O PROCESSO DE AVALIAÇÃO NA PSICANÁLISE DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES
O “MENINO BICHO”
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
“Quando se está observando o paciente, se está realmente observando um espécimen
arqueológico vivo, sepultado no paciente em uma civilização antiga” Bion em seminários
clínicos
INTRODUÇÃO
O que acontece com a difícil clínica psicanalítica de crianças e adolescentes na qual tão
grande é a deserção e tão comum o desânimo nos analistas que às vezes abandonam e
questionam o valor deste fértil campo de nossa ciência? Como analistas, não é suficiente apelar
só a razões culturais, sociais, históricas e econômicas neste mundo pós-moderno cultor do vazio.
No contexto de uma outra “guerra”, Richard foi analisado por M. Klein. No trabalho
“Psicanálise de crianças: um terreno minado?”(1996), escrito em várias co-autorias, temos
tentado nomear e desenvolver algumas questões específicas que fazem a complexidade desta
clínica e se fundamentam nos princípios da psicanálise: a presença dos pais no campo analítico,
as paratransferências, a delicada questão da “vocação do analista de crianças”, as constelações
primitivas da mente em cena, o mundo a-simbólico e pré-simbólico (como também aparece na
estrutura mental de pacientes severamente perturbados) e a construção, muitas vezes, do sentido
do setting analítico.
Arraigado nesse terreno, nasce este trabalho. Em outra volta aos princípios do processo,
detenho-me, agora, à singularidade da inauguração da relação analítica quando os pais
consultam: o processo de avaliação psicanalítica de crianças e adolescentes.
Para sustentar as hipóteses deste trabalho, destaco entre o acervo conceitual da
psicanálise os conceitos de trabalho de elaboração e narcisismo em Freud; crise em Käes; campo
analítico de Baranger; mudança catastrófica de Bion; o dar-se conta de Sor e Senet, as
transformações e a questão da verdade em Bion e Rezende.
Um exemplo clínico, trechos das entrevistas com os pais e a primeira hora de
observação psicanalítica do único filho de 4 anos de idade iniciam esta apresentação, como se
estivessem sendo tecidas com a matéria-prima dos fatos selecionados que quero destacar para
ilustrar a importância da tékhne no processo de avaliação para instaurar a situação analítica.
Encontro Tustin, Meltzer, Ogden, Anne Alvarez, Maldavsky, Sor e Senet, entre outros, com
quem dialogo silenciosamente no trabalho de elaboração das hipóteses diagnósticas sobre a
estruturação autística desta criança nesta família.
A TRAVESSIA NAS ENTREVISTAS COM OS PAIS. “GUI, O MENINO BICHO”
Os pais de Gui, filho único de 4 anos de idade, chegam a conjugar, na entrevista inicial,
eventos desmantelados de significação emocional (Meltzer, 1975): Gui não nos olhava aos olhos,
não respondia aos chamados, não participava das atividades sociais, não falava e, em seu canto
da parede, não tirava as mãos dos genitais... “Ele é um bicho autista”: assim era interpretado
(Aulagnier P., 1975) e apresentado pelos pais a mim, na entrevista. Dão nome e ligam estes
fatos a conjunção constante inapropriada para uma possível evolução e transformação. A
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 2
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
subjetividade do filho é quase anulada, mas em oposição dialética, esta animalização nega e
afirma o clamor pela humanização de Gui, ao pedir ajuda. O gráfico N° 1, na parte superior,
representa plasticamente este estado mental. Enfatizo que a questão é “Como resgatar GUI,
que se protege nesse canto?”. A mãe compulsivamente afirma: “É hereditário”. Assim congela
toda a mudança. O gráfico N° 1, na parte inferior, representa a evolução quando a mãe pode reunir as queixas dispersas - não brinca, não fala, etc. ...- em um nome. Há certa possibilidade de
evolução. As barras aprisionantes da cisão não são tão rígidas, mesmo quando a sentença
hereditária sufoca as transformações, o desenvolvimento.
“Em minha família, meu pai tem uma convulsão com foco, é muito explosivo e
alcoólico, minhas irmãs são nervosas, várias separadas. Nunca acreditei que eu pudesse ser feliz.
Nós vivíamos de briga em briga. Quando Gui era bebê, eu me esforcei para que ele estivesse
sempre limpo, tudo em seu horário, mamadas cronometradas e tudo saiu mal, não serviu de
nada”, confessa a mãe.
O pai, por sua vez, revela ser o filho menor, pois nasceu na 11ª gestação. Vários abortos
espontâneos e um bebê nascido morto reduziram a prole a seis irmãos. Toda a família se
sustenta sobre uma indústria herdada, que parou no tempo, ineficiente para as exigências do
mercado atual. Quando criança, sofria convulsões e interrompeu a escolaridade durante 2 anos.
Sente-se muito inferiorizado e excluído dos privilégios que os irmãos conquistaram, usando com
prazer os bens materiais do patrimônio dos pais, ainda vivos. Percebo que, com a minha
intervenção, os pais “resgatam” a perturbação do próprio mundo mental.
Em outras entrevistas, os pais associam, com fatos penosos da infância, a vida de casados,
o sufoco econômico. Evidenciam-se, na santa peregrinação das consultas itinerantes com vários
profissionais, também psicanalistas, tentativas sempre frustradas de cuidar de Gui. Recebiam
bibliografia e conselhos, que me trazem a uma entrevista. “Não podem falar com Gui para que
ele sinta o desejo de falar”. “A lei do pai tem que se fazer presente”. A questão é que, para este
homem se fazer presente com a lei, é na dura concretude de seu mundo mental que ele tem que
agir e bater em Gui quando ele “se faz de surdo”- para ser assim pai. Faz a essência da técnica
analítica perceber o mundo mental em que o paciente está, para a ele chegar.
Na elaboração do sentido e na apuração da contratransferência, eu lhes interpreto:
“Há uma larga história de desencontros afetivos de geração em geração, mas mudanças são
possíveis. Hoje vocês se encontram aqui com uma analista, para poder investigar o que
acontece com Gui, com os senhores, e encontrar um caminho.”
Na entrevista seguinte, os pais associam o estado de Gui a uma perturbação emocional e
neurológica, diagnosticada por um colega neurologista com formação psicanalítica que eu havia
lhes indicado para rever a medicação do menino. Este diagnóstico comprovou a imaturidade no
desenvolvimento de Gui.
A minha questão era diferenciar o vértice neurológico do vértice psicanalítico com outra
fundamentação epistemológica. Os pais asfixiavam a vitalidade e pertinência do vértice
psicanalítico num arrastão resistencial.
Como analista, mesmo ante a existência de um comprometimento orgânico, importa o
sentido, a rede de significações inconscientes na rede de fantasias, que forjaram a forma peculiar
de vivenciar e interpretar tal dificuldade na realidade psíquica.
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 3
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
Descobrem que o filho é capaz de emitir sons, recordando que aos 11 meses pedia CocaCola. Conjugam então uma outra conjunção constante, e os fatos selecionados são configurados a
partir de outro sentido: “Nós não entendemos Gui”.
Eu me detenho aqui para mostrar a mudança. Os pais encontram um Gui psiquicamente
vivo, quando eles re-nascem como pais, na relação com a analista. Metapsicologicamente esta é a
tomada de consciência, de um conhecimento encarnado, vivido, que integra a experiência
emocional, um penoso dar-se conta. Uma ampliação do sentido à procura da verdade que será
sempre inalcançável em sua essência. Esta conjunção é um insight, uma mudança catastrófica. O
choro desesperado dos pais neste momento revela o contato com o sofrimento, que abre o
espaço do pensamento e a esperança de vir a compreender. É somente com turbulência
emocional que a trincheira defensiva conhecida se abre para enfrentar os riscos do desconhecido.
Isto é a transformação dinâmica, sujeita a tempestades, oposta ao isolamento afetivo, à cisão e à
anulação do sentido. Nesta conjunção, os pais juntam simbolicamente os dados apreendidos com
a experiência.
Também em Gui observam-se estas defesas exacerbadas diante da insuportável dor na
hora da observação, construídas nessa peculiar relação intersubjetiva e, por isto, sua estrutura
autista. A fantasia de hereditariedade orgânica como imobilidade cristalizada pode evoluir. Os
pais podem ser ajudados para investir libidinalmente e despertar Gui para o mundo humano:
trata-se de um difícil convite para sair da tentadora prisão mental onde se garante a ordem
mortal.
Na entrevista posterior à comovente hora de observação diagnóstica, diante da
turbulência de emoções que a intervenção analítica despertou, da tenacidade da compulsão
repetitiva, das resistências à mudança, da sombra de Thanatos no campo, da anulação das
conquistas, o pai me disse:
“Estou convencido de que tudo precisa mudar para que Gui possa falar, possa ser. Uma volta
de 360 graus.”
Perplexa, percebo que isto significa voltar ao passado conhecido. Interpreto:
“A mudança que este trabalho propõe é muito difícil e assustadora. Olhem a tentação para que
tudo fique parado como está, anulando qualquer movimento: Gui nos cantos chupando o dedo,
sem chorar, sem rir, sem gritar, tocando os genitais, SEM A VIDA DO CORAÇÃO. MAS AQUI VOCÊS
PROCURAM AJUDA PARA MUDAR E NÃO PARA QUE TUDO FIQUE IGUAL. VOCÊS ESTÃO LUTANDO PARA
RECUPERAR A VITALIDADE COMO PAIS PARA DESPERTAR GUI E CHAMÁ-LO PARA A VIDA DE GENTE.”
O desafio do desenvolvimento mental obriga a assumir com dor a realidade. Autismo
como diagnóstico psiquiátrico era con-fundido com autismo como diagnóstico “psicanalítico”.
Um nome absoluto, pobre, bruto, concreto,
cristalizado,
uma condenação, repetida
esteriotipadamente, que se esgotava e se bastava em si mesma. Um porto de chegada nos que
fundeavam a loucura. “O conceito sem intuição é vazio, e a intuição sem conceito é cega”,
lembra Kant. Eles perpetuavam, nessa linguagem unívoca, uma operação mecânica na
“orientação psi”. Nesse estado, eles não eram pais nem vivos nem mortos, tal o ataque à
percepção interna e externa. As teorias e os livros não assimilados eram a matéria-prima para
repetições obsessivas. Os pais não haviam chegado a simbolizar e, portanto, atuavam na
concretude do mundo mental regido por equações simbólicas: ser pai igual a bater.
O trabalho psicanalítico nas entrevistas é muito mais amplo e comovente do que seria
capaz de descrever, e assim eles podem dar-se conta, tomar consciência, des-cobrir, nomear o
inominável e pensar o impensável, até chegar a um novo conhecimento sobre o filho. A
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 4
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
interpretação condensa um critério de verdade, de vida, de desenvolvimento e expansão mental e
de capacidade negativa. Cada entrevista é o ponto de projeção, o vértice de lançamento de uma
nova mudança catastrófica em evolução (Sor; Senet, 1995). Qual o sentido do autismo? Resignificar a própria história afetiva; do anátema da hereditariedade orgânica, a consciência de que
não compreendem o filho. Encontram sentido aos sentidos (visão, tato, ...) sem sentido de Gui.
Des-identificar Gui da sepultura de bicho débil mental é necessário para que ele entre em um
processo analítico de procura e não de cura. Eles, ao virem a ser pais, alcançam a consciência da
gravidade da perturbação do filho com muita dor, em várias entrevistas.
Um conhecimento K, que tende a um Saber “O”, como mostro no gráfico N° 4.
PRIMEIRA HORA DE OBSERVAÇÃO ANALÍTICA
Os pais chegam muito atrasados e ansiosos. Gui é um criança linda! Observo a expressão
do pai; a mãe, confusa, quer levar o menino ao banheiro para fazer xixi, como se fosse um robô.
“Ele não fala nada! Eu o coloco de hora em hora”. Na altura física de Gui, lhe digo: “Gui, vamos
entrar com Alicia”. Seus olhos em meus olhos. Entra na sala sem manifestar emoção alguma ante
a separação. “Que sucede com Gui ?” Ele aproxima seu rosto do meu e o retira assustado. “Gui
quer estar perto de Alicia.” Gui se assusta muito, ele gira e se agarra à minha saia, a toca, se
pendura, faz uma cabana, me olha: “Como é esta Alicia ?” Encosta-se no divã, canta: “ha, ah...
eh, eh...” Continuo a melodia: “O bebê, eh, eh, Gui está aqui com ah, ah Alicia”. Faz
movimentos oscilatórios com o corpo inteiro; ele olha e destaca os dedinhos de ambas as mãos,
um de cada vez. Repete este movimento. Aproxima-se do contato comigo. “Alicia está aqui com
Gui”. Busca e encontra meu olhar. Volta aos dedinhos. “Quanto medo!” Observa meu corpo
inteiro. Devagar, destapa a massinha; amassa-a; passa-a pela minha saia e pelo divã. Procura a
identificação adesiva bidimensional. Palpa superfícies que faz ilimitadas. Acaricia-se. Come
cola. Aperta e morde o pote com muita força. Pára apavorado com o esvaziamento do pote. A
realidade frustrante se impõe. Rapidamente volta à movimentação do corpo e dos dedos.
Desarticula a expressividade das sílabas em monótonos barulhos repetitivos. Não há
possibilidade de manter uma vivência emocional penosa. Refugia-se na movimentação autística
defensiva. Anula o esvaziamento do pote com o esvaziamento de sua mente. Ele não quer sair da
sala. Não há limites nem final.
As entrevistas com os pais e com Gui me permitiam, neste momento, construir a hipótese
diagnóstica de um estado mental que correspondia a um encapsulamento autístico, secundário,
parcial, com parada precoce no desenvolvimento. Era alentador o prognóstico de Gui com a
psicanálise, para que ele pudesse sair, também com as transformações nos pais, do refúgio
autístico da prisão-concha. A análise de Gui implicava uma paradoxal e autêntica revolução
copernicana; muito diferente da paralisia, a enganosa mudança de 360°.
NA AVALIAÇÃO, PLANTAM-SE AS RAÍZES DA PSICANÁLISE
Na avaliação se constrói, no campo analítico, o objeto analítico (Bion, 1962). O processo
de avaliação como fonte de hipóteses é interminável. Ele faz parte de todo o processo analítico.
Há uma permanente relação dialética entre avaliação e este processo. Através da narrativa,
importa a criação da história transferencial, a apreensão da configuração da estrutura de
relações objetais desveladas como geradoras de significação. Por exemplo, hereditária é a
constelação de relações objetais que condenam ambos os progenitores a uma fragilidade psíquica
em uma telescopagem geracional. As defesas obsessivas da mãe induzem ao splitting forçado do
bebê (Bion, 1962): a clivagem entre a materialidade do peito que alimenta e o peito como
expressão da experiência emocional de amor e compreensão. Nas palavras de Bion, o peito e o
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 5
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
bebê parecem inanimados. A mãe o limpa, o atende em horários certos, mas não pode construir a
subjetividade da beleza, ao dizer de Meltzer, na sintonia harmônica quando uma mãe
compreende o seu bebê e pode dar sentido às identificações projetivas com sua função de
réverie. Na transferência, parecia que os pais queriam cumprir o mandato do encaminhamento,
possuídos por um superego cruel e tirânico.
O trabalho do analista se diferencia do trabalho do “ biógrafo”. Para Rocha Barros (1995),
a tarefa do analista se assemelha mais ao trabalho do criptolingüista diante de uma língua
estrangeira. Ele precisa descobrir uma gramática gerativa. Na história analítica, o passado está
presente na estrutura de sentido do mundo interno apreendida na relação transferencial. As
entrevistas com os pais não são para inventariar os dados de uma história, são para construir
outra história, em outra relação.
Sorrateiramente, pode estar presente um modelo determinista, linear e limitado do
desenvolvimento humano. Isto não quer dizer que negligenciamos acontecimentos dentro de um
contexto. Neste exemplo, as entrevistas com os pais são para instaurarmos a essência da relação
analítica ao permitir que os pais aprendam em e com a experiência emocional no jogo
transferencial e contratransferencial, a pensar o impensável, a nomear o inominável, num
processo de re-significação, para descongelar as áreas congeladas da mente, onde os significados
não eram gerados. Com a criação do setting e o trabalho interpretativo, reinstaura-se a situação
analítica.
Ao pretender um inventário de dados através de um questionário inquisidor, se dilui a
essência da psicanálise, isto é, a estrutura vivencial com a presença do emocional no nível do
próprio inconsciente. Como analistas, já aprendemos com os mestres que importam a apreensão,
a consciência do sentido, o descobrimento que se transforma em pensamento com
responsabilidade: a consciência ampliada de Bion. Importa a configuração de sentido que, na
relação transferencial com o analista, aparece como poiesis, a dimensão poética da recriação
constante do sentido, como nos ensina Fédida (1988). Um texto compartido e inacabado, porque
não saturado, “um agregado funcional”, uma “holografia afetiva” (Ferro, 1995).
Freud, em 1913, em suas famosas recomendações, nos alerta que o objeto em nossa
ciência não é dado, mas conquistado mediante uma operação metodológica específica.
A avaliação é, em sua essência, transitória, nunca acabada, não saturada (Junqueira de
Mattos, 1996) e sempre aberta à validação dos pais, do menino e do analista. Uma estrutura
aberta às transformações em crescimento. A história viva do movimento psicanalítico nos
convida a caminhar e re-pensar a teoria psicanalítica. Por exemplo, a abordagem kleiniana de
Dick é diferente da abordagem deste menino por Tustin. Quando Bion recomenda uma postura
sem compreensão, isto implica fechar a questão na compreensão comprimida dentro dos limites
do analista e dos limites de sua sustentação teórica. A configuração de relações objetais, as
fantasias inconscientes, a atribuição de sentido que os pais outorgam ao nascimento, a vida e as
queixas do filho, a qualidade da angústia e das defesas, as fantasias inconscientes, o lugar que o
filho ocupa no mundo mental dos pais, a capacidade dos pais para predominantemente pensar e
simbolizar ou para atuar, o contato com a realidade ou a presença de transformações em
alucinações e ou delírios, as mudanças psíquicas durante as entrevistas ou a tenacidade da
repetição são como as balizas que norteiam a criação do caminho na direção de uma verdade que
está sempre à frente. Eu quero destacar as oscilações possíveis entre Ps e D, entre sonhar, pensar
e alucinar (Franch, 1996), entre Cs e Ics, entre a parte psicótica e não psicótica, a existência da
mente primordial e suas transformações (Sor, Bianchedi, 1983) como o reservatório de préconcepções inatas, como o cenário da esperança.
Na mente primordial, afirmam estes autores, há uma pré-concepção vinculada ao conceito
de “ser humano”. A evolução desta pré-concepção requer uma mudança catastrófica de
dimensões diferentes que a pré-concepção “seio” ou “Édipo”. A realização desta pré-concepção,
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 6
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
“Ser Humano”, parece ser não sensorial. Então, a experiência psicanalítica pode permitir a
realização e o desenvolvimento desta pré-concepção “ser humano”. Os nossos pacientezinhos e
os pais sabem do deterioro mais ou menos evidente dessa realização em humanidade. É esta a
porta mais ou menos aberta para a analisabilidade na relação analítica com o analista, quem pode
também abrir ou fechar as portas do desenvolvimento.
Interpretar o filho como bicho autista não realiza os pais, como pais na condição humana.
Compreender é um verbo humano que se conjuga com angústia e muitos riscos. “Devir o” é
“devir ser humano” como o cenário da esperança para as transformações.
Tékhne é diferente de tecnicismo como normas pré-estabelecidas a aplicar, ou padrões
generalizantes; Tékhne é arte e habilidade para focalizar a singularidade na relação. Bion
compara o trabalho analítico ao trabalho do artista e cita como metáfora as estátuas inacabadas de
Michelangelo em Florença, ”Os escravos”, em que eles aparecem incrustrados na pedra, como se
ali tivessem estado sempre, à espera do cinzel de Michelangelo para libertá-los; assim como a
função psicanalítica da personalidade de Bion aguarda sua realização. O objetivo desta função
para Sor e Senet é “observar uma mente em suas transformações e evoluções na área do
conhecimento e descobrimento de si mesmo”. Esta função permite chegar ao lugar de onde a dor
anida e a resistência cresce.
Nas entrevistas de avaliação, podemos chegar a descobrir e re-conhecer uma peculiar
configuração, quem é o possível paciente e quando é possível iniciar a análise. Os pais, o filho
que os pais apresentam, outro filho? O que indicar a quem é outra difícil questão nesta clínica.
Quando se configura em mim que tal menino é o possível paciente, peço duas horas de
observação diagnóstica para poder pensar, não só em cada uma delas, mas também na evolução
entre ambas. Ao finalizar o primeiro encontro com os pais, proponho algumas entrevistas para
investigar o que acontece e o melhor momento para encontrar-me com o potencial paciente. Não
me comprometo com o número para não “encerrar” um processo a priori. O tempo psíquico é de
ordem diferente do tempo cronológico.
Penso que desde o primeiro encontro com os pais se constrói, na relação, os
fundamentos do processo. A avaliação psicanalítica está no início desta caminhada. Uma dor
depressiva, que tem o sentido de apelar ao desenvolvimento em um sentido progressivo, oscila
em idas e voltas, em relação dialética, com a dor esquizoparanóide que é regressiva. Às vezes,
quando a dor é excessiva ou quando falta a consciência da dor, dificilmente se bate na porta a
pedido de ajuda. O analista precisa conduzir o processo para que não se perca esta oportunidade,
para que os pais, os que exercem a função paterna, e o paciente possam perceber, dar-se conta,
ampliar a consciência, gestar o insight, permitir a compreensão tão profunda e aberta, tendo em
conta que a realidade última é “incognoscível, infinita, inominável”.
Do contrário, este gesto precioso com predomínio de angústia persecutória e ameaça, o
de ansiedade depressiva e preocupação pelo filho, pode se abortar na repetição compulsiva e
sinistra da eterna catástrofe que sufoca o desenvolvimento.
A postergação do início da análise como a oposição ao descobrimento por resistência, às
freqüentes atuações, às reações terapêuticas negativas, à inacessibilidade narcísica, ao benefício
secundário da enfermidade, à interrupção da analise iniciada, aos impasses, podem ser pedras
transponíveis ou intransponíveis de todo processo analítico. A questão é que podem estar
presentes e não serem desveladas já no momento da avaliação, ou podem começar a se formar na
gênese da relação. Da mão de Gui, quero mostrar que quando o pai revela a volta de 360°,
evidencia o trabalho mental necessário para permitir a análise do filho. Por isto propus aos pais
uma entrevista por semana como parte do processo de avaliação, para que a terapia analítica - na
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 7
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
cidade onde residem, a 100 Km de minha cidade - faça sentido. Este trabalho continua
simultaneamente à análise de Gui.
A primeira entrevista é um momento de curiosidade, terror, aversão, pavor ante o
descobrimento da loucura e a esperança do desenvolvimento. A criação do setting analítico é
uma conquista que transcende parâmetros folclóricos do tempo e do espaço (Fedida,1988). É a
construção do sentido metapsicológico do setting, a tina (Laplanche, 1993). É a turbulência
emocional entre o conhecido que, com sua força, amarra, e o temido futuro em permanente
relação dialética. É preciso que um novo espaço mental seja parido para a idéia nova sobre o
filho, sobre os pais, sobre esta relação revelada na transferência. Os pais, ao realizarem a préconcepção humana, re-nascem como pais juntamente com o filho gerado como sujeito, ao invés
de concebido como bicho. Esta nova idéia é uma catástrofe porque, para ser assimilada, detona
toda a estrutura cognitiva. Repetir que o filho é autista, como um diagnóstico paralisante numa
fantasia orgânica, é muito diferente que enfrentar a dor ao tomar consciência que não
compreendem o filho, ao introduzir a qualidade negativa, ou seja, a relação entre o nomeado e o
não nomeado, o percebido e não percebido, que se denomina qualidade negativa da hipótese
definitória e compreende pelo menos duas categorias de fenômenos a serem considerados:
• O que fica excluído pelo enunciado nomeado. O indizível.
• Trata-se de um símbolo, mas NÃO É o objeto simbolizado.
Rezende alerta que a “capacidade negativa” é a capacidade de dizer “não” às respostas
dadas. O seu contrário é a saturação. O pensamento instaurado continua a dizer “ainda não” e
assim abre ao invés de fechar as portas à procura. A verdade em psicanálise é alethéia, isto é,
desvelamento e não esquecimento. 1
O filho é um mistério. Falta-lhe compreensão. A realidade psíquica já não é renegada. A
avaliação psicanalítica pode anunciar um verdadeiro ponto de inflexão na estrutura (Barenger,
1992). A clínica da avaliação psicanalítica constitui uma dimensão da própria teoria enquanto
psicanalítica, ela “não se sustenta de uma forma anterior independente do compromisso teórico e
da clínica” (Montag Hirchzon, 1995).
O PROCESSO DE AVALIAÇÃO É O PORTAL PARA QUE OS PAIS APRENDAM COM A
EXPERIENCIA PSICANALÍTICA O QUE É A PSICANÁLISE. O LUGAR DOS PAIS NO
CAMPO ANALÍTICO E O PROCESSO DE AVALIAÇÃO
O casal Baranger (1993) aborda o conceito da situação analítica como um campo
bipessoal, uma estrutura dinâmica resultante da interação consciente e inconsciente do analista e
do analisado. O campo é diferente da suma de seus componentes. Luis Kancyper (1994) ilumina
o campo da psicanálise de crianças e adolescentes ao incluir também aos pais. O autor nos alerta
1
O modelo quântico é um paradigma sugestivo. Ele supera o ternário modelo dialético tese, antítese e síntese. No
modelo quântico as partículas subatômicas são ao mesmo tempo partícula e onda. É um esquema sintético,
holístico e monístico no qual as contradições continuam existindo. “Ser E não ser”.
No pensamento mecanicista e racional de Descartes e Newton, no determinismo dos sistemas fisicos fechados, no
império do princípio linear de causa e efeito, confía-se na viabilidade da predicção. Para a termodinâmica, o
equilíbrio nos sistemas fechados é o estado final de uma evolução, o ponto não qual o sistema exauriu a sua
capacidade para mudar, assim o sistema vai tendendo para a sua extinção. A física quântica descreve melhor os
sistemas abertos privilegiando as inter-relações e evidenciando que não é possível uma predicção no sentido
clássico. A lei mestra da física quântica é o Princípio da Incerteza de Heisenberg, que derrota a onipotência e
objetividade científica. De acordo com a física quântica, a construção de um esquema que permita considerar
separadamente todas as variáveis, como no pensamento newtoniano, para conseguir os resultados desejados, e
impossível, porque, segundo Heisenberg afirmava, “O mundo apresenta-se, pois, como um complicado tecido de
eventos, no qual conexões de diferentes espécies se alternam, se sobrepõem ou se combinam, e desse modo
determinam a contextura do todo.” CAPRA, F. O Ponto de mutação. Ed. Cultrix, São Paulo, 1992.
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 8
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
que os pais criam uma relação transferencial com o analista do filho, havendo, pois, um nexo
estrutural neste campo intersubjetivo.
Esta postura está muito afastada da postura inicial de Ana Freud. A orientação pedagógica
é uma perspectiva distante da perspectiva da psicanálise. Com as tentadoras “receitas”, saturadas
de memória e de desejo, desliza-se facilmente para uma acusação superegóica ou para uma
pregação moral. É preciso uma aproximação ao mundo mental perturbado dos pais, inspirada na
essência da psicanálise sem memórias e sem desejo para criar a possibilidade de pensar para vir
a ser pai, de acordo com “O”. Para encontrar nossa interpretação, é necessária uma sólida e
confiável postura analítica, além de ter em mente que os pais, apesar de pacientes (no sentido
etimológico do termo), não são nossos analisandos; tema desenvolto em co-autoria com outros
colegas de SBPSP (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo) “Psicanálise de Crianças:
Um Terreno Minado?” (1996).
Assim, em vez de serem condenados como um obstáculo para o processo, devem antes
ser sensibilizados para participar do compromisso com o desenvolvimento do filho, que implica
o próprio desenvolvimento da paternidade psíquica. Não é tarefa simples para iniciantes
(profissionais no início de uma formação) saber o que dizer a um pai que não é nosso analisando,
a partir de uma perspectiva analítica (Walksman, 1995).
Os pais de Gui perpetuavam na orientação “psi”, de onde eram saturados de teorias e
livros que repetiam o distanciamento ao invés do investimento libidinal com o filho. Com a
psicanálise eles seriam convidados a re-significar a própria história afetiva, para que Gui entrasse
em um processo de humanização: Des-identificar Gui da sepultura de bicho débil mental ao
alcançar a consciência da gravidade da perturbação do filho.
O gesto de pedir ajuda pode significar um duro golpe na onipotência e a onisciência
paterna e
materna. Por isto a avaliação psicanalítica é um momento muito delicado. Sem os pais como
nossos “ melhores colegas”, parafraseando Bion, não há psicanálise de crianças. É preciso
humildade, a fim de que se possa reconhecer os limites da condição humana e a impossibilidade
de haver evitado o cataclisma e a tempestade emocional (Sapienza, 1994).
O filho como imagem especular dos pais, no perigoso lago narcísico, não tem vez para a
subjetividade como o OUTRO da alteridade. Se o filho precisa ser a continuidade dos pais na
transcendência generacional, para driblar a essência da condição humana: a finitude com o limite
na morte, a diferença com o limite no corpo, a incompletude e impotência como limite na
onipotência. Ser homem é não ser Deus. A percepção da realidade mental do filho, a experiência
emocional desta consciência é recusada. O filho que desaponta os ideais egóicos narcísicos
provoca profundas feridas narcísicas no pais. As queixas sobre o filho iluminam os furos na
identidade dos pais enquanto pais. O “SER” está ameaçado, por isto a perturbação psíquica do
filho sacode o narcisismo dos pais. O fascínio pela completude como dogma fanático (Sor e
Senet, 1995) sufoca à própria subjetividade, condição para a identidade.
CRÍTICA À DEVOLUÇÃO DIAGNÓSTICA. O TRABALHO DE ELABORAÇÃO DAS
HIPÓTESE DIAGNÓSTICAS NA APROXIMAÇÃO DA VERDADE.
Édipo: “Em nome dos deuses! Não me esconda o que sabes. Todos nós prostramos diante de ti e
te suplicamos...”
(...)
Tirésias: “Decerto na verdade tem alguma força...”
Tirésias: “... Não é Creonte a causa do teu mal, tu próprio és o teu inimigo...”
(...)
Tirésias: “Este dia de hoje te fará nascer e te fará morrer”.
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 9
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
A devolução diagnóstica está na contramão do espírito deste trabalho. No nome se
vislumbra a revelação perigosa de uma atitude enraizada em um modelo psicológico e médico ao
invés do modelo psicanalítico. O perigo é de psicologizar a psicanálise ao não perceber o salto
epistemológico de sua essência, na redução esteriotipada. O simbólico é o lugar do sentido que
transcende e re-significa a palavra como significante no registro do imaginário. Qual o sentido,
os sentidos, e os outros sentidos do autismo? Isto é a transcendência simbólica, como Rezende
ensina. A transformação em psicanálise implica a expansão da vida mental. A passagem da
realidade física para a realidade psíquica e a realidade última com Bion. O analista faz parte do
objeto analítico. Na psicanálise, a intersubjetividade é critério de cientificidade. Questão significa
procura. Os problemas “são os obstáculos que o sujeito encontra na sua procura de verdade” (
Rezende, 1996). A verdade é incógnita. Ela fertiliza nossa reflexão, indagação, curiosidade,
pensamento. É portanto grave quando as questões são reduzidas a problemas! As soluções
esterilizam a nossa mente. A verdade é muito maior que nossas respostas. “Chegar é a
infelicidade da busca ”, continua Rezende. A etimologia me socorre.
1. Segundo o dicionário Aurélio, “devolver” deriva do latim devolvere: “Mandar ou dar de volta
o que havia sido entregue; (...)restituir; (...). Dizer em resposta ; replicar, retrucar, redargüir(...)
Não aceitar, recusar, (...) vomitar”...
2. Segundo o dicionário etimológico (Corominas, 1961), devolver, tomado do latim, significa
“rodar tombando, desenrolar”.
Acredito que precisa fazer parte da avaliação a elaboração do novo conhecimento sobre o
filho. Um “K” que nutre o “O” de ser pai, um desenvolvimento. A devolução como dar de volta;
o vomitar perturba o árduo trabalho mental para criar um novo conhecimento sobre o filho em
uma experiência analítica. Este “vomitar” pode ser um outro trauma que, como uma pedra jogada
sobre uma mente enfraquecida, provoca ou amplia buracos existentes. O que era mudança para
os pais de Gui? O que era autismo para os pais e para os “psi” ? Um diagnóstico pode estar
perigosamente perto do dogmatismo, do fanatismo, do moralismo, encarnando a arrogância
sombria, voraz e invejosa, ao invés da luz do pensamento científico que nutre a curiosidade
inspirada no amor - “at one moment” - e no conhecimento verdadeiro.
O trabalho de elaboração das hipóteses diagnósticas é também oposto ao engano da
sedução. Freud faz referência em vários contextos ao trabalho realizado pelo aparelho psíquico
para integrar associativamente, fazer as ligações para transformar a angústia em afeto. Arbeit se
encontra em várias expressões: trabalho do sono, trabalho do luto, trabalho de elaboração.
Trata-se da passagem da quantidade à qualidade. A articulação do registro econômico
com o registro simbólico em Freud. Ligar e unir é tarefa de Eros. Des-ligar, romper as relações, e
destruir é tarefa de Thanatos. O trauma psíquico ameaça a capacidade de ligação.
O mito de Édipo é o paradigma exemplar. Alethéia, na etimologia grega, significa
desvelamento e não esquecimento. Mas, em latim, verdade se diz Veritas, que quer dizer
vergonha. Rezende levanta a questão: “Nós temos vergonha de quê? Da nossa nudez! Nós temos
vergonha de nossa verdade, e nos encobrimos para não mostrá-la”. Eu continuo: quando uma
mãe falha na sua função materna, não há experiência de continência de partes do self por uma
pele psíquica, há um vazio na experiência de continência. A pele furada. Quando Édipo sabe da
verdade sobre sua origem, fura os seus olhos. Um viés possível para interpretar a tragédia é
perceber que a verdade sem amor é crueldade Ele se encontra consigo mesmo, no percurso do
caminho feito, marcado pela desgraça do desencontro. Ao furar os olhos, repete a catástrofe do
furo nos tornozelos na origem da vida.
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 10
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
Esta não foi uma verdade dosada por uma mãe compreensiva que cria com a sua função
alfa a capacidade de pensar. Esta verdade não foi alimento para seu psiquismo, foi uma bomba
que explodiu no seu ser. Édipo fragilizado não tolerou a violência desta verdade, que estilhaçou
nas feridas do profundo traumatismo do abandono, do desamparo inicial, desde o nascimento,
condenado pela sentença oracular, que se repete em sinistra maldição. Ele não encontra em
Jocasta a função materna, encontra a perturbação da mulher que recusa a realidade, seduz e
engana ao invés de tê-lo investido libidinalmente na sua mente (Parada Franch, 1997). O estado
de ensonação da mãe com reverie é oposto atuação ao perder a auto-continência segura e
amorosa. A revelação do criado, como uma martelada, desintegra, quebra, fragmenta o aparelho
psíquico em compulsiva repetição. A emoção é tão desbordante como a hemorragia que ele
provoca ao furar os olhos, sobre a integridade de seu ser. Édipo cego não pode metaforicamente
perceber a riqueza e complexidade da verdade que deu sentido à sua existência . Aqui há atuação,
ao invés de trabalho de elaboração. Pensar é estabelecer relações, só que é preciso viver a
experiência emocional de uma relação amorosa para poder pensar. A concepção mental supõe
encontro e união.
A tragédia de Édipo me permite exemplificar a postura da devolução diagnóstica como
“o rodar de volta” com a fria informação, a cruel verdade invasiva, a teoria pronta, que provoca
a catástrofe ao repetir a tragédia do desencontro humano matriz do desespero, dor, angústia e
desesperança .
No momento inaugural da avaliação se podem rastrear, às vezes, as raízes das freqüentes
deserções nesta clínica. Na minha opinião, o trabalho analítico no processo de avaliação permite
associar com a interpretação os elementos dissociados, mostrando a correlação que existe entre
eles para que sejam novamente integrados, como mostro no gráfico n° 2 e n° 3.
Não se trata de dar uma racional informação diagnóstica, que atenda à demanda em uma
tentativa de apaziguamento dos pais e do analista. Trata-se de fazer psicanálise. Não somos mais
apenas espelhos a refletir o inconsciente do paciente. Com Bion somos espelhos vivos, com
nossas mentes e alma oferecemos uma transformação no jogo das identificações projectivas.
Com nossa pessoa, e nosso “O”, ajudamos a construir, na medida em que esculpimos nossa
própria
identidade analítica, o novo pensamento, no encontro intersubjetivo também
inconsciente. Não se trata de alinhavar os elos da história, encontrados em escavações
arqueológicas, tal como o modelo de Freud em “Construções em análise” (1937), mas, na
transferência, criar a possibilidade de que uma mente albergue a mudança catastrófica de um
novo SER. Um caminho de mão dupla. Aqui os pais sabem (Ferro, 1995), e não só imaginam,
quem é o analista a cuidar do filho, e então o destino do análise é o destino de todos os
empenhados na análise.
Em lugar da devolução diagnóstica, proponho o trabalho de elaboração das hipóteses
diagnósticas. Na devolução, podemos cair na perigosa tentação de dar uma informação que se
pode transformar rigidamente em um rótulo ou uma palavra vazia. Autismo como a condenação
hereditária do destino não suportava mudança. No trabalho de elaboração, proponho que se
alcance a nomeação de experiências emocionais para encontrar significados no caminho da
integração e a simbolização. Autismo é agora a percepção de uma estrutura mental que resulta
da falta de compreensão afetiva: “Nós não entendemos Gui”.
Em novas entrevistas com os pais, desvelamos, com paciência ante a incerteza e
humildade ante um não saber, o sentido, sempre aberto a novas reformulações, sobre a
perturbação do filho e dos pais. Os pais iniciam a aprendizagem, na experiência emocional
com o analista, do sentido da metáfora, em uma alfabetização emocional. A intervenção
pensante do analista possibilita aos pais a possibilidade de pensar e desenvolver o aparato para
pensar. Às vezes, neste momento inaugural de expectativa, em vez da experiência de realização
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 11
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
no encontro compreensivo, gesta-se o des-encontro. Em toda tékhne palpita uma teoria que
precisa estar encarnada no analista. É a construção do sentido da análise em uma vivência
analítica (Rocha Barros 1991). Só é possível conquistar uma atitude de compromisso através do
trabalho analítico: é esta nossa única ferramenta disponível. Rastrear a história transferencial e
contratransferencial do processo analítico em grande angular, desde a gênese do processo, pode
iluminar a compreensão dos freqüentes impasses analíticos e as interrupções dos tratamentos de
crianças e adolescentes.
Com esta perspectiva, não quero que se entenda que o processo de avaliação possa dar
conta da complexidade misteriosa e dinâmica da relação analítica para sustentar ou
impossibilitar o destino de uma análise. Só destaco a importância de iniciar a caminhada com
uma sólida postura analítica, aberta também a pensar e repensar o pensamento psicanalítico.
A MUDANÇA CATASTRÓFICA
No antigo teatro grego, o coro entrava e descrevia previamente a cena, onde depois os
atores protagonizavam os seus papéis. Tal canto do coro chamava-se estrofa. Quando uma nova
cena devia ser apresentada ao público, o coro outra vez entrava e entoava uma nova estrofa. Foi a
mudança de cena do teatro grego que deu origem à palavra catástrofe. A nossa civilização −
alicerçada em sistemas fechados, para os quais as mudanças nunca são bem vindas −, associou
esta palavra com desastres ou grandes desgraças. Mas, na realidade, a mudança de cena não
necessariamente tem de conduzir ao desastre; pode também gerar crescimento para o ser
humano. Isto depende da capacidade deles de mudarem a maneira de pensar e adaptarem-se às
novas exigências do meio, o que, embora não seja fácil, também não é impossível e nem fatal. A
evolução mental, pode-se compreender como crescimento em terrenos de saltos qualitativos ou
mudanças catastróficas (Sor; Bianchedi, 1983). O gesto de pedir ajuda a um psicanalista em
uma avaliação psicanalítica é o primeiro passo para que se inicie uma mudança catastrófica,
uma transformação em um médio “K”, que tende a “O”, portal do processo . Um verdadeiro
desafio. A mudança catastrófica é o mudança de um mundo para outro, de um universo para
outro com violência e subversão do sistema prévio. A questão é que, para que um filho mude, os
pais também precisam mudar, ao menos para sustentar o processo analítico. A resistência à
mudança é a resistência ao crescimento, evidente na conjunção constante do filho como “bicho
autista” e na metáfora de 360°. Momento de dor necessário e de-cisão. Outra cesura. Uma
“interrupção, não-fluxo geral dos acontecimentos” (P.Talamo, 1996), que pode ser entendida
como a passagem de um estado mental a outro. Há uma diferença perceptível na qualidade dos
dois estados. Freud enfatizou a continuidade, Bion as interrupções na continuidade e os elos de
ligação, a sinapse. Parthenope lembra que a cesura do nascimento está intimamente ligada à
teoria da ansiedade em geral, e especificamente àquela sobre a ansiedade-sinal. É preciso olhar
tanto para trás (a hereditariedade), como para frente (a incompreensão), numa reversão de
perspectiva. A cesura seria esse salto qualitativo, de uma para outra posição, sendo necessário
manter ambos os lados em mente. Em toda mudança há elementos que transitam por mudança
sem modificarem-se, como por exemplo, a estrutura obsessiva da mãe, da mesma forma que o
quadro do campo de papoulas continuará sendo um campo de papoulas. Há invariância entre o
momento pré e pós catastrófico. Também há uma alteração do sistema previamente existente, a
hereditariedade psíquica não fecha as portas. Entrar na análise implica desligamento,
desconstrução, uma conjunção constante que foi sedimentada inconscientemente “é
hereditário”, para criar outra “nós não entendemos nem compreendemos GUI”, portal do
nascimento psíquico de GUI. Há violência e turbulência ante a des-organização do sistema
prévio; por isto a mudança é catastrófica.
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 12
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
REFLEXÕES
Sem arar a mente dos pais, ao despertá-los para a realidade psíquica com uma cálida
postura analítica, tiramos sementes de análise no ar. Se estes pais não têm consciência do sentido
do autismo como séria perturbação psíquica, qualquer medicação será mais fácil, tentadora e
fascinante que o esforço analítico. Gui chegou a balbuciar e pedir contato afetivo. O pedido por
coca-cola é um exemplo. O “menino bicho” não podia ser escutado em um diálogo subjetivo e se
afastou do mundo humano. Resgatar este pedido é resgatar na transferência a súplica de ajuda, de
escuta; mas é também resgatar a esperança de que um filho seja capaz de falar e de SER. O
início da análise é um ato de fé. Esta fé se refere àquilo que não sabemos e nem saberemos, que
não está e nem estará ao nosso alcance. A natureza da fé requerida não é precisamente a fé
religiosa, mas a “fé científica”. Neste sentido, “fé” é a união de uma hipótese transitória com a
firme esperança de que exista um conhecimento ou verdade científica da qual poderemos nos
aproximar a partir de múltiplos ângulos. A aproximação não dará como resultado uma “única
verdade”, mas uma “verdade complexa”, que tampouco será definitiva, mas que poderá colocar
em marcha o pensamento criativo capaz de acompanhar as suas transformações.
A avaliação psicanalítica de um criança é um momento de CRISE (Kaes, 1985), um
momento de grave mutação. A verdadeira perturbação de crise está no nível de organização das
regras de organização de um sistema, no que esta organização tem de generativo ou de
degenerativo: “o desarranjo organizacional se traduzirá em disfunção onde havia funcionalidade,
em ruptura onde havia continuidade, em feedback positivo onde havia feedback negativo e em
conflito onde havia complementaridade” (R. Kaës, Crisis, ruptura y superación ). Para poder
atender um paciente grave, o analista precisa avaliar também sua disponibilidade psíquica em
assumir com responsabilidade este sacrifício (Green, 1986 ).
“A VERDADE NOS DÁ AS COSTAS” Heidegger
“POR QUÊ? PORQUE VAI À NOSSA FRENTE, ABRINDO CAMINHO. E NÓS VAMOS
ATRÁS DELA” Rezende
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 13
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
RESUMO
A autora se inspira , neste trabalho, no conceito do campo do matrimônio de Baranger e
sua ampliação na psicanálise de crianças e adolescentes pelo Dr. Luis Kancyper. Destaca-se
então a importância dos pais tanto no acervo teórico quanto no trabalho clínico. A avaliação
diagnóstica é compreendida como um momento fundamental do processo psicanalítico, à luz do
conceito de mudança catastrófica do Dr. Bion e da reformulação deste conceito pelos autores
argentinos Sor e Senet. O início do psicanálise de um filho é um momento de dor e decisão que
abala a constelação narcísica dos pais. Ao mesmo tempo, é o portal de um conhecimento, mais
verdadeiro e real, que possibilita as transformações em “K”. A postura pedagógica é diferenciada
da postura psicanalítica. A entrevista de devolução diagnóstica é criticada como herança de um
modelo médico; o psicológico que pode estar contribuindo para as penosas deserções nesta
clínica. A etimologia socorre a autora que alerta para o perigo de “dar de volta”, o “vomitar”, o
“rodar tombando”, ao invés de permitir a elaboração e a consciência do novo conhecimento
conquistado no processo de avaliação. A avaliação psicanalítica de um criança com retraimento
autista exemplifica a postura da autora.
UNITERMOS : Psicanálise de crianças e adolescentes - os pais no campo psicanalítico
- avaliação diagnóstica - mudança catastrófica - devolução diagnóstica - informação versus
elaboração - a avaliação como K orientado a O.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Vera Stella Telles a amizade e a oportunidade de aprender numa experiência
compartilhada, à Sra. Elizabeth Lima de Rocha Barros o curso sobre avaliação e a reflexão sobre
tantos pacientes. Agradeço também à Sra. Viviana Minerbo, aos Drs. Dario Sor e Maria Rosa
Senet de Gazzano as críticas construtivas a este trabalho. Ao curso de análise de crianças e
adolescentes, a oportunidade por promover o desenvolvimento, ao Prof. Antonio Muniz de
Rezende, a amizade e o convite a expandir o meu pensamento. A todos, o indizível além das
palavras...!
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 14
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AULAGNIER, Piera. A violência da Interpretação: do Criptograma ao Enunciado. Ed Imago,
Rio de Janeiro.
BARANGER, M. A Mente do Analista: da Escuta à Interpretação”. Rev. Bras. Psicanal. 26(4):
573-586, 1992
BARANGER, W. Os afetos na Contratransferência”, XIV Congresso Psicoanalítico de América
Latina, Buenos Aires, 1992
BARANGER, W. e BARANGER, M. (1969) Problemas del campo psicoanalítico,Ed.
Kargieman. Buenos Aires, 1993.
BARROS, E.M.R. A transcendência como poiesis: seu campo e a sua gramática. Trabalho
apresentado na S.B.P.S.P., como parte do Fórum sobre Transferência.
BEZOARI, M & FERRO, A. (1990). Elementos de um modelo do campo analítico - Os
agregados funcionais. Rev de Psicanálisis, T XLVII, 5/6 pg.852
BIANCREDI, E. T. e SOR, D. La mente primordial, el mito de Babel, y la mente separada.
Trabajo apresentado em el 5 to Simpósio de la A.P.de B.A., Buenos Aires, 1993.
BION, W.E. (1962), Os elementos da psicanálise. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1966.
BORGES, J.L. Labirinto. Obras completas, 1969
BRAGA, J.C. (1990) À procura do Objeto Psicanalítico. Revista Bras. de Psican., 26, 1992.
CABANNE, Juan A. Para uma definição de mudança psíquica. Pg. 211 da Revista de
Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.
COROMINA, (1969) Breve Diccionário Etimológico de la Lengua Castellana. Editorial Gredos,
Madrid, 1973
FERREIRA, A.B.D.H. Novo dicionário Aurélio. Brasil
FERRO, A. A técnica na psicanálise infantil. Imago, São Paulo, 1995
FRANCH, N.J.P. Agir, alucinar, sonhar, da paixão às dores da alma. Trabalho apresentado em
Simpósio Ressonâncias, São Paulo, 1996.
FREUD,S (1914). “Recordar Repetir e Reelaborar”. Obras Completas, Vol XII, Amorrortu
Editores, Buenos Aires, 1976.
FREUD, S. “Construções na Análise”. Obras Completas, Vol XII, 1937
GREEN, André. Sobre a Loucura Pessoal. Imago Editora, São Paulo, 1988
O Processo de Avaliação do Crianças e Adolescentes
Pag. 15
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
KAËS, R. Crisis, Ruptura e Superación. Ed. Cinco, Buenos Aires, 1985
KANCYPER, L. O Campo Analítico com Crianças e Adolescentes in Psicoanálisis de Crianças
e Adolecentes na América Latina. Desarollos e Perspectivas, Psicoanallítico, Vol. I, Peru, 1994.
KLEIN, M (1946). “Notas Sobre Alguns Mecanismos Esquizóides”. Obras Completas, Vol. III,
Cap. IX, Ed. Paidós Homé, Buenos Aires, 1974
LISONDO, A.B.D. e outros. “Psicanálise de crianças: Um terreno minado?”. Revista Brasileira
de Psicanálise. Vol. XXX - n° 1 - São Paulo, 1996.
MATTOS, J.A.J. Transferência e Contra-Transferência como Transciência. Trabalho
apresentado na S.B.P.S.P. São Paulo, em 27 de junho de 1996.
MELTZER, D. e outros. Metapsicologia ampliada. Ed. Spatia. Buenos Aires, 1990.
MELTZER, D. e outros. Exploração do Autismo Ed. Paidós, Buenos Aires.
OGDEH, T.H. A fronteira primária da experiência humana. Ed. Julian Yebenes, Madrid, 1992.
REZENDE, A. Narciso e a Quebra do Espelho. Palestra proferida na Sociedade de Medicina e
Cirurgia de Campinas, 1992.
REZENDE, A. A psicanálise como procura da verdade, a questão e os problemas da verdade na
psicanálise teórica e prática. Segunda parte, a verificação na experiência psicanalítica, 1996.
ROCHA BARROS, E. Curso Sobre Avaliação, SBPSP, 1991
SMIRGEL, J.C. O Ideal do Yo, Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1991
SÓFOCLES. Édipo Rei. Ed. América do Sul, 1988. (Biblioteca de Ouro da Literatura
Universal).
SOR, D. e GAZZANO, M. R. S. Mudança Catastrófico. Ed Kargieman, Buenos Aires, 1988.
SOR, D. e GAZZANO, M. R. S. Fanatismo. Ananké , Chile , 1993.
TALAMO, P.B. Psicanálise, evolução e ruptura, ambos lados da cesura. Trabalho apresentado
em Simpósio Ressonâncias, São Paulo, 1996.
WALKSMAN, J.D. (1985). A Contratransferência do Analista de Criança. Rev. Bras. de
Psican., 19(4), 1985
Download

O processo de avaliação.rtf