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O MESMO E O OUTRO: FEUERBACH, ÉTICA E ALTERIDADE1
JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA
Departamento de Filosofia
Universidade Federal da Bahia
A assim chamada “virada antropológica” de Ludwig Feuerbach (1804-1872)
pôs o “homem” no lugar de Deus para pôr o altruísmo no lugar do egoísmo, o outro no
lugar do eu. Terá sido uma boa idéia? Ele obteve sucesso nessa empreitada? A crítica
que nosso humanista faz ao cristianismo é a crítica de sua oculta deformação,
ideológica, em última análise, egoísta, que submeteria ainda a própria Modernidade
secularizada (a Europa do seu tempo), e até acirrar-se com ela, em oposição ao que
seria uma virada para o ser natural dos homens, essencialmente genérico e voltado para
o outro. Feuerbach desenvolve um ponto de vista filosófico naturalista-humanista
contra o sobrenaturalismo “subjetivista” do cristianismo. E o faz enquanto trata de
resgatar o que para ele é seu núcleo humano, supostamente deformado pela fantasia e
pelo sonho da religião, bem como, talvez mais ainda, pela teologia e pela especulação
filosófica. Tal núcleo seria justamente o que Feuerbach chama de nossa “essência
genérica” (Gattungswesen), racional, amorosa e comunitária, constituída por nossos
predicados-valor, nossas excelências, nossas potências maiores e mais próprias ― a
Razão, o Amor, a Vontade (o Amor em primeiro lugar) ―, equivocadamente atribuídas
em primeiro lugar a Deus, no cristianismo. É essa essência genérica, natural,
recuperada pelos homens, que deverá ser agora, no lugar de Deus, o fundamento
(Grund), real e terreno, objetivo e universal, para a ética, a política, a cultura, e para a
crítica de suas deformações ou mesmo patologias. É tomando a suposta essência
genérica dos homens como fundamento normativo, ético, que Feuerbach quer
confrontar criticamente o Cristianismo e a Modernidade, e lhes oferecer uma
alternativa, em sentido muito prático.
Pensador da “virada antropológica”, e do homem como novo “ser supremo para
o homem”, Feuerbach quer ser ao mesmo tempo o filósofo do laço do eu com o outro,
do eu-tu (como ele diz), o filósofo de uma ética do altruísmo e do amor. Ele quer ser
1
O presente texto retoma e reformula algumas partes do meu artigo Feuerbach, Crítica da Religião,
Crítica da Modernidade, incluído na coletânea Homem e Natureza em Ludwig Feuerbach (Chagas,
Redyson, de Paula, orgs., Edições UFC, Fortaleza, 2009).
2
também, ademais, o filósofo da realidade sensível (Sinnlichkeit), da natureza e do ser
natural-sensível dos homens; quer recuperar a nossa “sensualidade”. Nesse texto, trato
de associar o lado naturalista/materialista do ateísmo de Feuerbach à sua intransigente
crítica do Cristianismo e da Modernidade como “alienação” e “egoísmo”. Ao mesmo
tempo, procuro expor um lado essencialista na sua virada antropológica, que marca o
alcance fundacionista do humanismo com que ele quer enfrentar não só o cristianismo,
mas também o que ele chama de “ateísmo dissimulado” dos Tempos Modernos.
Essencialismo-fundacionismo, esses, que poderiam, apesar de tudo, ao fim e ao cabo,
não deixar tanto espaço assim, na sua ética amorosa, não só para o “eu” como também
até para o “outro” ― para a alteridade enquanto diferença e, por que não dizer, conflito.
Feuerbach, podemos entender, fica entre construir uma ética da alteridade e
perder-se numa ética da generalidade, caindo em algumas das armadilhas que podem
capturar o humanismo mesmo no momento de seu esforço em ultrapassar a religião
para constituir uma ética puramente humana, sem fundamento transcendente,
supostamente mais efetiva e generosa. Nesse sentido, a descendência filosófica de
Feuerbach, como eu o entendo aqui, inclui não apenas o comunista Karl Marx, os
socialistas humanistas e Martin Buber, mas também os filósofos da ética do discurso,
Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas, no nosso tempo. Podemos encontrar em Feuerbach
um precedente da interessante crítica, de nossos dias, ao sujeito e às filosofias do
sujeito. Mas, sobretudo, o problema de que ele se ocupa pode ser entendido como
aquele de um fundamento ético, mesmo tempo “último” e “destranscendentalizado”,
para a conduta dos homens ― numa época descrente, secularizada, pós-metafísica e
egoísta: a Modernidade. Creio que esse é um terreno em que vale a pena explorar,
valorizar e criticar Feuerbach, ainda que eu o faça aqui de modo apenas incipiente,
deixando a quem me ler o papel de preencher os claros da argumentação e desdobrar
aspectos aqui apenas indicados.
O que é mesmo que a crítica humanista Feuerbach tem a dizer sobre o
cristianismo? O que o cristianismo tem de egoísta, ou de promovedor de egoísmo?
Comecemos por um de seus elementos mais característicos e essenciais, o
criacionismo. De acordo com a obra principal de Feuerbach, A Essência do
Cristianismo (1841), a doutrina do criacionismo, tipicamente judeo-cristã, só poderia
ter nascido onde os homens concebem a natureza como “nada”, como produto e objeto
3
de uma vontade subjetiva, e, logo, apenas como um meio para seus fins (EC 243, 247). 2
O cristianismo, nisso, perpetua o mesmo viés de sentido prático-utilitário do judaísmo
(466), Feuerbach acha; e a Modernidade até aqui se constitui num prolongamento e
realização de tudo isso. Bem outra é a concepção com a qual nosso humanista se afina,
que entende a natureza como seu próprio fim, seu próprio fundamento (e não Deus),
uma concepção que corresponderia à consciência espontaneamente materialista e
estética dos Antigos, dos pagãos, dos gregos em especial. Para estes, a natureza não foi
criada, tem em si mesma o fundamento de sua existência, é em si e por si dotada de
valor, é “divina” e “bela” por si mesma (243). Por isso, na contemplação e na adoração,
os pagãos humilhavam-se diante dela e dedicavam-lhe seu coração e sua inteligência
(247-8) – tal como Feuerbach quer agora de novo fazer. Na criação ex-nihilo, isto é, “a
partir do nada”, no cristianismo, ao contrário, está expresso o arrogante mandamento de
tratar a natureza apenas como objeto de consumo, de desfrute pelos homens (249).3 O
homem erige Deus em todo-poderoso criador do céu e da terra, a fim de erigir-se a si
mesmo em [seu] destinatário e senhor (466). A criação tem apenas um objetivo e um
sentido egoístas”, diz Feuerbach, e o princípio do judaísmo e do cristianismo é “o mais
prático do mundo”: o egoísmo que “concentra o homem sobre si mesmo (465, 250).
Bem, até aqui viemos, primeiro, digamos, com a “ecologia” de Feuerbach;
agora vamos com a sua “egologia”. Para nosso filósofo, judaísmo e cristianismo são
monoteístas porque têm por meta apenas um eu absolutizado, e, por fundamento, o
excludente e monárquico sentimento de si (EC 245, 251) ― em última análise, o
egoísmo e mesmo o solipsismo. Na Modernidade secularizada, também o idealismo
alemão, malgrado ele próprio, expressaria, no plano filosófico, basicamente o mesmo
vício ideológico da religião. Como dizia, ainda no séc. XVII, o conciso Programa
Sistemático, rabiscado pelo jovem Friedrich Von Schelling (um dos três grandes do
idealismo absoluto alemão): A primeira Idéia é a representação de mim mesmo como
um ser absolutamente livre; com esse ser livre, consciente de si, surge então, ao mesmo
tempo, um mundo inteiro, do nada, a única verdadeira e cogitável criação ex-nihilo.4
Por isso, diante disso, Feuerbach desenvolve, na Contribuição à Crítica da Filosofia de
2
Utilizo a abreviação “EC”, no texto principal e nas notas, para me referir à Essência do Cristianismo; as
indicações de página referem-se à edição francesa da Maspero.
3
Pode-se também entender que, na criação ex-nihilo, está presente um germe de niilismo, de negação do
mundo. E aí já estaremos pondo o anti-cristianismo de Fuerbach em relação com o de Niezsche, ou, em
todo caso, resgatando uma referência relevante para entender o horizonte mais amplo da revolução
filosófica alemã do século XIX, do qual ambos são típicas ― e nada extemporâneas ― expressões.
4
SCHELLING, 1984. p. 42.
4
Hegel, de 1839, contra o idealismo alemão, contra a especulação idealista, basicamente
a mesma denúncia naturalista, anti-subjetivista, a favor do “Ser” (do Ser sensível, da
Natureza), que vai depois fazer, na Essência do Cristianismo, contra a religião
propriamente dita. Ele refuta o nada ― que tem um papel central na ontologia dialética
de Hegel ― como pura “ausência de pensamento” e princípio de “desrazão”, como
absurdo. De modo que a “criação a partir do nada”, que recebe seu sentido moderno no
idealismo alemão, só pode representar um impensável ato de vontade vazia e de puro
arbítrio (CFH).5 Como vimos, Feuerbach prefere ficar com a eternidade da matéria e
com o materialismo dos gregos, dos pagãos, que corresponderiam à afirmação da plena
realidade do ser, frente ao pensamento, a ficar com a pretensiosa e arbitrária
subjetividade, que nega matéria e natureza para tomar o seu lugar. É justamente essa
subjetividade, esse eu, que se transforma, no idealismo alemão, na “consciência de si”
(Selbstbewusstsein), com a qual o indivíduo moderno entende poder erguer-se por si
mesmo, e guardar em si mesmo, sozinho, como um único eu, a mais completa
autonomia e até, se for o caso, a mais plena universalidade.
Na Questão Judaica (de 1843), o feuerbachiano Karl Marx retoma e aplica esse
aspecto da crítica ateísta de seu mestre humanista, condenando o egoísmo e a
necessidade prática como fundamento da religião hebraica e também princípio da
sociedade moderna (QJ 59).6 Quanto ao cristianismo, esse não passa, também para
Marx, de um judaísmo sublimado, de uma doutrina que nasceu do judaísmo e que para
ele retorna na Modernidade: O cristão era o judeu teórico, e o cristão prático é
novamente judeu. E o que isso significa? Que o “subjetivismo” do cristianismo deve
transformar-se necessariamente no “egoísmo” de que proveio (62-3) ― o qual
desemboca finalmente no nada solidário individualismo moderno. Por isso a própria
democracia moderna (com sua enganosa idéia de sujeito individual portador de
direitos) é curiosamente acusada, na Questão Judaica, de “cristã” e “espiritualista”. Por
encontrar seu fundamento na “ilusão” de autonomia pessoal, subjetiva, do indivíduo;
por enganosamente fazer de todo e qualquer sujeito individual, “não cultivado”, um eu
soberano. E aqui Marx está-se referindo, naturalmente, à democracia dita burguesa, ou
― como dizemos hoje ― liberal, e abrindo caminho para o socialismo e o comunismo,
baseado do ser-genérico do homem.
5
FEUERBACH, 1839, p. 48-50. Creio que interessa a Feuerbach pôr a prevalência do nada e da
negação, sobre o mundo e a natureza (sobre o sensível e os sentidos, no cristianismo e no idealismo), não
só em relação com conseqüências subjetivistas e utilitaristas, mas também com implicações em última
análise, podemos dizer, “niilistas” e “ascéticas”.
6
MARX, 1843, p. 44, edição da Laemmert, indicada neste artigo por “QJ”.
5
Em tempos anteriores, como espírito do Estado, diz Marx, o cristianismo
chegou mesmo a representar algo de uma vida genérica ― isto é, comunitária, unitária
― ainda que limitada, entre os homens. Na Modernidade, entretanto, a religião
representa apenas o espírito da sociedade civil burguesa: a fragmentação, a
concorrência, o conflito, a guerra de todos contra todos. Agora, na Modernidade, Marx
conclui (certamente pensando, mais ou menos como Max Weber, no protestantismo), a
religião não é mais a essência da comunidade, é antes a essência do seu oposto: da
diferença, da separação, da independência do particular (perante o universal, suponho).
Agora, o cristianismo não une, não unifica, mas separa, dispersa; agora ele é apenas a
afirmação da absurdidade particular, a afirmação do capricho, da vontade arbitrária
(QJ 28-9); ele é agora, podemos entender, o próprio espírito do capitalismo.
A auto-compreensão dos homens, na Modernidade, que assume inteiramente a
imagem de uma subjetividade livre (privada, digamos), do homem como um ser
individualmente soberano, separado, contraposto aos outros homens e à comunidade,
baseia-se, de acordo com Feuerbach (mutatis mutandis, também de acordo com Marx),
numa ficção. Uma ficção que só o novo ponto de vista feuerbachiano, ateu, naturalista e
comunitário, ético-altruísta, o amoroso ponto de vista do ser ou essência genérica,
saberia “dissolver” ― da maneira mais completa e conseqüente. Fica, porém, a
questão: Nós, filósofos contemporâneos, queremos mesmo dissolver inteiramente essas
coisas, coisas tais como a diferença e a particularidade? E se com isso ameaçássemos
dissolver, não apenas o incômodo “eu”, falso soberano, como também “o outro”, o
diferente?
De todo modo, a equação subjetivismo = egoísmo está na base do ponto de vista
ético-crítico, materialista-naturalista, que Feuerbach desenvolve na Essência do
Cristianismo, associando ― tal como Espinosa, no séc. XVII ― a fantasia criacionista
e monoteísta à “ilusão” da subjetividade e da personalidade livres. Que a crítica
materialista da subjetividade pode ser remetida ao anti-criacionismo espinosano, isso
fica visto na sua Ética (e também no seu Tratado Breve, I e II), onde Espinosa condena
a crença de que o mundo, a natureza, foram criados para os homens como meios para
sua utilidade pessoa”, em proveito de sua cega apetição e insaciável avareza. Para
Espinosa, aliás, a idéia de uma causa final, para qualquer coisa de natural, não passa de
uma ficção, em que os homens concebem Deus como se concebem ilusoriamente a si
mesmos (Ética I, apênd., p.116). Deus (ou, o que seria a mesma coisa para Espinosa, a
Natureza) não age por livre arbítrio, nem por irrestrito bel-prazer, como na imagem da
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criação ex-nihilo. Deus é causa livre e absoluta por agir de acordo apenas com a
necessidade de sua natureza, e não porque seja vontade livre como concebida na
teologia tradicional (ibid. I, props. 17, 32). De modo semelhante a Espinosa, Feuerbach
entende, como vimos, que é na criação ex-nihilo, em cuja representação afirma-se a
potência do arbítrio e do bel-prazer, que a subjetividade primeiramente se põe como
princípio onipotente do mundo (EC 232): Na Criação, o homem afirma a divindade da
vontade subjetiva ilimitada (231). A criação ex-nihilo é a última confirmação pensável
da personalidade, da personalidade que se põe acima e fora do mundo, sem comunidade
com o ser da natureza (237) nem com os outros homens. O que corresponde, no
idealismo alemão, como também já vimos, ao estatuto da pretensiosa ― em última
análise solipsista, individualista, moderna ― Consciência de Si.
Com efeito, rejeitando a imagem do Deus criador, oposto à natureza, da
ideologia religiosa, cristã, Feuerbach também recusa a crença em um Deus pessoal,
transcendente, como implicando a exaltação da personalidade fechada, indiferente às
determinações substanciais do mundo ― e ao laço com o outro. A noção de um Deus
pessoal corresponde, para Feuerbach, à idéia da personalidade humana como
subjetividade separada do mundo e abstraída de sua constitutiva unidade eu-tu (EC 237,
241). Donde o motivo da inclinação para o panteísmo, presente no jovem Feuerbach
(como também em Espinosa): O panteísmo identifica o homem com a natureza,
enquanto que o cristianismo, o teísmo, dualista, separa-o dela, promovendo cada
homem, de parte a Todo, a um Ser absoluto por si (238). O culto monoteísta de um
Deus pessoal representa, então, em última análise, a celebração da ficção do homem
solitariamente livre e ilimitado, diante do qual a pressão do ser (Wesensdrang), a
pressão do mundo ― do mesmo modo que a presença do outro ― só pode aparecer
como constrangimento, como imposição (237-242). Também para Espinosa, a
personalidade é antes uma ficção, no sentido de algo sobre o que, como ele próprio diz,
não podemos formar uma idéia clara e distinta (Pensamentos Metafísicos, cap. VIII)
― como exigiria qualquer bom cartesiano.
A esse respeito, vamo-nos deparar com um aspecto digno de nota da proposta
central feuerbachiana, de superação da ideologia religiosa por uma ética puramente
humana, através da recuperação/re-apropriação, pelos homens, dos predicadospotências humanos (em primeiro lugar, o Amor), atribuídos, no cristianismo, a um
Deus pessoal. Trata-se de uma re-apropriação que aparentemente se realiza em prejuízo
justamente da personalidade, ou da ilusão da personalidade, concebida ao modo do
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idealismo alemão e da religião tradicional, e também da Modernidade ― em prejuízo
do “sujeito”, e em benefício dos “predicados”. Ganha-se alguma coisa, perde-se alguma
coisa; oxalá, ao final, com alguma vantagem ― para uma ética (ou um éthos) do
altruísmo, de “não-alienação”. Vejamos. Como atributo de um Ser Pessoal (Deus), diz
Feuerbach, “o Amor”, o maior dos grandes predicados humanos essenciais, tem no
cristianismo o significado de “graça”, aparecendo, então, a própria palavra sugere,
como um sentimento “arbitrário”, “subjetivo”, “pessoal” (EC 415 ss) ― logo,
inessencial, carente de fundamento. Não assim, porém, quando o Amor é uma força
autônoma, constitutiva da impessoal natureza genérica do homem, da nossa essência.
Nesse caso, é ele quem comanda, é ele quem nos toma, nós é que devemo-nos entregar
a ele. É desse modo que Amor e Personalidade são, para Feuerbach, princípios
excludentes, antagônicos ― Amor ou Personalidade ― diante dos quais ele opta
decididamente pelo primeiro, pelo amor... humano (se é que podemos mesmo chamá-lo
assim).
É exatamente por isso que nosso filósofo vai concluir, surpreendentemente, que
Amor é materialismo, e é por isso que ele vai assumir o materialismo como sua posição
filosófica (ou, logo, anti-filosófica) geral. É que o materialismo para ele representa a
mais completa refutação da personalidade arbitrária, ambiciosa e dominadora, que
quer acima de tudo fazer-se valer ― contra o mundo, contra a comunidade, contra o
outro.
O
materialismo
envolve
uma
afirmação
da
plena
essencialidade
(Wesenhaftigkeit) do sensível, do mundo sensível (e dos nossos sentimentos, pelo
visto), oferecendo-se então como o único ponto de vista, não místico, que limita de
modo conseqüente as pretensões da personalidade individual isolada. Ou seja, que
limita as pretensões da personalidade que ilusoriamente se concebe como liberta das
determinações, limitações e laços do mundo objetivo (EC 231 ss), com o mundo e com
o outro, e que se compraz em não “se entregar” nem a esse mundo nem a esse outros.
Mas há ainda, para Feuerbach, uma outra implicação, digna de registro, da sua
denúncia de Deus em benefício do homem (genérico), quanto ao que se passa, então,
com seus predicados. Não só o amor fica falso, inessencial e arbitrário, como “graça
divina”, conforme vimos, quando atribuído prioritariamente a uma pessoa monárquica,
a um Deus pessoal, como sua fonte e fundamento. Não apenas o homem alienado
encontra, na imagem de Deus como personalidade arbitrária, a legitimação da sua
própria pretensão de ilusória ilimitação e independência pessoais, em detrimento dos
predicados. Também pode-se entender que, se o amor é, em primeiro lugar, como no
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cristianismo, amor de Deus e amor a Deus, será apenas pela comum relação filial com
Ele que um ser humano ama outro ser humano; não simplesmente por este outro, não
por um amor humano autêntico. Ou seja, na religião, no cristianismo, Feuerbach acha,
não se ama realmente o outro, quando se imagina fazê-lo.
Portanto, não a subjetividade, mas os predicados é que devem sair fortalecidos
como conseqüência do materialismo-naturalismo do jovem hegeliano Feuerbach. No
criacionismo e no monoteísmo cristãos, bem como no idealismo filosófico alemão,
concebendo o mundo como obra da vontade, tornado assim algo por si sem valor e sem
potência, o indivíduo e sua subjetividade, tomados isoladamente, convencem-se de sua
própria importância, verdade e infinitude (EC 240). No materialismo, ao contrário, o
mundo é o limite da vontade livre, do livre sentimento de si e da imaginação
desenfreada, exaltados no sonho da religião cristã. O mundo representa os laços
dolorosos da matéria, pois onde há matéria há necessidade e há limites (240), mesmo
se tais limites, não sendo arbitrários, não devam ser sentidos pelos homens como
restrições nem como dominação (CFH 45) ― como no caso de sua própria natureza ou
essência coletiva, bem entendida pelo nosso filósofo. É diante desse materialismo
feuerbachiano, humanista, de imediata implicação ética ou moral, que as ilusões e
pretensões da subjetividade, premissa de todo egoísmo, devem ser criticadas, e, por
fim, devem sucumbir, em benefício do nosso ser essencial, altruísta, digamos,
“transpessoal” ― nosso ser ou essência genérica, conjunta, coletiva.
Na conclusão da Essência do Cristianismo, Feuerbach arremata: É somente
pela conexão do homem com a natureza que nós podemos triunfar sobre o egoísmo
sobrenaturalista do cristianismo (EC 425n). Mas, também, ao mesmo tempo, pela
conexão do homem com sua essência, pela conexão do ser humano com outro ser
humano ― com a comunidade. Vejamos isso mais de perto. No cristianismo, o homem
objetiva e distorce sua própria essência genérica, perde-se dela, para em seguida fazerse seu objeto, dela transformada em uma pessoa singular, absoluta, Deus (EC 147-8).
Eis o núcleo do pensamento feuerbachiano: Deus é na verdade o homem, entretanto,
bem entendido, não à imagem dos indivíduos humanos tomados isoladamente, dos
indivíduos empíricos, mas de seu gênero, o gênero humano, a comunidade humana, a
humanidade. Ou, melhor, não simplesmente, tampouco, o agregado dos indivíduos, mas
sua essência genérica ― anteriormente depurada7, tanto quanto tornada separada deles,
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De acordo com Feuerbach, na Essência do Cristianismo, malgrado as distorções da essência humana
que a “projeção” religiosa envolve, o que se revela na religião cristã é a essência humana “purificada” ―
do que aparece aos homens como limite e como mal (EC 325). Mesmo assim, na religião cristã também
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na religião. O cristianismo, como forma de autoconsciência do homem, equivale a uma
relação indireta do homem consigo mesmo e, principalmente, com os outros homens.
Equivale a uma relação dos homens com a sua própria essência universal, em que esta
lhe aparece como outro Ser, como um Ser transcendente, não-humano, Deus ― ou
meio-humano, Cristo. Com tal separação/projeção, operada na religião, denunciada por
Feuerbach, o homem fica mutilado e isolado. E o mundo fica desdobrado (como
assinala Marx na 4ª. Tese ad Feuerbach) em duas realidades distintas: 1) mundo divino,
o reino dos céus, superior, pleno, de um lado, e 2) o mundo humano e temporal, a
Terra, inferior, imperfeita, falha. Tal como no “platonismo”, pois apenas o primeiro, o
Céu, é, como diria Nietzsche, o verdadeiro, o “mundo verdade”; o segundo é simples
engodo e aparência. De acordo com Feuerbach, foi sempre a própria essência infinita,
constituída pelos predicados-valor (aparentemente pertencentes a Deus, mas agora
reconhecidos como as infinitas e verdadeiras potências humanas) que os homens
exaltaram e reverenciaram na religião ― e é isso que devem continuar a exaltar e
reverenciar. Deus é esse homem, e esse homem é o legítimo “proprietário” dos
predicados atribuídos a Deus, como o Amor, a Sabedoria, a Verdade, a Justiça, a
Vontade, o Bem (EC 130-2). Nossas relações, que eram presididas por Deus, devem
agora ser regradas direta e horizontalmente por esse homem, por essa nossa essência,
não por outra coisa menos comunitária.
Compreendido isso ― por uma nova consciência, pós-cristã, supostamente pósmetafísica, expressa na filosofia feuerbachiana ―, os homens ficam enfim “regenerados”, “re-naturalizados”: desalienados, autônomos, livres de verdade, e,
sobretudo, “re-unidos”, de uma vez por todas, à sua essência genérica e uns aos outros
(o que deveria ser a mesma coisa). Pois, se os predicados de Deus, que constituem a
essência humana, revelam-se como infinitas excelências humanas, da humanidade,
estas, por sua vez, não remeteriam a qualquer transcendência, a qualquer fundamento
normativo “outro”, “além”, “acima”, que não seja o próprio homem, seu mundo, a
comunidade humana, a humanidade. Com o fim do cristianismo, finda, portanto, o
império de uma deformação e de uma sujeição, finda o jugo da alienação e finda a
duplicação do mundo. E a cultura e a moral constituir-se-ão doravante sobre novas
bases, não-teológicas, não-metafísicas, autônomas, tendo como fundamento e meta
apenas a comunidade humana. Pois é nela que está a essência, não no homem
se expressem, de forma mascarada e inconsciente, para o desvelamento “psicanalítico” do autor, além
daquelas três grandes potências humanas, também impulsos e desejos de ordem menos sublime,
“inessenciais”, ligados à corporeidade e à “pequenez” dos homens.
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individual ― nela enquanto comunidade humana idealizada, acrescente-se. De acordo
com Feuerbach, em todo caso, inaugura-se assim um tempo inteiramente novo, um
tempo muito melhor, e toda uma velha história, à qual ainda está presa a Modernidade
européia, alemã, do século XIX, fica por fim deixada para trás. Passamos, através de
Feuerbach, para um outro lado, para uma nova Modernidade, senão uma PósModernidade ― amorosa, altruísta, comunitária, coletiva.
Pode haver ainda, entretanto, uma pedra nesse caminho de superação da
alienação dos homens, com relação à sua essência e com relação uns aos outros,
operada
na
religião,
com
suas
resultantes
heteronomias,
duplicações
e
transcendentalismos ― um obstáculo no caminho de Feuerbach e dos homens. O
problema está em que a virada antropológica feuerbachiana ao fim e ao cabo ainda
transcendentaliza, absolutiza, como realidades em si e por si, em detrimentos dos
homens reais, talvez até mais do que na religião, aqueles virtuosos predicados herdados
da religião cristã. E os absolutiza enquanto tomados como infinitos e como constituindo
uma mesma e única essência humana (objetiva, infinita8) para todos os homens, como
algo ainda acima e além dos falhos homens reais, de carne e osso, particulares e
contingentes. Perfeitos, infinitos, os predicados e a essência expressos na religião;
finitos, imperfeitos e opostos entre si os homens reais existentes, na sua diferença.
Revertidos a uma suposta essência humana geral, natural, objetiva e universal, os
predicados, antes cristãos, sempre “divinos”, todos eles “nobres”, constituem-na como
fundamento normativo último, absoluto, como o mesmo para todos, como seu
verdadeiro ideal universal. Atribuídos à essência da humanidade, que constituem,
tornam-se agora mais absolutos do que quando atribuídos a um ser transcendente
pessoal e tingidos pela marca da subjetividade.
Tal essência seria então, ainda, o outro, mas o Grande Outro, em que ainda nos
fazemos outro até para nós mesmos, para não nos fazermos simplesmente outros entre
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Como Feuerbach estabelece a essência genérica do homem como infinita, como constituída por
predicados humanos infinitos? A Essência do Cristianismo começa com uma argumentação difícil de
acompanhar, envolvendo uma espécie de “argumento ontológico”, partindo da consciência do homem, da
consciência de si do homem, como consciência do infinito, e logo consciência de si infinita, de um
humano maior do que o próprio indivíduo consciente, deste enquanto gênero e, por isso mesmo,
“ilimitado”. Assim, Feuerbach é ainda, curiosamente, um filósofo da consciência, que parte da
consciência do homem como evidência de seu ser genérico, como percepção de si enquanto
simultaneamente “eu e tu”. Em termos singelos, pode-se dizer que ele parte do fato de que podemos
pensar no outro como em nós mesmos, que efetiva e necessariamente o fazemos, que podemos nos
colocar no seu lugar, que o outro nos é dado como parte de nós mesmos. Diga-se a seu favor que
Feuerbach não permanece apenas no nível de um saber disso racional, mas encontra a “realidade
subjetiva do gênero” também no sentimento: no Amor e em outros impulsos humanos na direção da
“infinitude”, da “perfeição”, da “verdade”, etc., impulsos que nos ultrapassariam enquanto
indivíduos, que na verdade nos submeteriam, mais do que seriam submetidos por nós.
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nós mesmos e lidarmos com isso e conosco mesmos. Diante disso, pergunta-se, é de
fato possível que todos os homens se reconheçam igualmente nessa essência, como sua
identidade universal, e que nela sejam todos reconhecidos uns pelos outros? Seria essa
a solução para nossos problemas de convivência com a alteridade? Poderíamos supor
que, para que os homens se tornassem, conforme a intenção de Feuerbach, realmente
des-alienados e re-unidos, aqueles predicados e valores capitais, antes abrigados na
religião, deveriam ser destituídos de infinitude e universalidade, independência e
transcendência com relação aos homens históricos particulares, às suas particularidades
individuais e mesmo sociais e grupais. Essa seria a maneira de os homens recuperarem
efetivamente a “propriedade” de seus predicados, enquanto seus “criadores” e
“possuidores” originais: poder tê-los à sua vária medida e ao seu alcance terreno, como
históricos e dessacralizados, abertos à disputa e à interpretação, e a uma bem-vinda
pluralização. Entretanto, isso talvez não seja bem o que é prioritariamente visado pela
humanização feuerbachiana do divino, pela humanização daquilo que a religião projeta
num outro mundo.
Vejamos isso mais de perto. Segundo a Essência do Cristianismo, o
enfraquecimento e mesmo a completa negação daqueles predicados-valor, de caráter
ético tradicional (como amor, verdade, justiça, bem), mantida a afirmação de seu
sujeito que é Deus, são uma característica deplorável da cultura do século XIX europeu,
resultando numa condição de hipocrisia, numa aparência de religião que mal disfarça
um ateísmo prático, um completo filisteísmo ― uma ética vazia, em última análise
egoísta, desinteressada dos homens, fechada aos outros, não-solidária, individualista
(EC 131-2), além de uma negação da natureza, dos sentidos, do sensível, e da nossa
sensualidade. Um “ateísmo prático” que, entretanto, cuida de preservar o sujeito
monárquico, Deus, enquanto abandona os predicados. E que apenas presta tributo
formal aos valores tradicionais da religião, embora os esvazie de qualquer conteúdo
real e sensível. Algo parecido com a “Morte de Deus”, nietzschiana, que todo mundo
finge ignorar, que já se vive na prática mas ainda não se admite francamente, enquanto
se dá prosseguimento a um completo “ascetismo”. É em oposição a isso que Feuerbach
se mobiliza, clamando contra o “egoísmo” e a “descrença” dos “Tempos Modernos”,
contra um cristianismo que ele condena expressamente como pobre, covarde, e até,
imaginem, epicurista (97 ss.). Portanto, concluamos por fim, mobiliza-se também com
uma intenção, em certa medida, conservadora.
12
Respondendo aos críticos de sua Essência do Cristianismo, Feuerbach admite,
surpreendentemente, que, de fato, sua nova concepção preserva, restaura e reforça
aqueles grandes valores ideais da religião ainda mantidos acima dos homens reais, de
carne e osso, como atributos não exatamente seus, note-se bem, mas agora como
predicados da Natureza e da Humanidade (ECUP 222)9 ― escritos com letra
maiúscula, sem dúvida, como tudo em alemão. E nosso filósofo o faz declarando-os
constitutivos desse grande Outro: uma essência humana genérica ― saliente-se: única,
universal, objetiva ― que ele de certo modo “deduz”, herda e na verdade restaura,
justamente da religião. É por essa via que, proclamando nossa natureza comunitária, ele
espera unir mais efetivamente todos os homens numa coisa só, num grande “Nós” sem
“Eles”, numa grande Família ― idealizada, naturalmente; um tanto desconfortável,
talvez.
Ora, diante disso, nós outros poderíamos achar que o desafio estaria em
“recuperar” os predicados, da religião, e em considerar seu conteúdo como parte dos
sonhos e aspirações dos homens, mas sem reproduzir dela os vícios de duplicação e de
idealização, que sustentam a sujeição, a dependência e o esvaimento, e, em última
análise, também, inevitavelmente, a exclusão, que flagelam o mundo dos homens. Sem
reproduzir, da teologia, e mesmo da filosofia, os vícios essencialistas, de
“transcendentalização”, “duplicação”, “idealização” e “abstração”. Caso em que,
entretanto, aqueles predicados poderiam perder, perigosamente, sua substancialidade,
sua universalidade, seu caráter de “em si”, de “absolutos”. Será esse, então, o problema
de Feuerbach? Seu ponto de vista, ao contrário do que promete, poderia não emancipar
realmente os homens de toda abstração filosófica, hipostasiação religiosa e
heteronomia; de tudo o que, sendo “seu” (dos homens) ― ou, melhor, pertencendo ao
seu mundo ― pretenda pairar acima deles e ser independente e separado deles, ter vida
própria e enganosamente submetê-los. A filosofia feuerbachiana poderia, por essa via,
não dispor os homens a um verdadeiro encontro consigo mesmo e com o outro,
enquanto finitos, distintos, diferentes. Ela não considera a opção de livrar-se da suposta
grande Essência, objetiva e universal, una e única, de todos os homens, e declarar
aqueles valores, que compõem agora uma nova moral, como humanamente arranjados,
finitos, históricos ― talvez até convencionais, culturais pelo menos. Em vez disso,
9
Utilizo ECUP para referir a Essência do Cristianismo em sua relação com O Único e sua Propriedade
(1845), de Feuerbach, uma peça polêmica em que ele responde principalmente às contundentes críticas
de Max Stirner. As indicações de páginas referem-se à tradução francesa, na coletânea Manifestes
philosophiques: textes choisis (1839-1845), da Presses Universitaires de France.
13
depois de sua suposta revolução cultural e filosófica, como ela está formulada, os
famigerados predicados passam a ter um caráter ainda mais objetivo e universal,
autônomo e transcendente. Impondo mais ainda aos homens, dogmaticamente, um
reconhecimento absoluto e uma nova duplicação do real; fazendo depender dessa
Unidade ideal e transcendente a interação entre eles.
A verdade é que, ao contrário da “essência” e da “comunidade”, idealizadas ―
e hipostasiadas ― pelo humanismo filosófico feuerbachiano, os homens reais, de carne
e osso, são expressamente considerados por Feuerbach como limitados. E isso num
sentido muito particular de que podem/devem ser apenas representantes ou deputados
da Humanidade (EC 292, 298), pequenos predicados e talentos do Gênero Humano
(140).10 Mas, podemos indagar, é assim que se resolveria o problema do egoísmo e se
responderia ao desafio da alteridade? Não admira que as conseqüências dessa
restauradora antropologia (ou antropolatria) acabem por mostrar-se, em dado momento,
como um tanto “platônicas” e, mesmo, abertamente moralistas. Nosso humanista ―
materialista e supostamente adepto da vida dos sentidos ― entende, por exemplo, que é
frivolidade admirar no corpo do indivíduo a forma individual, mas não assim a forma
humana, universal, que, ao contrário, deve-se admirar (123).
O novo “ser supremo” do monoteísta credo feuerbachiano, o fundamento da sua
nova moral altruísta ― ou, pelo menos, anti-egoísta ―, chega mesmo a parecer tão
absoluto, com relação aos homens reais particulares e distintos, quanto o da velha
religião. Embora não assuma a forma de um Deus pessoal e tampouco remeta
expressamente a outro mundo, outro reino, nem por isso deixa de assemelhar-se a uma
ideia platônica, a uma abstração substancializada, dotada de uma (pseudo-) realidade
separada dos seres humanos reais, contingentes, e distante de suas conflituosas
diferenças e contraditórias circunstâncias. A essência de Feuerbach, sua idéia de
natureza humana, não parece ter muito a ver com a humanidade “como ela é” ―
considerada empírica e historicamente, não especulativamente. E, ao fim e ao cabo, o
que se pode entender é que, nessa idéia de essência, a inclusão do outro aparentemente
se deve dar na figura do mesmo, e que isso é possivelmente um problema. Para nosso
filósofo, aquela essência universal é o que todo homem deve buscar encarnar, realizar
em si próprio, como sua verdadeira natureza e medida. O que poderia redundar ― para
si e para o outro ― numa surpreendente tarefa de des-personalização, de des-
10
Ver também, de FEUERBACH, 1842, p. 100.
14
individualização, de des-diferenciação, de rendição a uma generalidade fundante.11 O
“conhece-te a ti mesmo” de Feuerbach é um re-conhecer-se a si mesmo ― e ao outro ―
em sua generalidade. É um tomar essa generalidade como telos e medida absoluta de
todo agir, próprio e do outro, é um ter que de erguer-se à altura, perfeição e medida da
essência. Como diz expressamente o próprio filósofo: O que penso segundo a medida
do gênero humano penso como o homem não pode deixar de pensar, como o individuo
deve pensar se quiser pensar normalmente, conforme a lei e dentro da verdade (EC
298-99). Pronto, aí está. Está em jogo, portanto, não apenas uma norma, mas uma
medida e uma idéia de normalidade. E, portanto, também de anormalidade ― em
Feuerbach tomada expressamente como “patologia”.
É interessante observar que na obra de nosso humanista podem-se encontrar, ao
mesmo tempo, traços de uma concepção menos transcendentalizada, menos
objetivizada, menos dualista, da essência, e uma concepção menos idealizada do gênero
― conseqüentemente, também de ética, supõe-se. E não apenas quando ele apela às
relações “afetivas” e “morais” espontâneas, encontradas no mundo vivido, como
expressões de um fundamento normativo real, prático, empírico (EC 426 ss). Se gênero
em alemão é Gattung, Beggatung é ge(ne)ração e também “intercurso”, este entendido
não só como sexo mas igualmente como “interação”, “comércio”, “intercâmbio”.
Enquanto unidade de eu-tu, a realidade do gênero feuerbachiano pode agora ser lida,
não como aquela essência transcendente, mas como interação, não objetivante mas
“espontânea” e “horizontal”, com “o outro”. Como interação, em princípio, com todos
homens; como inter-subjetividade e comunicação irrestritas (298); como solidariedade
e abertura, tolerância e inclusão. A referência à comunidade e à essência “infinita”
(ideal) como medida e fundamento normativo teria então a ver com isso ― com essa
possibilidade ou potencialidade.
Feuerbach vincula o pensar ao dialogar: É necessário ser dois para pensar (EC
211) ― para mais coisas também, naturalmente. Ele associa a linguagem ao
entendimento mútuo do gênero, das pessoas que o compõem: o gênero está na
linguagem. Bem entendido, diz ele, pensar é um ato espiritual de intercurso
(Begattung), que se mostra na linguagem; falar é uma fecundação recíproca, só se
entendem seres que participam de um mesmo gênero (475).12 Mesmo quando nosso
11
Para um comentário crítico semelhante, ver o bem fundado artigo de SERRÃO, Adriana, 1993, p. 13.
Para uma caracterização da essência feuerbachiana e de sua transformação em Marx, ver meu artigo:
SOUZA, José Crisósto, 2006.
12
Nesse caso, cito a Essência a partir da edição alemã da Akademie-Verlag, Berlim, 1984 (v. 5); não
encontrei a mesma observação na edição francesa.
15
filósofo se refere ao gênero humano como medida da verdade, ele o faz por vezes de
um modo que aparentemente submete esta (a verdade) ao entendimento mútuo entre os
falantes. Esse seria o traço “habermasiano-apeliano” (e, antes disso, “pragmatistapeirciano”) de Feuerbach: O acordo (Bestimmung) é o primeiro sinal da verdade, diz
ele (EC 298). O acordo do outro é que vale, para mim, como sinal da conformidade à
lei, sinal da universalidade e da verdade de meus pensamentos (299). A própria razão
feuerbachiana seria assim, em certa medida, comunicativa: Ela nasce apenas onde o
homem fala com o homem; ela só nasce na palavra, [que é] um ato comunitário (211).
Nasce onde um homem fala com outro.
Feuerbach,
entretanto,
está
aparentemente,
no
geral,
demasiadamente
preocupado em não abrir mão de um caráter fortemente “positivo” ― e, nesse sentido,
segundo ele próprio, até “religioso”, embora não “teológico” ― para sua concepção,
sua crença na essência. Esse é um velho dilema filosófico. Com sua crítica da religião,
os homens modernos, ao fim e ao cabo, não serão mais deixados sem Rei nem Lei, sem
Ser Supremo, sem Sagrado ― sem “Ideal” universal. Antes, pelo contrário, o gênero
humano, ou, melhor, a essência genérica dos homens é a nova e definitiva medida
última, objetiva e universal, “real” deles todos; é a lei absoluta, diz Feuerbach
expressamente. A amorosa essência genérica é o critério de todos os valores e práticas
humanas (EC 111, 134, 298), cabendo-lhe mesmo definir e separar, já sabemos, o
“normal” do “patológico”. Assim, na concepção feuerbachiana, o dever-ser
(“genérico”) fica preservado com a força do que é, do pleno e substancial: ele entende,
como vimos, que o que penso segundo a medida do Gênero, penso como o homem em
geral não pode deixar de pensar... se quiser pensar normalmente. Ora, o homem geral
não existe; quem poderia ser esse homem de Feuerbach, então?
Nosso filósofo se defende dizendo a seus críticos que não é ele quem coloca tal
essência humana fora e acima dos seres humanos contingentes e particulares. Ao
contrário, a Essência do Cristianismo constitui-se, diz ele, no único livro onde a divisa
da Modernidade, a personalidade, a individualidade, deixa de ser uma figura de
retórica vazia de sentido (ECUP 225). Se os homens reais fazem uma distinção entre
eles (enquanto particulares), de uma parte, e sua essência genérica (como valor), de
outra, se aparecem irremediavelmente cindidos em duas partes (de um lado o seu falho
eu empírico, e de outro sua suposta essência universal absolutizada), isso, essa cisão, é
obra dos próprios homens, e não dele, Feuerbach; dos homens que sempre penderiam
para esse “platonismo”, em razão de sua insegurança metafísica, por medo de
16
relativismo e de indefinição, em razão de uma menoridade. É isso, aliás, que explicaria
a própria existência do fenômeno religioso (ECUP 226) e metafísico-platônico, com
sua característica duplicação do mundo, uma que, pelo visto, o autor da Essência do
Cristianismo, agora, não se importa de ver perpetuada na sua filosofia nova.
Depois das críticas que recebe, Feuerbach diz finalmente aceitar que assumir a
própria individualidade é sempre ser “pessoal” e, mesmo, inevitavelmente, “egoísta”.
Mas, acrescenta, é também ser “comunitário” ou mesmo “comunista” (227). Como
assim? É que logo de saída, o indivíduo humano só se completa com outro: homem e
mulher, naturalmente ― para formarem “um”. Como dois não têm finalidade nem
sentido, logo se seguem três: depois da mulher, a criança.13 E, já que o Amor não se
pode satisfazer com uma só criança, única e incomparável, ele conduzirá adiante e
além (228) ― a um conjunto de filhos indistinguíveis. E por aí vai o nosso filósofo
comunitário, pelo visto também natalista e familial, supostamente, por essa via afetiva,
levado pelo amor, marchando na direção da constituição de um “Nós” que, como numa
grande família, abarque toda a humanidade, dotada, harmoniosamente de um mesmo
“parentesco essencial”, de uma mesma e única natureza ou essência substancial, novo
objeto de reverência “religiosa” e de dedicação “amorosa”, nova medida, norma e telos
para todos os homens. Mas, fica a pergunta, com a qual encerro esse texto, e que espero
não soe agora inteiramente despropositada ou ociosa: E quanto ao “outro”?, quanto aos
que não pertencem a essa nossa “família”?
Referência bibliográfica:
BAUER, Bruno. Charakteristik Ludwig Feuerbachs. Em Wigands Vierteljahrschrifit, v. 3, Leipzig,
Wigand, 1845.
BAUER, Bruno. The Genus and the Crowd (1844). Em L. Stepelevich (ed.), The Young Hegelians: An
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Marx & Engels Werke. Berlim, Dietz Verlag, 1962, vol. 21.
ESPINOSA, Baruch de. Ética demonstrada à maneira dos geômetras. In: Espinoza (Col. Os
Pensadores), São Paulo, Abril Cultural, 1983.
ESPINOSA, Baruch de. Pensamentos metafísicos. In: Espinoza (Col. Os Pensadores), São Paulo, Abril
Cultural, 1983.
13
O que parece sugerir que é na reprodução que está o sentido da relação amorosa entre
naturalmente ― um homem e uma mulher.
― sempre,
17
FEUERBACH, Ludwig. Contribution à la Critique de la Philosophie de Hegel (1839) In: Manifestes
philosophiques: textes choisis (1839-1845). Paris, Presses Universitaires de France, 1960.
__________. L’Essence du christianisme (1841). Paris, François Maspero, 1968.
__________. L’Essence du christianisme dans son rapport à L’Unique et sa proprieté (1845). In:
Manifestes philosophiques: textes choisis (1839-1845). Paris, Presses Universitaires de France, 1960.
__________. Thèses provisoires pour la réforme de la philsophie. In: Manifestes philosophiques: textes
choisis (1839-1845). Paris, Presses Universitaires de France, 1960.
__________. Principes de la philosophie de l’avenir. 1843. In: Manifestes philosophiques: textes choisis
(1839-1845). Paris, Presses Universitaires de France, 1960.
GORDON, Frederick. The Contradictory Nature of Fuerbachian Humanism. In: The Philosophical
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SCHELLING, Programa Sistemático, In: Schelling, Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1984.
SERRÃO, Adriana. Da Razão ao Homem ou o Lugar Sistemático de A Essência do Cristianismo. In:
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SOUZA, José Crisóstomo de. Marx and Feuerbachian Essence: Returning to the Question of ‘Human
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School. Cambridge University Press, 2006.
STIRNER, Max. L’Unique et sa Proprieté. (1844). Trad. Robert Réclaire. Paris, Stock et Plus, 1978.
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