AULA DE ANATOMIA ARTES E AFINS P24 E 25 TRANSMISSÃO ORAL P21 BABILÓNIA P33 JANELA DE EXPRESSÃO P15 ESTÓRIAS CLÍNICAS P39 TEMA P5 EDITORIAL P3 PEREGRINAÇÃO P45 DÉFICES COGNITIVOS MARCADOS. 2 desumbiga des umb iga #17 Editorial FICHA TÉCNICA REDACÇÃO* [email protected] [email protected] [email protected] [email protected] arman alexandre Freitas ana Teresa Prata antónio Caetano bernardo Moura bianca Branco carlos Pereira david Moreira daniela Alves dré Bemol francisco Vale luísa Lopes maria Emília Pereira mário Mi-Siccarosi salomé Silva tiago Miranda vítor Magno [email protected] [email protected] [email protected] CAPA E CONTRA-CAPA bernardo Moura salomé Silva GRAFISMO antónio Caetano samuel Fialho [Digital Impulse] [email protected] TIRAGEM 400 exemplares IMPRESSÃO editorial aefml CONTACTOS revista desumbiga associação de estudantes da faculdade de medicina de lisboa, hospital santa maria, piso 01 avenida prof. egas moniz 1649-035, lisboa [email protected] [email protected] * O conteúdo dos textos publicados é da exclusiva responsabilidade dos seus autores 3 desumbiga - Bernardo, a Emília disse que era boa ideia sermos nós a escrever o editorial. Eu não estou assim tão certa disso, mas parece que somos os mais velhos. - Qual é que é o tema da revista Salomé? - Delirium. - Delirum? A girl’s band portuguesa? - Não, Delirium como estado de perturbação da consciência, algo semelhante ao estado que experienciaste no último jantar da malta. - Ah claro, algo semelhante ao próprio des1biga. - Ou semelhante à ideia de serem duas pessoas a escrever um editorial. - Acabei de chegar de Erasmus, tens que me pôr a par dos textos que vão constar da revista. - Então… Para além dos textos que dizem respeito ao tema, temos uma entrevista a um médico fora do convencional, duas páginas true colours, um novo projecto para expor trabalhos artísticos na faculdade e claro todas as secções habituais. - Uma exposição do Desumbiga? Estou a ver que este nosso pequeno delírio colectivo está a ganhar contornos palpáveis! - Esperemos que seja um delírio contagiante… - Já entrevistaram um médico? Não era mais adequado ir falar lá com as gajas da girl’s band? Eu delirava. Mas agora é pra fazer um editorial, né? Que achas duns cogumelos mágicos para a inspiração? - Concordo plenamente, afinal para a despedida tem que ser tudo em grande. - Pensando bem, acho que o Harrison já tem um teor alucinogénico bem forte. Fico-me por aí. - Então bora lá desumbigar e respirar um pouco de ar livre e real. - Ok. Editorial, vamos a isso. bERNARDO mOURA salomÉ SILVA 4 desumbiga tema antony gormley - Firmament excerto nº 410 da colectânea desconhecida e inêdita uVidas conturbadas, mentes BRILHANTES o delirium oculto u pá cenas tipo nada a ver u O DELIRIUM DO TEMPO u POEMA DELIRANTE u DELIRIUM 5 desumbiga tema Excerto nº 410 da colectânea desconhecida e inédita “666 (re)flexões no soalho do rés do chão duma mente acabada (de chegar) ou os incríveis 111 pensamentos por cada um desta meia dúzia de anos” P orque é que odeio escuteiros? Não sei! Em geral odeio fardas... ou seja bombeiros, polícia, tropa, militares, PSP, membros de empresas de segurança como a SECURITAS, PROSEGUR, GRUPO 8, etc, mas também odeio bombeiros, GNR, corpo de intervenção, etc... não sei se é por desrespeitar as autoridades ou por ser quase anarquista... não sei! Talvez seja apenas porque muita desta gente usa a farda sem saber muito bem porquê! Usam-na como se fossem muito importantes! Nasce-lhes uma arrogância, uma impertinência inacreditável, inadmissível! Reparem naquelas coisas verdes que passam multas ilegais nas ruas de lisboa aos carros em cima do passeio... aquele lodo verde que tem umas letras a dizer EMEL... essa é a mais nojenta da escumalha de farda... ah como gosto da PJ... essa polícia judiciária... inteligente, eficiente, discreta, traiçoeira, elegante mas ainda assim mais honesta que a PSP, que mais não faz porque o magistrado não deixa, o político não quer e o povo não merece... essa é a única polícia 6 desumbiga que tolero, talvez por não usar farda (não dou por eles quando nos cruzamos na rua)!.... a arrogância de um polícia ou de um bombeiro fardado só é comparável à sua ignorância e à sua preguiça!.... e mais não escrevo senão fazia um livro só disto e isto tem mais piada escrito assim de rajada sem pontuação sem nada! Escrito por Carlos Pereira algures em Lisboa, Portugal (feze europeia, terceiro calhau a contar do sol, sistema solar, estrada de santiago, universo) no início do quinto mês no ano da graça de vosso senhor jesus cristo de dois mil e cinco. carlos pereira tema O DELIRIUM OCULTO D e uma demência líquida, a condição de existentes aplaude-nos. Quantas percepções nos inauguram a mente e, ainda assim, talvez a lucidez seja escassa. Este não é o mundo dos lúcidos; mas dos que o tentam ser. Sob leis factuais e possíveis, sob as pesadas arcadas dos conceitos sociais, sob a imobilidade das carcaças das construções psicológicas, sob a mendicidade inerente à satisfação das emoções. Uma lucidez forçadamente conservada, similar a um dogma que teima congruir ileso, mesmo em fricção com cenários agudos. Tudo justificado por esse ganho maior: o estatuto lúcido, forjado por um conjunto de idealizações insatisfatórias e incompletas. Nem sabemos onde em nós nasceram, ou se as não temos, onde em nós nasceriam. Mas são elas que nos rasam jusantes aos sentidos, aos pensamentos e às acções. A nossa tentativa de lucidez é menos do que aquilo que so7 desumbiga mos. Pois o impacto do âmago do ser, é apenas superfície, na poética dos demais. Como pode, a metasubstância da profundidade do ser, metamorfosear-se no seu trajecto de tal modo, que ao alcançar o outro é uma aragem ré? A crítica, mimetizada pela concepção de lucidez que herdámos, não nos liberta. É a criação que constitui o acto final e máximo deferido à humanidade. O único que nos desenlaça as pernas dos meandros ásperos da terra e nos catapulta de um só rasgo para os tectos das constelações. Tudo o resto é sobrevivência, uma luz baça e insegura na bucólica noite dos nossos sonhos. Tudo o que não somos, integra a remota beleza da inconsciência que é o pecado da mente. Devido ao objecto se encontrar oculto, atribuímos-lhe a inexistência. Nesta matéria somos nascituros cegos à procura de formas definíveis. É como as florestas suspensas no ar, oníricas na sua materialização. Se as víssemos por dentro dos troncos e das folhas, não restariam dúvidas que a manifestação dos entes é um conhecimento que parte de um lugar específico. Seria a dendrolatria do intrínseco e da plenitude. Só que encontrá-la articula o corpo e a mente numa frenética suspensão de sentidos e emoções, para evadi-lo de sonhos. Pois se não é o sonho ou a paixão, somos patacoadas ilógicas da criação. A lucidez plagiada é um valor que sustenta um tempo presente eterno. A germinação do futuro até pode ser concebida em meios brandos, mas a sua derradeira exteriorização é a loucura. Existe aqui um radicalismo, pois o novo é sempre um afrontamento e justificá-lo implica o sangue de quem o vislumbra. Que se passe ileso pela vida… Mas por nós mesmos?! Isso constitui um rastejo de inocuidade, uma sucessão executiva, triste e monótona, de gestos e frases pré herdados. A dança até ao suor e a música ritmada e os gritos agudos e o calor da labareda e a crença num sincretismo da natureza e a mística da inconsciência e o caldo das ervas e por fim o delírio orgástico. O conhecimento não se obteve da ausência de conhecimento, mas da alucinação necessária para expulsá-lo do seu trono oculto. O delirium é a lucidez oculta. O amor é o delirium oculto. E o oculto, o que será revelado. Maria Emília Pereira [email protected] tema VIDAS CONTurBAdas, JANIS JOPLIN Pioneira na indústria rock dominada por homens. Considerada uma das melhores 100 artistas de sempre pela Rolling Stone. Na universidade escreveram sobre ela: atreve-se a ser diferente. Considerada uma artista poderosa mas profundamente vulnerável. Sofreu de obesidade na adolescência e era chamada de porco e freak. Morreu aos 27 anos por overdose. Mãe: ela era infeliz e insatisfeita. Própria: eu não me encaixava, lia, pintava e não odiava. FERNANDO PESSOA Considerado um dos maiores poetas portugueses e do mundo, foi também empresário, editor, crítico literário, activista político, tradutor, jornalista, inventor e publicitário. Auto-intitulava-se “drama em gente”; contam-se 72 nomes entre pseudónimos e heterónimos. Chamaram-no de “enigma em pessoa”, reflectia sobre a verdade, existência e identidade. O seu início de vida foi marcado pelo falecimento do pai e do irmão, tendo escrito o primeiro poema com 7 anos. Acaba por isolar-se perante a competição pela atenção da mãe por parte do padrasto e filhos do 2º casamento. Viveu em Durban, onde recebeu educação inglesa, destacando-se sempre. Interessava-se pelo ocultismo, misticismo e astrologia. Redigiu cartas a psiquiatras auto-diagnosticando-se como histero-neurasténico, considerava-se internamente instável, embora aparentasse ser controlado. Este desdobramento de personalidades, a tendência para a despersonalização e simulação, entre outros aspectos, apontam para esquizofrenia. Faleceu aos 47 anos com cirrose hepática alcoólica É com bastante frequência que verifico que grandes génios da humanidade, mais ou menos conhecidos, eram oriundos de famílias disfuncionais, violentas, demasiado rígidas ou não tinham família de todo. Cresceram sem estrutura, sem suporte, com uma inteligência que transbordava as regras da suposta normalidade. Não compreendidos, nunca desenvolveram sentimento de pertença aos que os rodeavam, nem sequer à sua era de existência. Desde cedo, era significativo o tempo que despendiam sozinhos. Sempre tiveram dificuldade em desenvolver amizades e, dos amigos que tinham, os que realmente interessavam e eram interessados, nunca ultrapassaram os dedos de uma mão. Na juventude, dominados pela timidez e insegurança, mas com vontade de experienciar tudo o que já tinham lido há muito tempo em livros, usavam drogas, álcool ou ambos para atingirem um estado que de alguma forma, real ou subjectiva, os auxiliava no relacionamento com os outros ou, pelo menos, a suportar o tempo em que estavam sozinhos, acabando invariavelmente dependentes. Alguns não tinham relacionamentos 8 desumbiga amorosos de todo. Para outros os relacionamentos fortuitos eram frequentes, bem como os múltiplos, mas sempre com um sentimento de vazio presente, pois a busca idealista pelo amor intenso e completo só mais tarde vêm a entender como impossível, devido à ausência do componente principal, o amor próprio. As mudanças de emprego, local de habitação e até mesmo de estilo de vida são igualmente frequentes, como se o único sentimento resultante do que realizavam fosse a insaciável insatisfação. A família nunca esteve com eles; os amigos, mais cedo ou mais tarde, desistem de os tentar moldar à sua imagem, porque finalmente percebem que seria impossível; as drogas e o álcool produzem, em última análise, ressaca; o amor de uma vida inteira nunca apareceu, nem o local ou tempo ideais para criar raízes. Vem a doença prolongada e, muito comummente, o suicídio. O que torna estas histórias verdadeiramente extraordinárias é o facto de, no meio deste emaranhado de vida, terem surgido descobertas essenciais, teorias complexas, quadros de beleza infinita, músicas intemporais, textos e poemas com sentimentos universais, que foram, nada mais nada menos, delírios, fugas da realidade, que nunca teriam sido alcançados no seio de uma história de vida banal, que pela pobreza de desafios, não impele à mudança, criatividade ou flexibilidade. No seu tempo foram muitas vezes considerados loucos, com vidas consequentemente conturbadas. Eu vejo génios com mentes fascinantes das quais podemos tirar uma grande aprendizagem: estas pessoas no meio de desilusões, fraquezas, falhas, frustrações vividas e observadas, conseguiram através da sua obra ir além do que a realidade comportava. Poderiam ter sido mais uns quantos infelizes e conformados, mas, porque ousaram delirar, atingiram a imortalidade. Será caso para dizer… O que uns têm de louco, outros têm de pouco. SALOMÉ SILVA [email protected] tema VINCENT VAN GOGH Pintor pós-impressionista, considerado um dos maiores de todos os tempos. Pioneiro na ligação entre as tendências impressionistas e aspirações modernistas. A sua forma de pintar acompanhava as suas mudanças psicológicas. Falhou em muitos dos aspectos considerados importantes na sua época, não constituiu família, não financiava a sua própria sobrevivência, não mantinha contactos sociais. Preferia comprar materiais de pintura em vez de comida. Podia pintar um quadro por dia. Pensa-se hoje que tinha doença bipolar. Suicidou-se aos 37 anos. A sua fama foi atingida postumamente. JIM MORRISON Vocalista dos Doors, poeta, actor, realizador, inspiração para muitos músicos rock. Considerado pela Rolling Stone um dos melhores 100 cantores de sempre. Coeficiente de Inteligência de 149. Estudava com facilidade filosofia, literatura e psicologia. Infância nómada típica de famílias militares. Pais utilizaram a tradição militar na sua educação. Pai escreveu: devias desistir de qualquer ideia de cantar porque considero que tens uma completa ausência de talento. Levou uma vida boémia com numerosos relacionamentos. Morreu aos 27 anos por overdose. Na sua campa consta a inscrição: fiel ao seu próprio espírito. ISAAC NEWTON Maior matemático do século XVII, precursor do Iluminismo, astrónomo, alquimista, filósofo e teólogo. Responsável por muitas descobertas, destacam-se a lei gravitacional universal e as três leis de Newton, fundamentos da mecânica clássica. Não conheceu o seu pai que faleceu antes do seu nascimento, a mãe voltou a casar, sendo a relação com o padrasto muito precária. Pensa-se que viveu uma infância triste e solitária. Tinha uma personalidade fechada, introspectiva e um temperamento difícil. A mãe retirou-o da escola e obrigou-o a ser agricultor, algo que odiava. Voltou à escola e era um aluno mediano até ter estado envolvido numa briga com um colega, altura em que decidiu tornar-se o melhor aluno. Teve vários “nervous breakdowns” ao longo da sua vida e era conhecido pelas suas reacções muito efusivas e repletas de raiva quando era contrariado. 9 desumbiga tema PÁ CENAS TIPO A NADA O lá. Pá, Pá Cenas Tipo Nada A Ver chega até vós com o intuito puro de vos azucrinar. Pá Cenas Tipo Nada A Ver, no entanto, não chega até vós com o intuito único de vos azucrinar. I sto é tudo muito estranho… Têm de concordar: É ESTRANHO. Por meio da ingestão das palavras de um mestre ancestral da homeopatia, Diumpu de Spencer, regurgito aqui nos vossos timoratos olhos o que tenho para vos dar. Não é amor e não é calor, o que devia desde já deixar-vos de pé atrás. Isto quer fazer com que se sintam mal. Na verdade, se chegarem ao fim disto e sentirem repulsa de vocês mesmos, têm o meu respeito. D a vetusta sabedoria do mestre Diumpu podemos beber lânguidos excertos como: A Ria vai lodosa, mas penetra casta no Oceano (entenda-se a vaginação laminar que daí resulta, com todos os refluxos e divertículos putrefactos inerentes). Pá… BRUTAL MEU!!! Consegues perceber?? Sim! TU! Tu, moço! Sai do lodo moço! Sim! TU! Tu, moça! Não queiras ficar no cais moça! Porra, mas será que está tudo doido?! Sois uns tontos. Brita infinita. Desbridem-se dessa estase abstracional… Entreguem-se à incontinência espiritual… Façam-no, antes que impludam numa intelectasia fétida… < RIVERS OF GORE! RIVERS OF GORE! > Deixem-se jorrar leito fora, fodam o Oceano! Fodam-no bem! Fumem um cigarro com ele e deixem-se ficar abraçados para sempre. Salguem-se para fora dessa insipidez. Fertilizem-se. Expurguem-se de vez desse estado de delírio antes que o delirium se vos entranhe! O fim não está perto mas vocês já não vão para novos… E u só queria mandar esta papaia aqui para o meio. Agora papai-a toda. Os que deste saco viscoso e poroso não conseguem espremer 10 desumbiga VER nada que lhes hidrate a alma, pá… que me perdoem este motim sináptico. Mas ainda assim tenho algo para vocês, a restalha. É algo que nenhum neologismo ou davidema conseguiria sequer expressar, portanto vou tomar a liberdade de inventar (também eu quero fazê-lo, e posso) uma expressão, unicamente para aqui a empregar. Crésmio! O significado guardo para mim (também eu quero fazê-lo, e posso). Freuda-se! Sabe bem. dré bemol tema O DELIRIUM DO TEMPO O tempo é inexistente... Enquanto viviamos no sonho da realidade tudo passou num ápice e a eternidade a efeméride sisbolcheia. Hoje tempo é movimento, repetição de fenómenos, oscilação, e não haver tempo é sonho, sonho-livre. E retrangizendo a auea floria da primavera, a força de crescer, o desejo de morrer, tudo issenta a metamorfose do dinuliar da Vita. O obnubio tempo-espaço, vultuosa centrífuga em espinha de flecha ardente, este império perfeito, esta habilidade que contrapõe o tempo-espaço retardado, inteligente, o tempo pto e não fugo, a força Pta contrabalançada à Fuga, de Bach, centrípta, centriptamente encaixada na dinâmica atemporo guiada pela dança, ora para lá, ora para cá, do velho mundo que não se compreende daqui. Deixa-me correr, associar-me na diluição da esfera mãe, que tudo faz dar à luz, pela luz, o que sou eu? Se me deram à luz do dia, sem misericórdia, sem estula, sem guarida miltubiante, com sentimento inulto, inalcançável força do desassossego, grita em mim, silêncio. Ouve a voz de quem te escuta, que de mim nasce um nascer de certo sentido. Ouve! Se de ti repercute o tempo, toque a toque, tom a tom, cor a rio, a correnteza de tocae impermanência... O tempo positivo, a fuga, o tempo negativo, a Pta. Enquanto um dispersa, o outro vai imprensando. As memórias chegam então a possuir duas funções, sendo a organização interna da informação externa que se perdeu, encontrando-se cá dentro, portanto nada se perde, tudo se transforma, tudo se reitera ciclicamente entre sonho e despedida do sonho, entre realidade e despedida da realidade. É a dança monumental, esperemos que a música nunqu’ acabe!! Mas a asafeméride não pode ser sustentada na condição física, pois que a mente está cansada, de andar para um lado e para outro, e assim também o universo terá que se deitar no seu leito, dormindo até que venha à consistência, uma nova forma de viver! Tudo será como dantes.” David Nascimento Moreira [email protected] 11 desumbiga tema POEMA DELIRANTE Caminhas delirante. E tudo o que se passa à tua volta Não passa de um simples momento Com que deliraste. Tudo é delirante E delirium é tudo. Depende do modo como o sentes E não percepcionas. Todos, por momentos, deliram. De tão pouco escrever Começo a delirar. De tanto delirar Começo a escrever. Francisco Martins do Vale [email protected] 12 desumbiga tema N MINA ANGUELOVA - sasha @ www.minanguelova.blogspot.com DELIRIUM ão. Já não deliro. Já me aconteceu, sim, naqueles dias iniciais, quando o teu cabelo sobre o meu ombro incendiava o peito. Não me apercebi logo da condição que se instalava, apesar das mãos suadas e da ansiedade crescente. Apoderou-se aos poucos de cada pedaço de mim. Pegou-se à ponta dos dedos que te cumprimentavam, à pele que te sentia, aos pés que te seguiam, aos braços que encaixavam em ti. Contagiaste-me. Delirei na febre que me trouxeste, embrulhada na doçura do teu sono. Desconcentrei-me do embalo dos dias por onde sempre seguira. Perdi o raciocínio e o conforto da solidão. Afoguei-me em comoção. Confundi o sono certo com a incerteza da consciência. Perdi, talvez, a consciência. Alucinei com touros enraivecidos, em fúria contra o meu peito gritante. Delirei, sim, na tua ausência, no teu cheiro empestado em mim, para que soubessem que te tocara as mãos. E delirei, de nariz fundo nesse cheiro para que o delírio não terminasse. O sangue revolto eventualmente sossegou. A temperatura foi caindo aos poucos, que o corpo acaba por esfriar a combustão interna. Vagarosamente, recuperei a lucidez e o julgamento con- 13 desumbiga creto das coisas. Consegui, por fim, compor as imagens e ver a composição final. Soube ler-te sem tremer a vista e voltei a andar sem o apoio das sombras. Regressei a mim, com a vista nova e o coração redecorado. E, quem diria, permanecias comigo. Continuavas ali, de mão na minha, de sorriso sereno e olhar genuíno. Sim, tornei-me sã, serena e sóbria. Acabou-se a febre, a angústia, a dúvida dilacerante. Estou bem agora. Mantenho-te a meu lado, de onde sei que não partes, aninho-me e olho em frente. Sigo. Contigo. No conforto de nós. Na certeza e na partilha. Agora tudo é, por fim, real. ANA TERESA PRATA [email protected] 14 desumbiga Robert bruce - max ernst and dorothea tanning david wojnarowicz - silence = Death (movie) janela de expressão Palavras u o abismo u delicada (dead)lines 15 desumbiga janela de expressão PALAVRAS OS IMPOSSÍVEIS SÃO APARENTEMENTE IMPOSSÍVEIS PORQUE DESCONHECEMOS A REAL PROBABILIDADE DE ACONTECEREM ROSA VERMELHA A água suspensa mantém a forma da sua jarra já quebrada. A mesa caiu. O chão desapareceu. Resta a rosa vermelha Que a água não esqueceu. MULTIVERSO “Será que existem coisas que não existem? Mas se existem coisas que não existem Mesmo que não existam A sua “não existência” existe Ou será que tudo existe? Uma coexistência harmoniosa de todas a possibilidades Que se materializam constantemente em paralelo Qualquer acção tem uma miríade de desfechos possíveis e impossíveis] Mas todos eles se sucedem cada um no seu espaço No seu universo O nosso é tão-somente um deles Um do tudo E nesse tudo existirá também o nada Porque o nada é também uma das possibilidades Que poderá já se ter concretizado em pelo menos um dos universos De que adianta sonhar? Se tudo o que sonhamos certamente já existe Só para termos o prazer de contemplar essa realidade? Não nos consola o facto de existir! Queremos ver, tocar e sentir! Viajamos para outra dimensão? Ou lutamos pela concretização?” SIMBIOSE “Suave a indecência inorgânica que se entranha nas visceras do animal que se alimenta das golfadas hemáticas de socorro gritadas num ritmo harmonioso Climax de dor que enche o coração É esse o verdadeiro sabor da vida na sua ultima metamorfose Só não é uma verdadeira simbiose Porque não partilham o mesmo corpo Não posso viver sem morte Porque a imortalidade mata a vida Nem posso morrer sem ter vivido Porque assim não teria nascido” 16 desumbiga mário mi-siCCarosi janela de expressão O ABISMO O abismo, a dor, a sorte a morte, sempre. Imutável como o tempo que passa mas volta sempre à mesma estação onde outrora a folha caiu. O cansaço, o mesmo. O corpo arrastado no mar do deserto, que foge, que cospe no fundo do poço onde nem a água existe mais, sumiu. O sempre-nada que corrói e não deixa ver o resto. O que vem, o que nunca vem. Mas virá. E a força inexistente quer ouvir-se, erguer-se do quase morto que ainda respira, a custo, em esforço. E a paz que demora, e demais, atrasa demais o relógio, sem ponteiros, com números distorcidos de horas ora estáticas, ora fugazes. Mas o que fica são os restos, os pedaços, os fragmentos, as quase-memórias sempre mais cheias de vazio que de outra coisa qualquer. Deveria inverter-se a situação. Fragmento do bem passado não do mal sentido, sempre presente. Imortal. Porque assim é vivido, imortal, perene, forte, o guerreiro que nunca cai, o soldado que não morre. O mal. DANIELA ALVES 17 desumbiga janela de expressão DELICADA A Deusa transforma-se na forma e toma lugar na imúria do tempo. Em mim acende o Deus e me deixa nú, querendo tocar a forma que nunca diz, que nunca usa. E o baloiço de criança entra cheio da alegria… Ah! Deusa, vive-me! Vive-me, que venho trazendo-te ao colo Pela lua e os astros. E sublime quanto de ti trago… Sublime quanto de ti me embaraça ao peito, como colares pesados de jóias. Sou teu sem que tu sejas minha, e dizes-me, dizes-me que é por defesa que não dizes! Se por defesa dissesses, não sabes, que bravas e grandes são o dizer d’ alma! O provir não tem força contra os seres que se amam. 18 E a alma fica, sem esconderijo, pura e liberta, para ser amada, diluída na união, a alma fica livre. david nascimento moreira [email protected] desumbiga janela de expressão (DEAD)LINES V ejo. Paro. Penso. Mas será? Quererá dizer alguma coisa? Será imaginação ou simples devaneio? É mesmo ou apenas o que quero que aconteça? Não. Paro. Penso. Mas não! Não posso pensar! Mas isso é possível…não pensar?! E depois? O que é que vem depois? Paro. E a vida continua, amarga e longa como todos os dias foi. Foi? E atrás do quadro negro vislumbro uma fresta. Paro. Olho. Era tão bonito lá atrás. Mas não podes apanhar um pássaro que fugiu à procura da liberdade. Se ele é astuto procura outro céu, e nunca mais quererá o mesmo. Ninguém o quer. Paro. Fecho a fresta. Escondo o bonito céu. Agora sou só eu, e a vida continua, amarga e longa, desde que o céu escureceu. E o tempo? Dizem eles. Esse nada traz senão 19 desumbiga a revolta, a frustração de vê-lo passar. Tentar agarrar e ver fugir por entre as mãos os grãos de areia, áspera. Ter tempo é esperar, é parar, é pensar. Mas não! Não posso pensar! Não me deixem pensar, não me dêem espaço para libertar memórias antigas. São lágrimas completas de experiências inacabadas. São uma sala vazia outrora recheada de crianças e fotos de família queimadas pelos raios de sol da manhã. São paredes brancas em que nenhum pintor jamais quererá trabalhar. Paro. Penso. E o tempo? Dizem eles. Corro! LUÍSA LOPES 20 desumbiga transmissão oral antony gormley - FIELDS FOR THE BRITISH ISLES entrevista ao professor doutor hugo dos santos 21 desumbiga transmissão oral HUGO DOS SANTOS PROFESSOR DOUTOR BIOGRAFIA: Licenciaturas em Medicina, Psicologia Clínica e Filosofia; Formação em Psicanálise e Psicoterapias; Investigador na FCT 22 desumbiga transmissão ORAL MARIA EMÍLIA PEREIRA - Quando começou o seu interesse por temas como a Neurociência, a Psicologia Clínica, o Espírito, a Filosofia, a Medicina, a Neurologia do Comportamento…? HUGO DOS SANTOS - Desde muito cedo. Aos 12 anos o meu primeiro trabalho, para uma disciplina na escola, tinha o título de cérebros e computadores! Aos 12 anos… ainda tenho lá isso, descobri no outro dia esse trabalho lá no sótão… Depois, como tive uma educação oriental… to, há esse fenómeno de aparecimento do meu Eu, que se torna presente, que durante um período se evadiu. E mesmo quando eu chamo, quando eu tomo auto-consciência de que estou consciente, eu tenho que ter a mesma auto-consciência que na minha auto-consciência eu estou inconsciente. Isto é complexo, como é que eu definiria isto? ele crê nos materiais que aplica. E isto é muito complexo, por isso é que a arte é tão discutida: é uma elaboração, ainda que elevada. Mas o abstraccionismo é de maior radicalização na nossa cultura por causa disso. E ainda que seja uma tentativa de escape a essas concepções que a fecham, ela não deixa de ter esse alicerce de escape. Ele tem um quadro muito engra- Há outra questão muito importante: como é que eu chamo a pessoa ali? Como é que eu me chamo a mim próprio? çado que pinta de cima de um escadote e tem uma tela muito grande. Então vai com uns baldes e atira a tinta para a tela. Vêem-se as bolas dos borrões maiores e depois os salpicos, parece uma explosão… Mesmo que ele faça isso e que durante esse momento em que esteja absorto no que acontece, se o parássemos e perguntássemos: “o que é que está a fazer?”, ele respondia,“Ah! Estou aqui!”. Ele conseguia-se definir, mas esse estado teria de vir a ele, ele está auto-consciente de que está consciente do que está a fazer, ou seja, ele define a consciência como aquilo que sabe o que está a fazer. Define a auto-consciência como quem sabe que sabe o que está a fazer, agora, durante o momento em que MEP – Oriental? HS – tive uma espécie de preceptor particular que foi o meu Mestre desde os meus 4 ou 5 anos de idade. Não é que aos 4 ou 5 anos de idade me interessassem realmente, mas se uma pessoa é educada dentro de uma cultura, naturalmente que com o tempo acaba por desenvolver esse gosto, esse interesse, esse fascínio, para dizer o termo mais correcto. MEP – Mas o interesse despertado era já relativo à Medicina, à Filosofia, ou…? HS – Não, não… Bom eu já fazia as minhas experiências, mas a Filosofia aparece na minha vida já muito tardiamente. Eu já tinha tirado o curso de Medicina e o de Psicologia Clínica, e aquilo continuava a não fazer sentido nenhum… Havia perguntas que ficavam sem respostas. Para ter uma noção, no caminho para cá, vinha na Praça de Espanha no fecho de um pensamento, que trazia desde Azeitão até aqui. E que era: “Então muito bem, eu estou a olhar para uma paisagem e há aquele momento em que a pessoa olha para a paisagem e se abstrai de si própria; então como é que eu teria consciência de que estou consciente e ao mesmo tempo inconsciente da minha Auto-consciência? Como é que nós conseguiríamos definir este estado?” A Auto-consciência parece ser alguma coisa. E depois há outra questão ainda: a consciência não é o Eu estar consciente quando abstraído, mas tenho de chamar a mim esse estado. E a pessoa não se apercebe que não chama quando está abstraída por uma determinada sensação, pois deixa-se invadir por um sentimento, seja ele de vazio, de beleza, ou do que quer que seja… Mas depois, nós chamamos de consciência vigil como foi falado no Debate do Módulo ConsCIÊNCIAS do congresso ENJOY Med ‘10, eu tenho de chamar a mim esse estado de consciência. Eu tenho de dizer “estou aqui!”, mas há esse momen23 desumbiga A arte é também muito interessante nestes temas, a pessoa escapa-se… Magritte, que o Professor Mário Simões usa muito nas suas apresentações, realiza uma pintura intelectual. Ele não pinta só por pintar, pinta no intuito de intelectualizar. Não é um simples abstracto, como um Wassily Kandinsky, por exemplo, que atirava umas coisas para depois ver o que é que a pintura lhe dava. Mas mesmo nessa experiência, eu uma vez li umas coisas sobre Wassily Kandinsky porque queria perceber o abstraccionismo – como é que uma pessoa pinta abstraccionismo? Isto, por causa de uma questão do oriente, vai tudo drenar ao mesmo oceano... Ou seja, ele queria evadir-se das concepções pré-concebidas, queria expressar uma totalidade, mas que não estivesse condenada pelas pré-concepções sociais. Portanto, o traço técnico. Ele queria sim, a expressão de algo que através dele tomasse forma na tela. Isto era o abstraccionismo. Agora, vamos imaginar que nesse momento ele não está consciente. O que é difícil, pois o artista tem de ter noção de uma técnica para a aplicar, mesmo que seja uma técnica sem técnica. Ou seja, que não haja um traço técnico definido, como “A maior parte da informação que normalmente temos acesso (...) tem a ver muito com um estudo superficial das coisas, e não com a realidade concreta das tradições do pensamento oriental ou das medicinas orientais” faz. Ele não só não está consciente do que o que ele está a fazer, porque não consegue definir no mesmo esse momento, em que a auto-consciência está inconsciente da consciência que o faz. 24 desumbiga Lisboa, 2007 papel aguarela tinta permanente sobre 18 x 24 cm david nascimento moreira “the joint between mind and stars” Mafra, fevereiro 2009 oléo sobre tela 40x40 cm Salomé silva “van gogh’s eyes” A r t e S desumbiga A F I N S e 25 transmissão oral E isto, então onde andaríamos nós? Mas depois, vem o tal Self, e de repente, ah! Mas eu estou aqui, e se eu estou aqui posso perguntar à minha consciência. E aparece-me em três dimensões: o Eu, a Auto-consciência e a Consciência. Estas questões no oriente, para fazer agora a ponte, são muito importantes. Essencialmente, a filosofia ou melhor o pensamento que, advém do Budismo Zen que tem que definir o Eu do Não-Eu, ou seja, este Eu, que não é Eu. Que seria, nesta dialéctica entre Eu, o Self, a Auto-consciência e a Consciência, mais propriamente o estado de vigil, não o é. É muito importante entender esta dialéctica ocidental. À medida que os anos avançaram e fui para a escola, nas aulas nunca se falou muito em Consciência. MEP- E existiu alguma influência destas matérias para seguir Medicina? clínica, a filosofia, os cursos que fiz, etc. Mas mais para conhecer o mundo externo, porque a arte de conhecer-me a mim próprio, eu aprendi com os orientais. Fui ao fundo da questão, os orientais é que me ensinaram a conhecer, eles é que têm, digamos, os métodos que faltam à medicina para nos conhecermos. Eles têm uma Auto-Medicina, não tanto uma auto-medicina no sentido de curar, mas têm uma auto-medicina no sentido de se auto-conhecerem, portanto, o caminho do Auto-conhecimento… MEP – E isso envolve o quê? O que é que envolve o Auto-conhecimento? HS – Envolve processos introspectivos, métodos de treino introspectivo, auto-reflexivos, não tão voltados para o exterior. Mas no seguinte sentido, “para conhecer o outro tenho de me conhecer primeiro a mim mesmo”. E toda a tradição oriental é voltada para essa concepção. Para o pormenor que acontece dentro de cada indivíduo, e a sensibilidade que é despertada através dessa experiência de se vivenciar a si mesmo de dentro para fora… MEP – E acha que isso seria uma ferramenta, ou de alguma forma vantajoso, para o profissional de saúde, como o médico, neste caso? HS – Não, não… Na altura o facto de ir para Medicina foi uma linha de percurso, como qualquer outra. Fui para Medicina porque estava-me mais próximo. Quando era miúdo já gostava de andar a abrir os bichinhos, tinha lá um “laboratório” às escondidas. Se calhar já havia uma pré-consciência, mas isso teríamos de admitir aqui outras coisas. Mas a medicina não me aparece como resposta. Na altura não estava preocupado com uma profissão, havia lugar para todos. Aliás, foi o “boom” da gestão, quem era estudioso e queria ter uma carreira de sucesso ia para Gestão, Economia… DAVID NASCIMENTO MOREIRA – A medicina surge então como um percurso, para tentar responder, talvez, a certas questões? HS – Às inquietações... é verdade! E foi sempre assim, a medicina, a psicologia 26 desumbiga HS – Eu diria que teria todo o sentido. Vou-lhe dizer o seguinte, nós temos hoje o crescimento massivo da Bioética, que está muito voltado para os cuidados paliativos, etc. Mas não só, na bioética também temos a relação médico-doente, que é voltada e centrada no cuidar do ser humano, da pessoa. Após o doente, ou antes do doente, temos o ser humano. Isto está a atingir largamente a medicina, através da bioética, não sei se de uma forma superficial, se atingindo mesmo o “coração” dos médicos, a ponto de os sensibilizar para que eles revejam a forma como entendem a medicina. Mas a verdade é que, se houvesse um lugar em que essa tradição oriental, esses métodos orientais de auto-conhecimento pudessem ter lugar e aplicabilidade na medicina, seria essencialmente, num primeiro passo, nesse sentido, porque é o que é emergente. É o que é emergente. Nós temos pouco tempo neste mundo, e talvez a única coisa que nos acrescenta conhecimento real, para mim, e a meu entender, é o contacto e a relação que estabelecemos com o outro. Essa troca, esse “dia-logos”. O Médico ganha uma posição privilegiada, porque lida com o doente quando tem a maior parte das suas barreiras psíquicas em baixo, o que, quer dizer que ele se torna muito mais permeável a esse contacto humano. MEP – Pensamos que tem havido por parte das instituições, um florescer de uma certa consciência desta problemática. Já que na nova reforma curricular, uma das medidas foi implementar a exploração de temas como a relação médico-doente, no sentido de sensibilizar a formação dos novos médicos… HS – Não há de ser fácil, mas lá está, esse auto-conhecimento seria isso: esse despertar de sensibilidades para essa nova consciência. Repare, nós estamos agora nesta evolução tecnológica do mundo Web. Que tornou o mundo pequeno e aproximou outras culturas, por exemplo a cultura oriental. Aproxima, é facto, existe esse contacto, mas deixa-o à superficialidade. E depois, em termos de resultado final, “aquele contacto” que é necessário não existe. Eu não tenho uma noção, hoje, de que as culturas estejam mais próximas, na verdade nunca as vi tão distantes como agora. O que eu acredito que exista é que tem existido um marketing de proximidade e de aproximação intercultural, que é feito essencialmente pela classe política. Mas que na realidade, esse contacto humano e essa partilha humana nunca têm sido verdadeiramente privilegiadas no sentido que deveriam ter. Isto quer dizer que, de alguma forma, aquilo que nos está a “Eu não tenho uma noção, hoje, de que as culturas estejam mais próximas; na verdade nunca as vi tão distantes como agora. O que eu acredito é que tem existido um marketing de proximidade e de aproximação intercultural, que é feito essencialmente pela classe política” chegar dessas tradições ancestrais, como as orientais, incluindo os seus modos de entender a medicina e os seus sistemas médicos… E que nós deveríamos estar abertos a apreender esse conhecimento, pelo menos a estudá-los, para ver até que ponto têm algo que nos possa ser útil para a nossa prática e melhorar significativamente a prática médica ocidental, não penso que isso esteja a ser favorecido por transmissão oral esse contacto. Pelo contrário, eu nunca me senti tão às avenças culturalmente como agora, quando falo com colegas meus, ou vou a conferências no estrangeiro, etc. Sei perfeitamente que aquilo que deveria ser ensinado no âmbito da tradição do pensamento oriental não o é, porque eles os orientais não só não confiam em nós, como não se revêem na nossa forma de entender o mundo. Eles entendem-nos como pessoas, que queremos aprender a um patamar muito superficial das coisas para depois andarmos aqui a fazer um género de “comércio de conhecimento”… O que quer dizer que, a maior parte da informação que normalmente temos acesso, até mesmo por vezes em artigos ou literatura, e por aí a fora, tem a ver muito com um estudo superficial das coisas, e não com a realidade concreta das tradições do pensamento oriental ou das medicinas orientais, como a Medicina Tradicional Chinesa, a Medicina Ayurveda ou a Medicina Tibetana, ou de outras tradições das quais eu não tenho conhecimento, sendo mais recentes, como a Homeopatia… quem jogou futebol, e eu joguei futebol, sabe perfeitamente que dentro do jogo as coisas não são iguais, porque a imagem que temos não é a de cima de um estádio, é sim ao mesmo nível. O jogador quando vê, não vê uma linha directa de passe, com três ou quatro indivíduos ali dispostos tacticamente. E tenta encontrar linhas de passe àquela medida, mas depois está um indivíduo por cima, a quem lhe é muito mais fácil de dizer: “porque é que não passas para ali?”. Aquela vantagem de posicionamento permite-lhe a ele ter um prisma de visão completamente diferente e isso o que é que torna? Torna muito fácil a crítica, e convínhamos que os ocidentais, culturalmente, têm uma grande aptidão para a crítica fácil. Basta ver a nossa classe política, mais uma vez, volto a referir… MEP – Não é uma coisa que possa ser feita facilmente… HS – Não, não. De forma alguma, repare, daí ser muito fácil depois, a crítica. Nós não temos um conhecimento profundo, nem a experienciação, a vivência. Portanto, é o mesmo que os comentadores políticos, e os comentadores de futebol. Pois a visão que temos é apenas do jogo. Mas 27 desumbiga Ou, outra coisa mais engraçada, o conceito de Inteligência Emocional. É daí que Daniel Goleman, que fazia parte da equipa, um homem inteligentíssimo, faz o aproveitamento do estudo e cria o conceito de Inteligência Emocional. Vendeu uns bons milhares de livros, como se isto fosse uma coisa nova. De facto no ocidente é-o, mas, enfim, já havia este conceito e esta noção há muitos anos, no Oriente. Se já havia esta noção e esta consciência há muito tempo no Oriente, então imagine o que eles não saberão eventualmente mais. A riqueza que eles não terão em termos de documentos, sabedoria, de conhecimentos, de técnicas, e por aí a fora, que nós não temos acesso. Das quais cá nos chega apenas a “superficialidade” delas... DNM – Um exemplo disso é que, sabe-se que a Medicina Ayurveda mais tradicional tem sido ensinada de Mestre a Discípulo ao longo das gerações… MEP – Quando diz superficial, portanto, refere-se à aprendizagem de umas técnicas e de algumas coisas e não realmente de uma interiorização, de uma profundidade do saber…? HS – Exactamente. O que nós temos são culturas e temos primeiro que abater essas barreiras culturais, os estereótipos étnicos para que depois de alguma forma sermos “aceites e integrados” por essa cultura, para que eles nos possam ensinar e connosco partilhar o seu “saber”. E tenho sérias dúvidas que uma pessoa com a visão como nós temos, consiga assimilar a totalidade de uma técnica que tem como fundo de tradição aquela cultura. Portanto, é preciso uma pessoa aprender a cultura, para depois poder assimilar a técnica e depois poder fazer essa adaptação com consciência plena desse processo de transladação desde a cultura oriental para a cultura ocidental, e isto eu diria que é deveras complexo… discurso, mas do discurso ao ensinar é uma coisa diferente. Eu por acaso estava-me a lembrar de uma coisa que aconteceu na conferência, para cimentar mais esta ideia. Eu referenciei um estudo que aparece num livro editado pela editora relógio de água que tem a ver com o espírito e a ciência. Um estudo feito durante 20 anos na Índia e no Tibete, um estudo seríssimo, feito por uma equipa do Mind Body Medical Institute at Harvard Medical School, e do Department of Social Relations at Harvard University, do qual surgiram conceitos como a Inteligencia Emocional, de Daniel Goleman. Contudo, eles apenas colocaram umas notas e breves ilações sobre o que é que o estudo tinha sido, e aí está, os tibetanos não permitiram a divulgação de mais, porque assim o entenderam, a questão aqui seria, o de porquê, permitirem fazer um estudo e depois não o deixar acessível. Já nos dá que pensar no modo como somos entendidos enquanto cultura ocidental. Repare, Dalai Lama consegue ter este HS – Exactamente… Primeiro porque nós nem sequer respeitamos essa tradição, o que é muito engraçado. A tradição do ensino Mestre-Discípulo é muito importante no Oriente. Por acaso, recebi até uma crítica do Professor Mário Simões, entenda-se bastante construtiva e de quem nos quer bem, quando foi o congresso ENJOY Med ‘10, devido à referência presente dos meus Mestres; e fez-me essa correcção, ainda que o Professor Mário Simões o entenda, admitiu que a maioria das pessoas não o entenderia dessa mesma forma; nós não estamos preparados para esse tipo de discurso. Note-se que eu tive sempre na pessoa do Professor Mário Simões a minha maior influência para estas áreas. No oriente fui educado que a referência aos meus Mestres não me menoriza, muito pelo contrário, essa constante reverência é parte da minha genealogia intelectual o que em nada se opõe a um pensamento próprio e independente. Eu não tenho que os diminuir ou que os retirar para afirmar a individualidade e originalidade do meu pensamento. Mesmo que eu tome outro caminho, esse sentido de reverência deve estar presente, pois só me é permitido andar porque houve alguém que me abriu caminho para eu possa ter caminhado até ali. Se depois escolhi fazer o meu caminho e construir o meu próprio pensamento isso é no entendimento oriental o próprio processo de realização… Sir Isaac Newton disse uma vez, “Se vi mais transmissão oral Como é que é possível que em tão pouco tempo, numa geração apenas? E e de repente sabem tudo… como nós vemos nos filmes, em que enfiam uma coisa na cabeça, tipo como acontece no Matrix, e uma pessoa quando acorda já sabe tudo, já sabe Karaté, tudo, o homem voa e pronto… isto não me parece que seja alguma coisa que mereça respeito e acima de tudo que possa ser entendido e respeitado por quem é dono original dessas tradições como os orientais. MEP – A noção que eu tenho é que há um respeito muito grande pelo tempo no oriente, o tempo natural, o tempo próprio das coisas, etc., aqui não… parece haver um culto da rapidez, quanto mais rápido melhor, sem haver a preocupação de viver esse tempo… HS – É verdade, aqui é um consumo, é um consumo. DNM – Portanto, não interessa o caminho, mas a meta, para os ocidentais… longe, foi porque estava sobre os ombros de gigantes.”, e portanto, as pessoas têm muita tendência de se esquecerem disto. MEP – Aqui no ocidente não há esse culto à sabedoria das pessoas mais velhas… HS – Aqui há um culto à novidade, mas só uma pessoa pouco inteligente é que acreditaria na questão de ser diferente… MEP – Acha que há alguma coisa na Cultura Ocidental que se pudesse dar, ou que enriquecesse a cultura Oriental? HS – Sim, sem dúvida nenhuma. O meu Mestre ensinou-me os nomes Japoneses, mas ensinou-me a dizê-los em Português. Uma das coisas que ele disse era que os portugueses tinham coisas extraordinárias, como por exemplo, a capacidade e a abertura que temos para aprendermos as coisas deles. O que eu acho que a cultura ocidental pode trazer à cultura oriental, é exactamente esta “energia”, quando a cultura oriental está a começar a perder fé na sua própria tradição. É como se fosse a “injecção de uma energia”, para validar aquilo que até então tem sido. Outra coisa é o aproveitamento para credibilizar as nossas atitudes e fazer uma espécie de toque de consciências, de que a ideia que eles retêm há muito tempo da cultura ocidental, afinal não é a do comercialismo e 28 desumbiga a da destrutibilidade. Muito pelo contrário, é a cultura ocidental que eventualmente pode validar, fazer um aproveitamento daquilo que já existe. Se conseguirmos ter a capacidade para retirarmos o que neles de melhor existe, incentivá-los, energizá-los ao ponto de quererem partilharem isso connosco. Para que nós possamos depois, à posteriori, fazer uma aplicação útil disso, validando os seus métodos ancestrais e os antepassados que desenvolveram essas técnicas. Depois o que tem feito e que não o deveria fazer, é fazer esse aproveitamento muito superficial e vazio da cultura Oriental. Repare, eu lembro-me na minha altura, em 98/99, que havia uma ou outra pessoa que sabia estas matérias, relativamente as tradições orientais e ao pensamento oriental, por exemplo no que as artes marciais dizem respeito como o Tai Chi. De repente dá-se um “boom!”, eu vejo pessoas hoje em dia a tratar destes temas, que muito pouco ou nada terão estudado, que pouco dominam; porque dominar uma técnica oriental, implica uma dedicação brutal. DNM – Implica fazer com que a técnica seja parte do nosso organismo? HS – Dedicação, exactamente… e isso é uma experiência pessoal não só do nosso corpo, mas com o nosso corpo, que leva o seu tempo e precisa de ser orientada. HS – Exactamente, ali não, é o domínio. Eu tentei falar na conferência, na questão da intensidade do tempo, como é que se dá a consciência do tempo? Como é que a consciência tem noção do tempo vivenciado? Falamos da consciência, mas não da experiência da consciência… Repare, é a consciência que tem noção do tempo vivenciado, ou é a auto-consciência de estarmos a vivenciar conscientemente o tempo? A unidade de tempo vivenciada, que nos dá essa noção real da unidade ou irreal, no caso, como eu apresentei nos estudos dos estados de intensidade psicológica, de Bergson. Ele não definia a unidade de tempo, o Bergson falava na intensidade dos estados psicológicos, é uma coisa diferente… MEP – A vivência não seria uma coisa padronizada, resultante das nossas vivências, crescimento, educação…? HS – Mas nós não temos isso ainda definido, em termos de cartografia da citoarquitectura cerebral. Não conseguimos definir com eficiência, se uma unidade de tempo tem ou não uma correspondência em termos de funcionalidade cerebral. O interessante, para podermos dizer isso seria dizer “muito bem, numa determinada actividade, a correspondência em termos de circuito neuronal é esta, e a esta função, imagine com a ajuda de um SPECT, conseguíamos ter uma ideia da localização de experienciação”, e não há experiên- transmissão oral cias dessa ordem, teríamos de as fazer… Porque é interessante, e isso seria mais importante ainda devido à questão que eu falei na conferência… A Neurociência é feita e dirigida a uma classe, a uma cultura, como se houvesse prevalência… Repare, como é que o tempo é vivênciado…? DNM – Por exemplo, nas pessoas daquelas tribos da Amazónia, ou de África, que vivem o seu tempo de forma muito própria…? HS – Nessas tribos, onde não há relógio, não há noção de tempo da mesma forma que nós temos. E verificarmos isso em termos neurológicos seria interessantíssimo e não me refiro á identificação da área cerebral responsável pela contabilidade da unidade de tempo, mas sim á subjectividade associada á experiencia do tempo vivido mediante a ecleticidade étnica… Quando se faz ciência “caseira”, que é o que grosso modo tendemos a fazer, uma ciência a seu modo provinciana, do tipo, “vamos aferir um estudo a oitenta pessoas, ou noventa pessoas, ao invés de uma amostra de mil pessoas, que já é uma amostra significativa para um estudo a nível nacional, mas que ainda assim muito pouco representativa da população mundial e de toda a sua diferenciação étnica e que nem por isso nos coibimos de aferirmos que dessas mil pessoas se possa dar o caso de essas mil se fazerem corresponder ao resto da população mundial… isto não deixa de ser curioso… HS – Quando a ciência se pensa a si própria e se define a si própria com exactidão, a partir de unidades desta ordem, há algum erro aqui que se está a passar. Nós anulamos critérios de ambiente, sendo que muitos estudos dizem que o ambiente influencia, e repare como a ciência se pode enganar a si mesma… Quando tem estudos de gémeos monozigóticos, que são usualmente usados em medicina, por exemplo, lembro-me de um estudo de duas gémeas. Uma vai para a cidade, outra fica a viver no campo, a primeira morre de cancro e a segunda não. Se nós não tivéssemos consciência destas situações, até seria entendível que nós aferíssemos resultados a partir de amostras dessa ordem. Mas, como a ciência é feita de palavra e a palavra é feita no contexto, e o contexto define uma população e um interlocutor… E isto é a ciência médica, é o resultado de uma conferência… Mediante a audibilidade daquilo que é dito, se soa bem ou mal, de acordo com 29 desumbiga as nossas concepções pessoais ou não... O problema, é que se tenta definir em poucos minutos, pensamentos da ordem de uma vida, e isso é impossível. Agora repare, e o mais interessante é quando nós criamos cientistas que pensam deste modo, estão ali fechados naquele laboratório, estudam 10 cães… logo, se existiam variáveis…E foi isto que eu tentei alertar na conferência do ENJOY Med, é que não fechemos as portas a outras culturas, que não façamos uma ciência de casa, com ratinhos… A questão aqui essencial é esta, quando nós não temos noção desta dimensão deixa-me a mim preocupado. Uma ciência que é uma espécie de economato, onde temos de fazer uma gestão logística do que temos e do que não temos, para fazermos uma boa gestão da casa… Mas é só aqui, com o produto daqui, … um economato, “A tradição do estatuto do médico em Portugal está bastante cimentada e dificilmente se desmonta daqui. Não sei até que ponto inviabiliza a abertura para determinado tipo de campos de conhecimento que poderiam estar aqui mesmo ao nosso lado” uma boa gestaozita e tal, para aquilo funcionar… Isto não é ciência. A ciência, sobretudo a ciência médica, tem de considerar variavéis de uma outra ordem, eu não sei ainda como é que poderiam ser consideradas, mas hoje, se alguma coisa a internet poderia servir, seria isso, essa intercomunicação, em termos de estudos de maior amplitude com colaborações de entendimento. Isso é trabalhar em prol da comunidade humana, do mundo. E isso seria fazer uma ciência séria que atenda ao homem enquanto ser e não à sua dimensão contextual ainda que essa seja uma prioridade da medicina. MEP – A ciência que é feita é muito centrada na Europa e nos Estados Unidos, e para essas populações, está muito fechada… HS – É a cultura ocidental e os mercados económicos…eles tem e talvez terão sempre a ultima palavra nesta para não dizer em tudo… MEP – E como surge o interesse pela Psicologia Clínica e pela Filosofia? HS – Então, é isso mesmo, é essa inquietação constante de perceber. Repare, a medicina dá-me uma parte de cariz mais anátomo-fisiológico eu diria: eu conheço o cérebro, o coração, o sangue que circula e alimenta os músculos, o corpo, pronto… E começam a surgir aquelas questões… Começamos a ver que existem patologias que são da cabeça e realmente se manifestam no corpo (psicossomática), e aquelas patologias que são puramente emocionais. Que não acontecem no corpo, não há registo, não há nenhum tipo de exame que me possa dar qualquer indicação. Mas a pessoa continua em sofrimento, e isto deixa-me aqui alguma coisa de preocupação, essa inquietação, do que é o homem, nessa complexidade, leva-me à psicologia… Continuava a não responder, porque no meu caso, a psicologia era clínica, e alguns modelos curriculares hoje em dia são muito próximos já à medicina. E não correspondeu, não adiantou muito. Portanto, fui para um ramo da Filosofia, que é o da Filosofia da Mente… MEP – Que autores leu e que o marcaram? HS – John Searle é um filósofo da mente, é talvez um dos grandes precursores da filosofia da mente; Merleau-Ponty, Daniel C. Dennet; Ludwig Wittgenstein, e já têm aqui grandes referências. Temos também o casal Churchland, Paul Churchland, mas ela é mais conhecida, Patricia Churchland, que dentro das Neurociências trabalham conceitos como a Neurofilosofia, e depois têm outros ainda que não só ligados à filosofia, mas ainda assim com visões de extremo interesse, que não são propriamente filósofos, mas são autores que abordam e trabalham questões da filosofia da mente, como por exemplo C. Jung, Pierre Buser, Karl Popper, que no caso é filósofo e John Eccles. Depois têm os mais tradicionais, como John Locke, David Hume ou Zubiri. Há ainda outros autores que não fazendo propriamente parte da filosofia da mente, têm o seu trabalho dirigido a grandes aspectos da mente ainda que inseridos ou em correntes filosóficas ou na Psicologia, e que não devem deixar de ser estudados, como os autores da Psicanálise, Fenomenologia, Existencialismo, etc. MEP – E agora para terminar, nas últimas décadas, de que forma é que tem visto a relação entre a Ciência e a Religião? E o que acha que vai ocorrer no futuro, aproximação ou afastamento? transmissão oral HS – Eu tenho esperança de que colaborem, mas sinto profundamente que ainda tem as costas às avenças. Distinguiríamos aqui duas dimensões. A dimensão possível, e essa dimensão possível está ao nível da política. Estamos a falar da colaboração de instituições que face à realidade da tradição religiosa de um país e ao poder institucional que a Igreja tem, obriguem a que determinadas instituições, como Hospitais, Faculdades, etc., colaborem. Isto é a dimensão possível da colaboração. E face à legislação, há uma obrigatoriedade dessa mesma colaboração em determinados aspectos que, digamos, são terrenos cinzentos, e têm de colaborar. bilidade para a ciência não é valorizada, nem sequer é tida como, eventualmente, um objecto possível de estudo. Nesta impossibilidade, agarramos-nos à tradição conceptual: conceitos como espírito, alma, consciência, e outros que tais. E fazemos depois traduções/adaptações do seu significado ou o que isso poderia ter em termos históricos em determinados autores, fazemos uma adaptação, fazemos traduções, e depois fazemos uma espécie de grandes revelações que na verdade não acrescentam muito mais do que o que já temos e sabemos… Eu penso que há aqui, essencialmente, a ausência de uma boa vontade. Estamos a falar aqui de duas instituições de grande poder. Repare, se fizéssemos um estudo, puramente estatístico, de aferir quantos médicos são católicos, seria interessante. Como é que o exercício da medicina se faz através do método científico, e ao mesmo tempo, acreditamos em Deus? Como é que essa convivência se dá dentro da pessoa? Como é que ela sequer é possível? MEP – Se calhar não é tão interiorizada quanto isso… HS – Ora aí está, mas ainda assim, teríamos de dimensionar esse sentido religioso. Agora, na dimensão do impossível, designemos assim, nós teríamos os pontos radicais. E a Ciência e a Religião não têm dado grandes passos. Elas têm fingido através da criação de léxico comum, como Neuroteologia, Neuroética, Bioética, Neurociência do Espírito, e uma espécie de miscelânea de termos conceptuais. Que tentam de alguma forma traduzir realidades que causaram mais confusão do que trouxeram discernimento, e têm andado ali, mas no cerne da questão ainda continuam às avessas. MEP – Ainda existe um desconforto, um tabu?... HS – Vamos lá ver, a medicina não está aberta, e vamos admitir que a ciência se distinguiu da religião e da tradição religiosa exactamente por ter um método e por em causa tudo. A Fé lida com uma dimensão da existência humana que não tem palpabilidade, e a ausência de palpa30 desumbiga MEP – Poderia colocar aqui outra questão. Sabemos que as pessoas com doenças que não são curadas na nossa usual medicina, acabam por recorrer a outros lugares. Algumas acabam por ter uma melhoria, outras não… Mas a verdade é que os médicos são conhecedores desta realidade e não existe um passo por parte da comunidade médica para tentar perceber como é que isto acontece… E mesmo médicos quando na mesma situação, acabam por recorrer aos mesmos locais, para os seus problemas, isto existe. Ao existir essa ausência de solução para determinadas situações, o que se faz é permanecer naquilo que se sabe, e pronto... HS – Na dimensão do possível! MEP – Sim… HS – Há aceitação institucional, mas em dimensões diferentes. Quando passamos à questão real, passamos à dimensão do impossível. A dimensão do possível é, “Eu não interfiro, assisto, não digo que é, não dou opinião, mantenho-me na minha instituição…, respeito”. Mas não me manifesto, porque para isso teríamos que ir à dimensão do impossível, que é admitirmos que pode haver outras respostas que não aquelas que a medicina possa dar. E isso deixa o médico desconfortável… Isto é o que é real. MEP – Estamos a falar de um estatuto institucional que foi adquirido pela classe médica… HS – Ora aí está, a realidade institucional deixa muito aquém as possibilidades de resposta que seriam necessárias, e com boa vontade nós poderíamos aceder, mas para isso teremos que descer desse patamar institucional. Devemos manter o espírito científico. O médico forma-se, perde o espírito científico e passa a ter um espírito mais clínico, e é bom que se note que ele é necessário. Instituições como estes Hospitais não poderiam existir e dar resposta a esta premente necessidade de cuidados médicos, como um país precisa, como o nosso, se não tivesse clínicos altamente vocacionados para a clínica, como é óbvio. Mas é dever daqueles que, com formação médica, e médicos de formação, que estão na investigação, terem essa abertura. Quando descemos de tais patamares, a ideia geral que existe é que perdemos posição, e isto é um valor da tradição. A tradição do estatuto do médico em Portugal está bastante cimentada, é bastante forte, e dificilmente se desmonta daqui. E isso eu não sei até que ponto, não posso afirmá-lo, inviabiliza a abertura para determinado tipo de campos de conhecimento, que poderiam estar aqui mesmo ao nosso lado, mas admito que sim, admito que possa ser um sério entrave, a essa facilidade de acesso. Deveria de haver uma maior boa vontade por parte da classe médica, e dos investigadores, ligados às ciências biomédicas, etc. Porque eventualmente, trata-se em última instância, e em última questão, de responder à necessidade humana de se tratar, seja em que dimensão esse sofrimento aconteça, seja ele patológico de cariz orgânico, ou de cariz “espiritual”, eu não sei até que ponto, não o posso afirmar, lá está a minha própria limitação. MEP/DNM – Muito obrigado. MARIA EMÍLIA PEREIRA DAVID NASCIMENTO MOREIRA 31 desumbiga 32 desumbiga babilónia marco alcazar anselm kiefer - blood on paper O LADO DE DENTRO DA LOUCURA u O CINEMA NÃO SÃO FILMES... 33 desumbiga babilónia o lado de da loucura Falei e ninguém ouviu. Gritei e ninguém sentiu. Pus-me a cantar no meio da rua! Ninguém parou. Tentei falar… Mas a voz já não falou. Mudei de sítio, Mudei de gente. A mesma coisa, A mesma mente. Tentei. Respirei. Vivi… Ultrapassei. Novo evento. Esbracejei! Risos, piadas, Comentários, Julgamentos. Ajuda em raros momentos. Desisti. Abri os braços… E deixei-me levar pelo vento. Fui feliz por um momento. 34 desumbiga “ REFLEXÕES SOBRE A PEÇA “um Um eléctrico chamado desejo” é uma peça de teatro escrita em 1947, pelo dramaturgo Tennessee Williams, que recebeu o Prémio Pulitzer por esta obra. A peça estreou na Broadway em Dezembro de 1947 e permaneceu em cena durante dois anos no Ethel Barymore Theatre, encenada por Elia Kazan, com Marlon Brando, Jessica Tandy, Kim Hunter e Karl Malden nos principais papéis. Na produção que estreou em Londres, em 1949, encenada por Laurence Olivier, os principais papéis eram interpretados por Bonar Colleano, Vivien Leigh (na imagem) e Renee Asherson. Esta peça foi recentemente, e de forma brilhante, encenada por Diogo Infante, no Teatro D. Maria II, com Alexandra Lencastre a representar o papel principal com uma postura muito forte e consistente. A peça apresenta-nos como personagem principal Blanche DuBois, uma mulher sulista com a idade a pesar no rosto, mas ainda atraente, com características de personalidade borderline, que ostenta uma armadura de supostos bons princípios e cultura, com um autêntico delírio de grandeza, sendo ainda extremamente manipuladora no relacionamento com os outros. Tudo isto para ocultar, dos outros e de si própria, a realidade que vive: uma dependência alcoólica, uma total ruína financeira e social, uma extrema necessidade de aceitação e de ser amada, sentimentos de perda no passado mal geridos. Blanche visita a sua irmã Stella em New Orleans, que vive com o marido Stanley Kowalski, membro da classe trabalhadora industrial. A irmã recebe-a com muita reserva, temendo a reacção do marido à personalidade demasiado floreada e enfeitada de Blanche. Blanche diz à irmã que perderam a propriedade que a família possuía no sul e que se encontra sem trabalhar como professora, com permissão do seu supervisor, devido às suas crises nervosas. Na realidade tinha sido despedida, após ter-se relacionado com um aluno, não tendo sido este o único relacionamento problemático que teve no passado. Na realidade, Blanche fora casada com um homem que amava muito, as que teve relações extra-conjugais homossexuais, tendo depois cometido suicídio. Este evento marcou-a demasiado, arrastando-a para um mundo de não compreensão, onde as fantasias e ilusões coexistem lado a lado com a realidade. A chegada de Blanche perturba a relação entre a irmã e o marido, baseada em instintos basicamente animalescos. Stella preocupada com a irmã, aceita acolhê-la em casa, entrando em colisão com o marido que depressa se informa sobre os factos do passado de Blanche. Stanley confronta Blanche, de uma forma violenta e cruel, com todos os acontecimentos que ela tentava esquecer há anos, afirmando que as diferenças de carácter que possui serão prejudiciais para os que a rodeiam, independentemente do local que ela escolher para viver. Depois de abusar física e psicologicamente dela, provocando em Blanche uma entrega final à insanidade, entrega-a a uma instituição, não tendo qualquer oposição por parte da irmã. Blanche termina dizendo ao Médico que a conduz: “Sempre dependi da bondade de estranhos”. Quando vi esta peça, apercebi-me que ela pode ser encarada com uma representação da forma como a sociedade vê e trata o doente mental, bem como as consequências que advêm desse comportamento. Blanche representa um ser humano, potencialmente um de nós, que perante um evento traumatizante e não vivenciado e ultrapassado de forma saudável, desenvolve comportamentos e formas de pensar patológicos e disfuncionais, que são no fundo estratégias adaptativas criadas para lidar com a situação em que se encontra. Ora vejamos, perante o sentimento de abandono e de baixa auto-estima, a personagem desenvolve uma atitude sedutora, vivendo relacionamentos impossíveis e numerosos. Perante uma dependência alcoólica e total incapacidade para trabalhar babilónia e ser independente, desenvolve delírios de grandeza, auto-proclamando-se como exemplo de virtude e boa educação, agindo como se nada se adequasse aos seus elevados padrões. Todas estas técnicas de fuga à realidade, apresentam-se como bastante primitivas e até mesmo infantis, mas são a única forma encontrada no contexto em que se insere e sem qualquer ajuda exterior no sentido de contenção, de compreensão. Poderíamos pensar que pela sua atitude manipuladora de pessoas e factos, Blanche seria eventualmente perigosa para os que a rodeiam, mas o que acabamos por verificar é que ela é completamente inofensiva, pois a sua fragilidade e imaturidade impedem-na de reacções agressivas, até mesmo quando confrontada de forma cruel e abusada por Stanley. Stella e Stanley podem representar duas atitudes bastantes transversais na sociedade perante o doente mental. No primeiro caso, verifica-se uma aparente aceitação da situação, mas com uma atitude demasiado passiva, sem qualquer envolvimento profundo ou uma busca pela verdadeira razão do comportamento patológico, de forma a ajudar a ultrapassá-lo; na realidade é a postura mais fácil de adoptar, pois não implica qualquer tipo de desgaste ao interveniente, é um “deixa andar”. No segundo temos uma atitude recriminatória, abusiva e de assumida superioridade perante uma pessoa que se encontra fragilizada e sem possibilidade de defesa. Stanley age para com Blanche como se esta fosse uma ameaça para a sociedade, quando na realidade é ele o agente que lesa. Não foi assim há tanto tempo que os doentes mentais eram encerrados em instituições como animais, com a justificação de que poderiam ser prejudiciais para a sociedade, quando era esta que os prejudicava, deixando-os entregues aos seus delírios sem qualquer intuito de os aceitar e promover a sua integração, 35 desumbiga com o objectivo de melhorar a vivência dos seus problemas, através do diálogo e partilha com os que os rodeiam. Felizmente, verificou-se que o único resultado de uma atitude recriminatória, rígida e agressiva era o agravar permanente de um comportamento patológico que poderia ser ultrapassado. Os doentes mentais são hoje tratados maioritariamente em hospitais de dia, regressando a casa, tentando construir o seu próprio caminho e autonomia. Ainda assim confrontam-se diariamente com incompreensão, com julgamentos ou então com atitudes passivas que em nada lhes são úteis. Acabam por vezes por desistir, abrindo os braços aos delírios e ilusões de forma definitiva, por não visualizarem outra forma de funcionarem e serem felizes. Usando as palavras de Blanche, restam-lhes os Médicos, estranhos dos quais esperam ansiosamente uma atitude bondosa e acolhedora, numa última tentativa de viverem a realidade em que se inserem. A minha questão é: estamos nós preparados para os acolher, com as suas particularidades e mentes complexas, que nos desafiam diariamente a sermos criativos, flexíveis e melhores seres humanos? Será que compreendemos que qualquer um de nós pode um dia ser uma Blanche? Será que gostaríamos de ser tratados como Stanley a tratou? Deixo estas questões para que possamos reflectir, coma esperança que, depois do longo caminho percorrido, um caminho igualmente longo surja, em direcção à aceitação de todos os seres humanos como iguais. salomé Silva [email protected] babilónia 36 desumbiga babilónia o cinema não são filmes... “ Chegamos em cima da hora, ainda conseguimos bilhetes. Entramos apressados, a sala já está às escuras e já passam os primeiros trailers. Curvamo-nos de imediato para não tapar as vistas a ninguém e a fala dá lugar a sussuros. Finalmente damos com o lugar 14 da fila L e, já sentados, despimos o casaco e pousamos no chão o tal chapéu de chuva de que mais tarde nos acabaremos por esquecer. Às vezes lembramo-nos de pôr o telemóvel no silêncio, outras vezes não. Não importa. E ali vamos estar... durante 90 e tantos minutos a ver contar uma história. Não viemos para apenas “espreitar” (isso fazemos cada dia, com as vidas dos nossos vizinhos e colegas), aqui queremos muito mais. Nós viemos para ver. Satisfazer o nosso desejo voyerista sempre ansioso para saber o que está por detrás daquela janela, ou que estão a fazer dentro daquela casa. Eventualmente, acabaremos por corar, esboçar sorrisos, encolher-nos na cadeira...e se o filme merecer, mesmo mesmo, vertemos umas lágrimas ou 37 desumbiga soltamos umas gargalhadas. Inicialmente assustamo-nos. Estará alguém a ver-nos? Mas depois percebemos que a sala é escura e que ninguém sabe que fomos nós... Isso tranquiliza-nos e voltamos ao filme. Os 90 e tal minutos chegam ao fim. Não ficamos para os créditos (nunca vimos qualquer interesse nos créditos). Depois de nos espreguiçarmos e trocarmos um rectórico “gostaste?”, abandonamos a sala. Já está. Usámos este filme para relaxar. Provavelmente nunca o voltaremos a ver. Foi prazeroso. Já podemos ir para casa. “ Esta é a relação de muitas pessoas com o Cinema. Vamos ao Cinema na esperança de trazer para a nossa vida, ainda que por um par de horas, a acção que escasseia na nossa vida ou o drama que de certo modo serve para nos relembrar o quão privilegiados somos. Outras vezes só queremos rir. Na nossa mente, é um entre- tenimento que usamos sem pudor, para estabilizar ansiedades internas ou alimentar estados de humor. Contudo, não deixa de ser interessante procurar um maior distanciamento da situação para perceber que quiçá somos nós próprios, enquanto espectadores, que estamos a ser usados por uma indústria (cinematográfica) manipuladora. São realizadores, guionistas, actores e atrizes, técnicos de som e de fotografia, produtores, estúdios de cinema...que durante aqueles largos minutos decidem o que vamos sentir. Nada é filmado/ contado ao acaso. A lendária cena do chuveiro, do filme “Psycho” de Hitchcock, por exemplo. Não poderia, nos dias de hoje, causar sequer a quarta parte do medo e ansiedade, despoletados em 1960 quando estreou. Os efeitos especiais estão ultrapassados, já não assustam ninguém. Passou à categoria de filme de culto. A música de fundo desta cena, no entanto, mantém-se eficaz e aplicada de forma apropiada a um filme actual, tem poder para nos arrepiar. O Cinema não se resume, portanto, a um filme. É uma experiência sensorial complexa que envolve sons, imagem, sentimentos e pensamentos. O novo Clube de Cinema da Faculdade de Medicina de Lisboa (FML), o CêCê (CC), procura desmontar o Cinema. De uma forma amadora mas muito dedicada e entusiasta, juntamo-nos (membros do clube) quinzenalmente, na sala multiusos da FML, para participar (e não meramente assisitir) na complexa experiência que é o cinema. Corremos vários estilos e géneros, dentro do Cinema Indie-Alternativo e depois de viver duas horas de um filme mastigamo-lo em conjunto. Debatemos enredos, técnicas e performances artísticas. Pomos em causa as visões de alguns realizadores e ou evidenciamos paralelismos com a sociedade actual. Opinamos. Opinamos muito. E só depois vamos para casa. Tiago Miranda Vítor Magno Alexandre Freitas 38 desumbiga Estórias clínicas cornelia PARKER - Marks made by freud, subconsciously (MACROphotograph of freud’s a vida é dura para quem é mole u a doença u ESTÓRIAS CLÍNICAS 39 desumbiga estórias clínicas A vida é texto escrito e publicado no blog dura Consciente, Orientada e Colaborante para quem é http://conscienteorientadaecolaborante.blogspot.com mole durante uma estadia na Guiné no âmbito de uma missão de voluntariado da AMI O dia começou soalheiro numa tabanca chamada “Madina” e a D. Domingas foi ao mato buscar um legume para o almoço, nada de especial até aqui, a vida corria sem percalços, um dia normal na vida de uma mulher Guineense! Mas, e há sempre um mas… Há 4 espécies de cobras venenosas nesta região! Há muitas cobras na época das chuvas! Há mato! Há azar na vida… Há um pé que é mordido por uma cobra! Pede-se ajuda… liga-se para a AMI! Vamos a correr. A viagem de jipe parece interminável, tentamos definir um 40 desumbiga plano de acção para quando chegarmos ao destino não perdermos tempo. Chegamos a Madina, toda a aldeia está em alvoroço, há olhos cheios de esperança, talvez “os brancos” tragam a solução… A senhora vem meio inconsciente, é trazida por 4 homens até nós, improvisa-se uma sala de cuidados intensivos na parte de trás do jipe. Há gente por todo o lado! Avaliam-se os sinais vitais… o pulso mal se sente! Entrou em choque! Ouvimos o batimento cardíaco ir embora… e levar com ele a esperança de ter sido uma cobra não venenosa. Não há nada a fazer! Fecham-se as pálpebras da senhora com respeito e olha-se para baixo… também não há nada a dizer! Inevitável! Toda a aldeia rompe em choro e ranger de dentes. O sofrimento, nesta terra, faz barulho, atira-se para o chão, não tem vergonha de chorar ou de perder a postura, por aqui borrar a maquilhagem não parece importar a quem perdeu “uma Domingas”. Agora, é preciso levar o corpo para casa, o funeral ou o “toca-choro” como lhe chamam vai decorrer nos próximos dois dias. O jipe leva o corpo e a família que lá coube… eu vou a pé com outro membro da equipa! Caminhamos 20 minutos em silêncio! Nunca o silêncio foi tão confortável e apaziguador! Pelo caminho ouvem-se gritos de desespero, emoções sem filtro, toda a comunidade corre para consolar a família. À chegada resta-nos dizer “fizemos o que pudemos”… A viagem para casa é também uma reflexão sobre a nossa insuficiência, passamos a vida a acreditar em super heróis, habituámo-nos a esperar que ao último minuto a princesa seja salva e o dragão morto… mas a realidade é outra! A vida é outra… é dura. Não há efeitos especiais, não há desenlaces de última hora. Não há heróis. A vida é dura e nós somos moles… molinhos, fazemos o nosso melhor, esforçamo-nos, lutamos, estudamos… mas a nossa insuficiência é avassaladora! Saber isto, ter consciência da nossa “moleza” ou da nossa consistência pode, por um lado, tornar-se libertador… é bom saber que não controlamos tudo, que nem tudo depende do nosso esforço! A humildade aproxima-se de formas estranhas… BIANCA BRANCO (TEXTO E FOTOGRAFIAS) estórias clínicas 41 desumbiga estórias clínicas DOENÇA A doença. A doença que suspeitamos não ter, mas está lá, as dores de uma artrite ganha por pesos e pesos levantados, voluntariamente, quando o Mundo se vira e diz “descansa!” Não descansas, e ainda insistes, numa fulgura que só te agrava o manejo das articulações, doridas e cansadas de suportar tudo o que os ombros já deixaram escorrer para as outras divisões corporais. A solidão do gesto diário, repetido até mais não por uma força que não sabes de onde vem, mas que a vivacidade da persistência teima em não te deixar parar. Mas parar tem de ser. Ou a doença não pára, não regride, progride até te imobilizar, até consumir cada célula permeável a cada dor nem sempre física mas sempre mordaz, sempre à espreita de uma insignificante brecha por onde possa entrar. E é um caminho sem retorno. Metáforas do que se sente? Talvez. Mas metaforicamente falando, a doença é uma puta que não nos deixa viver, que se impregna ao mais íntimo do sentir que queres ignorar e que te surge à frente como paredes em construção de uma casa que nunca será habitada. Mas essa era a casa que queria. Que deveríamos ter. Se é nossa por direito, porque não pudemos lá morar? Metáforas à parte, a vida é uma grande merda. E para esta frase, não há eufemismo que lhe valha. (São só palavras. Nada mais do que isso. Palavras!) daniela alves 42 desumbiga estórias clínicas ESTÓRIAS naquela guerra. Não é o primeiro que traz a sua história de África, trazem-na todos, cicatrizada nas palavras ao doutor, o que trata as dores dos velhos. O senhor fuma? Não senhor. Com o compasso vagaroso, continua. Nunca fumei, nunca me emborrachei e nunca recorri aos serviços pagos de uma senhora. Sou, portanto, aos olhos do típico homem português, um mariquinhas. III. MINA ANGUELOVA - O DESEJADO @ www.minanguelova.blogspot.com D I. P orque há Medicina e há Cirurgia. Não custa distingui-los. Os médicos referem-se à Cama Seis. Os cirurgiões, por seu lado, referem-se a algo mais concreto. A Tiróide, a Supra ou o Feo. É tão estranho, por isso, chegar a Pediatria e falar-se no Ruben, na Sara e no Bebé Borges. Dois cirurgiões comentam o plano para o bloco operatório da semana. “Tenho uma tiróide para preencher a vaga que sobra de amanhã, vou telefonar para que seja internada hoje. Amanhã são três tiróides e uma para.” Durante o telefonema, a cirurgiã não esquece a simpatia. “Tinha aí uma tiróide que me disse que estava disponível, vê lá se lhe telefonas a avisar.” Regressando de novo 43 desumbiga à aula, procuramos focar-lhe a atenção no caso que vimos. Por momentos, não se fala apenas do órgão. “Essa mulher é doida, completamente passada!” II. V eio à sua consulta, o senhor J. De olhar simpático e postura composta, conta pausadamente das dores que mantém, dos dias que vive só em casa. Usa palavras aprumadas, cuidadosamente colocadas nas frases, de caligrafia bonita e em velocidade de cruzeiro. Um embalo. Porque o senhor J. esteve na guerra do Ultramar. Viveu muito lá, traz outras mazelas e agora é para isto que a vida o reservou, depois de tanta vida e manhã, recebi o sorriso de sempre quando me viu, apertou a minha mão com um pouco mais de força quando tive de sair, quis-me mais tempo com ela. E agora, outra, aperta-me de novo a mesma mão, mas não me quer ali. Chamou pelo doutor, que eu não lhe bastaria. Não me olhava, afastava o meu braço com a força que lhe restava e que ainda surpreendia por ser suficiente para nos enfrentar. Não me quis dizer como a poderia ajudar e não a quis magoar mais, a sua intolerância pela minha presença não ia acabar bem. Chamei quem mais autoridade tem para resolver a situação. Quis ajudar enquanto lhe tiravam o sangue que era preciso. Dei-lhe a mão, para que não fosse estragar o trabalho e magoar-se e para que soubesse que alguém ali estava. Geralmente, sossega. E apertou-me a mão, com as unhas cravadas na minha carne, para que doesse, para que desistisse, para que a abandonasse. Não o fiz. Abracei mais a mão, para que as unhas não conseguissem encontrar de novo caminho para a minha carne, e fingi que a marca que me ficou na pele não fora propositada. Porque, apesar de tudo, não deixamos de ajudar. IV. O guia e o guiado. Quem queres ser? Ele cheirava demasiado a tabaco. Os olhos caídos recusavam-se a fechar e passeava por ali. Viu-nos e pediu licença, na sua voz de metediço natural da idade, para fazer um telefonema. O pijama prendia-o ao serviço e a espera que aguardávamos permitiu a cedência. Ficou muito grato e aproveitou para dar motivo às palavras que insistiam em sair de si. Ele tem um projecto. Vai encher o mealheiro que tem em casa, aquele que lhe chega até ao ombro, e vai-nos oferecer uma sapateira. Vai poupar para comprar uma casa. Vai trabalhar, ser bom estudante, muito bom estudante. Fala-nos dos amigos que lhe vão arranjar umas falcatruas para poder recomeçar a sua vida. E explica-nos um pouco da vida. Porque há quem guia e quem é guiado. Quem queres ser? É fácil ser guiado, é só seguir, mas ser guia é melhor. O guia encontra obstáculos, mas tem os seus guiados. E consegue. Ele falou. Muito. Por vezes nem esperava que alguém o ouvisse. Está atento, apesar de tudo, e sabe o número exacto de dias que aqui está. Em breve, ficará melhor e poderá sair. Tem um mealheiro à sua espera. ANA TERESA PRATA [email protected] 44 desumbiga peregrinação mauricio pezo cornelia parker impressões do louvre 45 desumbiga peregrinação impressões do LOUVRE N ão se deve visitar o Louvre como um museu normal. Habitualmente, a grande preocupação que temos ao ver uma exposição é a de saber que deitámos um olhar a todas as peças. Mesmo que só por um segundo. O Louvre ajuda-nos a destruir esse nosso estúpido hábito. Porque ali percebemos rapidamente ser impossível ver muito mais que meia colecção num dia inteiro de visita. Claro que podemos correr e passar por todas as galerias tentando bater o record de 9 minutos e 43 segundos estabelecido no filme Bande à part de Jean-Luc Godard. Mas provavelmente seríamos expulsos pelos seguranças antes de terminar o périplo. Por isso, caso queiramos acabar a visita, é mais seguro optar pela conservadora marcha-a-passo-de-ver-museus. S exta-feira à noite é a melhor altura para a visita. O ambiente nocturno e a pouca afluência de gente tornam o museu íntimo. Sexta-feira à noite vai-se fazer companhia às estátuas solitárias ou às telas que precisam de alguma atenção. O Louvre torna-se um pequeno país que resume a história de todos os outros países do mundo através das obras de arte que o povoam. Há uma espé- 46 desumbiga cie de ecossistema que se revela. Podemos ficar por lá, em salas majestosas, acreditando que são a nossa casa, subitamente decorada por obras primas do renascimento italiano ou antiguidades gregas. o acontecimento é o público em si mesmo. As pessoas, vivas, falando e agindo, serão sempre mais interessantes que qualquer objecto. Mas do outro lado, em Richelieu, vamos encontrar, ao mesmo tempo, as colecções mesopotâmicas num sossego místico. E assim, involuntariamente, o museu faz ainda pensar sobre a própria construção da História, da Cultura e seus mitos. É A simetria arquitectónica do edifício contrasta com a distribuição irregular dos visitantes pelas galerias. O museu divide-se em três grandes zonas: Denon e Richelieu, laterais, e Sully, central. Na ala Denon, encontra-se o epicentro do frenesim turístico, desenhando uma meia-lua de segurança à volta da Mona Lisa. Aí, preciso ir várias vezes ao Louvre, como se ele se tratasse de uma pessoa muito interessante com quem gostássemos de conversar. Uma ou duas salas por visita, é o ideal. Olhar bem para os quadros que estão nas filas de cima também. Tirar notas sobre os artistas. Consultar a internet no telemóvel inteligente e ler no imediato sobre as correntes ou sobre aquela obra em particular. E assim, aos poucos vamos construindo o nosso museu mental. A quem saiba o Louvre de cor pouco mais se pode exigir. Bernardo moura (TEXTO E FOTOGRAFIAS) [email protected] CICLO DE EXPOSIÇÕES NO EDIFÍCIO EGAS MONIZ JANEIRO - JULHO 2011 DESENHA des umb iga PINTA FOTOGRAFA participa! PORQUE SABEMOS QUE EXISTEM ARTISTAS ANÓNIMOS NA FML... - Contacta o des1biga através do email: [email protected] para agendar a entrega do trabalho ou para mais informações. - Não existem restrições relativamente ao tipo de meio artístico utilizado; trabalhos com cariz ofensivo ou que não se relacionem com os temas não serão aceites. - A impressão do trabalho fica à responsabilidade do autor - O trabalho deve ser acompanhado de título e pequeno texto explicativo, se desejado. - O des1biga não se responsabiliza por danos causados aos trabalhos no decurso da exposição. 48 desumbiga