolver novas situações, novos problemas. Para que ocorra uma aprendizagem mais significativa possível são necessárias pelo menos três condições: significatividade lógica do material, significatividade psicológica e motivação do aluno. Para planejar e aplicar processos de ensino e aprendizagem, devemos ter claros os seguintes aspectos, que decorrem naturalmente do próprio conceito de 17 aprendizagem: a formulação das metas, o conhecimento do estado inicial, o modelo de aprendizagem, o modelo de ensino e de avaliação. Friedmann (1996, p.66) nos diz que a “motivação é o fator que influencia o desenvolvimento: se a motivação é grande, a criança irá se esforçar para fazer as coisas mais complexas”. Ainda tomando como referência este autor, a aprendizagem depende da motivação, do interesse e da necessidade da criança. Para que haja desenvolvimento afetivo e cognitivo, deve-se encorajar a criança à autonomia e ao pensamento crítico, levando em consideração o fato de o desenvolvimento depender do equilíbrio afetivo. A motivação é um conjunto de variáveis que ativam a conduta e a orientam em determinado sentido para poder alcançar um objetivo. Refere-se às forças que agem sobre um organismo, ou dentro dele, para iniciar e direcionar o comportamento. Estudar a motivação consiste em analisar os fatores que fazem as pessoas empreenderem determinadas ações dirigidas e alcançarem objetivos. Segue abaixo algumas classes de motivações para a conduta humana: • Motivação relacionada com a tarefa: a própria matéria de estudo desperta no indivíduo uma atração que o impulsiona a se aprofundar nela e vencer os obstáculos que possam se apresentar. É nela que o organismo humano se mobiliza para a ação. Partindo da relação que se estabelece entre a necessidade, o ambiente e o objeto de satisfação. Bock (1999, p.121) deixa evidente tal necessidade: “E, por fim, na motivação está incluído o objeto que aparece como a possibilidade de satisfação da necessidade” (idem, ibidem, loc.cit.). • Motivação relacionada com o eu, com a auto-estima: os êxitos e fracassos obtidos definem o conceito que temos de nós mesmos. Segundo Maggil (1984), a motivação é definida: “como força interior, impulso, intenção que leva uma pessoa a fazer algo ou agir de certa forma” (idem, ibidem). Sendo assim, toda motivação implica na investigação dos motivos que influenciam um determinado comportamento, onde este será impulsionado por razões individuais. • Motivação concentrada na valorização social: satisfação afetiva que produz a aceitação dos outros, o aplauso ou a aprovação de pessoas ou grupos sociais que o aluno considera superiores a ele. Maggil (ibidem) considera que: “os motivos sociais que envolvem o indivíduo em relação às outras pessoas e, segundo essa interação, recebem o nome de afiliação, agressão, poder, assistência, etc.” (idem, ibidem). 18 • Motivação que aponta para a conquista de recompensas externas: uma vez que a aprendizagem sempre incluirá relações entre pessoas tanto no plano individual, quanto com o mundo, quando esta estiver sempre medida pelo outro. Bock (1999, p.124) defende a idéia de que não há um desenvolvimento pronto e previsto dentro de nós que vai se atualizando conforme o tempo passa. Podemos entender que o desenvolvimento do indivíduo é um processo que se dá de fora para dentro, sendo que o meio influencia o processo ensino-aprendizagem. Não há aprendizagem sem motivação. Um aluno está motivado quando sente necessidade de aprender o assunto que está sendo tratado. E é por meio desta que o aluno se dedica cada vez mais às tarefas inerentes até se sentir satisfeito. Esperamos que no próximo sub-capítulo seja possível observar melhor o sentido do ensino quando se trata da aprendizagem, pois para que o processo educativo ocorra é necessário conhecer como o professor ensina e de que modo este entende como seu aluno aprende a pensar, a sentir e a agir. 1.2 A RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO: MOTIVAÇÃO E FRACASSO ESCOLAR. Toda relação humana é mediada, organizada, tanto por fatores conscientes quanto por fatores inconscientes. Portanto, dentro da relação professor-aluno também ocorrerá a interferência de fatores inconscientes. O reconhecimento destes fatores inconscientes facilita a situação ensino-aprendizagem melhorando sua qualidade. Freud (1914), no texto Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar, nos faz refletir sobre tal relação, enfatizando que: “A psicanálise nos mostrou que as atitudes emocionais dos indivíduos para com outras pessoas que são de tão extrema importância para seu comportamento posterior, já estão estabelecidas numa idade surpreendentemente precoce.” (idem, ibidem, p.248). O fato de duas ou mais pessoas se encontrarem com propósitos educacionais é, em si, um acontecimento importante a considerar, pois desde que existem seres humanos, existem pessoas ensinando e pessoas aprendendo. O encontro com fins pedagógicos é um acontecimento humano típico, assim como a relação mãe-filho ou a relação terapeuta-paciente. Há todo um ritual que define este acontecimento: 19 horário e locais específicos e papéis definidos com uma proposta de transmissão de conhecimento e formação do indivíduo. Os papéis de professor (o que ensina) e de aluno (o que aprende) são polaridades que podem ter uma relação dialética entre duas ou mais pessoas podendo até se inverter. O professor precisa estar ciente de que na realidade de um aluno se inserem aspectos subjetivos como sonhos, desejos, emoções, crenças e afetos. E a leitura desse mundo depende também dos aspectos subjetivos de quem lê. Nesse sentido, podemos afirmar que o interior psíquico e a subjetividade têm leis próprias de organização e funcionamento, irredutíveis às do exterior, do social, de um espaço de posições. Por esse motivo, é necessário que a leitura do mundo do aluno seja feita com os olhos do aluno. Segundo Freud (1914): “Temos uma sensação esquisita, quando, já na idade madura, mais uma vez recebemos ordem de fazer uma redação escolar. Mas obedecemos automaticamente, como o velho soldado que, à voz de “Sentido!”, deixa cair o que tiver nas mãos e se surpreende com os dedos mínimos apertados de encontro às costuras das calças.” (idem, ibidem, p.247). Devemos sempre colocar no ponto de observação que para extrair da realidade do aluno a linguagem e fazer de suas expectativas uma moldura para ensinar o conteúdo escolar seria necessário um processo para a construção de conhecimento capaz de unir trabalho e lazer, teoria e prática, tirando da obrigação o afeto. A princípio, tal postura dependeria do trabalho da escola e do professor juntos. Ambos devem atuar em consonância, mas o professor precisa assumir tal desafio mesmo que a estrutura da escola não o acompanhe. Isto porque a qualidade da aula e o relacionamento professor-aluno dependem da postura afetiva do educador. É preciso que o educador se encaminhe para a situação de ensino de forma consciente, dinâmica e aberta para todos esses diálogos. Assim, torna-se impossível ficar imune à mesma e resistir a seu encanto. Esse encontro de duas pessoas, cada uma com sua história de vida, com suas características pessoais, com seu papel a desempenhar, onde as influências são mútuas, pois ninguém sairá incólume desse contato que focaliza a aprendizagem e o ensino. Na contramão da educação Freud (ibidem) menciona: “Como psicanalista, estou destinado a me interessar mais pelos processos emocionais que pelos intelectuais, mais pela vida mental inconsciente que pela consciente.” (idem, ibidem, p.248). 20 Como um dos fatores mais importantes para facilitar esta relação, e interferir na qualidade de ensino, destacamos o autoconhecimento do professor, que gera uma reação em cadeia, ativando o autoconhecimento do aluno, da própria relação e da situação educacional. Ao estar engajado em um processo de conhecer a si próprio, estabelecendo contato com seu inconsciente, uma das figuras que o professor reconhece é seu lado aluno. Também fazem contato com suas limitações, suas percepções subliminares. Enfim, conhece a si próprio enquanto uma totalidade. Podemos também pensar que para o educador, além da vocação e preparo técnico, é fundamental que ele busque o autoconhecimento. Isto porque, através da educação, podemos inscrever o sujeito em uma relação de dever e dívida com o outro. O que constitui a tensão inaugural do sujeito, como um incentivo à conquista do princípio do prazer e a sua substituição pelo princípio da realidade. Um processo dinâmico que busca o desenvolvimento e afeta o eu, que utiliza uma oferta de amor do professor como forma de recompensa. Onde se institui o imaginário como esforço do humano para a conquista de certo tipo de educação. Assim, ele terá que lidar com fenômenos tão complexos que pensamos na necessidade dele se voltar para o seu inconsciente, a fim de se conhecer melhor. Pensemos nas múltiplas decisões dos professores e seu reflexo na motivação. Quando a sociedade não oferece muitas saídas aos jovens e as perspectivas de encontrar trabalho ao sair da escola são poucas, parece que toda a responsabilidade de motivar os alunos recai nos professores. A tarefa não é fácil, mas é necessária. Ao entrar em contato com seu “aluno interior”, um professor passa a ter mais paciência e flexibilidade no trato com seus alunos, pois sabe o que é sentar na cadeira do aluno. Assim, pode então reconhecer sinais de cansaço, aceitar brincadeiras, ficar mais junto de seu aluno. Além disso, o professor ganha maior capacidade de aprender, se reciclar e ensinar de forma mais atuante. Ganha também mais entusiasmo e curiosidade até para ouvir aquilo que um aluno traz e ser capaz de valorizá-lo. A troca, a possibilidade de ver o outro como algo importante para o eu, a relação dialética, a difícil e útil tarefa de poder e saber ouvir o que o outro tem a nos dizer, não só quando concordamos com o outro, mas principalmente quando dele discordamos, faz parte do exercício humano da humildade, que é tão complicado. E ainda há o fato da personalidade do professor realmente estar em jogo. Ou seja, atuar como um modelo, sendo que o aluno pode, ou não, sofrer suas 21 influências. O caráter do professor pode ser captado pelo aluno e por isso pensamos ser relevante o autoconhecimento do professor. Freud, em 1914, já destacava as condutas e fantasias dos alunos: “nós os cortejávamos ou lhes virávamos as costas; imaginávamos neles simpatias e antipatias que provavelmente não existiam; estudávamos seus caráteres e sobre estes formávamos ou deformávamos os nossos”. (idem, ibidem, p.248). O educador deve sempre ter em mente que pouco adianta falar para dar ordens. É importante salientar que a afetividade não poderá estar dissociada da educação, uma vez que ela é o dínamo da inteligência, é a mola propulsora das ações. Ao chegar à escola a criança traz a experiência afetiva que tem em seu convívio familiar. Deste modo, é preciso que o educador desperte no aluno a motivação para o aprendizado e isso somente é possível por meio da fantasia porque é dela que brota o afeto. Fato este que pode ser amplamente observado através da reflexão da citação freudiana: “Mas não se pode negar que nossa posição em relação a eles era notável, uma posição que bem pode ter tido suas inconveniências para os interessados.” (idem, ibidem, loc.cit.). Em termos pedagógicos, considera-se a influência da figura do professor na motivação dos alunos. Neste momento consideramos válido ressaltar que a Psicanálise nos oferece o conceito de desejo ao invés de motivação. Quando um professor não está motivado, se não exerce de forma satisfatória sua profissão, é muito difícil que seja capaz de comunicar a seus alunos entusiasmo e interesse pelas tarefas escolares. É muito difícil que seja capaz de motivá-los. No caso dos professores, em especial os do ensino fundamental, parecem escassos os conhecimentos das diferentes áreas e muito limitados os do campo psicopedagógico. Deveria incluir a formação necessária para que o professor seja capaz de motivar seus alunos. Salientando a observação de Freud (ibidem), que relata: “É nessa fase de desenvolvimento de um jovem que ele entra em contato com os professores, de maneira que agora podemos entender a nossa relação com eles.” (idem, ibidem, p.249). Podemos observar que para extrair a linguagem da realidade do aluno e fazer de suas expectativas uma moldura para ensinar o conteúdo escolar, seria necessário um processo para a construção de conhecimento capaz de unir trabalho e lazer, teoria e prática. Tirando da obrigação o afeto. 22 Tal postura, a princípio, dependeria do trabalho da escola e do professor juntos. Ambos devem atuar em consonância. No entanto, o professor precisa assumir tal desafio mesmo que a estrutura da escola não o acompanhe. Isto porque a qualidade da aula e o relacionamento professor-aluno dependem da postura afetiva do educador. É preciso valorizar o ofício do professor. O governo, as escolas e os próprios professores devem considerar isso o objeto primordial. Do contrário encontraremos professores cada vez mais desmotivados que não serão psicologicamente capazes de abordar o problema da motivação de seus alunos. Às vezes se diz que o mais motivador para um aluno é ter um bom professor. Também se diz que um bom professor é aquele que sabe motivar seus alunos. Os processos de ensino-aprendizagem são satisfatórios quando se estabelece uma conexão, uma sintonia entre o professor e os alunos, uma cumplicidade. Aliás, conexão, sintonia e cumplicidade são termos da Educação, que devem ser pensados na Psicanálise através do conceito de transferência, que trabalharemos no sub-capítulo 2.3. Conhecer a fundo a matéria a ser ensinada e vibrar com ela é indispensável para comunicar aos alunos a motivação que se costuma considerar mais valiosa do ponto de vista pedagógico: a motivação intrínseca. Nesse sentido, é necessária uma formação permanente, pois é importante que os professores falem dos temas da atualidade, os quais interessam a nossos alunos. Além da comunicação explícita, daquilo que o professor diz e explica, ele comunica muitas outras coisas: a maneira de raciocinar, o estilo cognitivo, a personalidade, as atitudes, os valores. Essa é uma característica que faz com que a vocação de professor seja a uma só vez difícil e apaixonante. Isso fica bem evidente no texto freudiano de 1914, onde nos diz que: “Estes homens, nem todos os pais na realidade, tornaram-se nossos pais substitutos. Foi por isso que, embora ainda bastante jovens, impressionaram-nos com tão maduros e tão inatingivelmente adultos. Transferimos para eles o respeito e as expectativas ligadas ao pai onisciente de nossa infância e depois começamos a trata-los como tratávamos nossos pais em casa.” (FREUD, 1914, p.249). Muitos bons professores, quando alcançam um alto nível de competência, deixam de sê-lo ou reduzem ao mínimo suas tarefas docentes, transformando-se em gestores, diretores, administradores ou assumindo qualquer outro tipo de ocupação que, aos poucos, os afasta do trabalho docente e do contato com os alunos. 23 Até agora os professores só tinham competência no desenvolvimento curricular. O planejamento vinha integralmente definido pelo Ministério da Educação e não podiam modificar o planejamento. Sem dúvida isso complica o trabalho do educador, mas também o enriquece para dignificar sua profissão. Devemos aproveitar a liberdade que temos em programar as aulas e partir da realidade na qual se encontram os alunos, não para nos acomodarmos a ela, mas para transformá-la e fazê-los crescer. Os planejamentos e programações devem constituir uma referência. Porém, não podem ser rígidos, devemos acomodá-los à realidade motivacional de nossos alunos sem necessidade de rebaixar os níveis de exigência. Avaliamos para controlar a qualidade. No entanto, a avaliação é realizada, principalmente, para melhorar processos e resultados. O resultado de uma avaliação tem que ser analisado para ser tomada a decisão adequada a fim de melhorar os resultados e os processos. Um campo muito importante é o da avaliação inicial, como forma de verificar o estado de ânimo do aluno que se pretende transformar como conseqüência das aprendizagens programadas. No ensino esse hábito não está ainda suficientemente enraizado. O professor deverá se ocupar da criação e aplicação de inovações destinadas a melhorar os processos e os resultados, para melhorar a qualidade de ensino. As teorias que procuram explicar o processo de motivação partem do pressuposto de que deve existir alguma coisa, algum motivo, que desencadeia uma ação, que lhe dá direção, que mantém seu curso em direção a um objetivo e a finaliza. Contudo, o que é o motivo? O motivo "não existe" efetivamente, mas é "criado" pela pessoa para explicar a razão ou a necessidade que ela tem de fazer algo, de agir de uma determinada maneira. A facilidade com que um aluno aprende pode ser atribuída à motivação e a sua falta é um fator que leva os estudantes à lentidão ou até mesmo a ausência de aprendizagem. Para aprender é preciso estar motivado, para realizar é preciso ter um motivo, para se manter trabalhando é necessário que a motivação para o trabalho seja mantida. A motivação humana é um processo rico em detalhes e, por isso mesmo, rico em maneiras de ser abordada pelas várias teorias. 24 Não existe receita pronta que melhore a motivação de nossos alunos. O professor, através da prática e experiência, possui a capacidade de tentar melhorar a motivação de sua turma. Sem esquecer da rotina e dos conteúdos ao qual nos prendemos e acabamos esquecendo de trabalhar com maior motivação em sala de aula. Ao chegar à escola, a criança traz a experiência afetiva que tem em seu convívio familiar. Deste modo, é preciso que o educador desperte no aluno a motivação para o aprendizado e isso somente é possível por meio da afetividade ou então, como nos dirá Freud (1914), “a menos que levemos em consideração nossos quartos de crianças e nossos lares, nosso comportamento para com os professores seria não apenas incompreensível, mas também indesculpável.” (idem, ibidem, p.250). Do mesmo modo que os alunos trazem sua experiência afetiva do convívio familiar, o conteúdo que lhes foi transmitido até sua chegada à escola foi extraído dos conhecimentos do mundo em que vive. Tais conhecimentos apresentam aspectos dinâmicos e são obtidos de diversas maneiras: pela televisão, pela internet, pela convivência familiar, entre outros. O dinamismo de uma sala de aula não significa a extinção das aulas expositivas. No entanto, o dinamismo exclui o tédio, prepara o ambiente para uma abstração elucidativa. A forma como é conduzida a fala do professor, a paixão, o amor pelo tema, a atenção para com os alunos são ingredientes que provocam o feedback intelectual e desenvolvem inteligências. A discussão sobre o fracasso escolar é uma temática complexa que não se resume a uma única dimensão e não possui um único culpado. No texto Algumas considerações sobre a psicologia do escolar, Freud (ibidem) já pensava na ambivalência: “Estávamos, desde o princípio, igualmente inclinados a amá-los e a odiálos, a criticá-los e a respeitá-los. A psicanálise deu nome de ambivalência a essa facilidade para atitudes contraditórias e não tem dificuldade em indicar a fonte de sentimentos ambivalentes. (...) Confrontamo-los com a ambivalência que tínhamos adquirido em nossas próprias famílias, e, ajudados, por ela, lutamos como tínhamos o hábito de lutar com nossos pais em carne e osso.” (idem, ibidem, p.248-250). A busca pela superação do fracasso escolar se articula a processos mais amplos do que a dinâmica intra-escolar sem negligenciar, nesse percurso, a real importância do papel da escola nos processos de desenvolvimento e aprendizagem dos alunos. 25 1.3 O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA A educação básica tem sido objeto de várias ações e políticas visando consolidar os processos de gestão nos vários níveis políticos. Segundo o Ministério da Educação em parceria com a Secretaria de Educação Básica, desde 2005, o governo federal vem investindo na educação básica, tendo a qualidade como parâmetro de suas diretrizes. No entanto, esta qualidade social que tem no humanismo sua base fundamental para a construção coletiva de representações sociais, que se referem às condições de vida dos alunos e de sua família. Com a reforma da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, a educação passou a constituir um direito social. Assim, se a aprendizagem é um processo vincular, ou seja, que se dá no vínculo entre aluno professor, ocorre, portanto, entre subjetividades. O fracasso escolar não pode ser medido apenas por porcentagem de reprovados por série, como na redação da Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. A caminhada do aluno deve ser analisada profundamente, assim como seu desenvolvimento enquanto ser humano e cidadão. Diante da necessidade de formar cidadãos capazes de se adaptar às realidades diversas ou adaptar a realidade às suas necessidades, é abstrato ver a aprendizagem como a capacidade de reproduzir conteúdos. Neste sentido é importante atribuir a responsabilidade do fracasso escolar não só ao aluno, mas a todo o sistema envolvido, como bem define a nova reforma. Sendo assim, para aprender, o ser humano coloca em jogo seu organismo herdado, seu corpo e sua inteligência construídos em interação e a dimensão inconsciente, pois o aprender implica em desejo que deve ser reconhecido pelo aluno, uma vez que a redação do artigo terceiro da Lei n° 9.394/96, que trata dos princípios e fins da Educação Nacional, está assim redigido: “Art.3º O ensino será ministrado com base no seguinte princípio: I – Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância; [...] VI - valorização do profissional da educação escolar” (BRASIL, 1996, art.3°). A reforma nos convida a incorporar no trabalho dos professores a tarefa de ensinar a pensar. Saber pensar num contexto dado, diante de uma tarefa concreta, condiciona consequentemente o interesse e a motivação pela aprendizagem. A 26 tarefa de ensinar a pensar pode ser enfocada, no mínimo de duas formas. Uma é que os professores conheçam esses programas, já que contêm idéias muito valiosas que podem melhorar a maneira de ensinar e motivar os alunos. A outra possibilidade de ensinar a pensar é a partir das diferentes áreas, matérias ou disciplinas. É importante que os professores dediquem um tempo a ensinar seus alunos a aprender. Estratégias de aprendizagem, de técnicas e procedimentos que objetivem facilitar a aprendizagem dos alunos, a torná-los autônomos diante da aprendizagem, a refletir sobre seus próprios processos de aprendizagem. Costuma-se distinguir entre microestratégias e macroestratégias de aprendizagem, as micro são fáceis de ensinar e as macros são difíceis. Existem quatro tipos de estratégias: • Estratégias de repetição: cópia, repetição, reprodução, rotinização de condutas. São ensinadas por meio da prática e exercícios guiados. • Estratégias de elaboração: sublinhar, tomar notas e fazer apontamentos, esquemas, resumos, diagramas. São indicadas quando se trata de adquirir conteúdos que devem ser reelaborados de forma pessoal para obter uma significativa interpretação. • Estratégia de organização: O ensino dessas estratégias deve se basear no conhecimento e no domínio de sistemas de representação de dados. • Estratégias de regulação: Toda atividade de ensino-aprendizagem deve poder se situar ou projetar sobre três pontos centrais ou dimensões: objetivo, conteúdo e estratégia de aprendizagem. A cada dia é mais importante o papel do professor como orientador no processo de aprendizagem dos alunos. O professor transmite alguns valores e atitudes: sua maneira de ser, de raciocinar, sua forma de apresentar os problemas, seus critérios para solucionar os conflitos que se apresentam, sua maneira de viver. Aprender passa pela observação do objeto, pela ação sobre ele, pelo desejo. A aprendizagem é a articulação entre saber, conhecimento e informação, sendo esta última o conhecimento objetivado que pode ser transmitido, o conhecimento é o resultado de uma construção do sujeito na interação com os objetos e o saber é a apropriação desses conhecimentos pelo sujeito de forma particular, própria dele, pois implica no inconsciente. 27 1.4 DESENVOLVIMENTO COGNITIVO E AFETIVIDADE SOB A ÓTICA PIAGETIANA Deste modo, podemos visualizar a aprendizagem como uma construção singular que o sujeito vai fazendo a partir de seu saber e assim ele vai transformando as informações em conhecimento, deixando sua marca como autor e vivenciando a alegria que acompanha a aprendizagem. Na área da Educação, motivação, afetividade, cognição e aprendizagem costumam ser articuladas, pois se supõe que as interferências recíprocas entre esses fatores respondem pelo sucesso ou fracasso escolar. Neste ponto da pesquisa, escolhemos focalizar o tema segundo a ótica piagetiana. Isto porque Piaget teve como objeto de seu estudo os dispositivos que o indivíduo utiliza para perceber o mundo. Unindo seu estudo ao campo epistemológico através da análise científica, o autor determina o processo de construção do conhecimento. O que pode ser visto pela própria eleição de seu objeto de estudo: o sujeito epistêmico ou o sujeito do conhecimento. Segundo Piaget (1977a) o sujeito epistêmico é aquele que, teoricamente estaria em cada um de nós, sujeitos psicológicos e que nos permite, cada qual em sua cultura, em meio às contingências por que passamos, construir conhecimentos. Por detrás das estratégias de produção de cada um, que variam de uma cultura para outra e até mesmo de sujeito para sujeito, podendo, ou não, haver alguns mecanismos comuns, portanto universais. Ao buscar inspiração na biologia, Piaget (1977a) postula que o desenvolvimento é um contínuo caminhar rumo ao equilíbrio. A teoria da equilibração foi utilizada por Piaget (1977a, p.242) para explicar a inteligência humana. O autor não propôs um conjunto de regras, meios ou processos úteis sobre a ação educativa, ou método de ensino, como nomeado no campo pedagógico. Ele nos apresenta a teoria do desenvolvimento cognitivo (idem, ibidem, p.162). Considera que o desenvolvimento pode ser aberto ou fechado. O desenvolvimento é aberto no sentido de se alimentar através da ação e da percepção do sujeito, das informações extraídas do meio social e físico. E é fechado no sentido de que o desenvolvimento não pode mais ser confundido com uma página em branco, sobre a qual as informações são recebidas e inscritas de forma simplória, mas dotado da capacidade de organização. Isso nos remete a capacidade de aprender do ser humano, em como pode adquirir um conhecimento que seria a resultante de um 28 processo de construção interna no qual a criança pensa e reflete sobre o que deseja aprender. O desenvolvimento cognitivo ocorre pelo constante contato do sistema cognitivo com as informações vindas do meio e pelo, não menos constante, processo de reestruturação que visa, justamente, fazer com que o sistema atinja o equilíbrio e nele reequilibrações permaneça. passam por Como grandes estas contínuas etapas, os reestruturações chamados estágios ou de desenvolvimento de Piaget (1977a, p.155), podemos compreender que passar por todas elas não é o destino previamente programado de cada sujeito. Dependendo da solicitação do meio, o desenvolvimento cognitivo reagirá construindo novas e superiores estruturas mentais. Comecemos por uma citação de Piaget (1932): “Não basta, para que se possa falar de verdade racional, que o conteúdo das afirmações seja conforme a realidade: é preciso, ainda, que este conteúdo tenha sido obtido por uma démarche ativa da razão, e que a razão ela mesma seja capaz de controlar o acordo ou o desacordo de seus juízos com a realidade.” (idem, ibidem, p.325). Podemos identificar na teoria de Piaget (ibidem) que a autonomia do sujeito se encontra sob dois domínios que estes estão relacionados com a razão. O primeiro deles é a própria construção da razão, bastando lembrar que a epistemologia genética do pensamento é racional, fruto do esforço que o sujeito faz para pensar seu próprio pensar ou agir. Já o segundo domínio é a afirmativa da autonomia do sujeito, que não diz respeito à razão, mas sim a sua função. Em síntese, o indivíduo, tal como concebido por Piaget (1977b), é capaz, graças à razão por ele mesmo construída, de se opor à autoridade, seja ela dos pais ou das diversas instituições, dentre elas a escola. Todavia, há uma condição que o autor postula para a conquista da autonomia: que o indivíduo tenha a oportunidade de usufruir das relações sociais de cooperação, onde as relações de coerção embotam o desenvolvimento que cerceia, tanto na criança quanto no adulto, a possibilidade de se emanciparem intelectual, moral e afetivamente. A afetividade desempenha um papel essencial no funcionamento da inteligência, pois segundo Piaget (1977b): “vida afetiva e vida cognitiva são inseparáveis, embora distintas. E são inseparáveis porque todo intercâmbio com o meio pressupõe ao mesmo tempo estruturação e valorização. (...) Assim é que não se poderia raciocinar, inclusive matemática, sem vivenciar certos sentimentos, e que, por outro lado, não existem afeições sem um mínimo de compreensão (...). O ato de inteligência pressupõe, pois, uma regulação energética interna (interesse, esforço, facilidade) (...)”. (idem, ibidem, p.16). 29 Sendo assim, para Piaget (ibidem), sem afetividade não há interesse, necessidade e motivação pela aprendizagem, também não há questionamentos, e sem eles não há desenvolvimento mental. Queiroz (2008) define, pedagogicamente, a afetividade como um: “conjunto de fenômenos psíquicos, emoções, sentimentos e paixões, acompanhados sempre de sensações de dor e prazer” (idem, ibidem, p.13). O autor define ainda a cognição, que quer dizer: “capacidade de aprender, de adquirir um conhecimento” (idem, ibidem, p.55). Esses conceitos se complementam e um dá suporte ao desenvolvimento do outro. O desenvolvimento cognitivo passa de um período inicial centrado na própria ação para a construção de um universo objetal e descentrado. De forma semelhante, a afetividade evolui de uma indiferenciação entre si própria e os que a rodeiam para aos poucos elaborar e construir um sentimento único e interindividual. Tanto o aspecto cognitivo como o afetivo evoluem. De início estão centrados no sujeito e nas suas próprias necessidades, mas depois se dirigem ao outro e às relações do sujeito com outros sujeitos. A afetividade, de acordo com Piaget (1977b, p.170), pode acelerar ou até mesmo retardar a formação das estruturas cognitivas. No entanto, possui como condição básica que apenas a emoção não evidencia uma condição suficiente para a formação de tais estruturas. As situações afetivas aceleram a formação no caso de interesse e necessidade. Entretanto, também podem retardar essa formação quando a situação afetiva serve de obstáculo para o próprio desenvolvimento intelectual. Piaget & Gréco (1974) reconhecem que as desregulações de caráter afetivo podem obstruir de forma sistêmica o funcionamento da atividade cognitiva. Ao retornar à normalidade afetiva lá ficaram os prejuízos na área cognitiva. A afetividade, por si só, não explica a construção da inteligência, mas as construções mentais são permeadas pelo fator e aspecto afetivo. Ressaltamos que toda conduta possui um aspecto cognitivo e um afetivo. Um não funcionará sem o outro. Quando uma criança apresenta dificuldade de entender algum tipo ou forma de conteúdo, ela pode se mostrar desinteressada, apática. Ou ainda, pode demonstrar sentimentos de desprazer em relação à aprendizagem e, se por ventura a criança tiver interesse por animais, pode desenvolver uma estrutura cognitiva para esta compreensão. Entretanto, uma cópia desprovida de significação não produz na 30 criança nenhum tipo de interesse ou de motivação. Desta forma, ela pouco aprende e nada constrói. Dizer que a criança se interessa por algo é afirmar que ela está de posse de certas estruturas para assimilar o que o professor está propondo. Quando ele se preocupa mais com a transmissão do conhecimento, deixando de lado o que realmente interessa à criança, está provocando uma aprendizagem desprovida de significado e de interesse. Assim sendo, é necessário refletir se os esquemas de assimilação da criança podem levá-la a superar os desafios propostos pelo educador. Isto porque se estes estiverem além da capacidade cognitiva da criança haverá também desmotivação e desinteresse. O interesse da criança pelos conteúdos escolares aumenta na mesma proporção em que seus processos cognitivos avançam. Em seu texto A relação da afetividade com a inteligência no desenvolvimento mental da criança, Piaget (1962), define que a afetividade precede as funções das estruturas cognitivas e que os estágios da afetividade correspondem exatamente aos estágios do desenvolvimento dessas estruturas. Logo, entre os estágios há uma correspondência e não uma sucessão. Piaget & Barbel (1968), em A psicologia da criança, relatam que a afetividade constitui a energética das condutas, cujas estruturas correspondem às funções cognitivas. Ou seja, as condutas humanas têm como mola propulsora o afeto e a estrutura de como elas são e funcionam constitui o elemento intelectual. A afetividade, fator fundamental na socialização, compreende sentimentos que vão desde o prazer, desprazer, simpatia, emoções e vontade, até os elementos energéticos, tais como: interesses, esforços, afetos das relações inter-individuais, simpatias mútuas e sentimentos morais. Em Seis estudos de Psicologia, Piaget (1967b) enfatiza que existe um paralelo constante entre a vida afetiva e a intelectual e esse paralelismo continuará por todo desenvolvimento infantil até a adolescência. “Afetividade e inteligência ficam indissociáveis e constituem os dois aspectos complementares de toda conduta humana”. (idem, ibidem, p.22). Todo educador deveria reconhecer a importância da afetividade na interação com seu aluno e, em especial, na construção do conhecimento. É essa relação, afeto-cognição, que poderá favorecer o desenvolvimento global da criança, de modo a oferecer maior equilíbrio e uma maior estabilidade na sua vida social, afetiva, moral e intelectual. 31 Piaget (1982b) se propõe a estudar a gênese do conhecimento centrado na ação do sujeito. Ou seja, como se dá o desenvolvimento de sua inteligência, não como a faculdade de saber, mas como um conjunto de estruturas momentaneamente adaptadas, pois “toda inteligência é uma adaptação” (idem, ibidem, p.162). Surge então o questionamento acerca do que é aprendizagem para a psicologia genética. Piaget (1964), responde a tal questionamento estabelecendo diferenças entre desenvolvimento e aprendizagem. O autor nos diz: “Primeiro, eu gostaria de esclarecer a diferença entre dois problemas: o problema do desenvolvimento e o da aprendizagem. (...) desenvolvimento é um processo que diz respeito à totalidade das estruturas de conhecimento. Aprendizagem apresenta o caso oposto. Em geral, a aprendizagem é provocada por situações provocadas por psicólogos experimentais; ou por uma situação externa. Em geral, é provocada e não espontânea. Além disso, é um processo limitado - limitado a um problema único ou a uma estrutura única. Assim, eu penso que desenvolvimento explica aprendizagem, e esta opinião é contrária à opinião amplamente difundida de que o desenvolvimento é uma soma de experiências discretas de aprendizagem.” (idem, ibidem, p.176) Para Piaget (1977a), “a inteligência foi a forma de adaptação primordial da espécie humana” (idem, ibidem, p.13), afinal ela possibilitou ao homem o uso de extensões. Antes da força muscular, da velocidade, da acuidade dos sentidos, e outras possibilidades de adaptação, o homo faber, por assim dizer, “investiu” no processamento de informações que permitem a produção e o uso de diferentes instrumentos, que de forma paralela, desenvolveram a mão e o cérebro. Piaget & Grèco (1974) nos fazem compreender que o comportamento dos seres vivos não é inato, nem resultado de condicionamentos. Para ele o comportamento humano é construído numa interação entre o meio e o indivíduo. Esta teoria epistemológica é caracterizada como interacionista. Portanto, a inteligência do indivíduo, como adaptação a situações novas, está relacionada com a complexidade desta interação do indivíduo com o meio. Ou seja, quanto mais complexa for esta interação, mais “inteligente” será o indivíduo. Em sua teoria Jean Piaget considera o desenvolvimento das funções marcado por períodos dotados de características bem definidas, as quais expõem uma estrutura qualitativamente diferente da que a precedera e das que a sucederão. No início de sua vida a criança não tem consciência do próprio eu e vive num processo de indiferenciação. Assim, a afetividade está basicamente centrada em seu próprio corpo e em suas próprias ações. Quando toma consciência de si, suas 32 relações se tornam objetais e o outro se torna objeto de afeto. É quanto tem início a descentração afetiva. Conforme nos relata Piaget (1982b): “Quando interrogamos crianças de diferentes idades sobre os principais fenômenos que as interessam espontaneamente, obtemos respostas bem diferentes segundo o nível dos sujeitos interrogados. Nos pequenos, encontramos todas as espécies de concepções, cuja importância diminui consideravelmente com a idade: as coisas são dotadas de vida e de intencionalidade, são capazes de movimentos próprios, e estes movimentos destinam-se, ao mesmo tempo, a assegurar a harmonia do mundo e servir ao homem. Nos grandes, não encontramos nada mais que representações da ordem da causalidade adulta, salvo alguns traços dos estágios anteriores. Entre os dois, de 8 a 11 anos mais ou menos, encontramos, pelo contrário, várias formas de explicações intermediárias entre o animismo artificialista dos menores e o mecanismo dos maiores; é o caso particular de um dinamismo bastante sistemático, do qual várias manifestações lembram a física de Aristóteles, e que prolonga a física da criança enquanto prepara as ligações mais racionais.” (idem, ibidem, p.173-4). Desde o nascimento até a idade adulta, o desenvolvimento mental do indivíduo é um processo contínuo de construção de estruturas variáveis que, ao lado de características que são constantes e comuns a todas as idades, refletem o seu grau de desenvolvimento intelectual. Para Piaget (1967b), estruturas variáveis são maneiras de organização das atividades mentais, que englobam os aspectos motor ou intelectual e afetivo, tanto na dimensão individual como na social. Já as características “invariáveis” são as funções de interesse, de explicação, dentre outras que não variam com o nível mental do indivíduo. Desta forma, a cada explicação particular para um interesse, há uma integração com a estrutura existente que, num primeiro momento, é reconstruída e, em seguida, ultrapassada para uma dimensão mais ampla, acarretando o desenvolvimento mental. Foi a partir da integração de sucessivas estruturas, aonde uma conduz à construção da seguinte, que Piaget (ibidem) dividiu o desenvolvimento em grandes estádios ou períodos que obedecem a três critérios básicos. No primeiro critério, “a ordem de sucessão é constante, embora as idades médias que as caracterizam possam variar de um indivíduo para o outro conforme o grau de inteligência, ou de um meio social a outro.” (PIAGET & INHELDER, 1978, p.131). É possível verificar que o desenrolar dos estádios pode ser acelerado ou retardado, dependendo da experiência do indivíduo. No entanto, o mais importante é que a ordem de sucessão permanece inalterada. 33 No segundo critério, “cada estágio é caracterizado por uma estrutura de conjunto em função da qual se explicam as principais reações particulares.” (idem, ibidem, loc.cit.). Contudo, este critério não significa que cada estádio de desenvolvimento seja caracterizado por um conteúdo fixo de pensamento, mas por certa atividade potencial que é suscetível de atingir esse ou aquele resultado, dependendo do meio no qual a criança vive (PIAGET, 1982b). E no terceiro critério, “as estruturas de um conjunto são integrativas e não se substituem uma às outras: cada uma resulta da precedente, integrando-a na qualidade de estrutura subordinada e prepara a seguinte, integrando-se a ela mais cedo ou mais tarde.” (PIAGET & INHELDER, 1978, p.132). Esse contínuo processo de desenvolvimento se dá através do restabelecimento do equilíbrio entre a estrutura precedente e a ação do meio, sendo que essas estruturas se sucedem de forma que cada uma assegura um equilíbrio mais estável do que o anterior, em direção a uma estrutura mais abrangente. Os estádios de desenvolvimento dessas estruturas foram descritos por Piaget em algumas de suas obras e podem ser divididos em quatro períodos: o sensório motor, o intuitivo (ou pré-operacional), o das operações intelectuais concretas e o das operações formais. No período sensório motor, de zero a dois anos, a afetividade se manifesta nas emoções primárias – medos, ligados a perda do equilíbrio e afetos perceptivos, que são as sensações agradáveis e desagradáveis, de prazer e de dor, etc. São afetos ligados à própria ação do sujeito, e não afetos da relação com outras pessoas. São afetos egocêntricos, sem a consciência do eu. Com a elaboração do universo exterior e da noção de “objeto”, os sentimentos se tornam objetivos. Ocorrem em relação às coisas e pessoas. Tem início os sentimentos interindividuais, que são as simpatias, antipatias, alegrias e tristezas. As transformações na socialização repercutem também na vida afetiva. Em toda conduta as motivações e o dinamismo energético provêm da afetividade, enquanto as técnicas constituem o aspecto cognitivo. Não existe uma ação puramente intelectual ou puramente afetiva. Os dois elementos intervêm na conduta e um interfere sobre o outro. No período intuitivo ou pré-operacional, de dois a sete anos, ocorre o desenvolvimento de afeições e simpatias, que são sentimentos ligados às socializações das ações. Aparecem também os sentimentos morais e os interesses e valores se regulam. Isto é, um objeto se torna interessante à medida que 34 corresponde a uma necessidade. Nesse período há interesse pelas palavras, desenhos, imagens, etc. Estas realidades adquirem valor para o sujeito na medida em que vão de encontro às suas necessidades. Aos interesses e valores das atividades correspondem sentimentos de superioridade ou inferioridade, quando ocorrem sucessos ou fracassos nas atividades que a criança desenvolve. No período dos dois aos sete anos, além das trocas intelectuais, há também sentimentos espontâneos que nascem das trocas entre as pessoas. Haverá simpatia em relação às pessoas que respondem aos interesses da criança e que a valorizam. O mesmo poderá ocorrer com antipatias. Na relação com o outro, há valores interindividuais: respeito, obediência e sentimento de dever aos mais velhos. Estes valores morais são dependentes de uma vontade exterior, a vontade dos seres mais velhos, que são respeitados. Regras de conduta são colocadas. A criança as aceita e reconhece por haver respeito recíproco. Quando o respeito se torna mútuo, os sentimentos morais serão autônomos e não mais impostos, porque a criança respeita o outro, é respeitada por ele e compreendida em seus sentimentos. Interesses, autovalorização, valores interindividuais espontâneos são as primeiras manifestações afetivas desse nível de desenvolvimento. No período das operações intelectuais concretas, de sete a doze anos, há cooperação, reciprocidade, autonomia. As operações intelectuais são reversíveis e a afetividade caracteriza-se por novos sentimentos morais, pela organização da vontade e por uma maior regulação da vida afetiva. Os primeiros sentimentos morais se originam do respeito unilateral em relação aos adultos. Um novo sentimento que surge, em função da cooperação, é o respeito mútuo. Em um jogo com regras, os menores de sete anos jogam de qualquer modo, imitando as regras dos mais velhos, pois existe o respeito unilateral pelos mais velhos. Por outro lado, os maiores de sete anos podem criar uma nova regra, que se torna verdadeira quando todos a adotam. É a expressão da vontade comum. A regra é respeitada como resultado do acordo explícito entre o grupo. A conseqüência afetiva do respeito mútuo é o sentimento de justiça, fundamentado na igualdade. O respeito mútuo conduz a uma nova organização dos valores morais. No período das operações formais, que corresponde ao início da adolescência, é alcançada a independência do real, aonde a estruturação do pensamento formal conduz à projeção de planos futuros. Seu caráter é o modo de raciocínio, que já não se baseia mais somente nos objetos e nem tão pouco nas 35 realidades observáveis. Tem início o embasamento no campo das hipóteses, permitindo que a construção de reflexões e teorias seja possível. É neste período que o pensamento se torna hipotético-dedutivo e, em conformidade com o pensamento de Piaget (1967b), ocorre então a libertação do pensamento, “quando a realidade torna-se secundária frente à possibilidade”. (idem, ibidem, p.64). É neste período também que, além da lógica de proposições, são desenvolvidas outras formas de operações denominadas de correlação e combinatórias. As novidades afetivas tais como: interesse por teorias, por mudanças sociais, a solidificação de novos valores morais e sociais, passa a assumir uma forma de negligenciar o papel das interações sociais, responsáveis pelos desenvolvimentos globais do ser humano. A teoria piagetiana busca deixar evidente o lugar ocupado pela afetividade no desenvolvimento humano, caracterizá-la como instrumento propulsor das ações, estando a razão ao seu serviço. A afetividade seria a energia, a força motriz da ação e a razão do fator que possibilita o sujeito identificar seus desejos e sentimentos para obter o êxito na própria ação. Para Piaget (1967b), “cada estágio1 constitui então, pelas estruturas que o definem, uma forma particular de equilíbrio, efetuando-se uma evolução mental no sentido de uma equilibração sempre mais completa.” (idem, ibidem, p.14). À medida que novas estruturas cognitivas vão surgindo e se estabilizando, a instabilidade e a incoerência das idéias infantis são deixadas de lado para dar lugar à sistematização do raciocínio do adulto. No campo da vida afetiva também ocorre o equilíbrio dos sentimentos com o aumento da idade. O desenvolvimento afetivo, que acompanha o intelectual, também tende a se estabilizar e se orienta para o equilíbrio. Uma forma final de equilíbrio que se encontra na afetividade do adulto. O quarto fator, a equilibração, considerado por Piaget (ibidem) como fundamental, é o que completa e evidencia o desenvolvimento das estruturas mentais do indivíduo. Isto é, como o equilíbrio depende da ação do sujeito ativo sobre os distúrbios externos e, ao mesmo tempo, da ação desses sobre aquele. O que se pode observar é um ponto de equilíbrio e não o ponto de equilíbrio. Desta 1 Embora os tradutores usem o termo estágio, a palavra estádio é mais apropriada na língua portuguesa. 36 forma, o desenvolvimento se dá por uma constante busca de equilíbrio, que significa a adaptação dos esquemas existentes no mundo exterior. Uma vez descritas as etapas de desenvolvimento, podemos questionar sobre quais fatores influenciam esse desenvolvimento. Piaget (1964) nos responde: “Para mim, existem quatro fatores principais: em primeiro lugar, Maturação (...), uma vez que este desenvolvimento é uma continuação da embriogênese; segundo, o papel da Experiência adquirida no meio físico sobre as estruturas da inteligência; terceiro, Transmissão Social num sentido amplo (transmissão lingüística, educação, etc.); e quarto, um fator que frequentemente é negligenciado, mas que, para mim, parece fundamental e mesmo o principal fator. Eu denomino esse fator de Equilibração ou, se vocês preferem, auto-regulação.” (idem, ibidem, 2 p.178). Destacamos alguns pontos importantes da teoria piagetiana devido a sua relevância para os professores: 1 – Os professores devem ter uma relação de respeito mútuo com as crianças encorajando-as a desenvolverem sua autonomia; 2 – Os professores podem promover a interação social na sala de aula encorajando o questionamento intelectual e ensinando a criança a lidar com questões morais; 3 – O professor deve permitir a discussão em sala de aula, para que a criança ouça os argumentos dos colegas e entre em desequilíbrio cognitivo para reestruturar seu raciocínio; 4 – A responsabilidade, a cooperação e a auto-estima não deveriam ser impostas, mas construídas pela criança a partir de suas próprias experiências. O desenvolvimento do ser humano e a consciência de si são construídos pelo sujeito nas suas relações com o outro. Eis a grande importância do educador, que permite e dá oportunidades para a criança vivenciar diversas situações de modo a experimentar e construir seu conhecimento e desenvolver sua afetividade. Para que seja possível a aplicação da teoria piagetiana à Educação, é de suma importância o entendimento de que esta é muito mais do que um método pedagógico, que, segundo Queiroz (2008), é “um conjunto de regras, meios e processos úteis para facilitar o processo de aprendizagem” (idem, ibidem, p.175). Decorre de uma atitude ética e política, no sentido em que aqueles que simpatizam com suas idéias devem ser, antes de tudo, amantes da liberdade e otimistas quanto à sua realização histórica. 2 Grifos do autor. 37 De certa forma, Piaget (1977b) cria uma nova Psicologia, cria um método que influencia a Educação. Já naquela época, ele considerava que para o conhecimento do indivíduo evoluir é necessário o estímulo, a participação, o respeito mútuo, no lugar do professor como único detentor do conhecimento e responsável pela sua transmissão. Como podemos identificar, a linha de pesquisa de Piaget se insere no contexto de Freud. Há uma hiancia dentro da Psicologia, sem controvérsias, afinal Freud segue pelo campo das emoções e Piaget pelo universo do conhecimento. (BECKER, 2009). Como já mencionamos, é importante ressaltar que enquanto a Educação fala de motivação, afetividade e ensino-aprendizagem, a Psicanálise fala de sujeito, desejo e transferência. 38 2 QUEM É ESSE SUJEITO QUE SE APRESENTA NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR COMO FRACASSADO? As crianças que fracassam na escola e são encaminhadas para atendimentos terapêuticos, via de regra, trazem consigo a suspeita de deficiências relativas a uma, ou várias, funções cognitivas como as alterações das percepções, os distúrbios da fala e da linguagem escrita, dentre tantas outras. Devemos ressaltar que, em muitos casos, as tentativas das crianças em solucionarem suas falhas cognitivas de forma adaptativa não obtêm o resultado esperado e, constantemente, acabam sendo encaminhadas para as psicoterapias, sob a suspeita de algum “bloqueio emocional”. E são vistas pelos profissionais como “parece que ela não quer aprender”, “é muito desatenta com as atividades formalizadas, apesar de parecer inteligente”. Freud (1926 [1925]) em Inibição, sintoma e ansiedade, nos diz que um: “Importante elemento da teoria da repressão é a opinião de que a repressão não é um fato que ocorre uma vez, mas que exige um dispêndio permanente (de energia). Se esse dispêndio viesse a cessar, o impulso reprimido, que está sendo alimentado todo o tempo a partir de suas fontes, na ocasião seguinte fluiria pelos canais dos quais havia sido expulso, e a repressão ou falharia em sua finalidade ou teria de ser repetida um número indefinido de vezes. Assim é porque as pulsões são contínuos em sua natureza que o ego tem de tornar segura sua ação defensiva por um dispêndio permanente [de energia].” (idem, ibidem, p.153). Tais considerações indicam que “alguma coisa” do sujeito impede que ele aprenda. É como se houvesse uma força contrária que neutralizasse todas as alternativas externas que procuram trabalhar suas dificuldades. Por outro lado, essa tamanha dificuldade de aprendizagem encontra, na hipótese de debilidade mental, uma possibilidade de justificar o fracasso. E a conseqüência disso é o encaminhamento para os testes intelectuais. No entanto, ali onde o inconsciente 39 redimensiona a prática pedagógica, introduz-se o imprevisível no previsível que caracteriza esta prática. Os princípios que regem o entendimento do sujeito avaliado e classificado por um Q.I. (QUOEFICIENTE DE INTELIGÊNCIA)3 são discutíveis. Cabe ressaltar que esses testes não medem a inteligência do indivíduo, apenas localizam o nível de desempenho relacionado às aquisições escolares da média das crianças de uma mesma idade. Na verdade, trata-se de uma avaliação comparativa. Tal compreensão refere-se a uma psicologia que privilegia as funções cognitivas como se fossem autônomas, passíveis de serem restauradas, e tem como premissa a noção de um sujeito unitário, dono de si e de seus atos e livre em seus desejos e aspirações. Fica evidente a compreensão de que o indivíduo não se constitui enquanto unidade. Para tanto, adotou-se o termo “sujeito”, que significa submetido, subordinado, ao inconsciente. Pode-se afirmar que o inconsciente se constitui a partir das palavras, de suas marcas significantes, veiculadas pelo discurso familiar, representado pelos pais, sustentado por um desejo, que está sempre implicado nas relações humanas. Para cada criança haverá um lugar particular, anterior mesmo ao seu nascimento, na história da família, que engendrará o seu percurso. Faz-se necessário que algum lugar simbólico seja construído pelo discurso parental, pois a criança “é falada” por aqueles que a cercam. A constituição subjetiva acontece, então, em dois momentos: num primeiro momento, a criança surge de uma forma alienada, referenciada pelo que dizem dela, como ela é, como deveria ser, com quem se parece e assim por diante. Em um segundo momento, ocorre a separação e a possibilidade de colocar-se como um sujeito que também deseja e se posiciona frente ao outro, onde a criança adquire um contorno próprio, fala e atua por si própria. Podemos entender que o sintoma produzido pela criança é o sinal de um malestar mais profundo, relacionado a um conflito inconsciente, totalmente desconhecido para o próprio sujeito. 3 O Quoeficiente de Inteligência (QI) foi empregado pelo psicólogo francês Alfred Binet para o estudo da inteligência humana. O autor idealizou testes para que fosse possível medi-la e, através destes, poder atingir melhores desempenhos no campo escolar ou educacional. Foi a partir deste que tanto a inteligência humana quanto outras estruturas psicológicas passaram a possuir grande variação dentro dos indivíduos. Logo passaram a existir pessoas mais ou menos inteligentes em suas vidas acadêmicas. 40 Para falarmos de desejo, faz-se necessário o entendimento da importância da Psicanálise, dentro do campo do saber e de sua transmissão. Freud, ao escrever a Psicanálise, introduziu o discurso psicanalítico, que, no mínimo, é um discurso incomum, pois diz respeito a uma estrutura de linguagem que possui relação com o inconsciente, que convém ao nosso sujeito. Como nos relata Elia (2004) em seu livro O conceito de sujeito: “o inconsciente introduz no campo do saber novidades irredutíveis (...), e às quais podemos dar o nome de subversões, acompanhando o gesto de Lacan. (...) que se formula assim: o acesso a esse saber exige um trabalho (o trabalho analítico), que se realiza através de um determinado método (o método da psicanálise), que estabelece um dispositivo (o analítico) e requer uma função operante (o psicanalista). Isto basta para afastar qualquer possibilidade de que esse saber seja elaborável por uma via intelectualista.” (idem, ibidem, p.8-9). Segundo este autor, o termo sujeito foi introduzido na psicanálise por Lacan. É para o sujeito que se volta o discurso do saber, tendo-o como agente. Um agente de desejo que possui uma necessidade que vai para além da biológica, mas que precisa ser traduzida pela linguagem para ser transformada, de forma lenta e gradativa, em demanda, que deriva da vicissitude de cada sujeito, que se desdobra em busca do ato de conhecer, de pensar sobre o ser, tornando-o assim um sujeito pensante. Elia (ibidem), em seu texto, deixa evidente esse momento vivido pelo sujeito, que é um momento de angústia. “A aparição do sujeito no cenário do pensamento se faz através da angústia e da incerteza em relação ao que se dera até então como um mundo mais ou menos compreensível para o entendimento do homem. (...) A humanidade precisaria esperar mais de três séculos por Freud e pela psicanálise para dispor de elementos que lhe permitissem entender a relação entre as duas formas de emergência, a do sujeito e a da angústia, a ponto de poder enunciar que essa relação é de equivalência: a emergência da angústia é a emergência do sujeito.” (idem, ibidem, p.13). Sendo o sujeito o portador do discurso do saber e, sendo este, o que faz do sujeito um agente de desejo, logo podemos compreender que é o desejo que impulsiona o sujeito ao longo de toda a sua vida, desde o seu nascimento. Porém, é através do saber psicanalítico que encontramos o modo ideal de se conceber e de se constituir o sujeito. Conforme nos aponta Elia (ibidem), “Para a psicanálise, o campo psíquico o concebe como uma positividade, e não como um efeito interativo e secundário de ordens positivas, porém estranhas ao psíquico e primárias em relação a este. Para evitar confusões entre o que a psicanálise concebe como “psíquico” a partir de sua categoria operatória de sujeito, considerando que as categorias de psíquico e 41 psiquismo são demasiado comprometidas com o campo da psicologia, e se inserem em um conjunto confuso de referências individuais, psicofísicas e psicossociais, preferimos, a partir deste momento, referir-nos a esse campo positivo do psíquico que a psicanálise criou como campo do sujeito. O sujeito, portanto, se constitui, não “nasce” e não se “desenvolve”. (...) Para explicar o modo pelo qual o sujeito se constitui, é necessário considerar o campo do qual ele é o efeito, a saber, o campo da linguagem.” (idem, ibidem, p.35-36). Partindo de tal visão, podemos pensar em um bebê que não consegue por si só saciar sua fome. Ele chora compulsivamente em seu berço, buscando por todos os meios e formas chamar a atenção de seu cuidador, que pode ser sua mãe ou qualquer outro que se ocupe dele para satisfazer suas necessidades. O ato de saciar a fome através da ação do cuidador, que lhe dá o leite, deixa no bebê uma marca psíquica, um traço primeiro em sua memória, que funda o psiquismo. (FREUD, 1950 [1895]). Ao chorar novamente, a criança não desejará somente o leite, como o alimento sacia sua necessidade biológica – a fome - ela alucinará pelo seio materno e, assim, neste momento mítico, único, funda-se o inconsciente. É nesse momento que há a fundação do desejo propriamente dito (idem, ibidem). O desejo, portanto, surge muito cedo no sujeito e, segundo Freud (idem, ibidem), somente aparecerá na ausência do objeto, como o velho ditado “só se deseja aquilo que não se tem”. Como nos dizem Roudinesco & Plon (1998): “Em Freud, o desejo é, antes de mais nada, o desejo inconsciente. Tende a se consumar e, às vezes, a se realizar. Por isso é que se liga prontamente a nova concepção do sonho, do inconsciente, do recalque e da fantasia. Daí esta definição que não varia mais: o desejo é desejo inconsciente e realização de desejo. Em outras palavras, é no sonho que reside a definição freudiana do desejo: o sonho é a realização de um desejo recalcado e a fantasia é a realização alucinatória do desejo em si.” (idem, ibidem, p.147). É possível afirmar que os casos de fracasso escolar encaminhados ao atendimento psicanalítico se referem àqueles sujeitos que manifestam uma franca inibição intelectual decorrente de uma desordem neurótica, provocada por conflitos inconscientes. A criança se vê “impedida” de aprender e progredir na escola, sem que possa explicar ou perceber a origem de tal dificuldade, essa criança quase sempre verbaliza: “eu não tenho culpa, é muito difícil”. Uma vez constatada a inibição da função intelectual, traduz um mecanismo original de onde provém uma parte significativa dos comportamentos de fracasso escolar. Diferentemente da noção de sintoma construída pelo discurso médico, em Psicanálise o sintoma é visto como uma “formação de compromisso”, um arranjo relativamente satisfatório entre diversas forças em jogo. Através do tratamento, permitimos que a criança expresse suas angústias por meio de relatos, sob forma de 42 argumentos dramáticos (jogos, brincadeiras, desenhos, etc.), onde a escuta e as intervenções do analista permitem a simbolização e a consequente elaboração de seus conflitos. Para ilustrar uma leitura possível desta problemática, recorremos à hipótese de Lacan (1969) sobre o aparecimento de sintomas na criança: “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar”. (idem, ibidem, p.369). É bastante freqüente encontrar a dificuldade de aprendizagem escolar como um sintoma articulado a uma série de eventos marcados por uma relação de absoluta dependência entre a mãe e a criança. Pode-se levantar a hipótese de que este filho, subjugado ao desejo materno, se encontra em posição de objeto destinado a satisfazer o outro. A partir do entendimento das categorias de demanda4 e desejo5, é possível reconhecer que a solicitação materna (“Estude, aprenda!”) não corresponde, necessariamente, ao que é desejado por ela inconscientemente (“Não cresça, continue preso a mim”). Ao produzir o sintoma, a criança muitas vezes estabelece uma aliança com o desejo da mãe, permitindo que esta exerça sua onipotência e domínio, mantendo-se tutelado por ela, protegido, ao mesmo tempo em que denuncia uma verdade sobre as forças em ação naquela estrutura familiar. As posições subjetivas dos envolvidos são reveladas. Inclusive a do pai que, ao invés de sustentar um corte na relação mãe-criança colocando-se como um terceiro elemento, muitas vezes abandona este par à deriva, identificando-se com a situação de fracasso do filho, o que reforça mais ainda a sua impotência. Esta breve consideração visa demonstrar o quanto a posição da criança frente ao saber, que o mundo escolar representa, se articula à forma como ela se encontra ligada a sua estrutura familiar. Sabe-se que na constituição do fracasso escolar subjaz um importante sofrimento psíquico que incide sobre a criança e a sua família. Os pais, na maioria dos casos, ressentem-se com as dificuldades do filho, buscando causas externas (na professora, no sistema escolar, etc.), culpando a criança (“é preguiçoso”, “só aprende o que não presta”, etc.), dando mostras do quanto estão atingidos em seu 4 A demanda é o conceito que orienta o analista na construção do caso que se apresenta no divã. Uma análise começa com uma demanda, o analista deve visar o seu além, para saber precisar o seu aquém que é o desejo. 5 O desejo é o fio condutor que implicará um sujeito na realidade do seu inconsciente. Inconsciente que só conhece uma lei: a que pede para reencontrar o objeto perdido, objeto causa do desejo. É o desejo que move o aparelho psíquico, que faz sonhar, dormir e acordar. É o limite entre Eros e thanatus. É o que faz com que o ser pense, ou exista o desejo. 43 próprio narcisismo. Na medida em que o problema fica exposto socialmente, também revela a falha de um projeto de “filho perfeito” que poderia, de maneira imaginária, realizar projetos construídos pelos pais. Apesar deste sofrimento, existem motivos para que o sintoma não desapareça, já que ele ocupa um lugar na economia psíquica do sujeito e daqueles que o cercam. As medidas reeducativas, muitas vezes, reforçam a ideia de incapacidade da criança, com resultados frustrantes. É importante lembrar que na constelação familiar, cada um se “arranja como pode”, extraindo necessariamente algum benefício secundário da situação instalada, que em psicanálise denomina-se gozo. E é o gozo que mantém o sujeito passivo e alienado ao outro, impedido de buscar sentido e satisfação em suas realizações, pois não se encontra em posição de desejar por si mesmo. Convêm, ainda, acrescentar algo para a compreensão do mecanismo de inibição a partir do texto de Freud (1926 [1925]) Inibição, sintoma e ansiedade. A inibição, que se constata nesses casos de fracasso escolar, encontra-se amarrada às identificações que se referem ao eu, fundamentais para a constituição de uma identidade que dê certa estabilidade ao sujeito. E por outro lado, a inibição também revela a implicação do supereu, resultante do atravessamento que a criança realiza, quando se confronta com a função paterna. Esta referência a lei, que ordena e delimita lugares, é considerada fundamental para o mencionado corte da relação mãe-criança. Para tanto, é necessária uma grande mobilização psíquica para dar conta dos conflitos gerados pelas vicissitudes de uma escolha de identificação do lado feminino ou masculino que se organiza neste momento e que terá desdobramentos na adolescência e na vida adulta. Espera-se, portanto, que o sujeito se posicione frente ao desejo do outro (representado por seus pais), em seus primeiros anos de vida, o que funcionará como fundamento para suas escolhas (amorosas, sociais, produtivas) e realizações subseqüentes. Segundo Freud (ibidem): Ou o estado de ansiedade se reproduzia automaticamente em situações análogas à situação original e era assim uma forma inadequada de reação em vez de apropriada, como o fora na primeira situação de perigo, ou o ego adquiria poder sobre essa emoção, reproduzia-a por sua própria iniciativa e a empregava como uma advertência de perigo e como um meio de pôr o mecanismo de prazer-desprazer em movimento. Demos assim ao aspecto biológico do afeto de ansiedade sua devida importância, reconhecendo a ansiedade como a reação geral a situações de perigo, enquanto endossávamos o papel desempenhado pelo ego como a sede da ansiedade, atribuindo-lhe a função de produzir afeto de ansiedade de acordo com suas necessidades.” (FREUD, 1926 [1925], p.157). 44 Portanto, a inibição para aprender se constitui como uma limitação que o eu impõe para não despertar a angústia na criança, sendo este dispositivo acionado pelo eu, frente a uma situação de perigo. Nesse sentido, para a criança identificada como objeto do outro (representado pelo discurso, neste caso, familiar), as demandas que dele advém são entendidas como a intenção de domínio direto sobre seu corpo, restrito à satisfação desse outro que desperta o medo de aniquilamento. Para sobreviver, a criança anula seu desejo, “se faz de morta”: a angústia sinalizou o perigo e coloca em funcionamento a inibição. A escuta da história, a posição subjetiva daqueles que cercam a criança (família e escola) e o aprofundamento do tipo de distúrbio que o sujeito apresenta nos permitem um balizar mais seguro para a criança, uma vez que estará mais firme para responder por si mesma, permitindo que ela rompa com os ideais parentais ou sociais e descubra o que e como realizar, explorando seu potencial e aceitando melhor seus próprios acessos. 2.1 – COMPLEXO DE ÉDIPO Para podermos pensar em uma família propriamente dita, veremos que esta diz respeito a um pai, uma mãe e um filho. Em outras palavras, é o advento de um filho que possibilita um homem ser pai e uma mulher ser mãe. Tal assertiva independe dos pais serem casados, morarem juntos, de o pai assumir legalmente esse filho. Em suma é necessário um homem e uma mulher. Assim, um pai, uma mãe e um filho são para a psicanálise o que “representa” a estrutura edípica. Diante da experiência clínica, que norteia toda a teoria psicanalítica, consideramos que Freud mostra a família como a fonte dos problemas que povoam o psiquismo dos sujeitos. A relação que se dá neste núcleo é determinante na vida de cada sujeito. O complexo de Édipo, que ocorre na primeira infância, foi considerado por Freud (1908) como complexo nuclear das neuroses. Assim, quando o sujeito se depara com a sua questão edípica faz suas escolhas, o que irá resultar na sua estrutura psíquica. Ressalta-se que a estrutura psíquica do sujeito é, portanto, a forma como ele responderá as questões sobre o amor, a identificação, o ódio e a rivalidade, entre outras, em sua inserção social. Freud (1930 [1929]) em O mal estar na civilização afirma: 45 “Quanto mais estreitamente os membros de uma família se achem mutuamente ligados, com mais frequência tendem a se apartarem dos outros e mais difícil lhes é ingressar no circulo mais amplo da cidade (...) Separar-se da família torna-se uma tarefa com que todo jovem se defronta e que a sociedade frequentemente o auxilia na solução disso através dos ritos de puberdade e de iniciação. Ficamos com a impressão de que se trata de dificuldades inerentes a todo desenvolvimento psíquico – e, na verdade, no fundo, a todo desenvolvimento orgânico.” (idem, ibidem, p.108-109). Freud (1924) apresenta como complexo de Édipo o desejo incestuoso e uma rivalidade com os pais. Segundo ele, é esta travessia que organiza e determina a estrutura psíquica de cada sujeito. É importante ressaltar, a priori, do que estamos tratando ao nos referirmos ao termo estrutura. Estrutura é alguma coisa que não varia, ou seja, é invariável, mesmo diante de certas transformações. É um modo possível de articulação entre as partes de um todo e que podem produzir certas configurações. Segundo Kaufmann (1996), “A noção de estrutura intervém em Freud – desde A interpretação dos sonhos (1900) – para recobrir diversos aspectos de uma configuração de elementos distribuídos segundo relações de ordem.” (idem, ibidem, p.174-175). No entanto, vale ressaltar que há um momento onde a estrutura se organiza de forma definitiva. Isto ocorre como uma resposta ao complexo de Édipo e ao complexo de Castração, pois, o que se forma como estrutura clínica está na dependência do modo como cada sujeito responde ao encontro com a diferença sexual. Dessa forma, o complexo de Édipo, bem como o de castração, são operadores estruturais, ou seja, determinantes da constituição do sujeito. Freud (1924 [1923]), em seu texto Neurose e Psicose, apresentou as estruturas psíquicas neuróticas e psicóticas enquanto diferenças, sendo que “(...) A neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo.” (idem, ibidem, p.167). Aqui encontramos descritos os processos psíquicos envolvidos tanto no desencadeamento da neurose quanto no da psicose. Com relação ao desencadeamento da neurose propriamente dita, podemos dizer que ele ocorre somente num segundo momento, como resultado de um conflito entre o eu e o isso. No caso de se tratar de uma psicose, o conflito se dá entre o eu e o mundo externo e este conflito ocorre num primeiro momento. 46 Na neurose, o eu, não conseguindo satisfazer aos desejos do isso, utiliza o mecanismo de recalque enquanto defesa. Deste modo, o eu se posiciona a favor das exigências do mundo externo, o que nos leva a inferir que o mundo externo venceu as forças do eu e, consequentemente, acatou as suas ordens e se enfraqueceu. Freud (ibidem) introduz este mecanismo apontando aí uma fragilidade do eu: “Nossas análises demonstram todas que as neuroses transferenciais se originam de recuar-se o ego a aceitar um poderoso impulso instintual do id ou a ajudá-lo a encontrar um escoador ou motor, ou de o ego proibir aquele impulso o objeto que visa.” (idem, ibidem, p.167). Diante do conflito, o eu se distancia, se afasta, do fragmento da realidade que gerou insatisfação e que está relacionado com o objeto de desejo. Como forma de solucionar este conflito, o eu busca uma compreensão através de representações substitutivas para aquele fragmento que foi recalcado. São essas representações substitutivas que se expressam através do sintoma. É neste segundo tempo, do retorno do recalcado, que Freud (1915b) localizou a neurose. O eu se sente invadido e ameaçado pelo sintoma, pois, o sintoma é a representação da própria pulsão que o eu havia “proibido de se expressar”. Porém, o sintoma também é a expressão de satisfação da pulsão, como uma solução que o sujeito encontrou diante do conflito. A própria escolha de Freud (1915a) pelo termo pulsão (Trieb em alemão) para designar a força motriz da sexualidade humana indica uma diferença em relação à noção de instinto (Instink) atribuída à vida de natureza. Logo, a pulsão inclui a representação do corpo, sua inscrição psíquica. Freud (1924 [1923]) apresenta o sintoma como intruso e conciliador: “Cria para si próprio, ao longo de caminhos sobre os quais o ego não tem poder, uma representação substitutiva ( que se impõe ao ego mediante uma conciliação) – o sintoma. O ego descobre a sua unidade ameaçada e prejudicada por esse intruso e continua a lutar contra sintoma tal como desviou o impulso instintual original.” (idem, ibidem, p.168). Portanto, quando o sujeito se depara com determinadas representações psíquicas, causadoras de desprazer, o eu, como saída, busca o recalque desta representação com o objetivo de evitar tal desconforto. No entanto, o eu fracassa neste processo e podemos afirmar isto quando há uma substituição daquela representação psíquica de desprazer pelo sintoma. 47 O sintoma é, de certa forma, a presença do próprio processo patológico. É ainda o que podemos chamar, num segundo momento, de retorno do recalcado, quando se instala a neurose propriamente dita. Foi desta forma que o eu conseguiu lidar com o conflito existente entre ele e o seu desejo de desejo. 2.2 – A DIFERENÇA DO COMPLEXO DE ÉDIPO NOS MENINOS E NAS MENINAS Freud (1923) nos diz: “A aproximação da vida sexual da criança à do adulto vai muito além e não se limita unicamente ao surgimento da escolha de um objeto. Mesmo não se realizando uma combinação adequada dos instintos parciais sob a primazia dos órgãos genitais, no auge do curso do desenvolvimento da sexualidade infantil, o interesse nos genitais e em sua atividade adquire uma significação dominante, que está pouco aquém da alcançada maturidade. Ao mesmo tempo, a característica principal dessa “organização genital infantil” é sua diferença da organização genital final do adulto. Ela consiste no fato de, para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo.” (idem, ibidem, p.158). Assim, Freud (ibidem) afirma em seu texto que o pênis se torna, tanto aos olhos dos meninos quanto das meninas, o representante do desejo. O fato é que tanto o menino quanto a menina tem em sua mãe seu primeiro objeto de desejo, desejo este culturalmente incestuoso. Para falar de cultura, vale à pena lembrar que Freud (1887 apud MASSON, 1986) buscou no mito, na peça de Sófocles, essa travessia da ficção para a realidade. O que para o neurótico tampona a falta sobre um saber sexual, na verdade diz respeito aos desejos amorosos e hostis que a criança mantém em relação a seus pais. Sendo assim, ao se deparar com a diferença sexual através da visão do órgão genital feminino que é desprovido de pênis, o menino percebe que existem seres castrados. E essa identificação imaginária servirá de alicerce para a operação simbólica, a partir do surgimento das fantasias do menino acerca da perda do pênis. Uma vez que existem seres sem pênis, castrados, o menino passa a ter medo de também perder o seu. No tocante a descoberta dos meninos sobre a diferença sexual, Freud (1923) nos esclarece que: “No decurso dessas pesquisas a criança chega à descoberta de 48 que o pênis não é uma possessão, comum a todas as criaturas que a ela se assemelham.” (idem, ibidem, p.159). É o pai, enquanto função, que barra o desejo incestuoso do menino pela mãe. O menino faz de seu pai um ideal em que ele próprio gostaria de se transformar. Desta forma podemos inferir que a relação edipiana do menino com a mãe tem como resultado a autoridade paterna, a proibição. Freud (1925) afirma: “Demonstramos alhures como a atitude edipiana nos meninos pertence à fase fálica e como sua destruição é ocasionada pelo temor da castração – isto é, pelo interesse narcísico nos órgãos genitais.” (idem, ibidem, p.278). A saída do complexo de Édipo nos meninos tem início no momento em que a angústia de castração se apresenta e o recalcar dos desejos incestuoso se consiste. Com a interrupção, ou declínio, do complexo de Édipo nos meninos, duas consequências importantíssimas acontecem na estruturação do menino: o surgimento do supereu, a internalização da lei e a confirmação da identidade sexual, que será consolidada mais tarde no período da puberdade. O supereu surge justamente com a renúncia dos pais como um objeto sexual e se apresenta como a introjeção da lei, dos valores morais e dos ideais sociais. Como não pode tê-los, em seu inconsciente, quer ser como eles. Freud (1940 [1938]), em Esboço de Psicanálise, conclui: “Assim, o [supereu] assume uma espécie de posição intermediária entre o id e o mundo externo; ele une em si as influências do presente e do passado. No estabelecimento do [supereu], temos diante de nós, por assim dizer, um exemplo da maneira como o presente se transforma no passado (…).” (idem, ibidem, p.221). O complexo de castração é o que propicia o final do complexo de Édipo nos meninos, fazendo com que eles não falem de seus amores com a mãe. É, portanto, inconsciente e inadmissível. Segundo Carneiro Ribeiro (2009), o medo de perder o pênis é a resposta à interdição sofrida na infância. Enquanto no homem não ocorre uma troca do objeto de amor, na mulher essa troca ocorre. Ou seja, enquanto o menino desejará a mãe desde o nascimento até a interrupção do complexo de Édipo, a menina, no decorrer de seu desenvolvimento, passará a ver sua mãe, seu primeiro objeto de desejo, desprovida de um pênis. Logo, será rebaixada, desvalorizada, e sua libido será deslocada para a figura paterna, com o objetivo de ganhar dele um filho como representante do falo. 49 Por não ter um pênis, as meninas precisam encontrar uma forma diferente da dos meninos para se constituírem. No texto de 1925, Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, Freud descreve que, diferentemente do menino, a menina tem um problema a mais para resolver. Isto porque o menino tem o mesmo objeto, a mãe, durante toda a travessia do complexo de Édipo. Já a menina tem um caminho rumo à feminilidade mais árduo, trabalhoso e desgastante. Vejamos: “Nesse ponto nosso material, por alguma razão incompreensível, torna-se muito mais obscuro e cheio de lacunas. Também o sexo feminino desenvolve um complexo de Édipo, um [supereu] e um período de latência. Será que também podemos atribuir-lhe uma organização fálica e um complexo de castração? A resposta é uma afirmativa, mas essas coisas não podem ser da mesma maneira que os meninos.” (idem, ibidem, p.222). O falo é, para ambos, a marca em torno da qual a subjetividade e a sexualidade são construídas. Freud, no texto Feminilidade, de 1933, nos revela três saídas da fase fálica da menina: “uma conduz à inibição sexual ou à neurose, outra, à modificação do caráter no sentido de um complexo de masculinidade, a terceira, finalmente, à feminilidade normal.” (idem, ibidem, p. 126). A menina percebe que o pênis, representante imaginário do falo, é o que torna a mãe diferente do pai. Assim sendo, ter o falo implica, então, em identificar-se com o pai. A menina abandona a mãe e se volta para o pai, na esperança de receber um filho/falo. Levando-se em consideração essa transição de objeto que a menina passa no decorrer do seu desenvolvimento, fica evidente que a fase referente ao complexo de Édipo não poderia ocorrer da mesma forma em meninos e meninas, e de fato não ocorre. Enquanto o menino nutre o desejo de tomar o lugar paterno, a menina, após a travessia do complexo de castração, torna-se rival da mãe e nutre o desejo de ter um filho do genitor. É disso que trata o complexo de Édipo, da oportunidade da criança se servir do pai para poder se separar da mãe e se constituir como sujeito. A travessia do complexo de Édipo é necessária, tanto no menino quanto na menina, para que o sujeito possa encontrar a melhor das saídas, que é a neurose. Nos meninos, essa interrupção do desejo de possuir a mãe ocorre em função do medo da castração, fantasia que passam a ter quando percebem que existem seres castrados e que correm o risco de perder o seu pênis. Nas meninas, que não têm o que perder, em virtude de não possuir o pênis, o complexo de castração é a mola propulsora para a entrada no complexo de Édipo. 50 Freud (1923) nos revela: “No estádio seguinte da organização genital infantil, sobre o qual agora temos conhecimento, existe masculinidade, mas não feminilidade. A antítese aqui é entre possuir um órgão genital masculino e ser castrado. [...] A masculinidade combina [os fatores de] sujeito, atividade e posse do pênis; a feminilidade encampa [os de] objeto e passividade. A vagina é agora valorizada como lugar de abrigo para o pênis; ingressa na herança do útero.” (idem, ibidem, p.161). A troca do objeto de desejo não é a única transição pela qual a menina passa no decorrer do desenvolvimento de sua vida sexual. Outra importante mudança é a transferência da função erógena principal do clitóris para a vagina. Enquanto os meninos começam desde muito jovens a obter prazer através da manipulação do pênis, as meninas obtêm prazer através da manipulação do clitóris. Remetendo-nos a Freud (1924) no texto A Dissolução do Complexo de Édipo: “[...] sua masturbação constitui apenas uma descarga genital da excitação sexual pertinente ao complexo, e, durante todos os seus anos posteriores, deverá sua importância a esse relacionamento. O complexo de Édipo ofereceu à criança duas possibilidades de satisfação, uma ativa e outra passiva.” (idem, ibidem, p.196). Com isso, podemos determinar que o Édipo da menina com o pai é mais consciente, já referido ao falo, consequentemente menos intenso, o que permite à menina poder falar de seu amor pelo pai com mais facilidade do que os meninos com suas mães, em outras palavras, não há nada a perder. Freud (1924) acrescenta: “Nela muito mais que no menino, essas mudanças parecem resultado da criação e de intimidade oriunda do exterior, as quais a ameaçam com uma perda de amor. O complexo de Édipo da menina é muito mais simples que o do pequeno portador do pênis (...), raramente ele vai além de assumir o lugar da mãe e adotar uma atitude feminina com o pai. A renuncia do pênis não é tolerada pela menina sem alguma tentativa de compensação. Ela desliza – (...) do pênis para o bebê. Seu complexo de Édipo culmina em um desejo, mantido por muito tempo, de receber do pai um bebê como presente – dar-lhe um filho.” (idem, ibidem, p.198). Na fase fálica, tanto os meninos quanto as meninas são dotados de falo. É nessa fase que a criança percebe as diferenças e terá que se posicionar como homem ou como mulher. No entanto, isso somente ocorre só depois de passar pelos complexos de castração ou de Édipo, quando a criança passa a se reconhecer como pessoa, inserindo-se na cultura. A reflexão deve continuar aprofundando nosso senso, enfatizando a importância de tais influências. Isto porque Freud enfatiza o fato das experiências vividas nesse tipo de conflito serem inevitáveis e agem em oposição ao conteúdo do 51 complexo conflitante. Esses conteúdos dizem respeito a experiências de grandes desapontamentos e de muitos sentimentos penosos, vividos tanto pelos meninos quanto pelas meninas. Enfim, devemos destacar que a sexualidade está para além da anatomia a qual precisa de uma identidade sexual simbólica que apontará a forma como o sujeito vai viver sua sexualidade. Isto deverá ocorrer em resposta aos complexos de Édipo e de castração, pois a condição masculina e feminina é resultante de um trabalho. Melhor dizendo, é uma escolha que se apresenta como uma defesa inconsciente, que se estabelece diante dos complexos citados. A seguir desenvolveremos o fenômeno da transferência, que nada mais é do que a repetição destes amores. 2.3 – A TRANSFERÊNCIA Para compreender melhor o fenômeno da transferência, retomamos o tratamento dado à Bertha Pappenheim, paciente do Dr. Joseph Breuer. Trata-se de um famoso caso clínico, considerado um marco dentro da psicanálise, conhecido por caso Anna O. Vale destacar que através do estudo deste caso surgiu a chamada talking cure, cura através da fala, que se transformou na regra básica da teoria psicanalítica: pedir ao paciente que fale livremente o que lhe vier à cabeça. No decurso deste tratamento, Anna O. se apaixona pelo Dr. Breuer e a partir desta paixão Freud pode conceituar a transferência. Em princípio, Freud (1912) refere-se à transferência como: “(...) pré-condições para enamorar-se que estabelece, nas pulsões que satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo no decurso daquela. Isso produz o que se poderia descrever como um clichê estereotípico (ou diversos deles), constantemente repetidos – constantemente reimpresso no decorrer da vida da pessoa, na medida em que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos a elas acessíveis, permitam, e que de certo não é inteiramente incapaz de mudar, frente a experiências recentes.” (idem, ibidem, p.111). Em verdade a transferência é o substituto do método da hipnose. Um método utilizado anteriormente, pelo destacado médico e neurologista francês Jean Martin Charcot, no estudo dos casos das histéricas, mulheres consideradas “loucas”, expostas e tratadas no Hospital da Salpêtrière. Charcot, por quem Freud mantinha uma grande admiração, foi o primeiro a propor uma separação das neuroses histéricas de outras doenças, começando um 52 trabalho de classificação, cujo objetivo era distinguir as histerias de outras enfermidades cuja causa seria orgânica. Trabalhava com a clínica de observação dos fenômenos e suas ordenações. Através da hipnose trouxe novas idéias para os estudos voltados para a área da neuropatologia. Charcot teve suma importância para Freud, que foi o único médico em Viena a escrever um artigo em jornal referente à morte de Charcot em 1893, engrandecendo a imagem do amigo morto que lhe despertou tanto interesse nos estudos referentes à histeria: “É inevitável que o progresso de nossa ciência, ao mesmo tempo em que aumenta nossos conhecimentos, desvalorize com isso muitas coisas, entre elas as que Charcot nos ensinou; mas nenhuma mudança dos tempos nem idéias poderá diminuir a glória póstuma do homem por quem hoje – na França e em outros lugares – estamos enlutados” (ROUDINESCO, 1989, p.67) O fato é que o fenômeno da transferência é o ponto nodal do método de tratamento psicanalítico. Destacamos o que o termo alemão Übertragung, apresentado por Hanns (1996) no Dicionário comentado do alemão de Freud, significa: “Conotativamente pode-se dizer que, em geral, no termo há um “arco” que mantém aceso o processo de ida e vinda, seja temporalmente, entre o passado e a atualidade, seja geograficamente, entre o longe e o perto, ou de uma pessoa a outra. Em alemão, o termo possui uma plasticidade e reversibilidade: aquilo que se busca, traz e deposita pode ser levado de novo embora para outro lugar em outro tempo. Genericamente refere-se à ideia de aplicar (transpor) de um contexto para outro uma estrutura, um modo de ser ou de se relacionar.” (idem, ibidem, p.412). Ao buscarmos a mais apropriada tradução para o português, nos deparamos com uma significação para além de transferência: tradução, contágio, transmissão e audição. Esta tradução embasa o conceito psicanalítico no tocante a dar voz aos sintomas apresentados pelos pacientes. O paciente, diante da associação livre de idéias, entra em sua série de fantasias, com as quais será possível apresentar novos sentidos a estas. O afeto apresentado pelo paciente consiste na substituição do afeto por uma pessoa importante na vida do sujeito sendo então direcionado à figura do analista. E o analista atuará como intérprete para propiciar novas elaborações, fazendo com que ocorra a transferência de uma presença do passado, mas que é uma presença em ato. Em outras palavras, estamos diante da atualização do inconsciente. Face ao exposto, a transferência é soberana quanto à condição preliminar para que haja o tratamento psicanalítico. Deste modo, caso o paciente não faça um 53 investimento no analista, colocando-o no lugar de um suposto saber, o método fica totalmente inviável, pois como Maurano (2006) menciona: “O fenômeno da transferência é a chave da invenção desse novo método de tratamento”. (idem, ibidem, p.15). Freud (1912), em seu artigo, A Dinâmica da Transferência, conceitua a transferência da seguinte forma: “Deve-se compreender que cada indivíduo, através da ação combinada de sua disposição inata e das influências sofridas durante os primeiros anos, conseguiu um método específico próprio de conduzir-se na vida erótica – isto é, nas precondições para enamorar-se que estabelece, nas pulsões que satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo no decurso daquela. Isso produz o que se poderia descrever como um clichê estereotípico (ou diversos deles), constantemente repetido – constantemente reimpresso – no decorrer da vida da pessoa, (...) e que decerto não é inteiramente incapaz de mudar, frente a experiências recentes.” (idem, ibidem, p. 111). É como se o sujeito se aproximasse de todos os seus relacionamentos com esses clichês e com isso entra na série psíquica do sujeito, ficando este preso em uma armadilha que se coloca no lugar equivocado de destino, conforme as crenças de cada um. Desta forma a transferência se faz presente em todos os relacionamentos humanos e, por isso mesmo, em nada se difere do que se passa no amor. O ponto central da diferença se encontra no fato de que em análise isso não passa despercebido. A transferência se revela como uma forma de atualização do inconsciente, o que deixa o caminho livre para a atuação do analista. Logo, o próprio manejo da transferência faz com que a posição do analista fique em evidência. Ele é a pessoa que deve ser nomeada a atuar, pois pode trabalhar no lugar onde aparecem as resistências. Assim, a transferência, como o objeto de tratamento, é decomposta em cada uma de suas manifestações. A própria análise da transferência é a condição para o progresso do tratamento psicanalítico. A transferência surge, necessariamente, na relação analítica e emerge como a resistência mais poderosa. Isto porque, quando as associações do paciente faltam significa que ele está pensando na figura do médico, ou algo a ele vinculado. Ainda em 1912, Freud afirma que a transferência é a condição de sucesso da análise. A transferência positiva e a negativa se faz presentes o tempo todo, em qualquer tratamento. A partir disso, o médico tem sempre que manejar a transferência, no sentido de deixar a resistência em níveis que permitam o acontecimento do processo analítico. 54 Vertente de resistência - precondição do desencadeamento da neurose - é a introversão: parte da libido consciente se acha diminuída e parte se dirige para longe da realidade. A libido entrou num curso regressivo e reviveu as imagos infantis do indivíduo. A análise passa a segui-la. Onde o processo analítico depara-se com a libido retirada do seu esconderijo, está fadado a irromper um combate. Ainda neste mesmo artigo de 1912, Freud acrescenta: “todas as forças que fizeram a libido regredir se erguerão como “resistências” ao trabalho da análise, a fim de conservar o novo estado de coisas.” (idem, ibidem, p.114). Assim, a análise tem que lutar contra duas fontes de resistência: a introversão e o fato do recalcado atrair para si outras representações passíveis de serem recalcadas por sua relação com as primeiras. Desta forma, cada associação, cada ato da pessoa, deve levar em conta a resistência e ser vista como uma conciliação. A resistência, portanto, acompanha o tratamento passo a passo e deve sempre ser levada em consideração pelo analista. A transferência de representações inconscientes para a figura do analista também é uma conciliação, como nos faz refletir Freud (ibidem) com tal afirmativa, no presente artigo: “Quando algo do material complexivo (do tema geral do complexo) serve para ser transferido para a figura do médico, essa transferência é realizada: ela produz a associação seguinte e se anuncia por sinais de resistências” (idem, ibidem, p.115). Freud (ibidem), de forma didática, nos chama atenção ainda para o fato de que todo conflito psíquico deve ser tratado na esfera da transferência. Isso será corroborado na idéia de neurose de transferência e da transferência como um playground onde acontece tudo o que diz respeito ao tratamento. Desde o início, a transferência é a arma mais forte da resistência. Ainda com relação á resistência, Freud (ibidem) fala em transferência negativa, a transferência de sentimentos hostis, e em transferência positiva, a de sentimentos eróticos. Ainda em 1912, Freud chama de ambivalência a transferência positiva e negativa que se encontram lado a lado na mesma pessoa, sendo esta última a melhor explicação para a habilidade em colocar a transferência a serviço da resistência. “Todo aquele que faça uma apreciação correta da maneira pela qual uma pessoa em análise, assim que entra sob o domínio de qualquer resistência transferencial considerável, é arremessada para fora de sua relação real com o médico, como se sente então em liberdade para desprezar a regra fundamental da psicanálise, que estabelece que tudo que lhe venha à 55 cabeça deve ser comunicado sem crítica, como esquece as intenções com que iniciou o tratamento, e como encara com indiferença argumentos e conclusões lógicas que, apenas pouco tempo antes, lhe haviam causado grande impressão” (FREUD, 1912, p.118-119). Freud nos evidencia, ainda no presente artigo, que não podemos destruir alguém in abstencia ou in effigie. Ou seja, todos os sintomas precisam ser transferidos para a figura do médico, precisam ser revividos na relação com o analista, para que assim possam ser destruídos através do processo analítico. 56 3 FRAGMENTOS DE UM CASO DE FRACASSO ESCOLAR: O CASO DO PEQUENO JC. JC, um garoto de oito anos, chegou à escola através do pai e da madrasta. O casal apresentou uma demanda de atendimento clínico para a criança e disseram: “tanto na escola quanto em casa, não gosta de estudar e, ainda, não possui bom diálogo com a família”. Segundo a madrasta, ele “jamais responde às perguntas que lhe fazemos”. O pai relata que, constantemente, era chamado à escola anterior devido ao mau comportamento de JC e a difícil relação que o garoto possuía com sua professora. Relatou também que sua ex-mulher, ou seja, a mãe de JC, os havia abandonado há cinco anos. Ainda segundo o pai, seu filho manifestava significativa revolta com este fato, afirmando não gostar nem um pouquinho da mãe. Iniciado o atendimento com o menino, ao contrário do que a madrasta afirmou, JC “fala”. Com certa facilidade pode narrar a saída da mãe que, de acordo com seu relato, abandonou a família para morar em Minas Gerais. Ao falar desta perda JC chora. Conta que naquele dia, ao chegar à sua casa depois da escola, não mais a encontrou, ficando apenas com a notícia de sua partida para Minas Gerais. Além desta perda, JC traz questões do seu cotidiano escolar anterior, principalmente acerca da sua relação com os conteúdos trabalhados em sala de aula. O menino afirmou que não conseguia acompanhar a turma, copiava com lentidão as atividades propostas e a professora jamais o liberou para o tempo de recreação até que cumprisse com todas as tarefas propostas por ela. Nos encontros seguintes, o menino expressou a preferência pelo seriado de TV “O Chaves”. E em especial pelo personagem principal que nomeia o programa. O garoto conta que tal personagem não tem família, mora em uma vila e dorme dentro de um barril. JC emprega inúmeras falas do personagem de modo a ilustrar as 57 situações por ele vividas: “o meu colega pisou no meu pé, daí xinguei ele de tripa assada, igualzinho o Chaves xinga o Seu Madruga”. Já em seu discurso acerca da família JC se cala. A partir dos “trocadilhos” que seu personagem preferido emprega, sem mencionar a forma similar de brincar, JC encontra formas de se manifestar como sujeito, em meio a tanta demanda e expectativas com relação a ele. Para a família, JC fracassa por não conseguir aprender, por não gostar de ir à escola, por não ser capaz de copiar as atividades do quadro negro no mesmo tempo que seus colegas de turma. Logo, fracassar representava, também, estar fora do tempo de seus colegas. Um garoto que se recusa a falar com o pai e com a madrasta, mas, que nos encontros, constrói o espaço da fala e realmente “fala”. Contando que sua professora o identifica como “chato”, “enjoado”, “preguiçoso”. E que a mãe, na verdade, o abandonou, e também à família, por ter se apaixonado pelo primo de seu pai. Além de falar, emite sua própria versão dos fatos: “Eu não achei isto certo, o que a minha mãe fez comigo e com o meu pai”, relata JC. Na sala dos encontros JC brinca. E ao brincar sai do barril, quando fala sobre a escola, os colegas, as atividades em sala e a dificuldade em se concentrar. O barril que abriga o personagem do seriado de TV, para JC, representa o seu silêncio. Afinal, quando JC entra no barril se cala. Para Freud (1917) os sintomas têm um sentido e se relacionam com as experiências do paciente, com a expressão de ideias inconscientes que o dominam. Os sintomas decorrem da maneira como a linguagem emerge em cada ser falante, uma vez que ela antecede o sujeito. No pequeno JC, o sintoma é o que aparece nomeado pela família quando se refere ao resultado de seu desempenho escolar, quando este vai aos encontros. A família se refere a este sintoma como “fracasso” e a instituição escolar, o denomina como fracasso escolar. Para o pai e a madrasta o menino fracassou na escola e a busca por uma nova escola com setor de orientação psicopedagógica é uma tentativa de reverter tal situação. No texto Inibição, sintoma e ansiedade, Freud (1926 [1925], p.160) nos diz: “O verdadeiro perigo é um perigo que é conhecido, sendo a ansiedade realística a ansiedade por um perigo conhecido dessa espécie. A ansiedade neurótica é a ansiedade por um perigo desconhecido”. Logo ele nos apresenta o sintoma como um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado subjacente. Assim, o sintoma é uma conseqüência do processo de recalcamento. O sintoma é o retorno do recalcado. 58 O fracasso em JC provém de causas ligadas à estrutura individual e familiar. Estamos conscientes de que inúmeros são os fatores implicados no fracasso escolar, tais como: o aspecto sócio-cultural, os conflitos familiares, a deficiência intelectual. No entanto, nenhum nos remete ao caso de JC. A família de JC anseia, deseja mesmo, que o menino seja bem sucedido. A escola convoca o pai, constantemente, para se queixar do mau desempenho do menino. Devemos estar atentos a demanda dos pais e da escola para que a criança aprenda, para que seja muito bem sucedida. A partir disso, devemos considerar que esta demanda pode oprimir o desejo dele próprio em aprender. Afinal JC é, em todo momento, convocado a assumir esse lugar, ou seja, o lugar daquele que não fracassa. Considerando tal hipótese, passaremos a abordar o fracasso no caso de JC pelo viés do desejo, que pode estar impedido por razões neuróticas. O fracasso escolar é uma produção. No caso em questão, o mesmo é produzido pelo abandono da mãe, pela relação nula com a professora e por não corresponder às idealizações do pai e da madrasta. Sendo assim o fracasso escolar em JC não existe. O que existe é um sofrimento gerado por uma perda, uma relação escolar difícil e expectativas fracassadas. O que fracassa, em JC, é a tentativa de alcançar as expectativas do pai, no plano inconsciente, transformando o desempenho escolar na saída sintomática, uma vez que almeja, quer e deseja aprender. O que ocorre é a inibição do saber, inibição essa articulada ao inconsciente do sujeito. No caso em questão, a dificuldade em aprender torna-se uma manifestação inconsciente para denunciar certo mal estar vivido por JC no cotidiano escolar. A relação professor-aluno é uma relação transferencial, que pode impulsionar ou bloquear, independente dos conteúdos. A professora de JC representa o objeto de um campo de relação que estabeleceu com o aluno. Quando ele relata: “não consigo acompanhar meus colegas”, na verdade o que ele está buscando é uma companhia. A companhia dos colegas, da professora e a companhia da mãe. Desde cedo pais e professores demandam que as crianças aprendam e que sejam bem sucedidas. Como conseqüência, com algumas, o estudar é apreendido como imposição, uma norma e não um desejo. Portanto, para aprender é necessário que se tenha o desejo de aprender. Mas a escola e a família não podem obrigar a criança a desejar o desejo do outro. Ao denominarmos o fracasso escolar, presente no caso de JC como um sintoma, buscamos uma relação com a fundamentação teórica psicanalítica para 59 entender seu significado. Descobrimos a funcionalidade do sintoma dentro da estrutura familiar e pudemos aproxima-lo da história individual do sujeito. O papel do analista neste tipo de tratamento ocorre como sendo aquele que se interessa tanto pelos fatores que determinam o não aprender na criança, quanto pela significação que tem a atividade cognitiva para ela. Nos artigos, Um Estudo autobiográfico (1925 [1924]), Inibições, sintomas e ansiedade (1926 [1925]), Análise leiga (1926), entre outros trabalhos, Freud articula o esquecimento com o trabalho do recalque e os valores morais. Indaga: “Como ocorrera que os pacientes se haviam esquecido de tantos dos fatos de suas vidas externas e internas, mas podiam, não obstante, recordá-los se uma técnica específica fosse aplicada? A observação forneceu uma importante resposta exaustiva a essa pergunta. Tudo que tinha sido esquecido de alguma forma ou de outra fora aflitivo; fora ou alarmante ou penoso ou vergonhoso pelos padrões da personalidade do indivíduo. Foi impossível não concluir que isto foi precisamente assim porque fora esquecido – isto é, porque não tinha permanecido consciente. A fim de torná-lo consciente novamente apesar disto, foi necessário superar algo que lutava contra alguma coisa no paciente, foi necessário envidar esforços da parte do próprio paciente a fim de compeli-lo a recordar-se.” (FREUD, 1925 [1924], p.35) Sendo assim, a contribuição da Psicanálise para este caso está em possibilitar à criança entrar em contato com o conteúdo do inconsciente que faz obstáculo a aprendizagem pedagógica. E isto pode ser feito pela escuta do sujeito e/ou pelo uso de recursos como o brincar, através da utilização de jogos, e o diálogo com a família. No trato com a família o analista deve atentar para o significado do sintoma, que se presentifica em alguns significantes que os pais utilizam e também no significado do sintoma para a própria criança. Uma vez que o sintoma se torna evidente, a família deve assumi-lo, ou seja, deve tomar consciência das implicações que acarretaria, a possível desconsideração do sintoma. Os nossos encontros devem possibilitar que JC entre em contato com o sintoma e o analista deve marcar o que é sintoma para ele e o que é sintoma para os pais. Conclui-se que o menino não fracassa, mas responde à rejeição da mãe e da professora e às expectativas do pai de forma sintomática em seu desempenho escolar. É de grande importância a aproximação do pai e da madrasta no atendimento de modo a promover o diálogo. Escutá-los faz parte da análise de JC, sem invadir o espaço da criança, preservando o que ele traz às sessões. Revendo Freud (1926 [1925]), em Inibições, Sintomas e Ansiedade, diremos que: 60 “O progresso que a criança alcança em seu desenvolvimento – sua crescente independência, a divisão mais acentuada do seu aparelho mental em várias instâncias, o advento de novas necessidades – não pode deixar de exercer influência sobre o conteúdo da situação perigo. Já traçamos a mudança desse conteúdo a partir da perda da mãe como objeto até a castração. A mudança seguinte é causada pelo poder do supereu. Com a despersonalização do agente parental a partir do qual se temia a castração, o perigo se torna menos definido. A ameaça de castração se desenvolve em ansiedade moral – ansiedade social, não sendo tão fácil saber o que é ansiedade.” (idem, ibidem, p.138). Assim, no caso do pequeno JC, o que fracassa são as expectativas do pai, da madrasta e da professora. Não a criança em si. JC deseja aprender e traz consigo tal posicionamento em todos os nossos encontros, seja pelo brincar, seja pela fala ou até mesmo pelo seu silêncio. Em especial em seu desejo expresso ao relatar: “Quero copiar o exercício rápido do quadro, minha letra sai feia. Gosto muito da escola, gosto da aula de artes e de matemática”. O que existe no pequeno menino, é a imposição de uma vontade alheia, a não consideração dos fatos que, estes sim, poderiam funcionar para JC como causa de desejo. Um movimento contrário ao seu tempo e, por fim, uma grande falta nas pessoas que com ele convivem para compreendê-lo. O que inclui nesta compreensão entender seu tempo, as maneiras como ele busca viver sua infância e a forma com que lida com as perdas, especialmente a do abandono de sua mãe. 61 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Psicanálise, com suas formulações sobre o Complexo de Édipo, desejo, transferência e outras, permite uma análise mais efetiva das situações nomeadas como fracasso escolar. Tomamos o conceito de transferência, pois com ele os educadores podem melhor operar nos casos diagnosticados no campo da pedagogia como “falta de motivação” ou “desatenção”. A transferência está presente em todas as relações humanas, como dito anteriormente. No contexto escolar, os estudantes tendem a deslocar para os mestres situações vividas anteriormente com seus pais. É assim que as questões edipianas se presentificam como geradoras de sintomas e inibições escolares. Com a elaboração do presente estudo, pode-se afirmar que o professor quando ama o que faz não é apenas o educador, mas também o aprendiz no relacionamento professor-aluno. O professor ganha novas experiências, baseadas nos conhecimentos e na realidade vivida por seus alunos. A afetividade, entendida como o conjunto de fenômenos psíquicos, emoções, sentimentos e paixões, no ambiente escolar facilita ou impede, o processo de ensino-aprendizagem. Os alunos que não se sentem motivados para estudar, não têm interesse pelos conteúdos apresentados em sala de aula. Por outro lado, a situação se inverte quando o educador pode promover tal motivação, por meio da afetividade e da interação com a experiência de vida do aluno. Ao perceber que tem algo para oferecer, para ensinar, o aluno se sente motivado e disposto a adquirir novos conhecimentos. A alegria do professor enseja que o aluno também seja mediador da aprendizagem, pois isso favorece o trabalho em grupo. Quando isso acontece, o 62 professor pode perceber que as crianças ficam concentradas, os familiares se tornam mais participantes e o conhecimento prático é ampliado. No âmbito da Psicanálise o afeto não é o ponto central do processo de aprendizagem. Contudo, este lugar de destaque é ocupado pela fantasia, pela transferência e pelo desejo de saber. Lacan (1953-1954), em O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud se baseia em Santo Agostinho: “mesmo quando se quer aprender e se pergunta para aprender, ensina-se ainda, porque se ensina àquele a quem nos endereçamos em que direção se quer saber” (idem, ibidem, p.284). No entanto, como nos aponta Pollo (1996) em seu texto O avesso de uma paixão: “ensinar é operar uma transferência de trabalho e, (...) o que se ensina ou se transfere é um ponto saber por advir, a ser construído por meio de novas articulações de significantes.” (idem, ibidem, p.78). Os bloqueios de aprendizagem, à luz da Psicanálise, podem ser vistos sob um novo enfoque, mostrando as conexões possíveis, já estabelecidas entre a Psicanálise e a Educação, possibilitando que estas sejam repensadas num novo contexto. Uma vez que todos os envolvidos com a Educação de crianças, almejam realmente as descobertas psicanalíticas, no tocante ao desenvolvimento psíquico, devem considerar a subjetividade inconsciente. Ou seja, que não há nenhuma possibilidade de haver qualquer tipo de diferença entre a palavra da criança e a palavra do adulto. Logo, conforme Pollo (ibidem) se refere a Lacan (1960-1961) em O seminário, livro 8: A transferência: “O quê se ensina, a partir de um ponto de desconhecimento, é diferente do ensino, que Lacan qualifica de “ortopédico”, (...). Este se baseia na certeza, na ilusão de um saber completo e de uma possível harmonia.” (POLLO, 1996, p.78). É necessário que os educadores, como um todo envolvido, percebam que frente a esse contexto o fazer educativo não pode estar fechado. Pois esses educadores estão presentes nos processos inter-relacionais de mudança, de desenvolvimento e de aprendizagem. Afinal, a fala do sujeito e a realidade do mundo que o envolve, enquanto humano, estão impregnados por essa negatividade onde a razão e a necessidade suposta, são insuficientes para que se possa avaliar o campo da realização humana. Aqui tomamos posse da colocação de Pollo (ibidem): “(...) o gozo nocivo do meu próximo propõe-se como um verdadeiro problema ao meu amor, e agir em nome do bem, não protege ninguém da culpa ou de qualquer tipo de catástrofe interior.” (idem, ibidem, 77), que se fundamenta em Lacan (1959-1960), O 63 seminário, livro 7: A ética da Psicanálise: “Em particular, não nos abriga certamente da neurose e de suas conseqüências” (idem, ibidem, p.383). A Educação à luz da Psicanálise revela que as questões afetivas e interrelacionais são inerentes à prática educativa e o bom relacionamento deve ser um objetivo da relação professor-aluno. O trabalho com o inconsciente pode reduzir, e muito, os bloqueios de aprendizagem, pois de acordo com a psicanálise, para saber os motivos desses bloqueios é preciso buscar suas causas: a origem dos desejos, das emoções, dos sentimentos, das atitudes, dos valores, das ações, da curiosidade e do desejo de aprender. Isto porque o desejo está na causa da transferência, que é o amor em sua via narcísica, onde o amor escamoteia o próprio amor. Este amor fica escamoteado, em um lugar onde não há transferência de trabalho. Afinal, um teria o direito constituído de gozar do corpo do outro e se apoderar de uma prática educativa que assim o norteasse. Tal é a imagem do corpo que tudo modela. Conclui-se assim que uma educação que não mensure o valor da felicidade-fálica do imaginário continuará sendo mera repetidora de modelos prontos e acabados. Buscará e se perderá na roda incessante dos seus planejamentos fundados e fundamentados no saber completo, o que somente irá cristalizar ainda mais os fenômenos de violência praticados contra o próprio sujeito, que foi fruto de um falso amor. Quando algo que escapa a um saber consciente é ignorado pelo educador, mas que marca de tal forma o sujeito aprendiz, é possível supor que o educador acabe por exigir de seu discípulo o impossível. Não se aprende o que não se deseja, do mesmo modo que não se ensina o lugar do gozo. Reter a demanda, reduzindo-a as necessidades naturais, exclui o sujeito como sede da lei do interdito e, assim, do desejo, como se fosse possível haver uma lei externa ao sujeito. O prazer de ensinar é se reconhecer como uma pessoa que possui uma demanda de transmitir aquilo que se supõe saber, a quem supostamente possui a demanda de saber. Como se fosse possível re-distribuir uma sabedoria pronta e completa. “(...) o Sr. Piaget falar de noção egocêntrica do mundo da criança. Como se os adultos tivessem o que ensinar sobre isso à molecada! (...) o que é que pesa como a melhor apreensão do outro, a que pode ter o Sr. Piaget, na sua posição de professor, e na sua idade, ou a que tem uma criança! Essa criança, nós a vemos prodigiosamente aberta a tudo que o adulto lhe traz do sentido do mundo. Será que nunca se reflete sobre o que significa, no que diz respeito ao sentimento do outro, essa prodigiosa permeabilidade a tudo que é mito, lenda, conto de fada, história, essa facilidade em se deixar invadir pelos relatos? Acredita-se que é compatível com os pequenos jogos 64 de cubos graças aos quais o Sr Piaget nos mostra que a criança acede a um conhecimento copernicano do mundo? Trata-se de saber como, num dado momento, aponta em direção ao outro esse sentimento tão misterioso da presença. Talvez esteja integrado àquilo que Freud nos fala na Dinâmica da Transferência, quer dizer, a todas as estruturações prévias, não somente da vida amorosa do sujeito, mas da sua organização do mundo”. (LACAN, 1953-1954, p.62). Ao longo deste estudo, visamos destacar o lugar ocupado pela criança na dinâmica da escola e da família. Mas nem sempre o professor percebe que ensinar significa que o aluno não aprende pela memória, que na verdade é descartável. Ou seja, a memória do aluno possui um período de vida momentâneo, e não duradouro, pois está condicionado ao período de tempo da avaliação. Acerca disso Lacan (1959-1960) nos aponta: “(...) O nervo do pensamento freudiano (...) é que a função da memória, a rememoração, é rival é o máximo que se pode dizer das satisfações que ela é encarregada da assegurar. Ela comporta sua dimensão própria, cujo alcance vai mais além dessa finalidade de satisfação. A tirania da memória é isso que se elabora naquilo que podemos chamar de estrutura.” (...) a estrutura engendrada pela memória não deve mascarar (para vocês em nossa experiência) a estrutura da própria memória, dado que ela é feita de uma articulação significante. Ao omitir isso, vocês não podem absolutamente sustentar esse registro essencial na articulação de nossa experiência, ou seja, autonomia, a dominância, a instância como tal da rememoração no nível, não do real, mas do funcionamento do princípio do prazer. (...) É aqui que podemos nos dar conta de onde reside o nascimento do sujeito como tal (...)”. (LACAN, 1959-1960, p. 272-273). Partindo de tal pressuposto, temos a oportunidade de pensar no fato do professor não se deixar questionar, não aceitar sugestões e nem tão pouco acatar reclamações. Seus ensinamentos podem parecer ultrapassados ou que foram incorporados pela repetição. Logo os ensinamentos do professor foram decorados, uma vez que, conforme nossos estudos seria através da subjetividade que a distancia entre a satisfação almejada e a alcançada se formaria. É o que Costa (2010) chama de “(...) hiância a que marcará o sujeito em sua eterna busca por um suposto objeto que poderá completá-lo” (idem, ibidem, p.16). Nesse sentido Lacan (1974-1975), no seminário R.S.I., afirma: “É o desejo da mulher, para além da mãe, que impõe a cada sujeito a questão que norteia a constituição da fantasia fundamental; ‘Che vuoi?’, o que o Outro quer de mim?” (idem, ibidem apud POLLO & ALBERTI, 1996, p.126). Assim, a criança não possui condições de dar conta em responder a todo anseio de desejo da mulher. A mulher, que na verdade se encontra por trás da mãe, é quem introduz o indizível para o 65 sujeito. E também toda a sua falta, justamente na medida em que não está toda no campo do significante. Afirmamos que a mulher aparece como limite da mãe. Ensinar é gratificante. Pela visão pedagógica, seria como ver desabrochar a flor cuja semente o mestre plantou. Porém, a aprendizagem está para além do conhecimento. Está no absorver o prazer de ensinar do mestre, que se transforma em prazer de aprender. O professor sabe-tudo está pondo um limite subjetivo em seu conhecimento, acreditando em si mesmo e se fazendo acreditar. Como se o próprio Deus fosse de tamanha onisciência. O verdadeiro mestre se faz no dia-a-dia de seu aprendizado, se fazendo de um caminho para seu aluno. Como uma metáfora onde o mestre é o objeto de desejo perdido ou faltoso. Assim como nos fala Lacan (1955-1956) em O seminário, livro 3: As psicoses: “A dimensão da metáfora deve ser para nós de acesso menos difícil que para qualquer outro, sendo a única condição a de que reconheçamos como a designamos habitualmente, a saber, identificação”. (idem, ibidem, p.249). Ensinar é ofertar a ausência e não a presença. É não buscar conduzir o aluno às identificações valorizadas pelo professor, mas sim permitir que ele consiga atingir plena capacidade de expressão de suas potencialidades, podendo ou não lidar com a falta. Como nos ensina Lacan (1956-1957) em O seminário, livro 4: a relação de objeto: “O significante é uma ponte num domínio de significações. Por conseguinte, as situações não são reproduzidas por ele, mas transformadas, recriadas. Logo, eis o que está em questão, e é por isso que devemos sempre centrar nossa questão no significante.” (idem, ibidem apud POLLO & ALBERTI, 1996, p. 111). Buscando nortear o presente estudo na incessante busca da interface entre psicanálise e educação, consideramos que a primeira possui o pressuposto de levar o sujeito a sair de um lugar alienante, de ideais pré-estabelecidos, ao passo que a educação impõe a esse mesmo sujeito ideais a atingir. Porém, que fique claro, evidente e determinante que tanto o psicanalista quanto o educador ocupam para o aprendiz um lugar transferencial de sujeitosuposto-saber. Onde se depositam ideais. Enquanto o psicanalista divide o sujeito, que o amor imaginário o investiu, o educador responde à demanda que é identificada com o saber. A palavra que evoca a falta, que é estrutural, é a única resposta oferecida pelo sujeito ao revelar seu encontro, ou porque não dizer infeliz encontro, com a alteridade do Outro que o constitui. 66 Em suma, o fracasso escolar pode também ser pensado, como nos fala Freud, sob a ótica do sujeito se encontrar num estado de inibição que o paralisou. Isso deve ser considerado levando em conta todos os sintomas que podem ser apresentados por ele. Será que isso poderia ser observado em uma instituição escolar por um professor? Muitas questões ainda se apresentam, o que nos leva a um reposicionamento, a uma mudança de lugar. Ou seja, sair do lugar do Saber para socraticamente dizer: “Só sei que nada sei”. 67 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, C. As Inteligências múltiplas e seus estímulos. Campinas: Papirus,1997. ASSIS, O. Z. M. Uma nova metodologia de educação pré-escolar. 5. ed. São Paulo: Pioneira, 1987. BARROS, C.S.G. Pontos de psicologia escolar. São Paulo: Ática, 1989. BECKER, F. Psiconversa. Disponível em: <http://psiconversa.wordpress.com/2009/06>. Acesso em: 15 dez. 2010. BION, W. R. (1962) Uma teoria sobre o processo de pensar. In: ____. Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago, 1988. BOCK, A. M. B. (org). Psicologias: uma introdução ao estudo de Psicologia. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. BRASIL. 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