A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COM ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO: DIRETRIZES E PRÁTICAS NO ÂMBITO DA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE 1 2 3 Eliseu de Oliveira Cunha , Aline Magalhães Maniçoba , Fábia Maria Ribeiro Duarte , Igor do Nascimento 4 5 6 Mesquita , Isabelle Santos Fiscina e Maria Virgínia Machado Dazzani 2 ¹ Graduando em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, UFBA. E-mail: [email protected]; Graduanda 3 em Psicologia, UFBA. E-mail: [email protected]; Graduanda em Psicologia, UFBA. E-mail: 4 [email protected]; Graduando em Psicologia, UFBA. E-mail: [email protected]; 5 6 Graduanda em Psicologia, UFBA. E-mail: [email protected]; Doutora em Educação pela UFBA, Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da UFBA e Pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected] Artigo submetido em 06/2013, revisado em 09/2013 e aceito em 09/2013 RESUMO Este trabalho traz um recorte de um estágio de vivência em psicologia, cujo objetivo fora conhecer a práxis socioeducativa com adolescentes autores de ato infracional no regime de internação. Visou-se apresentar e discutir o papel do psicólogo na área, suas diretrizes, seus desafios, sua clientela e suas práticas, haja vista a relevância política e social do tema. Em uma unidade localizada na Bahia, realizamos uma pesquisa de campo/participante, com visitas, observação e diálogos, registrados em diário de campo e analisadas, sobretudo, à luz de documentos oficiais. Notamos um paradoxo entre um modelo arquitetônico defasado e práticas profissionais éticas e humanizadas, bem como os limites do corpo técnico. O impacto da intervenção do psicólogo, ou de outro profissional, na vida dos adolescentes é tão limitado quanto é alta a ambição da medida socioeducativa, pois se almeja o resgate de uma cidadania que tem sido historicamente negada aos adolescentes. Para garanti-la, deve haver políticas públicas que antecedam a socioeducação, propiciando aos adolescentes a usufruição dos seus direitos e o enfrentamento dos problemas sociais que os vitimam. PALAVRAS-CHAVE: adolescentes, ato infracional, socioeducação. THE ROLE OF THE PSYCHOLOGIST WITH ADOLESCENTS OFFENDERS IN THE SOCIO-EDUCATIVE SYSTEM: DIRECTIVES AND PRACTICES IN THE CONTEXT OF DEPRIVATION OF LIBERTY ABSTRACT This paper presents a cutout of an internship experience in psychology, which objective was to know the socio-educative praxis with adolescents authors of infraction in the internment regime. The aim was to present and discuss the role of psychologist in the area, its directives, its challenges, its public and its practices, given the political and social relevance of this theme. In a unit located in Bahia, we performed a field research/ participative, with visits, observation and dialogues, which was registered in a field diary and analyzed, especially, as from official documents. We noted a paradox between an outdated architectural model and ethical and humanized professional practices, as well as the limits of the staff. The impact of the intervention of the psychologist, or any other professional, in the life of adolescents is as limited as is high the ambition of the socio-educative measure, because the objective is the rescue of a citizenship that has been historically denied to adolescents. To guarantee it, there must be public policies that precede the socio-education, propitiating to the adolescents the enjoyment of their rights and addressing social problems that victimize them. KEY-WORDS: adolescents, infraction, socio-education. Anais do Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovação, 2013 ISBN nº978-85-67562-01-8 1 CUNHA, MANIÇOBA, DUARTE, MESQUITA, FISCINA & DAZZANI (2013) A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COM ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO: DIRETRIZES E PRÁTICAS NO ÂMBITO DA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE INTRODUÇÃO A discussão sobre a atuação do psicólogo no sistema socioeducativo não deve advir senão sucedendo uma reflexão crítica da trajetória histórica da qual este campo é tributário. De início, é válido situar a influência da apropriação científica do poder de punir e do desenvolvimento humano na atual tessitura das formas de tratamento do adolescente em conflito com a lei. Segundo Foucault (2004), para a sociedade moderna não bastava apenas punir o infrator, deviase, sobretudo, obter um saber sobre as razões de sua infração que fomentasse a construção de práticas que pudessem neutralizar sua periculosidade e modificar sua conduta. Ao encontro dessa demanda iriam os agentes da ciência criminológica, que responderiam às questões: “É acessível à sanção penal? É curável ou readaptável? se é melhor o hospício que a prisão, se é necessário prever um enclausuramento breve ou longo, um tratamento médico ou medidas de segurança” (p. 22). Estes agentes, então, ajudariam o juiz a estabelecer as medidas adequadas a cada caso, visando não mais excluir o infrator, mas “recuperá-lo”, pois “o importante é apenas reformar o mau. Uma vez operada essa reforma, o criminoso deve voltar à sociedade” (p. 205). O campo criminológico é integrado por ciências como a psiquiatria, a psicologia e a pedagogia, as mesmas que participaram do processo de invenção da adolescência. O indivíduo e suas etapas vitais tornaram-se objeto dos estudos científicos, a maioria dos quais, no século XIX, focaram na infância, quarentena para a adultez inexistente até a modernidade, surgindo “nas camadas superiores da sociedade dos séculos XVI e XVII” (ARIÈS, 1981, p. 157), surgindo no século XX um novo objeto, a adolescência, a extensão dessa quarentena. Há, portanto, um “parentesco” entre a adolescência e a criminologia, haja vista sua apropriação pela ciência, o qual repercutiu em similitudes entre o sistema penal adulto e o tratamento destinado a adolescentes “infratores”. O foco, com estes sujeitos, também se deslocou da infração para o seu autor e suas idiossincrasias. Além disso, a inimputabilidade, que recaiu sobre o louco infrator adulto (FOUCAULT, 2004), também recaiu, no Brasil, sobre o adolescente. O TRATAMENTO DOS ADOLESCENTES À SOMBRA DA DESIGUALDADE SOCIAL O tratamento destinado aos adolescentes das distintas classes sociais no âmbito jurídicopenal divergiu bastante na história, refletindo uma desigualdade para a compreensão da qual é válido recorrer às pontuações de Foucault (2004) acerca das transformações socioeconômicas do século XVIII. Até então, cada grupo social tinha ilegalidades próprias, mantendo até certa cumplicidade, exemplificada pela apropriação, pelos empregados, de recursos das propriedades de seus patrões, e do incentivo, por parte da elite, em a plebe praticar contrabando. Porém, pelo crescimento do poder burguês, impulsionado pela expansão do comércio e da economia de mercado, reestruturou-se, com base no interesse da burguesia em acumular riquezas e consolidar a propriedade privada, a economia das ilegalidades. Logo, práticas até então toleradas, como a usufruição, por parte dos camponeses, de recursos das terras de seus patrões, passaram a ser proibidas, haja vista os seus potenciais prejuízos (FOUCAULT, 2004). Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovação, 2013 2 CUNHA, MANIÇOBA, DUARTE, MESQUITA, FISCINA & DAZZANI (2013) A ascensão da burguesia ao poder, portanto, desencadeou a divisão de ilegalidades e penas a partir da oposição de classes. De um lado, as ilegalidades da plebe – invasões e roubos às propriedades –, punidas com severidade; do outro, as da elite – corrupção e fraudes –, punidas com brandura. A lei, sua aplicação e as sanções ao seu descumprimento são estruturadas de acordo com os interesses do poder, sendo os burgueses, enquanto detentores da propriedade privada dos meios de produção em tempos capitalistas, pós-absolutistas e pró-liberalistas, integrantes ou aliados do Estado, os ocupantes deste lugar de poder que é consistente o bastante para autorizá-los a criar e impor as leis e confortável a ponto de lhes permitir burlá-las e distorcê-las a seu favor. Mas quem não integra a elite burguesa certamente não terá privilégios no tocante à transgressão da lei. Pelo contrário, será justamente a ilegalidade desses indivíduos populares, a ser reprimida, o alvo dos principais movimentos de reforma penal na modernidade. E os jovens das classes populares não ficariam de fora desses movimentos de repressão. Para César (1998), o Estado e a elite brasileira passaram a considerar os jovens de origem pobre como ameaças à ordem social, devendo ser submetidos a intervenções corretivas. Para o autor, “os mesmos discursos científicos que apreenderam ou 'inventaram' a adolescência (...) recriaram, ao longo dos séculos XIX e XX, as instituições apropriadas para o seu amparo e vigilância” (p. 14). Porém, enquanto os filhos de famílias ricas tornavam-se objetos das instituições escolares, muitos jovens de origem popular, por estarem em “situação irregular” – que, segundo CFP (2006a) nada mais é do que situação de classe – tornavam-se objetos das instituições assistenciais e corretivas. O recolhimento em unidades de internação é identificado por Rizzini e Rizzini (2004) como uma das principais medidas estatais de enfrentamento da “situação irregular”. Sob as máscaras da “reeducação” e da “ressocialização”, a internação triunfou enquanto medida oficialmente protecionista, embora fosse um dispositivo higienista perversamente engendrado para excluir. O PERCURSO HISTÓRICO-LEGAL DO TRATAMENTO DO ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI É na transição do Código Criminal do Império para o Código Penal Republicano, de 1891, que ocorre a responsabilização do Estado pelos menores de idade. Ficavam inimputáveis os menores de 14 anos que agissem “sem intenção”, embora os que tivessem entre 9 e 14 anos e agissem “com intenção” seriam recolhidos em instituições disciplinares, permanecendo até os 17 anos. Em 1927 é promulgado o primeiro Código de Menores, que visou substituir o enfoque repressor por um enfoque assistencialista, alterando a concepção do “menor” como ameaça social para a de indivíduo “carente” e “desassistido”. O primeiro código é reformulado e, em 1979, culmina em sua segunda versão, que visava exercer uma regulação dos distúrbios sociais, abordando as questões do menor na perspectiva de “situação irregular”, mantendo a internação como uma das principais medidas (SILVA, 2009). O Código de Menores é substituído, em 1990, não sem o impulso democratizante da Constituição de 1988 e da onda internacional de defesa dos direitos da criança refletida na Convenção de 1989, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Para Silva (2009), o ECA inova ao situar os adolescentes como sujeitos de direitos, como o da proteção integral, que implica, primeiro, em “reconhecer a sua condição humana. (...) Segundo, a condição diferenciada, geracional, daquele ser humano. Portanto, ele é um ser humano que, em função da sua geração (…) tem direitos especiais (CFP, 2006a, p. 49). Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovação, 2013 3 CUNHA, MANIÇOBA, DUARTE, MESQUITA, FISCINA & DAZZANI (2013) Com o ECA, o “menor infrator” torna-se “adolescente autor de ato infracional”, e a medida de privação de liberdade é colocada em posição de última instância (BRASIL, 1990). Em 2006 é criado o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), documento que estabelece referenciais e procedimentos que devem nortear a práxis socioeducativa com adolescentes, sublinhando a importância de o adolescente ter vez e voz, inclusive para participar da construção, do monitoramento e da avaliação das ações socioeducativas (BRASIL, 2006). Na especificidade do solo baiano, a práxis socioeducativa também é norteada pelo PEA, o Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo (BAHIA, 2011), que por meio de eixos temáticos organizam os parâmetros da ação socioeducativa. Dentre estes eixos, estão: suporte pedagógico e garantia do direito à escolarização; inclusão étnico-racial, de gênero e de orientação sexual e combate à discriminação; promoção integral de saúde física e mental; incentivo à diversidade de manifestações artístico-culturais; apoio à família e incentivo à autonomia cidadã do egresso; preservação da integridade dos adolescentes por ações de segurança socioeducativa; qualificação profissional que facilite sua empregabilidade e sua autossustentação. Segundo o PEA, o atendimento deve ser interdisciplinar, considerando a abordagem de áreas como serviço social, psicologia, direito, pedagogia, educação física, arte, espiritualidade, cultura e lazer, com o envolvimento da família e da comunidade. Deve haver articulação com projetos de entidades parceiras, realizados dentro e fora da unidade, como escolarização, cursos profissionalizantes, inserção no mercado de trabalho e atendimento médico. Acoplam-se a essa rede de apoio órgãos e serviços do Sistema de Garantia de Direitos e da sociedade civil (BAHIA, 2011). A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO A psicologia, no sistema socioeducativo, é um dos ramos de uma rede de profissionais, setores e projetos – norteada por leis e diretrizes condizentes com os ideais de proteção social e garantia de direitos – voltada para o atendimento de adolescentes em conflito com a lei, em vistas à construção de outras formas de existência, à margem do universo infracional. O próprio SINASE (BRASIL, 2006) garantiu tal participação ao implementar o Plano Individual de Atendimento (PIA) enquanto o instrumento que propicia o registro histórico-institucional do percurso de atendimentos dos socioeducandos, devendo contemplar informações decorrentes de avaliações nas áreas jurídica, pedagógica, social, psicológica e de saúde. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) endossa o espírito interdisciplinar do SINASE, preconizando que a atuação do psicólogo no sistema socioeducativo precisa ser construída em uma perspectiva multidisciplinar, mantendo uma relação de parceria, horizontalidade e socialização com os demais membros do corpo técnico (CFP, 2006a). Atuar na área requer “compromisso ético-político de garantia dos direitos do adolescente, preconizados no ECA e nas normativas internacionais” (CFP, 2006a, p. 114). A inspeção nacional feita pelo CFP às unidades de internação (CFP, 2006b) refletiria essa preocupação da psicologia brasileira “com as múltiplas formas de violação de direitos que existem, (...) se manifestado para buscar o desvelamento de tais barbaridades para, assim, combatê-las” (CFP, 2006a, p. 14). Para o CFP (2006a), a interface entre psicologia e socioeducação deve ser permeada por um debate de direitos humanos e por uma luta contra a desigualdade, o que implica em situar “a Psicologia em outro lugar social, um lugar de compromisso com a construção de uma sociedade mais justa” (p. 19). Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovação, 2013 4 CUNHA, MANIÇOBA, DUARTE, MESQUITA, FISCINA & DAZZANI (2013) Mas nesse “outro lugar social” há várias contradições, pois, como o próprio CFP (2006b) verificou, a maioria das unidades de internação está em situação de intensa precariedade, com recorrentes episódios de violência contra os socioeducandos. Esta realidade contradiz o Art. 2º do Código de Ética Profissional do Psicólogo (CFP, 2005), que proíbe o psicólogo de “ser conivente com quaisquer atos que caracterizem negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão” (p. 9), predicados bastante pertinentes, à luz de CFP (2006b), para qualificar a maioria das unidades de internação e determinadas práticas ali engendradas. O CFP (2006a) chega a questionar esse lugar contraditório, provocando-nos a buscar saídas diante dele: É uma campanha que questiona a privação de liberdade nas instituições totais e que se depara com profissionais que atuam nesses espaços. (…) [Que lugar ocupamos], que condições de trabalho encontramos nesses lugares e que saída ética vamos encontrar para, apesar de estarmos nas instituições totais, buscarmos construir viabilidades, saídas, acender luzes no fim dos túneis de cada um daqueles jovens (...)? (p. 26). OBJETIVO Ancorados nessa provocação, o presente trabalho apresenta um recorte de uma experiência de estágio de vivência em psicologia realizado em uma instituição destinada ao cumprimento da medida socioeducativa de privação de liberdade e à internação provisória de adolescentes autores de ato infracional, localizada na Bahia. O objetivo geral do estágio foi conhecer a práxis socioeducativa no âmbito da internação, suas bases históricas e diretrizes jurídicas, os sujeitos a quem ela é direcionada e seus agentes técnicos e as intervenções por eles realizadas, sobretudo no tocante à psicologia. O objetivo específico consistiu em apresentar e refletir criticamente acerca do lugar da psicologia e do papel do psicólogo no sistema socioeducativo, seus desafios, sua clientela, suas práticas e as diretrizes que as fundamentam. JUSTIFICATIVA A pertinência do projeto e de sua apresentação por meio deste trabalho pode ser destacada da necessidade de os agentes do fazer psicológico que atuam ou ambicionam atuar nesse âmbito refletirem histórica e criticamente acerca do sistema socioeducativo enquanto campo de elevadas relevância política e social, hajam vista as interfaces que preserva com as esferas da violência, segurança pública, desigualdade social, cidadania e direitos humanos. METODOLOGIA Nossa vivência institucional, que ocorreu no primeiro trimestre de 2013, consistiu em uma pesquisa de campo/participante, a qual contemplou a realização de visitas aos alojamentos, observações participantes em atendimentos e oficinas e conversas com alguns profissionais, sobretudo psicólogos, e com alguns adolescentes internados – os socioeducandos. Haja vista a proibição de adentrar na unidade portando quaisquer tipos de aparelhos de registro de áudio e/ou imagem, a coleta de dados ocorreu a partir de anotações em blocos de papel e no posterior registro da experiência por meio de um diário de campo coletivo e virtual, na plataforma Google Drive. Após a finalização do diário de campo, os registros foram organizados a partir de categorias temáticas e analisados à luz de documentos oficiais, sobretudo o ECA (1990), o SINASE (2006), o PEA (2011) e cartilhas do CFP (2005; 2006a; 2006b), bem como autores que abordam a temática a partir de uma perspectiva histórico-crítica, especialmente Michel Foucault (2004). Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovação, 2013 5 CUNHA, MANIÇOBA, DUARTE, MESQUITA, FISCINA & DAZZANI (2013) EXPERIÊNCIA DE CAMPO E DISCUSSÃO A UNIDADE DE INTERNAÇÃO A instituição tem capacidade para 120 adolescentes, mas à época do estágio existiam cerca de 220. Há doze alojamentos, sete destinados aos sentenciados, dois à internação provisória, um alojamento inicial, uma “reflexão” e uma ala feminina. São compostos por quartos coletivos, banheiros e uma área de convivência. A estrutura dos alojamentos se assemelha ao modelo prisional, as condições são precárias, e os espaços são pouco iluminados, e quentes, contrariando a diretriz do SINASE (BRASIL, 2006) segundo a qual as unidades de internação devem respeitar “as exigências de conforto ambiental, de ergonomia, de volumetria, de humanização e de segurança” (p. 67). As condições físicas desta instituição não são muito diferentes das demais unidades de internação no Brasil, como constatou o CFP (2006b): “superlotação nas unidades, maus-tratos, ociosidade (...) dentre outros problemas” (p. 10). OS SOCIOEDUCANDOS Os socioeducandos da unidade são, em geral, homens, negros, com nível de escolaridade oscilando entre o analfabetismo e a incompletude do ensino fundamental, oriundos de regiões periféricas da Bahia. Nessa mesma direção aponta o CFP (2006a): “quando buscamos saber quem são esses adolescentes, verificamos que são, em sua maioria, meninos negros e pobres que se encontram fora da escola e do alcance das políticas de proteção social” (p. 9). Por mais que este perfil translucide a desigualdade de medidas pautada na diferença de classes – afinal jovens de todas as classes praticam atos infracionais – certamente há, no plano quantitativo, um acento sobre os jovens negros de comunidades pobres. E, à luz da colocação de Lacan (1950 apud ROSA JR., 2006, p. 16) de que “nem o crime nem o criminoso são objetos que se possam conceber fora de sua referência sociológica”, conclui-se que qualquer tentativa de hipotetizar acerca das razões para o envolvimento de adolescentes com o universo infracional deve partir de um olhar crítico sobre o contexto social no qual ele se constituiu como sujeito. No caso dos adolescentes da instituição vivenciada, uma psicóloga relatou que muitos deles se constituíram como sujeitos em ambientes de extrema violência e exclusão. Segundo ela, desde criancinhas estes sujeitos lidam cotidianamente com a fome, a morte, o crime, a droga e o tráfico. Muitos, antes de vitimizar, passaram por vários episódios de vitimização, em um lugar de exclusão social a partir de onde a infração irrompe como uma forma de afirmação social. Nesse sentido, Rosa Jr. (2006) denuncia na sociedade capitalista o consumo como passaporte para a entrada no discurso social, isto é, o “ter” seria a imagem especular do “ser”, o valor dos indivíduos estaria pautado no capital e nos bens de consumo que possuem. Porém, há grupos sociais financeiramente impossibilitados de acessar os bens de consumo apenas através dos quais poderiam ter visibilidade social, conquanto também sejam alvo das seduções publicitárias. Daí podemos vislumbrar a infracionalidade como um mecanismo para acessar esses bens e, assim, “ascender socialmente” e obter um “status social”. Infringir acaba sendo uma forma que alguns sujeitos historicamente excluídos encontram de se incluírem no social. Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovação, 2013 6 CUNHA, MANIÇOBA, DUARTE, MESQUITA, FISCINA & DAZZANI (2013) A EQUIPE INTERDISCIPLINAR E O PROFISSIONAL DE PSICOLOGIA Cada alojamento possui uma equipe técnica de referência – psicólogo, assistente social, educador de medida e socioeducador – em consonância com as diretrizes do SINASE (BRASIL, 2006) e do PEA (BAHIA, 2011). Sobre a atuação do psicólogo no âmbito socioeducativo, o diretor da instituição citou a importância de se manter uma articulação com outras áreas e a necessidade da adoção de uma perspectiva ampliada. Uma psicóloga, por exemplo, mantém um constante diálogo com o instrutor da oficina de reciclagem. Este profissional nos contou que as oficinas ultrapassam o objetivo de confeccionar peças, pois nelas emergem questões subjetivas e relacionais dos adolescentes, por meio de pequenos acontecimentos ou até mesmo nos materiais produzidos, as quais ele reporta à psicóloga. Tal atitude propicia um atendimento mais efetivo, pois algumas questões de foro psicológico podem não surgir nos atendimentos, mas podem aparecer, por exemplo, em uma música produzida em uma oficina de Hip-hop – o que, de fato, ocorreu –, cuja letra sinalizava para problemas no relacionamento entre socioeducandos. Nesse ponto, é pertinente explicitar o imprescindível envolvimento com o universo simbólico dos adolescentes para a realização de atendimentos proveitosos, fato que constatamos entre os psicólogos da instituição. Sobre o exemplo do Hip-hop, Tomasello (2006) o situa como um instrumento por meio do qual se pode conhecer e utilizar a linguagem dos socioeducandos, propiciando uma maior compreensão do seu universo “e, consequentemente, permitindo uma atuação mais eficaz do profissional que se propõe a agir dentro dele” (p. 61). O hip-hop, enquanto veículo de expressão de experiência cotidiana dos habitantes das zonas periféricas, que cria nesses habitantes a identificação entre suas histórias pessoais, mostra-se como um poderoso instrumento de trabalho para a exteriorização de tal universo […] [trazendo] para eles a sensação de pertencimento, de estarem utilizando um recurso próprio, valorizado por sua cultura (TOMASELLO, 2006, p. 61). Nessa direção, podemos avançar situando as gírias usadas pelos socioeducandos, tais como “mundão”, “castelar”, “desembolar”, “farinhagem” e “parceiro”, como recursos linguísticos utilizados também pelos psicólogos em suas intervenções, o que facilita o contato, horizontaliza a relação e demonstra respeito pelos adolescentes. Este respeito também abarca as regras de convivência, e as respectivas sanções aos desviantes. Em caso de transgressão, como ocorreu com um adolescente que foi visto se masturbando em dia de visita, o que é expressamente proibido, o psicólogo irá mediar uma negociação entre as partes, inclusive respeitando o clamor da maioria pelo isolamento do transgressor, trabalhando melhor o impasse a posteriori. Estas atitudes de envolvimento e respeito são fundamentais para o estabelecimento de um vínculo entre os profissionais e os socioeducandos, elemento cuja importância foi unanimemente aludida. Devido ao histórico de violência e exclusão, é comum que os adolescentes conservem certa resistência para confiar em outras pessoas, daí a necessidade de os profissionais subverterem uma conjuntura de silenciamento e autoritarismo da qual muitos advieram. Tal conjuntura vê-se refletida no clamor da sociedade pelo endurecimento das leis, redução da maioridade penal e aumento dos anos de internação. Segundo o CFP (2006a), quando a maré implica no “culto ao castigo, o culto de que aquele adolescente precisa, de fato, sofrer” (p. 56), o psicólogo deve “ir contra a maré” (p. 56), contra essa lógica vingativa e em defesa do potencial transformador do sujeito. Uma psicóloga chegou a colocar que “você não está aqui para desistir, alguém já desistiu antes para que eles [os socioeducandos] estivessem aqui”. Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovação, 2013 7 CUNHA, MANIÇOBA, DUARTE, MESQUITA, FISCINA & DAZZANI (2013) Pudemos acompanhar alguns atendimentos realizados pelos profissionais de psicologia, em dois dos quais os adolescentes citaram como aspecto positivo da internação o fato de não estarem mortos ou vulneráveis à morte, conquanto relatem não ter medo de morrer. A fala de um dos adolescentes em atendimento chamou-nos a atenção no sentido da ambivalência que comportava. O socioeducando falou que poderia ficar três anos ali dentro pois “a comida tá boa”, “o atendimento tá bom”, “as atividades tão boas” e “pelo menos, não morre”, o que sinaliza para aspectos relacionados à sua proteção e à provisão de suas necessidades, os quais possivelmente ele não encontraria em seu contexto de origem. Porém, em outro momento ele diz que “por mim, eu já teria fugido”, o que revela que, por mais que haja aspectos positivos, a privação de liberdade é uma realidade da qual dificilmente um adolescente não gostaria de se ver livre. Acompanhados por uma psicóloga, perguntamos a um adolescente o que ele achava das medidas socioeducativas, no que ele respondeu que não era bom viver na “cadeia”, longe da família e dos amigos, e que o tempo demorava a passar ali dentro. Ele disse que gostava das oficinas, porque elas preenchiam a “falta do que fazer”, e do atendimento psicológico, relatando que “é bom para pensar sobre o futuro e mudar o pensamento”. Outro adolescente afirmou que “a gente acaba se acostumando, fica esperando só o tempo de voltar pra casa”. Outro afirmou que não gostava de ficar preso, que só pensava em sair e que imaginava o mundo lá fora. Ele disse que as medidas não funcionavam, pois só faziam “aumentar o ódio”, mas alegou que pretende estudar, arranjar um emprego e “sair dessa vida”. Investigando as percepções de socioeducandos sobre a privação de liberdade, Campos e Panúncio-Pinto (2005) concluíram que ela geralmente é significada como o maior incômodo vivido por eles, sobretudo quando ela interrompe os nexos com um mundo externo no qual, até então, vivia-se intensamente, gozando de extrema liberdade. A internação, para os adolescentes, acaba agravando o quadro, tornando-os ainda mais rebeldes. Nesse sentido, Foucault (2004) nos leva a questionar se a própria privação de liberdade não provocaria a reincidência, isto é, se ela não fracassaria no seu papel de devolver à liberdade indivíduos “recuperados”. Objetiva-se que se eduquem os internos no regime de internação, mas que sucesso poderia ter uma proposta educativa dirigida ao homem que vai de encontro ao desejo de liberdade que lhe é inerente? Alguns psicólogos salientaram, ainda, a presença do processo de institucionalização de alguns socioeducandos, desde cedo marcados por um processo decorrente da aplicação opressiva de aparelhos de controle social. A permanência gradativa na instituição, devido ao contato maciço com estruturas e rotinas de suporte, pode levar a um estado mental subserviente e ao enrijecimento institucional. Uma psicóloga exemplificou esse enrijecimento de alguns egressos que tinham dificuldades em desconstruir laços passados com o caso de um egresso, que totalizava 13 entradas e saídas na instituição, e que tratava a mãe como assistente social e as irmãs como enfermeiras. Nesse sentido, Foucault (2004) defende que a alma, ou subjetividade, é uma realidade produzida permanentemente no corpo pela aplicação do poder “sobre os que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, (...) fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência” (p. 161). O poder engendra formas de subjetivação, ele produz subjetividade, sendo o indivíduo uma realidade fabricada pelo que chamamos de “disciplina” (FOUCAULT, 2004). Logo, não é estranho que alguns adolescentes marcados por um intenso histórico de institucionalização demonstrem, por meio de sua linguagem e de seu comportamento, o impacto dessas tecnologias de controle. Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovação, 2013 8 CUNHA, MANIÇOBA, DUARTE, MESQUITA, FISCINA & DAZZANI (2013) CONSIDERAÇÕES FINAIS De uma forma geral, pode-se conceber o sistema socioeducativo como um palco de contradições. Na mesma instituição que vivenciamos, por exemplo, há uma estrutura física arcaica e prisional – antagônica às diretrizes do SINASE (BRASIL, 2006) – e um corpo técnico que realiza intervenções humanizadas e horizontais, como alude o ECA (BRASIL, 1990), valorizando o vínculo com os socioeducandos, aproximando-se de sua realidade material e simbólica, escutando-os e respeitando suas particularidades. É nessa conjuntura que aparece o profissional de psicologia como um dos agentes de uma socioeducação que ambiciona a construção de condições para o afastamento do adolescente do mundo infracional, sua ressocialização e o exercício de sua cidadania. Mas será que é suficiente operar nesse dispositivo? É muito improvável que uma única instituição dê conta de toda uma realidade social complexa. Uma psicóloga chegou a relatar que só acredita em medida socioeducativa de privação de liberdade que esteja articulada com a comunidade e com oportunidades externas de envolvimento com arte, cultura, esporte, lazer, educação e profissionalização. Mas esta “oportunização” não deveria ter ocorrido antes – e estar ocorrendo para todos? Subjacente ao “adolescente em conflito com a lei” não estaria um “Estado em dívida com o adolescente”? O Estado, através da socioeducação, não estaria tentando garantir ao adolescente autor de ato infracional as condições para o exercício da cidadania que não conseguiu garantir em outras instâncias? E não seria justamente essa falha do Estado em “oportunizar” ao adolescente tais condições um dos fatores que os deixam mais vulneráveis ao ingresso na infracionalidade? Ao mesmo tempo em que se verificam modificações nas formas de enxergar os adolescentes, percebendo-os como sujeitos de direitos, tais como o de “proteção integral” e o da “prioridade absoluta”, previstos pelo ECA (BRASIL, 1990), é lamentável notar a inexistência – ou A ineficiência – de políticas públicas efetivas em vistas à sua concretização. Não é possível falar no atendimento a adolescentes em conflito com a lei sem se remeter a questões macrossociais e político-econômicas que o antecedem e o transcendem. Nesse ponto, vale refletir acerca da pequeneza da atuação do psicólogo diante de uma realidade tão ampla, vasta e complexa. Nem todas as demandas são passíveis de intervenção, haja vista a pontualidade da execução da medida socioeducativa e as especificidades das intervenções. Porém, o profissional pode sim contribuir, ainda que sutilmente, apostando no sujeito e na possibilidade da reinvenção de seu lugar no plano social. O problema é que esse processo provavelmente perderá sua consistência caso a conjuntura política, econômica e social não se mova em vistas à sua manutenção. Não ocorrerão mudanças efetivas se não houver uma reformulação, a nível geral, no plano simbólico e material das formas de garantia de direitos historicamente negados a certos grupos sociais, culminando em políticas públicas que assegurem a esses adolescentes os direitos que até então lhes foram negados. A evolução das medidas socioeducativas deve seguir na direção que aponta para a efetivação de políticas que, a antecedendo, minimize suas demandas, e para a construção democrática, entre os agentes socioeducativos e os socioeducandos, bem como sua família e comunidade, das condições simbólicas e materiais para o pleno exercício de sua cidadania, reconhecendo e enfrentando os problemas socioeconômicos que os vitimam e respeitando-lhes o direito de serem autores e protagonistas de suas próprias histórias. Congresso Norte Nordeste de Pesquisa e Inovação, 2013 9 CUNHA, MANIÇOBA, DUARTE, MESQUITA, FISCINA & DAZZANI (2013) REFERÊNCIAS 1. ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. 2. BAHIA. Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo. 2011. Disponível em: <http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/infancia/medidas/documentosimportancia/plano_medidas_soci oeducativa_2011_2015.pdf>. Acesso em: 21 mar. 2013. 3. BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 19 mar. 2013. 4. BRASIL. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Brasília: Conanda, 2006. 5. CAMPOS, F. R. S., PANUNCIO-PINTO, M. P. Compreendendo o significado da privação de liberdade para adolescentes institucionalizados. In: SIMPOSIO INTERNACIONAL DO ADOLESCENTE, 2., São Paulo, 2005. Proceedings online... 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