Notas sobre o Projeto ético-político do
Serviço Social
Marcelo Braz Moraes dos Reis*
Desde a década passada, mais precisamente a partir do IX CBAS (Congresso Brasileiro de
Assistentes Sociais) em 19981, cujo temário trazia o termo Projeto ético-político, vem aumentando
entre nós a necessidade de conhecer tal projeto.
O relativo desconhecimento do Projeto ético-político pela categoria pode ser justificado
pela precoce inserção do tema no debate do Serviço Social e, ainda (e em conseqüência disso),
pela parca produção de conhecimentos acerca do tema – elemento fundamental para a
socialização das idéias criadas no seio de uma determinada vanguarda, no caso a profissional2.
Pode-se dizer que este relativo desconhecimento não eliminou a incorporação do projeto
entre a categoria dos assistentes sociais. Ao contrário, é inegável que traços dele estão presentes
no cotidiano dos assistentes sociais que o operam nas diversas situações profissionais3.
Mas, afinal, o que é o Projeto ético-político profissional do Serviço Social? Este brevíssimo
texto apresenta os seus traços mais gerais sem a pretensão de esgotá-los. Trata-se de texto mais
informativo que dissertativo, ainda que eivado de considerações crítico-valorativas. Nele
apresentaremos as origens históricas, o processo de consolidação e o momento atual do projeto,
quando verificaremos as peculiaridades que o objetivam na realidade sócio-profissional.
À guisa de introdução, vale a tentativa de destrinchar o termo projeto ético-político
profissional. Trata-se de uma projeção coletiva que envolve sujeitos individuais e coletivos4 em
*
Marcelo é Assistente Social, professor da ESS/UFRJ. Conselheiro do CFESS - Gestão 2002-2005, exdiretor CRESS 7a Região.
1
O IX CBAS aconteceu entre os dias 20 a 24 de Julho na cidade de Goiânia e teve como temário “Trabalho e
Projeto Ético-Político Profissional”.
2
Parte da bibliografia existente está presente nas referências consultadas para a realização deste breve texto.
3
Já há estudos no Serviço Social que procuram problematizar a incorporação histórica do projeto no coletivo
profissional. Dentre eles destacamos: as teses de doutorado de Barroco (2000), da PUC-SP e de Vasconcelos
(2000) da ESS/UFRJ e a dissertação de mestrado de Cardoso (2000), da PUC-SP. As datas das produções
demonstram o caráter recente das pesquisas sobre o projeto profissional. Vale destacar também a pesquisa
coordenada por Silva e Silva (1995) [ver bibliografia].
4
Daí a idéia de projeto. Aliás, o termo “projeto” pode dar a idéia, extremamente legítima, de que haveria uma
sistematização mais objetiva do mesmo, onde se suporia a existência de um documento único que o
expressasse. Esta certa “confusão” se explica pela precocidade do debate e pela pouca produção teórica afeita
torno de uma determinada valoração ética5 que está intimamente vinculada a determinados
projetos societários6 presentes na sociedade que se relacionam com os diversos projetos coletivos
(profissionais ou não) em disputa na mesma sociedade7.
COMO SURGIU ESTE PROJETO, QUEM O CRIOU E QUANDO FOI CRIADO?
Antes de qualquer coisa é preciso ter clareza da noção de projeto coletivo na medida em
que o referido projeto ético-político existe como tal. Os projetos coletivos se relacionam com as
diversas particularidades que envolvem os vários interesses sociais presentes numa determinada
sociedade. Remetem-se ao gênero humano uma vez que, como projeções sócio-históricas
particulares, vinculam-se aos interesses universais presentes no movimento da sociedade. Em
outras palavras, os interesses particulares de determinados grupos sociais, como o dos assistentes
sociais, não existem independentemente dos interesses mais gerais que movem a sociedade.
Questões culturais, políticas e, fundamentalmente, econômicas articulam e constituem os projetos
coletivos. Eles são impensáveis sem estes pressupostos, são infundados se não os remetemos
aos projetos coletivos de maior abrangência: os projetos societários (ou projetos de sociedade).
Quer dizer: os projetos societários estão presentes na dinâmica de qualquer projeto coletivo,
inclusive em nosso projeto ético-político.
Os projetos societários podem ser, em linhas gerais, transformadores ou conservadores.
Entre os transformadores há várias posições que têm a ver com as formas (as táticas e as
estratégias) de transformação social. Assim, temos um pressuposto fundante do projeto éticopolítico: a sua relação ineliminável com os projetos de transformação ou de conservação da ordem
social. Dessa forma, nosso projeto filia-se a um ou ao outro projeto de sociedade não se
confundindo com ele.
Mas, afinal, qual nosso projeto ético-político? Como ele é? Qual sua posição diante da
ordem social?
Não há dúvidas de que o projeto ético-político do Serviço Social brasileiro está vinculado a
um projeto de transformação da sociedade. Esta vinculação se dá pela própria exigência que a
ao tema, como foi dito antes. Veremos mais adiante que a questão é mais complexa e envolve outros
elementos, inclusive variados documentos políticos e legais afins à profissão.
5
Daí o termo ético.
6
Daí o termo político, no seu sentido mais amplo.
7
Dão o termo profissional expressando a particularidade de uma categoria, no caso a dos assistentes sociais.
dimensão política da intervenção profissional8 impõe. Ao atuarmos no movimento contraditório das
classes, acabamos por imprimir uma direção social às nossas ações profissionais que favorecem a
um ou a outro projeto societário. Nas diversas e variadas ações que efetuamos como plantões de
atendimento, salas de espera, processos de supervisão e/ou planejamento de serviços sociais, das
ações mais simples às intervenções mais complexas do cotidiano profissional, nelas mesmas,
embutimos determinada direção social entrelaçada por uma valoração ética específica9.
As demandas (de classes, mescladas por várias outras mediações presentes nas relações
sociais) que se apresentam a nós, encobrem seus reais determinantes e as necessidades sociais
que portam. Tendo consciência ou não, interpretando ou não as demandas de classes e suas
necessidades sociais que chegam até nós em nosso cotidiano profissional, dirigimos nossas ações
favorecendo interesses sociais distintos e contraditórios.
Nosso projeto ético-político é bem claro e explícito quanto aos seus compromissos. Ele
“tem em seu núcleo o reconhecimento da liberdade como valor ético central – a liberdade
concebida historicamente, como possibilidade de escolher entre alternativas concretas; daí um
compromisso com a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais.
Conseqüentemente, o projeto profissional vincula-se a um projeto societário que propõe a
construção de uma nova ordem social, sem dominação e/ou exploração de classe, etnia e gênero”.
(Netto, 1999: 104-5; grifos originais). Estes valores foram construídos historicamente, como
veremos a seguir.
BREVÍSSIMO HISTÓRICO
Desde os anos 70, mais precisamente no final daquela década, o Serviço Social brasileiro
vem construindo um projeto profissional comprometido com os interesses das classes
trabalhadoras. A chegada entre nós dos princípios e idéias do Movimento de Reconceituação
deflagrado
nos
diversos
países
latino-americanos
somada
à
voga
do
processo
de
redemocratização da sociedade brasileira formaram o chão histórico para a transição para um
Serviço Social renovado, através de um processo de ruptura teórica, política (inicialmente mais
político-ideológica do que teórico-filosófica) com os quadrantes do tradicionalismo que imperavam
entre nós. É sabido que, politicamente, este processo teve seu marco no III CBAS, em 1979, na
cidade de São Paulo, quando, de forma organizada, uma vanguarda profissional virou uma página
8
A dimensão política da prática profissional foi discutida por Iamamoto em Renovação e Conservadorismo
no Serviço Social (Cortez, 1992).
9
Para a compreensão da Ética no processo sócio-histórico ver o texto de Barroco (2000).
na história do Serviço Social brasileiro ao destituir a mesa de abertura composta por nomes oficiais
da ditadura, trocando-a por nomes advindos do movimento dos trabalhadores. Este congresso
ficou conhecido como o “Congresso da Virada”.
Pode-se localizar aí a gênese do projeto ético-político, na segunda metade da década de
70. Este mesmo projeto avançou nos anos 80, consolidou-se nos 90 e está em construção,
fortemente tensionado pelos rumos neoliberais da sociedade e por uma nova reação conservadora
no seio da profissão na década que transcorre.
O avanço do projeto nos anos 80 deveu-se à construção de elementos que o matizaram
entre nós, dentre eles, o Código de Ética de 1986. Nele tivemos o coroamento da virada histórica
promovida pelas vanguardas profissionais. Tratou-se da primeira tentativa de tradução não só
legítima como legal (através do órgão de fiscalização profissional, o CFAS - Conselho Federal de
Assistentes Sociais, hoje CFESS) da inversão ético-política do Serviço Social brasileiro, amarrando
seus compromissos aos das classes trabalhadoras. É bem verdade que soava mais como uma
carta de princípios e de compromissos ídeo-políticos do que um código de ética que, por si só,
exige certo teor prático-normativo10. Mas, por outro lado, ao demarcar seus compromissos, mais
que explicitamente, não deixava dúvidas de “qual lado” estávamos. Nesta mesma década, aferemse também avanços em torno do projeto no que tange à produção teórica que dá saltos
significativos tanto quantitativamente quanto qualitativamente, trazendo temas fundamentais ao
processo de renovação tais como a questão da metodologia, as políticas sociais e os movimentos
sociais.
O processo de consolidação do projeto pode ser circunscrito à década de 90 que explicita
a nossa maturidade profissional através de um escopo significativo de centros de formação
(referimo-nos às pós-graduações) que amplificou a produção de conhecimentos entre nós. Nesta
época também se pode atestar a maturidade político-organizativa da categoria através de suas
entidades e de seus fóruns deliberativos. Pense-se nos CBAS’s dos anos 90 que expressaram um
crescimento incontestável da produção de conhecimentos e da participação numérica dos
assistentes sociais.
A década que se inicia nos mostra dois processos interrelacionados: a continuidade do
processo de consolidação do projeto ético-político e as ameaças que sofre diante das políticas
10
Ver Bonetti et alli (1996).
neoliberais que repercutem no seio da categoria sob a forma de um neoconservadorismo
profissional11.
A partir destas problematizações históricas poderíamos chegar a algumas conclusões
acerca do nosso projeto ético-político profissional. Com Netto, o definiríamos da seguinte maneira:
“Os projetos profissionais [inclusive o projeto ético-político do Serviço Social] apresentam a autoimagem de uma profissão, elegem os valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam
os seus objetivos e funções, formulam os requisitos (teóricos e, institucionais e práticos) para o seu
exercício, prescrevem normas para o comportamento dos profissionais e estabelecem as balizas
da sua relação com os usuários de seus serviços, com as outras profissões e com as organizações
e instituições sociais, privadas e públicas (...)” (1999:95)
Em suma, o projeto articula em si mesmo os seguintes elementos constitutivos: “uma
imagem ideal da profissão, os valores que a legitimam, sua função social e seus objetivos,
conhecimentos teóricos, saberes interventivos, normas, práticas, etc.” (Netto, 1999:98)
COMPONENTES QUE MATERIALIZAM O PROJETO ÉTICO-POLÍTICO
Mas o que dá materialidade ao projeto? Vimos que os profissionais individualmente podem
operá-lo através das várias modalidades interventivas da profissão, ou seja, o projeto pode se
concretizar em nossas próprias ações profissionais cotidianas. No entanto, o que sistematiza essas
diversas modalidades interventivas, essas variadas ações profissionais, aparentemente isoladas,
como projeto coletivo? Em outras palavras, que mecanismos políticos, instrumentos/documentos
legais e referenciais teóricos emprestam não só legitimidade como também operacionalidade
prático-político e prático-normativo ao projeto? Vejamos.
O entendimento dos elementos constitutivos que emprestam materialidade ao projeto pode
se dar a partir de três dimensões articuladas entre si, quais sejam: a) a dimensão da produção de
conhecimentos no interior do Serviço Social; b) a dimensão político-organizativa da categoria; c)
dimensão jurídico-política da profissão. Vejamos cada uma delas.
a) Dimensão da produção de conhecimentos no interior do Serviço Social: É a esfera de
sistematização das modalidades práticas da profissão, onde se apresentam os processos
11
Os desafios ao projeto ético-político contemporâneo são problematizados em vários estudos, dentre eles
destacamos o de Netto (1996 e 1999,op.cit.) e o de Iamamoto (1998). Vale consultar o estudo de Soares
reflexivos do fazer profissional e especulativos e prospectivos em relação a ele. Esta
dimensão investigativa da profissão tem como parâmetro a afinidade com as tendências
teórico-críticas do pensamento social. Dessa forma, não cabem no projeto ético-político
contemporâneo, posturas teóricas conservadoras, presas que estão aos pressupostos
filosóficos cujo horizonte é a manutenção da ordem.
b) Dimensão político-organizativa da profissão: Aqui se assentam tanto os fóruns de
deliberação quanto as entidades representativas da profissão. Fundamentalmente, o
conjunto CFESS/CRESS (Conselho Federal e Regionais de Serviço Social) a ABEPSS
(Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social) e as demais associações
político-profissionais, além do movimento estudantil representado pelo conjunto de CA’s e
DA’s (Centros e Diretórios Acadêmicos das escolas de Serviço Social) e pela ENESSO
(Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social). É através dos fóruns consultivos e
deliberativos destas entidades representativas que são tecidos os traços gerais do projeto,
quando são reafirmados (ou não) determinados compromissos e princípios. Assim,
subentende-se que o projeto ético-político (como uma projeção) pressupõe, em si mesmo,
um espaço democrático, aberto12, em construção e em permanente tensão e conflito. Esta
constatação indica a coexistência de diferentes concepções do pensamento crítico, ou
seja, o pluralismo de idéias no seu interior.
c) Dimensão jurídico-política da profissão: Temos aqui o aparato jurídico-político e
institucional da profissão que envolve um conjunto de leis e resoluções, documentos e
textos políticos consagrados no seio profissional. Há nessa dimensão duas esferas
diferenciadas, porém articuladas, são elas: um aparato político-jurídico de caráter
estritamente profissional; e um aparato jurídico-político de caráter mais abrangente. No
primeiro caso, temos determinados componentes construídos e legitimados pela categoria
tais como: o atual Código de Ética Profissional, a Lei de Regulamentação da Profissão (Lei
8662/93) e as novas Diretrizes Curriculares recentemente aprovadas pelo MEC. No
Santos (2000) intitulado Neoconservadorismo pós-moderno e Serviço Social brasileiro, ESS/UFRJ, Rio de
Janeiro.
12
Essa abertura política não significa, em hipótese alguma, que não haja elementos de ordem imperativa na
consecução do projeto. Segundo Netto, há “componentes que, no projeto, são imperativos e aqueles que são
indicativos”. A pactualidade existente em torno do projeto profissional e do pluralismo subjacente a ele é que
indica esses componentes. “Imperativos são os componentes compulsórios, obrigatórios para todos os que
exercem a profissão (estes componentes, em geral, são objeto de regulação estatal); indicativos são aqueles
em torno dos quais não há um consenso mínimo que garanta o seu cumprimento rigoroso e idêntico por todos
os membros da categoria profissional.” (Netto, 1999: 98). São imperativos, por exemplo, os componentes da
formação acadêmica regulamentados pelo MEC e a exigência da inscrição nos conselhos para o exercício
legal da profissão. Vale dizer que, ainda segundo Netto, que estes imperativos também são passíveis de
divergências.
segundo, temos o conjunto de leis advindas do capítulo da Ordem Social da Constituição
Federal de 1988 que, embora não exclusivo da categoria, foi fruto de lutas que envolveram
os assistentes sociais13 e, por outro lado, faz parte do cotidiano profissional de tal forma
que pode funcionar como instrumento viabilizador de direitos através das políticas sociais
que executamos e/ou planejamos.
Vale ressaltar que neste conjunto de leis e resoluções atinentes à profissão e ao seu
projeto ético-político encontram-se realizados, direta ou indiretamente, valores que contornam o
projeto.
Essas dimensões articuladas entre elas compõem o corpo material do projeto ético político
profissional que, como foi dito, deve ser compreendido como uma construção coletiva que, como
tal, tem uma determinada direção social que envolve, valores, compromissos sociais e princípios
que estão em permanente discussão exatamente porque participante que é do movimento vivo e
contraditório das classes na sociedade. O sucesso do projeto depende de análises precisas das
condições subjetivas e objetivas da realidade para sua realização bem como de ações políticas
coerentes com seus compromissos e iluminadas pelas mesmas análises.
A seguir trazemos as referências bibliográficas utilizadas para a construção deste texto e
uma indicação bibliográfica para aprofundamento do tema que foi sumariamente tratado aqui.
13
Referimo-nos, especialmente, à construção da LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NETTO, J.P. (1999) “A construção do projeto ético-político contemporâneo” in Capacitação em
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