A Psicanálise e o adolescente em conflito com a lei: um diálogo possível?1 Milene Mabilde Petracco2 Ei irmão nunca se esqueça Na guarda, guerreiro levanta a cabeça, truta Onde estiver, seja lá como for Tenha fé, porque até no lixão nasce flor. Racionais Mcs – Vida Loka (parte 1) Introdução Reafirmando a importância das palavras, quando tratamos de Psicanálise, não poderia escolher outra, que não desejo, para explicitar a escolha pelo tema do presente texto. Desejo este de criar pontes e possibilitar diálogos entre a problemática do adolescente em conflito com a lei, entendida como sintoma social, e alguns pressupostos da teoria psicanalítica. Embora se tratando de um trabalho eminentemente teórico, minha escrita terá como pano de fundo a experiência de atendimento a adolescentes em cumprimento de medidas sócio-educativas em meio-aberto no Programa de Prestação de Serviços à Comunidade da 1 Monografia teórica desenvolvida a partir do Trabalho de Conclusão do terceiro ano de Formação pelo Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre - CEP de PA, sob a orientação de Denise Costa Hausen. Este trabalho foi apresentado em novembro de 2007. Agradeço ao CEP, pelo acolhimento, trocas e aprendizagem. À Denise Costa Hausen pela leitura cuidadosa e pelos apontamentos sempre tão ricos, que, para além da construção desta monografia, contribuem em meu processo de formação como psicanalista. À Carmem Maria Craidy, por possibilitar novas leituras sobre as questões que venho me dedicando a estudar. À Viviane de Freitas Souto por compartilhar com leveza e profundidade a teoria lacaniana. Aos adolescentes de quem trata o presente trabalho, por me oportunizarem a com eles aprender através da escuta psicanalítica do social. 2 Mestranda pela Faculdade de Educação da UFRGS, psicanalista em formação pelo Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre. Universidade Federal do Rio Grande do Sul - PPSC/UFRGS, especificamente às medidas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade.3 A escuta destes adolescentes, aliada ao embasamento teórico que o processo de formação proporciona, tem suscitado uma série de inquietações. Estas, incluem questões como o quanto pode a Psicanálise contribuir na compreensão da trajetória que culmina no envolvimento de adolescentes em atos infracionais e na construção de intervenções mais eficazes para o enfrentamento do fenômeno da violência juvenil, entendendo que os postulados desta teoria dizem respeito àquilo que é do humano e, conseqüentemente, do social. Para a construção desta reflexão, trarei além de sucintos recortes da prática, dados relativos ao universo do adolescente infrator e conceitos psicanalíticos, como por exemplo, dos processos primário e secundário do funcionamento psíquico, pulsões de vida e de morte, e outros especificamente sobre adolescência. Breve contextualização sobre o adolescente em cumprimento de medida sócioeducativa em meio aberto De acordo com pesquisa realizada por Craidy & Gonçalves (2005), os adolescentes que passam pelo PPSC são predominantemente do sexo masculino, com idades entre dezesseis e dezessete anos, de classe socioeconômica baixa, brancos, ainda que proporcionalmente ao número de negros na população, os negros sejam mais numerosos. 3 De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069/90 , Artigo 117, a Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses. As tarefas devem levar em conta as aptidões do adolescente devendo ser cumpridas em jornada máxima de oito horas semanais, sem prejudicar a freqüência à escola ou à jornada normal de trabalho. O Artigo 118, por sua vez, trata da medida de Liberdade Assistida (LA). Esta deve ser adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente, por pessoa capacitada designada pela autoridade judicial. A LA será fixada pelo prazo de seis meses, podendo ser prorrogada, revogada ou substituída por outra medida. Adolescentes que habitam as periferias da cidade e vivem em situação de vulnerabilidade social. Em sua grande maioria, estes adolescentes cometem infrações contra o patrimônio e não contra a pessoa, o que revela que, embora em muitos casos a infração esteja acompanhada de atos de violência, isto não diz respeito ao universo dos adolescentes em conflito com a lei. O fato de poderem cumprir medidas determinadas judicialmente em liberdade aponta para a não gravidade e/ou não reincidência das infrações por eles cometidas. Importante lembrarmos que grande parte destes adolescentes vive em um caldo de cultura violenta que nega a muitos a proteção de seus direitos fundamentais, inclusive o de sentirem-se socialmente integrados e humanamente reconhecidos. O rap, música que traduz em versos esta realidade, pode então se configurar como uma forma de expressão possível. Um dos refrões cantados por eles é entoado pelo rapper Mv Bill que denuncia: “já vou ficar no lucro se passar de dezoito, depois que escurece o bagulho é doido. O mesmo dinheiro que salva também mata, jovem com ódio na cara, terror que fica na esquina esperando você chegar”. Desta forma enfatizo que, embora a infração, em muitos casos, tenha ligação com um ato violento os termos ato infracional e violência não são sinônimos. Assim, o uso do termo violência no decorrer do texto, não será necessariamente usado como o ato infringido pelo adolescente, mas também em referência às situações que convergem para que este fora da lei aconteça. Para Rosa (2005), abordar a questão da violência significa estar em contato com a complexidade e obscuridade que envolve o conceito. A violência pode configurar-se através de uma gama de possibilidades, as quais adotam formas singulares dependendo das nuanças simbólicas de cada contexto. O autor aponta ainda que existe uma tendência a tratarmos deste tema através de discursos queixosos e vitimizados, sendo esta uma das maneiras encontradas para escaparmos de nos haver com o “potencial destrutivo existente em cada um de nós.” (p. 117) Desde Freud (1915) podemos pensar no conceito de violência a partir do caráter traumático da pulsão, posto que, embora seja intrínseca à constituição e dinâmica psíquica do sujeito, a pulsão agride o aparelho psíquico desde dentro. Diferentemente dos estímulos advindos do mundo externo, dos quais se pode fugir a partir da ação motora, o pulsional exerce uma pressão constante e “irremovível” (p. 147) sobre o psiquismo. Aulagnier (1979) por sua vez, fala-nos dos conceitos de violência primária, compreendida como a ação da mãe que, ao atender as necessidades de seu bebê o erotiza e o “invade” psiquicamente. A partir destas duas colocações torna-se possível compreendermos que, diferentemente da violência social, existe um tipo de violência que é constitutiva do sujeito, sendo inclusive necessária para a existência da vida psíquica. Ao tratar sobre o tema da violência psíquica, Hausen (2003) aponta que atualmente, diferentemente do que acontecia no século passado, quando Freud tratava das histéricas daquela época e quando a repressão sexual era a ordem do dia, a violência se faz pelo nãoreprimido. A partir deste fato, assistimos às mais diversas conseqüências da “violência do permitido que toma lugar da violência do proibido” (p. 42), ou seja, o uso de forma predadora do corpo do outro e do próprio corpo. A infração enquanto sintoma social Enquanto ação que acontece em meio a um cenário, vale questionarmos o quanto a sociedade gera a violação da lei, já que há todo um incremento, e isto nos meios de comunicação é bastante notável, no sentido de vender a imagem desta adolescência violenta como a causa do mal-estar atual. Ao tratar do tema da criminalidade, Lacan (1966) aponta que, por vezes, a sociedade está de tal forma alterada em sua estrutura que lança mão de mecanismos de exclusão do mal, elegendo bodes expiatórios. Rassial (1997) corrobora com esta idéia, ao propor-nos a delinqüência enquanto patologia específica da adolescência, e esta, enquanto uma patologia da sociedade. Tal afirmativa justifica a necessidade de, ao tratarmos da violência juvenil, nos remetermos aos fenômenos do social, como pontua Endo (2005). “ Neste sentido, as violências não podem, como células mortas, ser simplesmente extirpadas do tecido sadio, sendo assim restabelecidas a ordem e o equilíbrio. Ao contrário, em torno delas gira uma rede imensa que se complexifica com muita rapidez. Isto ocorre na mesma medida em que absorve para o seu entorno e para sua estrutura de funcionamento, pessoas, grupos e instituições inteiras que trabalham em prol da perpetuação de uma sociedade cada vez mais homogênea e cada vez menor, na qual poucos obtêm o máximo em privilégios” (Endo, 2005. p. 24) A partir destas colocações cabe refletirmos sobre o que refere Oliveira (2005) ao enunciar que, as notícias de delitos praticados por jovens circuladas através dos meios de comunicação são significativamente desproporcionais às que revelam violências das quais os jovens são vítimas. Estas, por sua vez, viram pequenas e secundárias notas, quase invisíveis nas páginas dos jornais. “Em nome da rigidez discute-se a maioridade penal, justiça terapêutica, entre outros temas. Novamente é sobre os jovens que recai o lado da dureza da justiça, justamente porque a sociedade se vê despreparada para dar conta do que a criminalidade desvela da fragilidade do nosso laço social” (Conte, 2005 p. 86) As contribuições de Soares (2003), enquanto antropólogo e cientista político estão em sintonia com as proposições de Lacan (1966) e Rassial (1997), especificamente no que diz respeito ao fato de que a violência da qual a sociedade reclama e se queixa é por ela mesma produzida. Soares (2003) nos convoca a pensar no binômio violência/juventude a partir do conceito de invisibilidade social, a saber, o fenômeno sofrido pela grande parcela excluída e estigmatizada de nossa sociedade. “Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade é um ser socialmente invisível” (p. 132) O autor aponta que, muito embora existam fatores sociais, políticos e econômicos atravessando a problemática da violência e juventude, o estigma, mecanismo de controle social por nós produzido e perpetuado (mesmo que de maneira inconsciente) nos torna incapazes de enxergar cada um dos atores deste trágico cenário em suas historicidades, singularidades. Em outras palavras, enxergamos a arma e não o sujeito que a aponta contra nós. Se, de acordo com a teoria lacaniana o sujeito só passa a existir enquanto tal a partir do olhar de reconhecimento do outro, como se dá a existência dos sujeitos socialmente invisíveis? Cabe aqui atentarmos para as contribuições de Hannah Arendt (1994), sobre o tema da violência. Em Sobre a Violência esta autora nos convoca a refletir sobre as contradições existentes entre os termos poder, vigor, violência e autoridade. Para Arendt, poder e violência são termos opostos, já que a existência de um significa a ausência do outro, sendo específica da violência a capacidade de aniquilação e destruição do poder. Nesta perspectiva, o que surge do cano de uma arma a nós apontada não é poder, e sim sua negação. A partir das afirmativas de Lacan e Arendt, vale questionarmos se não é justamente através do ato infracional que estes sujeitos considerados invisíveis do ponto de vista social conseguem capturar este olhar que os reconhece, ou em outras palavras, que lhes confere existência psíquica. Frente a este cenário, o que mais nos diz a psicanálise? Entendendo que a violência, como os demais sintomas psíquicos, é produzida por uma trama complexa de fatores e que demanda diferentes olhares e saberes, a proposta de trazer a psicanálise como forma de entendimento da adolescência infratora dá-se no intuito de complementar outras leituras possíveis para este fenômeno. Desta forma, longe de almejar respostas para a problemática do adolescente em conflito com a lei, o presente texto configura-se como tentativa de travar diálogos entre esta temática à luz da psicanálise, objetivando reflexões a este respeito. No livro Mal estar na atualidade Birman (1998) alerta-nos para o fato de que, ao usarmos o conhecimento psicanalítico de maneira linear e aplicada corremos o risco de criarmos obstáculos a nossa própria escuta, o que nos deixa de mãos amarradas frente ao contexto histórico contemporâneo. Entendendo que a psicanálise não faria sentido senão nas sociedades modernas, democráticas e urbanas, espaços onde não mais vigoram as modalidades tradicionais de organização familiar e social, ou seja, nas quais o pai já não ocupa o mesmo lugar de poder e autoridade, Kehl (2002) refere que a psicanálise não parte do ser, mas do falta-a-ser, na medida em que concebe o sujeito não como ser de natureza, mas como ser de linguagem, criador de significações e valores. “Diante da queda do saber e do poder incontestáveis do pai, a psicanálise não se propõe, como pensam alguns de seus críticos, a ocupar o lugar deixado vazio pelo pai onisciente e onipotente (embora muitas vezes os psicanalistas e suas instituições cedam à tentação desse poder), mas fazer falar “os filhos”, nós mesmos, órfãos de uma verdade estabelecida, para fazer emergir as pequenas verdades singulares, recalcadas” (Kehl, 2002. p.35.) Por este motivo Oliveira (2001) pensa ser inquestionável a importância de uma escuta clínica da infração, visto que essa engloba uma série de motivações conscientes e inconscientes. Na medida em que tratamos de infrações cometidas por adolescentes, é válido trazermos algumas questões relativas à adolescência propriamente dita. Em psicanálise, clássicas produções teóricas sobre este tema (Aberastury, Knobel, Blos) caracterizam-na como processo de mudanças biopsicossociais que tem como características gerais modificações nas relações objetais, lutos e escolhas de diversas ordens, ou seja, toda uma reordenação da vida psíquica. Para Rassial (1997) autor que concebe a adolescência não como processo determinado cronologicamente e sim como trabalho psíquico, operação subjetiva, existe uma certa resistência dos analistas para tratar da temática. Isto porque os textos sobre adolescência costumam reduzi-la ao último período da infância e porque, na prática existe certa reticência em receber adolescentes para análise, já que este período de crise dificultaria o trabalho de retorno, do a posteriori. “Uma teoria da adolescência somente é possível se o analista aceita expor-se às bordas do discurso analítico, no sentido que sua posição, com o adolescente, leva-o sem cessar ao risco do discurso filosófico” (Rassial, 1997. p. 13) A escuta do adolescente depara-nos com as questões de nosso próprio processo de adolescer, o que significa dizer, com aspectos de nossa própria psicossexualidade infantil, o que não é tarefa tão simples quanto possa parecer à primeira vista. E, especialmente no caso de adolescentes em conflito com a lei, confrontamo-nos com toda a trama de questões sociais, econômicas e políticas das quais, longe de sermos vítimas queixosas ou meros espectadores, somos protagonistas ativos. Em O Mal Estar na Civilização, Freud (1929) aponta que nenhum elemento de nossa vida mental primitiva é descartado, já que os elementos infantis ou até mesmo os conteúdos não passíveis de tradução através de representações convivem lado a lado com a vida mental mais madura. Esta proposição freudiana encontra-se em sintonia com a afirmativa tecida por Lacan, a qual refere que: “A história não é o passado. A história é o passado na medida em que é historiado no presente – historiado no presente que foi vivido no passado.” (Lacan, 1953-1954, p. 21) Neste sentido passado e presente não podem ser separados cronologicamente como muitas vezes tentamos fazer, na medida em que se integram por outra lógica, aquela que rege os processos inconscientes. No caso da adolescência, por ser considerado processo crucial para a constituição do sujeito, a intensidade com que os conflitos ligados a psicossexualidade infantil são revividos tem inúmeras facetas. Como uma das marcas importantes deste reviver cito a ambivalência nas relações objetais, elemento marcante neste momento da vida. A linguagem utilizada pelos adolescentes de quem se trata o presente texto ilustra esta luta entre opostos vivida de forma intensa. “Tri xarope”, por exemplo, expressão comumente utilizada por estes adolescentes, pode ser entendida, por um lado, como algo de extraordinário, revelando o sentimento positivo em relação a algum acontecimento ou, de outro, referir-se a alguma coisa ruim, negativa. Além da ambivalência, a questão do luto. Este pode ter relação à criança que se foi e não se é mais (será?), aos pais da infância que já não são mais os mesmos, ao corpo que se modifica intensamente e denuncia algo novo. No que se refere à relação do adolescente com os pais, Rassial (1997) aponta que na adolescência o sujeito descobre que o pai, ao assemelhar-se com ele, torna-se mortal. Assim, está à mercê não mais da morte simbólica, mas da morte real. “Sendo absolutamente Outro, diferença radical da qual o inverso é a identificação, o pai, pelo golpe de força de uma semelhança que nenhuma identificação transcende, mascara ou reduz, cessa de ser o representante único da ordem simbólica. Quando o filho se mede ao pai, o corpo do pai entra em cena, não mais mítico, mas tomado em uma cadeia na língua, e da qual o nascimento e a morte são as pontuações reais. O pai (destituído) é designado, ao mesmo título que o filho, como elo na cadeia das gerações, garantidor provisório e parcial da permanência do Nome na cadeia dos significantes” (Rassial, 1997. p, 15) Mas, apesar da existência de aspectos comuns, a adolescência apresenta particularidades em suas manifestações, dependendo do contexto onde acontece. Levinski (1998) refere que tais manifestações dependem da cultura e da sociedade onde o processo adolescente se dá. Rassial, (1999) ao caracterizar o adolescente como um não-totalmente, refere que durante a adolescência o sujeito não encontra amparo no estatuto de criança e nem tampouco no estatuto de adulto. Nesta perspectiva, o adolescente assemelha-se a um imigrante, quem ainda não encontrou seu próprio lugar. Em seus escritos sobre a violência juvenil, Oliveira (2001) oferece-nos o conceito de violência exacerbada, este enquanto processo caracterizado pela incessante busca de reconhecimento e autonomia, apontando o ato infracional como um dos possíveis movimentos desta busca. Para tal conceitualização a autora inclui elementos sociais da atualidade, como o fenômeno da globalização, do capitalismo e a cultura do narcisismo. Na medida em que, como todos nós, estes adolescentes sofrem o apelo midiático que convoca a um consumo irresponsável, mas não possuem meios legais de acesso aos objetos de valor social, utilizam as formas possíveis para obtê-los. No ensaio intitulado A complexidade das relações entre violência, drogas e laço social, Conte (2005) refere que a cultura narcísica “impossibilita o sujeito de se confrontar com seus conflitos, silenciando qualquer sofrimento ou frustração através da medicalização, do consumo ou dos dogmas” (p. 82) Assim, as roupas de marcas podem proporcionar uma diminuição da distância entre os mais e os menos economicamente favorecidos, oportunizando ao sujeito ter aquilo que é valorizado no imaginário da sociedade onde vive. “Quantas molas tem teu Nike Shok?”(modelo de tênis bastante valorizado atualmente, que contém molas de amortecimento na sola) é fala que expressa esta busca por ter o que é valorizado socialmente. As richas entre bondes ou bocas de tráfico, como são nomeados os grupos de jovens que se juntam para a ida a bailes funks e pichações e os pontos de venda de drogas, respectivamente, são também marcas importantes deste processo adolescente de definir-se enquanto sujeito. Uma batalha intensa por reconhecimento, que por vezes tem seu fim trágico na morte de um ou de muitos jovens. Novamente a composição de Mv Bill nos auxilia a pensar, trazendo o depoimento de um menino que desabafa: “Se eu morrer nasce outro que nem eu, ou pior, ou melhor.” Oliveira (2001) pontua que, para os adolescentes de periferia a busca por reconhecimento e autonomia encontra grandes obstáculos, na medida em que enfrentam para além das questões da adolescência em si, faltas de diferentes ordens. Com isso, não devemos fazer uma associação direta entre pobreza e violência, mas sim informar-nos de que nas sociedades onde há maior desigualdade social há maiores índices de violência e criminalidade. Nesta perspectiva, cabe pontuarmos o que refere Zaluar (1994) ao afirmar que os objetos de consumo alvos do desejo adolescente são os mesmos para um menino que habita uma favela carioca e para um norte-americano de classe média. Quais serão as possíveis repercussões deste abismo social? Em Privação e Delinqüência Winicott (1987) aponta o ato anti-social como um indicador de esperança, no sentido de que, ao furtar um determinado objeto o sujeito está inconscientemente indo em busca de algo que está para além do objeto material subtraído. Em muitos casos, a infração funciona como pedido de ajuda, um grito por socorro. Na medida em que as necessidades e fragilidades não puderam contar com o acolhimento familiar e social, apela-se a autoridade judiciária. Não é por acaso que muitos adolescentes que se envolvem com o tráfico de drogas acabam tendo no patrão da boca, como é por eles chamado o chefe desta rede, uma referência do mundo adulto. Este fato permite-nos desmistificar aquilo que acaba sendo parte do discurso comum quando nos remetemos a sujeitos em situação de vulnerabilidade social, em particular àqueles que têm como sintoma manifesto a transgressão da lei, a saber, a falta ou falha da figura do pai e/ou da mãe. Lacan (1957-1958) auxilia-nos a refletir sobre a questão ao nos oferecer o conceito de função paterna. Isto porque ao nomeá-la enquanto função possibilita-nos incluí-la naquilo que é da ordem do registro simbólico, ou seja, enquanto metáfora, o que nos permite falar de determinado objeto mesmo em sua falta. Para o autor, a metáfora consiste na possibilidade de um significante surgir em lugar de outro significante. Seguindo esta linha de pensamento, podemos pensar que muitas pessoas e até mesmo instituições podem ocupar este lugar. Cabe aqui questionarmos o quanto o adolescente, ao cometer uma infração, não está justamente legitimando a existência e importância desta função: a interdição, a Lei. Esta, por sua vez, pode estar encarnada no professor, na escola, no técnico que acompanha o cumprimento da medida judicial, no Juiz, e porque não no patrão da boca (chefe da rede do tráfico), já que neste caso, apesar da ilegalidade, há uma série de regras e leis e o não cumprimento das mesmas acarreta em punições severas, sendo que por vezes o sujeito as tem de pagar com a própria vida. Façamos uma retomada a partir do Projeto para uma Psicologia Científica, artigo em que Freud (1895) traz-nos importantes questões relativas à constituição do aparelho psíquico, como o conceito de experiência de satisfação, dos trilhamentos neuronais e o fato de ser o desamparo inicial a fonte primordial de todos os motivos morais. Sendo a adolescência momento de reedição das vivências infantis como podemos pensar sobre a questão do desamparo? E, ainda, por tratarmos de adolescentes em situação de vulnerabilidade social, ou seja, sujeitos que não tem os direitos fundamentais garantidos, como o ato infracional pode ser entendido? O ato infracional no lugar da palavra Como instigador da presente reflexão, pontuo uma característica evidente dos adolescentes que passam pelo PPSC/UFRGS o fato de, em sua maioria, reagirem com ar de intenso estranhamento quando lhes é perguntado quais são suas preferências. É dado comum quando questionados sobre o que gostam de fazer na vida, responderem: “Eu? Do que eu gosto? Não sei...” Quando solicitados a debates, durante atividades em grupo, a dificuldade de expressão através da fala é também evidente. Tendo como hipótese o que coloca Dolto (1999) ao entender a violência quando “não se diz ou não se diz mais”, podemos traçar um paralelo entre o atendimento a adolescentes em conflito com a lei, e o processo analítico propriamente dito, na medida em que ambos consistem em dar espaço para fazer surgir as palavras. E, ao concebermos o ato de transgressão da lei como falha ou inexistência das palavras, podemos traçar pontos de convergência entre a infração e os modos de funcionamento do aparelho psíquico, descritos por Freud (1911) em Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico. O autor descreve o processo primário como aquele que rege os mais primitivos processos mentais e que tem como meta a busca incessante pelo prazer, sendo o processo secundário compreendido como aquele que permite-nos postergar este prazer, regido pelo princípio de realidade e tendo como funções características o pensamento, a atenção e a avaliação do juízo. Desde o nascimento, a medida em que nossas necessidades são confrontadas com o mundo externo, frustrações acontecem e dão início ao processo de substituição do processo primário pelo secundário. Este não acontece repentinamente e não encobre todo o psiquismo, visto que as fantasias seguem desempenhando um importante papel pela vida afora. No entanto, é esperado que no decorrer das experiências que vivenciamos possamos ir construindo novas formas de interação com o mundo, sabendo postergar satisfações, tolerando o desprazer. Nesta perspectiva, em consonância com os processos mais primitivos do aparelho psíquico, o ato infracional pode ser concebido como manifestação que aparece ocupando o lugar do adiamento de satisfação, do pensar antes de agir, sendo entendido enquanto busca de descarga de um quantum de libido, enquanto a possibilidade de traduzir em palavras e refletir sobre o ocorrido como ações apoiadas no princípio de realidade, característico do processo secundário de funcionamento deste aparelho. Novamente, em O Mal Estar na Civilização (1929) Freud coloca que a introdução do princípio de realidade nos processos psíquicos dá-se no intuito de nos capacitarmos para o enfrentamento das sensações de desprazer com as quais nos deparamos durante a vida. No entanto, as tentativas de desviarmos de certas excitações desagradáveis não nos tornam imunes ao sofrimento e isto é ponto de partida de importantes distúrbios patológicos. “Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com outros homens.” (Freud, 1929, p 84-85) Podemos ainda, partindo de Freud (1911) pensar sobre o papel que as instituições escolares desempenham na trajetória de infração dos adolescentes, já que grande parte desses apresenta baixa escolaridade. Conforme coloca o autor, a educação é, sem dúvida, um significativo estímulo para a superação do princípio de prazer pelo princípio de realidade. Esta questão merece ser pensada, já que: “De um modo geral, a precária situação do setor educacional no Brasil pode ser apontada como um dos fatores que levam o adolescente de periferia a se sentir pouco mobilizado com a escola, um lugar de onde evade muito cedo, ou que serve apenas para preencher o tempo ou cumprir os ritos sociais previstos nesta faixa etária. Uma recusa à escola que é feita, em primeiro lugar, pelos governos, quando esses são os primeiros a desprestigiar a escola pública, com os salários achatados dos professores e os escassos investimentos na infra-estrutura para o trabalho em sala de aula.” (Oliveira, 2001. p. 49) Freud (1929) também aponta para a importância do trabalho na vida do homem, muito embora não seja valorizado por esse tanto quanto poderia. Para o autor, a atividade profissional desempenha papel significativo na economia libidinal e constitui uma fonte de satisfação especial, particularmente quando é feito por livre escolha. O trabalho torna possível o deslocamento de uma gama de componentes libidinais, narcísicos, agressivos ou até mesmo eróticos. Como podemos incluir esta questão na situação dos adolescentes a que nos referimos, sendo eles socialmente vulneráveis e estigmatizados, se vivemos uma época em que o desemprego é fato comum para um grande número de pessoas e, mais intensamente para a parcela jovem da população? E ainda, sendo a vida escolar parte importante na inserção no mercado de trabalho e a escola um lugar de onde evadem ou são excluídos? Não é incomum escutarmos destes adolescentes que a procura de emprego não tem retorno positivo. A partir da escuta que o atendimento proporciona, algumas falas evidenciam esta realidade: “tudo o que eu queria era ter um serviço” ou “tentei, falei que mesmo tendo bronca na justiça eu quero mudar, que eu preciso trabalhar para ajudar minha família, mas não teve jeito”. O ato infracional a partir da dualidade pulsional Freud (1923), em seu artigo O Ego e o id, traz-nos importantes contribuições no que diz respeito à dualidade pulsional que habita o aparelho psíquico. Embora trace diferenças pontuais entre pulsão de vida e pulsão de morte, refere que ambas têm em comum o fato de serem conservadoras, ou seja, apresentam-se como um esforço do aparelho para restabelecer a certa organização que fora abalada pelo surgimento da vida. Acrescenta ainda que a vida em si é ao mesmo tempo um conflito e uma reconciliação entre estas duas tendências. Em O problema econômico do masoquismo (1924), texto no qual Freud trata da questão do sadismo e do masoquismo e retoma alguns aspectos das duas classes de instintos, a saber, das pulsões de vida e de morte é afirmado que: “No que concerne ao campo psicanalítico de idéias, só podemos presumir que se realiza uma fusão e amalgamação muito ampla, em proporções variáveis das duas classes de instintos, de modo que jamais temos de lidar com instintos de vida puros ou instintos de morte puros, mas apenas com misturas deles, em quantidades diferentes” (Freud, 1924. p. 181-182). Levando em conta o contexto onde se encontram a grande maioria dos adolescentes em conflito com a lei, ou seja, num ponto de esgarçamento das diferenças sócioeconômicas, onde a falta antes mesmo de se constituir como construção simbólica, é falta real, o que a infração pode denunciar? Talvez melhor formulando a questão, do ponto de vista da dualidade das pulsões, a que(m) o ato infracional está a serviço? Muito embora não exista em realidade a separação entre as pulsões de vida e de morte, a partir da colocação de Freud (1923) em relação ao fato de ser através de Eros que as pulsões de destrutividade são direcionadas ao mundo externo e, ainda, que a pulsão de morte é silenciosa, talvez possamos conceber o ato de infringir a lei como um movimento em prol da vida. A intenção a partir destas hipóteses, longe de buscar uma versão romanceada para o momento que vivemos, de medo e sofrimento, é buscar, de acordo com o compromisso de todo o ato analítico, o que está por trás, ou seja, rastrear as motivações inconscientes destas atitudes. Possíveis destinos... A escrita desta monografia marca um momento importante do processo de formação: a interiorização de conceitos psicanalíticos desconhecidos até então e a releitura de outros tantos, os quais embora tenham sido estudados previamente demandam um entendimento novo, a partir da prática. Metaforicamente, a possibilidade de utilizar a teoria psicanalítica para a compreensão das situações que envolvem adolescentes em conflito com a lei significa uma ponte, uma ligação de dois espaços que, apesar de se mostrarem distantes à primeira vista, no que tange aos fatores sócio-econômicos, culturais e até mesmo dos espaços geográficos que ocupam, apresentam ligações importantes entre si. Refiro-me, pontualmente ao atendimento clínico individual, enquanto prática que institui a formação psicanalítica enquanto tal e a experiência em trabalho sócio-educativo junto a adolescentes em conflito com a lei. Possivelmente, as mudanças, no que dizem respeito ao enquadre e ao atravessamento de fatores sócio-econômicos e culturais já citados, que no caso do trabalho com adolescentes infratores talvez sejam mais evidentes, fizeram-me viver durante algum tempo um sentimento de dissociação entre estes espaços. Desta maneira, a tentativa de travar diálogos entre a Psicanálise e a problemática social da violência na juventude é significativa oportunidade de integração e reflexão. Acreditando no papel social que a psicanálise tem, enquanto instigadora de questionamentos sobre os fenômenos vividos pelo homem e enquanto valorizadora da palavra, penso que esta oportunidade é de suma importância. Enfatizo que o presente texto versa muito mais a respeito da violência na juventude do que da violência da juventude. Isto por ficar claro, a partir das contribuições teóricas de Freud, Lacan, Rassial, Endo, entre outros autores citados no transcorrer do texto, o quanto somos todos, em algum aspecto, agentes desta violência da qual somos reclamantes. Na medida em que fizemos parte do cenário social, histórico, econômico e cultural onde os adolescentes em conflito com a lei se constituem como tal e onde os atos infracionais se desenrolam, contribuímos com nossa parcela para esta realidade. De outra perspectiva, o conceito de violência primária apontado por Piera Aulagnier, talvez nos possibilite conceber que o sujeito, independentemente das diferenças entre os contextos externos, é submetido ao desejo do outro desde sua chegada ao mundo, já que é, mesmo antes de nascer, inundado pelo psiquismo deste outro, seja pela mãe ou quem ocupar o lugar de cuidador. Este entendimento está em sintonia com o postulado lacaniano que entende a constituição do sujeito a partir do desejo do desejo. Retomando as contribuições de Freud, lembremos que a parte primitiva de nossa vida psíquica convive lado a lado com as representações que tiveram outros destinos. Provavelmente todo o aparato sócio-cultural, e aqui a vida escolar e profissional, em consonância com o pensamento deste autor, têm lugar de destaque, seja o que nos permite historicizar e dar destinos possíveis para aquilo que, enquanto sujeitos desejantes, carregamos como marca, bem como enquanto forma de lapidar esta parte primitiva de nosso psiquismo de que Freud se refere, tornando a vida social menos sofrida. Ainda, articulando as contribuições de Rassial, autor que concebe o adolescente como um imigrante que ainda não encontrou seu próprio lugar e de Oliveira, ao colocar que a infração pode ser entendida como busca exacerbada de autonomia e reconhecimento, podemos pensar na importância que tem para os adolescentes em conflito com a lei espaços sociais de reconhecimento e de escuta. Desta forma, considerando o contexto em que está mergulhada esta adolescência e, ainda, entendendo a importância da criação de formas de expressão possíveis para a mesma, acredito que a psicanálise muito tem a dizer sobre esta realidade. Aliás, na medida em que infração pode ser pensada como o ato no lugar das palavras, mais do que dizer, a psicanálise tem o dever ético de fazer falar. Referências Bibliográficas ABERASTURY, Arminda; KNOBEL, Maurício. Adolescência normal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1981. AULAGNIER, Piera. A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago, 1979. ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de janeiro: Relume-Dumará, 1994 BIRMAN, Joel. O mal estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. BLOS, Peter. Adolescência: uma interpretação psicanalítica. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8069/90. CONTE, Marta. 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