Histórias do Vaticano
e outros contos
Vânia Gomes
Histórias do Vaticano
e outros contos
1ª Edição
POD
KBR
Petrópolis
2014
Edição de texto Noga Sklar
Editoração KBR
Capa KBR
Imagem da capa Raffaello Sanzio, “Ritratto di Leone X con
i cardinali Giulio de’ Medici e Luigi de’ Rossi”, óleo sobre
tela, 1518 (detalhe).
Copyright © 2014 Vânia Gomes
Todos os direitos reservados à autora.
ISBN 978-85-8180-254-1
KBR Editora Digital Ltda.
www.kbrdigital.com.br
www.facebook.com/kbrdigital
[email protected]
55|24|2222.3491
FIC029000 - Contos
Vânia Gomes nasceu em Belo Horizonte, MG,
onde viveu até os 27 anos. Desde então, vive em Brasília.
Graduada em Ciências Biológicas e Mestre em Genética, escreve por paixão. Sempre teve incentivo de sua
família, especialmente de sua mãe, para dedicar-se à leitura. Quase prestou vestibular para Letras. Decidiu-se
pela Biologia, mas continuou apegada aos livros. Depois
de tanta leitura, resolveu escrever e se expor à crítica com
seu primeiro volume de contos, publicado pela KBR.
Site da autora: http://www.vaniagomes.prosaeverso.net
Aos meus pais, por me deixarem crescer
em ambiente favorável ao exercício da criatividade.
Sumário
Apresentação • 13
Parte I • 15
A história de João XXIV • 17
A missão do Cardeal Michelieu • 25
Confissão e penitência • 33
A boa vontade será lembrada • 41
Profecias • 47
Parte II • 55
O último beijo • 57
A festa de aniversário • 61
O velhinho de barbas brancas • 69
A carta • 75
Noite de luar • 81
Confissões • 83
A chuva • 89
Como John e Yoko • 93
O nascimento de José Mendibal
Filho • 97
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Apresentação
Conheci Vânia Gomes no Recanto das Letras,
onde tive o prazer de acompanhar suas Cartas
de Helena, um interessante romance de época
onde os fatos são apresentados por meio de primorosas cartas trocadas entre a jovem Helena e
sua família.
Para minha surpresa, porém, não foi esse
seu primeiro livro publicado, mas sim uma coletânea de contos muito instigantes e bem construídos, divididos em duas partes.
A primeira, composta por cinco histórias,
tem como cenário principal o Vaticano, onde
circulam papas, camerlengos, cardeais, um advogado do diabo e o anticristo; inclui uma investigação sobre pedofilia cometida por um padre e também um acordo para conter a sanha de
Hitler.
Na segunda parte, os encontros e desencontros amorosos do cotidiano feminino predo| 15 |
minam na temática dos contos curtos, densos e
com finais surpreendentes. Como um contraponto a essas mulheres enlouquecidas e torturadas por dores de amores, um texto de cunho social, com forte esperança num futuro melhor, e
dois outros onde imperam suavidade e doçura.
Com esta coletânea tão distante da fazenda, dos escravos e das mucamas de Helena,
Vânia Gomes mostra que tem potencial para escrever sobre o que bem entender. Em seus contos, os fatos se entrelaçam com elegância, não
há pontas soltas, nenhum desperdício. Aqui e
ali, percebe-se a pesquisa cuidadosa na composição de fatos e personagens; lá e acolá, sentimentos tão viscerais que parecem frutos de sua
própria vivência ou de amigas muito próximas,
que com ela compartilharam confidências.
De fato, somente a qualidade da autora,
sua competência em criar e dar vida às personagens, nos permite acreditar que é tudo obra
de ficção.
Nena Medeiros
Escritora e protetora de animais, autora
dos livros Contos Crônicos (1 e 2), e Ô, coisa boa!
Parte I
Histórias do Vaticano
A história de João XXIV
O Papa sabia que era chegada a hora. Chamou
Cardeal Maryam Hamlabad para se confessar.
— Santidade, tente não se esforçar...
— Não estou tão mal assim, né? Ouça,
preciso que somente você tenha acesso ao meu
quarto daqui pra frente.
— Mas, por quê?
— Saberá daqui a pouco, quando eu fizer
minha confissão.
Após as orações iniciais, o Papa ouviu as
palavras de Maryam:
— Papa João XXIV, sirvo a Nosso Senhor
Jesus Cristo e à Santa Madre Igreja Católica
Apostólica Romana. Aqui estou para servir e
ouvi-lo...
Ainda hesitante, mas consciente de seu dever, o Papa começou:
— Levanto falso testemunho desde os 20
anos de idade.
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Vânia Gomes
O espanto na face de Cardeal Maryam,
com os olhos arregalados, demonstrava o susto por aquela revelação. Seria uma confissão de
sodomia? Isso até era comum na Igreja. Mas,
um Papa? Ainda mais esse Papa, tão santo. Toda
a Igreja esperava a beatificação do Papa João
XXIV, assim que o Senhor o chamasse.
— Vejo que se assustou, Cardeal. Mas
vou contar-lhe tudo: nasci numa vila pobre da
Rússia. Nós, católicos romanos, somos minoria
lá, você bem sabe. Desde muito jovem, fui firme na fé católica, pois assim era toda a minha
família. Mas a Igreja perdia muitos fiéis. Lembra-se dessa época?
Cardeal Maryam, com os olhos fechados,
fez que sim com a cabeça.
— Ainda muito jovem, me mudei para a
Espanha. Não tinha estudo, e a única maneira de me sustentar era me prostituindo. Assim,
não apenas me sustentei, como fiz dinheiro suficiente para a grande obra, essencial para que as
reformas que fizemos se concretizassem.
Cardeal Maryam abriu os olhos e encarou
o Papa.
— Jamais poderia celebrar os sacramentos
num corpo de mulher. Então, fiz a cirurgia de
mudança de sexo.
Pela primeira vez, Cardeal Maryam reparou no rosto fino e nas mãos delicadas de João
XXIV.
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— Não foi fácil, Cardeal. A cirurgia é
uma verdadeira agressão, mas era necessário
que meu corpo de mulher fosse substituído.
Troquei meus documentos, passei a me chamar
Juan Carlos Anatoliev, uma menção à minha ascendência russa. Entrei para o seminário, meu
maior sonho. Em oito anos, me ordenei padre.
Cardeal Maryam estava em lágrimas. O
Papa não soube definir se era choro de desespero, tristeza, sensibilidade, compreensão... Enxugando as lágrimas, Cardeal Maryam perguntou:
— E sua família? Seus pais, irmãos... O
senhor, digo, a senhora tinha irmãos?
— Precisei me afastar deles. Eram as únicas pessoas que saberiam que eu me tornara
transexual. Para eles, eu morri, nunca mais dei
notícias.
Cardeal Maryam pediu um tempo e pegou dois copos de água na moringa ao lado.
Mal acreditava no que acabara de ouvir: o Papa
era transexual! Ajudou João XXIV a tomar uns
goles de água.
— Minha congregação acreditava que eu
era uma pessoa sem família, criada num orfanato após a morte de meus pais, imigrantes russos... E esta se tornou minha história. Vi que
nossa Igreja precisava de renovação. Sangue
novo. Ideias novas. Sensibilidade, clareza, praticidade... Só uma mulher poderia levar a cabo
esse grande sonho. Mudei meu corpo, mas mi| 21 |
Vânia Gomes
nha alma, minha mente, meus sonhos, sempre
foram femininos... Minha trajetória na Igreja,
você sabe.
Tomou um pouco mais de água e continuou:
— Fui o bispo mais jovem da Diocese de
Tarrasa e rapidamente assumi a Arquidiocese de
Barcelona. Toda a região vivia na piedade e no
amor ao próximo. Mudei a vida de muita gente,
e assim angariei mais fiéis para a Igreja.
— De fato, Santidade. A Arquidiocese
de Barcelona era notícia no mundo inteiro. O
senhor, digo, a senhora, conseguiu acabar com
a pobreza e com o sério problema de jovens
drogados. Era eficiente no âmbito eclesiástico e
também no político.
O Papa sorriu. Viu que sua mentira era o
alicerce de verdades valiosas...
— Quando fui convocada a morar no Vaticano, já como Cardeal, me responsabilizei por
todos os julgamentos de Cânones, na qualidade
de primeiro assessor do Juiz Supremo, o Papa
João Paulo III. Bom homem, aquele... Fiel ao
senhor, ao seu sacerdócio... Era seu desejo que
eu fosse o próximo Papa...
— Lembro-me do conclave que elegeu a
se..., digo, o senhor. Foi o mais rápido da história. Vinte minutos!
— Uma emoção suprema. Naquele momento, pensei que tinha ido longe demais...
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Histórias do Vaticano
— Emoção em todo o mundo... Vossa
Santidade era o nome esperado por todos nós,
fiéis... Sabíamos que a Igreja seria renovada na
fé e na piedade.
O Papa sorriu ternamente. Sentia-se com
a alma lavada.
— Minha primeira providência foi convocar o concílio de Honolulu.
— Nunca entendi por que escolheu esse
lugar... Nem é uma cidade católica...
— Exatamente por isso, Cardeal. A Igreja
tinha que sair daquele mundinho provinciano,
e foi uma reunião e tanto. O Diamond Head,
que estava adormecido há milênios, entrou em
erupção... Uma erupção fraquinha, é verdade,
mas foi um milagre!
— Era o sinal dos novos tempos. Nunca
mais esse vulcão expeliu lava...
— E nunca mais vai expelir, Cardeal.
Aquilo foi um sinal divino. Estava difícil chegar
a um consenso, a coisa tendia para um sonoro
“não” às minhas propostas. Depois da erupção,
conseguimos tornar o celibato opcional e revogar a lei que criminalizava a ordenação de mulheres. Não me aguentei, chorei de emoção. Eu
não era mais uma criminosa.
— O mundo inteiro viu sua imagem pela
TV e pela internet, Santidade... Eu também
chorei. Já era madre na minha congregação e,
a partir de então, não precisaríamos de padres
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Vânia Gomes
para ouvir a confissão de nossas irmãs e eu mesma poderia celebrar as missas na nossa capelinha. Finalmente, teria permissão para cuidar
sozinha de meu rebanho.
— Você é uma mulher forte e piedosa,
Cardeal Maryam. Eu precisava nomear rapidamente uma mulher como cardeal, e não havia
outra no Irã inteiro.
Novo silêncio, cortado apenas pelos soluços emocionados de ambas.
— Sendo cardeal, você pode ser Papisa.
Será a primeira Papisa da história.
— Vossa Santidade é a primeira Papisa...
E seu pontificado foi sublime!
— Não oficialmente. Sou a primeira papisa, mas não será este o registro histórico. Não
tem importância. Fiz o que tinha que ser feito.
Sabe que meu primeiro impulso quando a nomeei cardeal foi tacar fogo naquela cadeirinha
deprimente? Mas meus assessores me convenceram de que ela deveria se tornar peça de museu... E meu outro pecado é este: tenho ódio
mortal daquela cadeira!
As duas riram. Depois, olharam-se em
silêncio. A cumplicidade daquele olhar mútuo
comprovava a grande amizade, a compreensão de todos os sacrifícios. Fechando os olhos
e postando as mãos sobre João XXIV, Cardeal
Maryam proclamou:
— Pelo poder a mim conferido, eu te ab| 24 |
Histórias do Vaticano
solvo de teus pecados em nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo.
— Amém.
Um silêncio emocionado tomou conta do
quarto. Maryam olhou à sua volta. A mobília
com adornos em ouro e aquele cortinado de veludo pareciam simples, ante a complexidade e a
santidade da figura à sua frente.
— Parei de tomar testosterona há uma semana. Estou voltando a parecer mulher. Se descobrirem que sou mulher, já era. Vão invalidar
nossas reformas. Daqui pra frente, só a senhora
entra neste quarto. Promete?
— Não se preocupe, Sua Santidade...
Agora descanse. Cuidarei de tudo. Prometo.
Maryam saiu do quarto. Outros cardeais
a esperavam do lado de fora, rezando. Ela disse
apenas:
— Eis uma personalidade santa! Viveu
uma vida de sacrifícios por amor ao próximo
e pelo engrandecimento de nossa Santa Madre
Igreja. Rezemos por sua saúde. Que o Senhor
receba o Santo Padre, o Papa João XXIV, com
todas as honras do Céu...
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