Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil Rafael Guerreiro Osório Secretaria Internacional do Trabalho Brasil GRPE • OIT Copyright © Organização Internacional do Trabalho 2006 1ª edição 2006 As publicações da Secretaria Internacional do Trabalho gozam da proteção dos direitos autorais sob o Protocolo 2 da Convenção Universal do Direito do Autor. Breves extratos dessas publicações podem, entretanto, ser reproduzidos sem autorização, desde que mencionada a fonte. Para obter os direitos de reprodução ou de tradução, as solicitações devem ser dirigidas a Publicações OIT (Direitos do Autor e Licenças), International Labour Office, CH-1211 Geneva 22, Suíça, ou por e-mail: [email protected]. Os pedidos serão bem-vindos. Osório, Rafael Guerreiro. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil / Rafael Guerreiro Osório; Programa de Fortalecimento Institucional para a Igualdade de Gênero e Raça, Erradicação da Pobreza e Geração de Emprego (GRPE). — [Brasília] : OIT - Secretaria Internacional do Trabalho, 2006. 116 p. : il. – (Cadernos GRPE; n.2). ISBN 92-2- 818980-0 & 978-92-2-818980-3 (print). ISBN 92-2- 818981-9 & 978-92-2-818981-0 (web pdf) 1.Discriminação Racial. 2. Discriminação Sexual. 3. Serviços Públicos. I. Programa de Fortalecimento Institucional para a Igualdade de Gênero e raça, Erradicação da Pobreza e Geração de Emprego (GRPE). II. Título. 04.02.7 As designações empregadas nas publicações da OIT, segundo a praxe adotada pelas Nações Unidas, e a apresentação de material nelas incluídas não significam, da parte da Secretaria Internacional do Trabalho, qualquer juízo com referência à situação legal de qualquer país ou território citado ou de suas autoridades, ou à delimitação de suas fronteiras. A responsabilidade por opiniões expressas em artigos assinados, estudos e outras contribuições recai exclusivamente sobre seus autores, e sua publicação não significa endosso da Secretaria Internacional do Trabalho às opiniões ali constantes. Referências a firmas e produtos comerciais e a processos não implicam qualquer aprovação pela Secretaria Internacional do Trabalho, e o fato de não se mencionar uma firma em particular, produto comercial ou processo não significa qualquer desaprovação. As publicações da OIT podem ser obtidas nas principais livrarias ou no Escritório da OIT no Brasil: Setor de Embaixadas Norte, Lote 35, Brasília - DF, 70800-400, tel.: (61) 2106-4600, ou no International Labour Office, CH-1211. Geneva 22, Suíça. Catálogos ou listas de novas publicações estão disponíveis gratuitamente nos endereços acima, ou por e-mail: [email protected] Visite nossa página na Internet: www.oitbrasil.org.br Revisão: Pollyana Resende ([email protected]) Tel.: (61) 3244-3255 Catalogação na fonte: Márcia Aquino ([email protected]) Tel.: (61) 3328-2589 Impresso no Brasil Gráfica Satellite 2 CADERNO GRPE • [2] Esta publicação foi produzida no âmbito do Projeto RLA/03/M52/ UKM – Políticas de erradicación de la pobreza, generación de empleos y promoción de la igualdad de género dirigidas al sector informal en América Latina, financiado pelo Department for International Development (DFID), do Governo Britânico. Organização Internacional do Trabalho (OIT) Diretora do Escritório da OIT no Brasil Laís Abramo Programa de Fortalecimento Institucional para a Igualdade de Gênero e Raça, Erradicação da Pobreza e Geração de Emprego (GRPE) Coordenadora Nacional do GRPE Solange Sanches Oficial de Projeto Marcia Vasconcelos Assistente de Projeto Andréa Sánchez Projeto de Desenvolvimento de uma Política Nacional para Eliminar a Discriminação no Emprego e na Ocupação e Promover a Igualdade Racial no Brasil Coordenadora Nacional Ana Cláudia Farranha Oficial de Projeto Quenes Gonzaga Assistente de Projeto Rafaela Egg Coordenação Executiva do GRPE Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial Ministra Matilde Ribeiro Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres Ministra Nilcéa Freire Ministério do Trabalho e Emprego Ministro Luiz Marinho Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Ministro Patrus Ananias Edição Marcia Vasconcelos e Rafaela Egg Revisão Polyana Resende Projeto Gráfico PQAS Comunicação Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 3 GRPE • OIT A Organização Internacional do Trabalho (OIT) A Organização Internacional do Trabalho foi fundada em 1919, com o objetivo de promover a justiça social e, assim, contribuir para a paz universal e permanente. A OIT tem uma estrutura tripartite única entre as Agências do Sistema das Nações Unidas, na qual os representantes de empregadores e de trabalhadores têm a mesma voz que os representantes de governos. Ao longo dos anos, a OIT tem lançado, para adoção de seus Estados-membros, convenções e recomendações internacionais do trabalho. Essas normas versam sobre liberdade de associação, emprego, política social, condições de trabalho, previdência social, relações industriais e administração do trabalho, entre outras. A OIT desenvolve projetos de cooperação técnica e presta serviços de assessoria, capacitação e assistência técnica aos seus Estados-membros. A estrutura da OIT compreende: Conferência Internacional do Trabalho, Conselho de Administração e Secretaria Internacional do Trabalho. A Conferência é um fórum mundial que se reúne anualmente para discutir questões sociais e trabalhistas, adotar e rever normas internacionais do trabalho e estabelecer as políticas gerais da Organização. É composta por representantes de governos e de organizações de empregadores e de trabalhadores dos 178(*) Estados-membros da OIT. Esses três constituintes estão também representados no Conselho de Administração, órgão executivo da OIT, que decide sobre as políticas da OIT. A Secretaria Internacional do Trabalho é o órgão permanente que, sob o comando do Diretor-Geral, é constituída por diversos departamentos, setores e por extensa rede de escritórios instalados em mais de 40 países, mantém contato com governos e representações de empregadores e de trabalhadores e marca a presença da OIT em todo o mundo do trabalho. Publicações da OIT A Secretaria Internacional do Trabalho é também instância de pesquisa e editora da OIT. Seu Departamento de Publicações produz e distribui material sobre as principais tendências sociais e econômicas. Publica estudos sobre políticas e questões que afetam o trabalho no mundo, obras de referência, guias técnicos, livros de pesquisa e monografias, repertórios de recomendações práticas sobre diversos temas (por exemplo, segurança e saúde no trabalho), e manuais de treinamento para trabalhadores. É também editora da Revista Internacional do Trabalho em inglês, francês e espanhol, que publica resultados de pesquisas originais, perspectivas sobre novos temas e resenhas de livros. O Escritório da OIT no Brasil edita seus próprios livros e outras publicações, bem como traduz para o português algumas publicações da Secretaria Internacional do Trabalho. As publicações da OIT podem ser obtidas no Escritório da OIT no Brasil: Setor de Embaixadas Norte, lote 35, Brasília - DF, 70800-400, tel (61) 2106-4600, ou na sede da Secretaria Internacional do Trabalho: CH-1211, Genebra 22, Suíça. Catálogos e listas de novas publicações estão disponíveis nos endereços acima ou por e-mail: [email protected] Visite nossa página na Internet: www.oitbrasil.org.br (*) Atualizado em março de 2006. 4 CADERNO GRPE • [2] Índice Prólogo Apresentação 11 Agradecimentos 13 I. Introdução 15 II. Ações Afirmativas e Discriminação 19 III. Ações Afirmativa no Serviço Público Civil Brasileiro 3.1 O Programa Nacional de Ações Afirmativas- PNAA 3.2 O estado atual das ações afirmativas no serviço público civil 3.3 Condições para o estabelecimento de ações afirmativas para os servidores 31 38 IV. Desigualdades Raciais e de Gênero no Serviço Público Civil Brasileiro 4.1 A representação da diversidade no serviço público civil 4.2 As oportunidades de progredir na carreira V. Conclusões VI. Referências Bibliográficas VII. Apêndice Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 7 40 44 49 50 71 95 101 105 5 GRPE • OIT 6 CADERNO GRPE • [2] Prólogo Ao longo da última década, o debate sobre os temas da igualdade de gênero e raça, da superação da pobreza e da geração de emprego e trabalho decente têm adquirido grande destaque nas agendas de organizações governamentais, de trabalhadores, de empregadores, organizações nãogovernamentais e de organismos internacionais, evidenciando em diversos âmbitos a necessidade e o desafio de estabelecer um novo acordo entre prioridades econômicas e sociais. Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho é a via fundamental para a superação da pobreza e da exclusão social. E não qualquer trabalho, mas sim um Trabalho Decente, entendido como uma ocupação produtiva adequadamente remunerada, exercida em condições de liberdade, eqüidade, segurança e que seja capaz de garantir uma vida digna. Nos últimos anos, tem se fortalecido a compreensão de que a pobreza e a exclusão social possuem diferentes dimensões e que se tornam mais dramáticas quando considerados os padrões de desigualdade presentes em cada sociedade. Ao mesmo tempo, aumenta o reconhecimento de que as condições e causas da pobreza são diferentes para mulheres e homens, negros e brancos e que as dimensões de gênero e raça são fatores que determinam, em grande parte, as possibilidades de acesso ao emprego, assim como as condições em que ele é exercido. A Declaração dos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho e a Agenda do Trabalho Decente da OIT têm, na promoção da igualdade Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 7 GRPE • OIT de oportunidades e na eliminação de todas as formas de discriminação, alguns de seus elementos centrais. Visando contribuir para a consolidação desses princípios, a OIT desenvolve mundialmente o Programa de Fortalecimento Institucional para a Igualdade de Gênero, Erradicação da Pobreza e Geração de Emprego – GPE. Na América Latina, o Programa GPE é implementado em nove países: Argentina, Bolívia, Equador, Chile, Honduras, Nicarágua, Paraguai, Peru e Uruguai. No Brasil, o Programa foi ampliado para incorporar também a dimensão racial, devido à importância desse fator na determinação da situação de pobreza e na definição dos padrões de emprego e desigualdade social no país, passando a denominar-se Programa de Fortalecimento Institucional para a Igualdade de Gênero e Raça, Erradicação da Pobreza e Geração de Emprego (GRPE). O Programa GRPE é desenvolvido em estreita colaboração com o Projeto Desenvolvimento de uma política nacional para a eliminação da discriminação no emprego e na ocupação e promoção da igualdade racial no Brasil (Projeto Igualdade Racial). As atividades do Programa GRPE e do Projeto Igualdade Racial são desenvolvidas a partir da concepção de que as desigualdades de gênero e raça são eixos estruturantes das desigualdades e dos padrões de exclusão social no Brasil. Levam em conta, ainda, que a desigualdade e a discriminação de gênero e raça não são fenômenos que estão relacionados a grupos específicos da sociedade, mas à maioria da população. Segundo dados de 2003, as mulheres e os/as negros/as representam respectivamente 42% e 44,5%, ou seja, quase a metade da População Economicamente Ativa (PEA) brasileira. Somados, correspondem a 55 milhões de pessoas, que representam 68% da PEA no Brasil: são 36 milhões de negros de ambos os sexos e quase 19 milhões de mulheres brancas. Especial atenção deve ser dada à situação das mulheres negras (mais de 14 milhões de pessoas que representam 18% da PEA brasileira), já que elas estão submetidas a uma dupla ou, freqüentemente, tripla discriminação (de gênero e raça, em grande medida vinculada também à discriminação por origem social). Dessa forma, o esforço pela eliminação das desigualdades sociais no Brasil passa necessariamente pelo enfrentamento das desigualdades e discriminações de gênero e raça. A Série Cadernos GRPE se insere no conjunto de atividades e ações desenvolvidas no âmbito do Programa GRPE e do Projeto Igualdade Racial e tem como principal objetivo contribuir para a ampliação da base de conhecimento sobre a articulação entre gênero, raça, pobreza e emprego. Busca estimular o debate sobre temas fundamentais na abordagem das questões referentes ao emprego e à pobreza – como a negociação coletiva, a informalidade, o trabalho doméstico, o trabalho a domicílio, as dimensões e características da pobreza no país – sempre articulados com as dimensões de gênero e raça. Dessa forma, esta Série pretende contribuir para fomentar iniciativas criativas e inovadoras e, principalmente, para consolidar e fortalecer tanto as estratégias sindicais e empresariais como as políticas 8 CADERNO GRPE • [2] públicas capazes de promover, a um só tempo, a erradicação da pobreza, a geração de emprego e trabalho decente e a igualdade de gênero e raça no Brasil. Laís Abramo Diretora do Escritório da OIT no Brasil Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 9 GRPE • OIT 10 CADERNO GRPE • [2] Apresentação A promoção da igualdade de oportunidades e a eliminação de todas as formas de discriminação são alguns dos elementos fundamentais da Declaração dos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho e da Agenda de Trabalho Decente da OIT. Uma condição para que o crescimento econômico se traduza em menos pobreza e maior bem-estar e justiça social é melhorar a situação relativa de mulheres, negros e outros grupos discriminados da sociedade e aumentar a sua possibilidade de acesso a empregos capazes de garantir uma vida digna. Considerando esta realidade, em 2003 a OIT passou a desenvolver no Brasil o Programa de Fortalecimento Institucional para a Igualdade de Gênero e Raça, Erradicação da Pobreza e Geração de Emprego (GRPE), que tem como principal objetivo apoiar a incorporação das dimensões de gênero e raça nas políticas e programas de combate à pobreza e à exclusão social e de geração de emprego e renda. Com isso, pretende contribuir para aumentar as oportunidades de mulheres e negros de se inserirem no mercado de trabalho e melhorar a qualidade de seus empregos e atividades produtivas, com o objetivo de reduzir a incidência da pobreza, diminuir as desigualdades sociais, de gênero e raça, assim como os deficits de trabalho decente atualmente existentes no país. A Série Cadernos GRPE faz parte do conjunto de ações do Programa GRPE no Brasil, e se insere em sua estratégia de apoiar o desenvolvimento da base de conhecimento sobre as relações existentes entre a pobreza, o Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 11 GRPE • OIT acesso ao emprego e as condições em que este se exerce e as dimensões de gênero e raça. Neste segundo número o tema abordado são as desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil. Este estudo propõe-se a realizar um diagnóstico destas desigualdades a partir de uma análise exploratória dos dados do Sistema Integrado de Administração de Pessoal (SIAPE). O autor realiza uma primeira abordagem deste universo, visando apresentar um retrato que sirva de ponto de partida para investigações futuras, mais detalhadas e aprofundadas. Uma breve conceituação das noções de ações afirmativas e discriminação também são apresentadas, bem como um rápido balanço crítico das ações afirmativas desenvolvidas no âmbito do governo federal, voltadas para o serviço público civil no período considerado. Agradecemos a toda equipe do Escritório da OIT no Brasil que colaborou para tornar possível a concretização desse trabalho – Ana Cláudia Farranha, Marcia Vasconcelos, Quenes Gonzaga, Andréa Sanchez, Rafaela Egg e Josélia Oliveira – e a todos os parceiros governamentais, das organizações sindicais e empresariais que vêm apoiando as iniciativas do Programa GRPE no Brasil. Solange Sanches Coordenadora Nacional Programa de Fortalecimento Institucional para a Igualdade de Gênero e Raça, Erradicação da Pobreza e Geração de Emprego 12 CADERNO GRPE • [2] Agradecimentos Este estudo é resultado dos esforços conjuntos de três instituições – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG); Organização Internacional do Trabalho (OIT); Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) – e de uma equipe de pesquisa composta por servidores e consultores das três. Gostaria de agradecer, particularmente, a todos que fizeram parte da equipe de pesquisa, salientando que – a despeito de suas importantes contribuições – não podem ser responsabilizados pelos eventuais erros ou imperfeições contidas no estudo. Agradeço a Sergei Soares, do IPEA, quem coordenou a montagem da base de dados que serve de fonte ao estudo e o beneficiou com uma leitura atenta; a Marcelo Pessoa, consultor do PNUD junto ao IPEA pelo projeto BRA/01/013, que, literalmente, extraiu os dados do Sistema Integrado de Administração de Pessoal (SIAPE) e preparou a base de dados; a Nara Kohlsdorf, consultora da OIT junto ao IPEA, que fez a pesquisa bibliográfica e conduziu as entrevistas com os responsáveis pelos departamentos de recursos humanos dos Ministérios; a Ana Luiza Moraes Patrão, consultora da OIT junto ao IPEA, quem produziu praticamente todas as tabulações que geraram as estatísticas apresentadas ao longo do estudo. É fundamental, também, reconhecer a contribuição de outras pessoas que não participaram diretamente da elaboração do estudo. Nathalie Beghin e Luis Fernando de Lara Resende, ambos do IPEA; Roberto Martins, exDesigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 13 GRPE • OIT presidente do IPEA; Ivair Augusto dos Santos, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos; participaram decisivamente das negociações junto ao Ministério do Planejamento para a realização do cadastramento racial dos servidores e posteriormente deram apoio à equipe de pesquisa. Ivair fez, ainda, críticas pertinentes, as quais contribuíram para aprimorar a discussão sobre as iniciativas de ações afirmativas no âmbito do serviço público civil, apresentada na terceira parte do estudo. Agradeço, também, à atual administração do IPEA, que deu continuidade ao projeto, em especial à diretora de Estudos Sociais, Anna Peliano; à Diva Moreira e a José Carlos Libânio, do PNUD; a Laís Abramo e José Carlos Ferreira, da OIT. A todos os servidores do Ministério do Planejamento que participaram e realizaram a campanha do cadastramento racial, em especial Sônia Wolf. Agradeço ainda a Murilo Maciel da Silva e aos demais técnicos do Ministério do Planejamento e do Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO) que propiciaram o treinamento à equipe do IPEA e solucionaram problemas relativos aos dados. Finalmente, um agradecimento especial a todos os servidores públicos da administração federal que atenderam ao apelo da campanha e atualizaram o cadastro informando sua cor. 14 CADERNO GRPE • [2] I. Introdução Em 13 de maio de 2002, o Presidente da República promulgou um Decreto estabelecendo o Programa Nacional de Ações Afirmativas (PNAA) no âmbito da Administração Pública Federal. O Programa, essencialmente, visava à redução das desigualdades raciais e de gênero entre os servidores e à inclusão das pessoas com deficiência física. Para garantir a implementação e a execução do programa, foi instituído um Comitê de Acompanhamento e Avaliação, originalmente presidido pelo titular da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), à época subordinada ao Ministério da Justiça. Os trabalhos de secretaria executiva deveriam ser prestados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), vinculado ao Ministério do Planejamento. Ao se reunir pela primeira vez, o Comitê detectou dois grandes obstáculos para a implementação do PNAA. O primeiro era a inexistência de diagnósticos do grau e do caráter das desigualdades raciais e de gênero entre os servidores e do grau de exclusão das pessoas com deficiência física. O segundo era a inexistência do registro da cor dos servidores no cadastro funcional. O primeiro problema poderia ser resolvido com a realização de um estudo pela equipe de técnicos e colaboradores do IPEA envolvidos no projeto de pesquisa «Combate ao Racismo e Superação das Desigualdades Raciais» (BRA/01/013), financiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Entretanto, para a realização de tal estudo, era imprescindível que se solucionasse antes o segundo problema. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 15 GRPE • OIT A SDH e o IPEA iniciaram, então, uma discussão com o Ministério do Planejamento para decidir a melhor forma de fazer o cadastramento racial dos servidores. A decisão foi elaborar uma grande campanha interna em prol do cadastramento racial dos servidores. O ápice dessa campanha foi uma teleconferência nacional com os responsáveis pelos departamentos de recursos humanos de vários órgãos, a qual contou com uma abertura gravada pelo Presidente da República, enfatizando a importância do registro da cor. Em dezembro de 2002, a campanha pelo cadastramento racial fora concluída, e restava ao IPEA a tarefa de realizar o estudo supramencionado, com base nos registros administrativos do Ministério do Planejamento. No ano seguinte, já em um novo Governo, o IPEA e o Ministério do Planejamento deram continuidade ao estudo. Em fevereiro de 2003, uma equipe do IPEA foi treinada para utilizar o software empregado no acesso aos registros do Sistema Integrado de Administração de Pessoal (SIAPE). Esse sistema é a base de dados sob a responsabilidade do Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO), que guarda todas as informações relativas à trajetória funcional dos servidores, do ingresso no serviço público à aposentadoria. Após o treinamento, foram feitas ingerências para a obtenção de senhas de acesso ao SIAPE e para a instalação do software em computadores do IPEA.O objetivo era montar uma base de microdados para a realização do estudo. Devido a questões de ordem técnica, relacionadas à recuperação e ao tratamento dos dados, e de ordem legal, pois os dados do SIAPE são sigilosos, somente em julho de 2003 foi possível elaborar a base de microdados. Neste momento, o IPEA pôde contar com a parceria da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que possibilitou a contratação de consultoras para a realização da etapa final da pesquisa. Com esse reforço, foi possível expandir as frentes de exploração da pesquisa visando a verificar se o Plano Nacional de Ações Afirmativas estava sendo implementado, a despeito da ausência de regulamentação, e se era conhecido pelos órgãos governamentais. Em meados de 2004, ficou pronta a primeira versão do relatório de pesquisa. Desde então, o documento foi apresentado em várias reuniões e foi sendo aperfeiçoado em função das críticas e sugestões recebidas. A versão apresentada aqui é a definitiva. Os resultados da pesquisa são apresentados em cinco partes, incluindo esta apresentação. Na segunda parte, são discutidos brevemente o conceito de ações afirmativas e o de discriminação, com ênfase na discriminação que ocorre no mundo do trabalho. Como já existem na praça várias revisões exaustivas de ambos os temas, a discussão é apenas instrumental e serve para dar um pano de fundo aos resultados a serem apresentados, tendo em mente um público não especialista no assunto. O leitor familiarizado com esses temas pode perfeitamente pular ao terceiro capítulo. Na terceira parte, é apresentado um balanço crítico das iniciativas de ações afirmativas adotadas pelo Governo Federal que poderiam atingir o 16 CADERNO GRPE • [2] serviço público civil. As disposições estabelecidas pelo Plano Nacional de Ações Afirmativas são analisadas detalhadamente. Também na terceira parte, apresentamos o resultado de um levantamento conduzido junto aos responsáveis pelos Departamentos de Recursos Humanos da maior parte dos órgãos da administração direta. A finalidade era averiguar a existência de conhecimento do Plano Nacional de Ações Afirmativas e se os órgãos estariam, por iniciativa própria, promovendo algum tipo de ação afirmativa voltada aos servidores. No caso dos Ministérios, que antes mesmo da promulgação do PNAA adotaram ações afirmativas, o objetivo era verificar se as portarias que as estabeleceram estavam sendo observadas, ou seja, se não haviam se tornado letra morta devido à mudança de governo. Essa parte termina com uma análise dos dois principais projetos de lei existentes no Congresso, que prevêem ações afirmativas no âmbito do serviço público. Na quarta seção da pesquisa, é apresentado o estudo exploratório baseado nos dados do SIAPE, contemplando recortes raciais e de gênero. É importante ressaltar o caráter exploratório desse estudo. Não se pretende, com ele, dar a palavra final sobre desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil, um tema complexo. Tenciona-se apenas revelar alguns padrões genéricos de diferenças entre os grupos envolvidos, que merecem a consideração dos gestores e investigações mais aprofundadas do que as que aqui foram apresentadas. Somente investigações detalhadas poderão ser efetivamente empregadas como base para a elaboração de boas políticas afirmativas para o serviço público civil. O estudo apresentado no capítulo 4 deve, portanto, ser visto como um ponto de partida para a realização destas investigações mais detalhadas, embora possa também ser usado como instrumento para reivindicá-las. A quinta seção é uma conclusão que sintetiza os principais achados e aponta as lacunas a serem preenchidas por futuras investigações. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 17 GRPE • OIT 18 CADERNO GRPE • [2] II. Ações Afirmativas e Discriminação As Ações Afirmativas estão na ordem do dia do debate sobre políticas públicas no Brasil. A partir de 1995, quando o Governo Federal reconheceu 1, pela primeira vez a existência do racismo, da discriminação e de suas conseqüências sobre a situação socioeconômica dos grupos vitimados, o tema da intervenção estatal para a promoção da igualdade racial ganhou muita importância. Editoriais de jornais, manifestos de movimentos sociais, artigos de intelectuais, pesquisas, relatórios e coleções de indicadores sobre a extensão das desigualdades entre os grupos raciais proliferaram rapidamente, trazendo o problema ao escrutínio da opinião pública; que tem demonstrado bastante interesse sobre o assunto, a julgar pelo calor dos debates e pela paixão com que as diferentes posições são defendidas. 1 Em 1995, as várias organizações da sociedade civil que compõem o movimento social negro brasileiro mobilizaram milhares de pessoas para marchar em Brasília em protesto contra o racismo e a discriminação racial, que ainda grassam no país. Realizada na data simbólica de 20 de novembro, dia consagrado à memória do herói Zumbi dos Palmares, esse protesto ficou conhecido como Marcha Zumbi. Nesse dia, as mais proeminentes lideranças negras brasileiras foram recebidas pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, que recebeu delas um documento reivindicando uma postura mais ativa do Estado em relação ao combate ao racismo, à discriminação e às desigualdades socioeconômicas entre negros e brancos. Fernando Henrique Cardoso, sensível ao tema, objeto de sua estréia profissional como sociólogo (o estudo «Cor e Mobilidade Social em Florianópolis», de 1960, realizado em conjunto com seu colega Otávio Ianni) e tema caro ao seu mestre, Florestan Fernandes, reconheceu a pertinência das demandas longamente reprimidas. Isso deu início a uma série de ações governamentais que foram mais simbólicas do que efetivas, mas que constituíram um ponto de partida para as políticas hoje existentes que visam à igualdade racial. O relato de todas essas ações, como o I Plano Nacional de Direitos Humanos, o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra e a preparação da presença brasileira na Conferência de Durban, pode ser encontrado em Jaccoud & Beghin (2002). Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 19 GRPE • OIT Tal efervescência marca o começo de uma nova postura em relação ao assunto. Durante quase todo o século XX, a maior parte dos brasileiros não admitia a existência de racismo e discriminação como fatores estruturais das relações sociais. Admitia-se a existência do preconceito de cor, mas era considerado brando, isolado e típico de pessoas ignorantes; portanto, incapaz de produzir diferenças socioeconômicas agudas. A situação de inferioridade socioeconômica dos negros em relação aos brancos era atribuída – após a superação das idéias de hierarquia evolutiva entre as raças e as culturas, nas décadas de 1930 e 1940 – ao fato de os negros terem sido introduzidos na sociedade brasileira na condição dos escravos. Assim, o progresso do país e o desenvolvimento econômico paulatinamente contribuiriam para a reversão do quadro das desigualdades sociais sem que qualquer intervenção específica sobre o problema se fizesse necessária2 . Ao longo da década de 1990 tais argumentos, já sob ataques desde as décadas de 1940 e 1950, se tornaram insustentáveis. Atualmente não há intelectuais de peso que defendam publicamente a idéia de que as relações raciais no Brasil são harmoniosas, sem racismo, sem discriminação e sem conseqüências para a população diretamente atingida e para a nação como um todo. Embora haja muita divergência sobre o que fazer com o racismo e como intervir para superá-lo, há um consenso de que o problema é real e intenso – algo demonstrado facilmente por meio de estatísticas sociais – e que merece algum tipo de intervenção. Uma parcela expressiva dos defensores de intervenções estatais para a promoção da igualdade social considera que estas devem se constituir como políticas especiais normalmente reunidas sob a chancela de ações afirmativas. Como em todos os outros campos da atividade humana que são objetos de taxonomias, há os que não gostam da expressão ação afirmativa e adotam outras, como «discriminação positiva», «políticas compensatórias» ou «políticas de inclusão». Entretanto, quando esses termos aparecem associados às noções de compensação ou de promoção de um grupo social específico que é e/ou foi objeto de discriminação, geralmente, estão definindo algum tipo de política que pode ser considerada ação afirmativa. Muito tem se produzido sobre a história das ações afirmativas, e várias taxonomias têm sido aventadas. Não se pretende aqui fazer uma revisão da crescente literatura sobre o assunto, mas considera-se importante, antes de prosseguir, delinear a configuração sociohistórica, na qual emergem as justificativas mais comuns defendidas para as ações afirmativas e os principais eixos comuns nas suas proposições e implementações. As primeiras ações afirmativas foram levadas a cabo nos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial, quando surgiu também a expressão que as designa. É importante ressalvar que se está falando de ações afirmativas como uma política integrada que afeta várias áreas da intervenção estatal. 2 20 Para uma revisão da literatura sobre raça, mobilidade e estratificação social ver Osório (2004). CADERNO GRPE • [2] Iniciativas isoladas que podem ser consideradas ações afirmativas são encontradas na experiência de outros países mesmo antes do pós-guerra, como por exemplo, na história brasileira, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, em que foi promulgada, em 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho, que, para garantir o acesso dos brasileiros aos postos de trabalho, estipulava que 2/3 dos funcionários de diversos tipos de empreendimentos comerciais e industriais deveriam ser nascidos no Brasil3 . Essa medida foi, à época, bem recebida pela Frente Negra Brasileira4, que apoiava o regime de Vargas, a despeito de ter tido o status de partido político conquistado em 1936 e suprimido pelo golpe de 1937 5 . Desde seu início, a Frente Negra Brasileira via na ocupação de postos de trabalho por imigrantes uma ameaça à integração dos negros brasileiros ao mercado de trabalho. Formalmente, é possível ver na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, o primeiro passo do longo percurso que leva à idéia, atualmente consensual em certos meios, da necessidade das ações afirmativas. Além de preconizar a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos – civis, políticos, econômicos, sociais e culturais – a Declaração Universal dos Direitos Humanos deu origem a vários outros tratados e instrumentos de proteção internacional e teve sua influência refletida nas Constituições de muitos países. Os dois artigos iniciais da Carta são bem conhecidos. O primeiro diz que os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e que, dotados de razão e consciência, devem agir fraternalmente em relação aos outros. O segundo artigo especifica que qualquer pessoa faz jus aos direitos e liberdades estabelecidos na Declaração, «sem distinção alguma por raça, cor, sexo, língua, religião, opiniões políticas ou não, origem social ou nacional, propriedade, nascimento ou outra situação». Essa definição ampla ataca diretamente as bases de distinção e, usualmente, também de hierarquização, empregadas pela maior parte das sociedades contemporâneas para construir e discriminar grupos sociais e as deslegitima como fundamentos de tratamentos diferenciados em face ao valor maior da igualdade. Porém, apenas as boas intenções manifestas na Carta não se provaram suficientes para permitir a superação de todas as desigualdades e discriminações existentes na maior parte dos países. Proclamar pura e 3 O terceiro capítulo do Decreto-Lei 5.452, de 1943, é intitulado «Da Nacionalização do Trabalho» e compreende os artigos 352 a 358 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que definem o que é o trabalhador nacional, em que empreendimentos a proporcionalidade deve ser observada e a proporcionalidade a ser observada. A CLT ainda está vigor, incluindo a seção sobre a nacionalização e, embora leis posteriores tenham alterado alguns desses artigos, o terceiro capítulo nunca foi expressamente revogado. Todavia, o 5º artigo da Constituição Federal de 1988 invalida o disposto no terceiro capítulo da CLT, ao preconizar a igualdade entre brasileiros e estrangeiros residentes no país. É interessante registrar também que muito antes da CLT, nos dois primeiros anos do primeiro governo Vargas (1930-1945), após a nacionalização da navegação de cabotagem, o decreto 20.303, de 1931, versava sobre a nacionalização do trabalho na marinha mercante. 4 Sobre a Frente Negra Brasileira, suas orientações e sua atuação, vide, dentre outros, Andrews (1988), Hanchard (2001) e Nascimento (2003). 5 O golpe de 1937 que instituiu o Estado Novo suprimiu todos os Partidos Políticos então existentes no país. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 21 GRPE • OIT simplesmente a igualdade não foi mais do que uma bela, porém inócua, afirmação dos valores republicanos liberais oriundos da Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa. A busca do ideal da igualdade, sem, entretanto, o reconhecimento do óbice que representam as desigualdades estruturadas, acarreta a reprodução das diferenças, que se naturalizam, e o deslocamento da culpa da desvantagem para os ombros das vítimas, individualizando os resultados de processos macrossociais que se encontram fora da esfera de ação dos atores. Tratar os desiguais como se iguais fossem perpetua as diferenças, pois declarar a igualdade não é suficiente para reverter a orientação das estruturas sociais que produzem desigualdades. O reconhecimento da refratariedade das sociedades reais às declarações de intenções e valores igualitários não tardou a se reificar em outros tratados e instrumentos internacionais de proteção. É óbvio que, de um ponto de vista puramente normativo, a Declaração dos Direitos Humanos já impediria a dispensa de qualquer tratamento diferenciado aos grupos discriminados, com exceção das iniciativas que visassem à igualdade por intermédio da diferença. Mas, antes mesmo da promulgação da Carta Internacional, a Organização das Nações Unidas, por intermédio de vários de seus organismos, logrou conferir especificidade aos Direitos Humanos em nichos particulares da vida social. Praticamente todos os grupos discriminados, definidos pelas distinções de tratamento normativamente banidas pela Declaração dos Direitos Humanos, foram objeto de convenções específicas: mulheres, grupos raciais, étnicos, grupos definidos por origem social ou nacional, deficientes e minorias religiosas. A única notável exceção é o grupo de homossexuais, que, embora faça jus aos Direitos Humanos indivisíveis, é, na maior parte das nações, discriminado sem que esquemas específicos de proteção tenham sequer sido esboçados. É um grupo que parece estar fora da agenda internacional de proteção dos Direitos Humanos. Mesmo com todas convenções, ainda há inúmeras denúncias de discriminação e desrespeito aos Direitos Humanos. A ratificação universal das seis «Convenções Centrais»6 das Nações Unidas ainda está distante devido, principalmente, ao descaso com os direitos econômicos, sociais e culturais. Em 1993 a II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, um quarto de século depois da primeira, ao adotar a Declaração e Programa de Ação de Viena, reconheceu que a indivisibilidade dos Direitos Humanos teria que ser assegurada na prática, pois as intenções expressadas pelos inúmeros tratados, acordos e convenções não haviam se transformado em garantias efetivas de direitos para os grupos vulneráveis à discriminação e à pobreza. Pelo contrário, os participantes constataram que a maioria dos países em tese alinhados com a proteção dos direitos universais na verdade 6 Os dois Pactos de Direitos Humanos, as Convenções sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação – Racial e Contra a Mulher, a Convenção contra a Tortura e a Convenção sobre os Direitos da Criança. 22 CADERNO GRPE • [2] não se esmerara na promoção de medidas positivas que garantissem o respeito a tais direitos, contentando-se com a proclamação da inócua igualdade jurídica. Há que se ressalvar, porém, que pelo menos três décadas antes da Conferência de Viena, algumas sociedades já haviam percebido que todo o aparato legal que proibia e punia atos discriminatórios de quaisquer ordens não eliminara ou ao menos impedira a disseminação de ideologias que hierarquizavam grupos no imaginário social, reforçando estereótipos e estigmas que acabavam por intervir nas práticas sociais. Sendo assim, a estrutura educacional, ocupacional e espacial das sociedades permanecia segmentada em função de crenças na inferioridade de determinados grupos, que se concretizavam em barreiras sociais ou em profecias auto-realizáveis, tornando vulneráveis os membros desses grupos. O questionamento da neutralidade do Estado frente a tais problemas levou à reivindicação de políticas públicas específicas voltadas para os grupos vulneráveis a discriminações: as ações afirmativas. A defesa das ações afirmativas por parte dos organismos internacionais, por associações da sociedade civil, e até mesmo pelos governos está intimamente relacionada à crescente percepção (às vezes baseada em sólidas evidências empíricas) de que critérios igualitários e de mérito, em tese os que garantiriam os Direitos Humanos, quando adotados sem considerar a presença de grupos discriminados nas sociedades e de fatores culturais que os predispõem a tal condição, terminam por reproduzir as desigualdades existentes. Assim, mecanismos sociais que idealmente deveriam servir para guiar as sociedades rumo ao objetivo da igualdade e da garantia dos Direitos Humanos, explícito na maior parte das Constituições dos Estados contemporâneos, acabam por direcioná-las para o sentido oposto. É na vontade de contrapor essa tendência espúria dos Estados - que ao se pretenderem imparciais no tratamento de seus cidadãos e visando ao ideal de igualdade, terminam paradoxalmente por inviabilizar a sua consecução - que se embasam as políticas contemporâneas de ações afirmativas. *** Muitas definições de ações afirmativas, produzidas por governos, intelectuais, ONGs e organismos internacionais, estão disponíveis. Reproduzse abaixo a definição adiantada por Joaquim Barbosa Gomes, um estudioso do ambiente normativo das ações afirmativas no sistema jurídico e ministro vitalício da mais alta corte brasileira, o Supremo Tribunal Federal. Para Gomes, as ações afirmativas são: «...um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 23 GRPE • OIT concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens como a educação e o emprego (...). Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidos por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.»7 . É importante elaborar um pouco mais a definição acima para tornar claros dois pontos. O primeiro é que políticas de ações afirmativas não são políticas de combate à pobreza, mas de combate às discriminações de ordens variadas que causam desigualdades injustificadas à luz do valor maior da igualdade de Direitos Humanos. Uma ação afirmativa pode vir no bojo de uma política de combate à pobreza, mas não precisa ser restrita a ela. Assim, em tese, mesmo um grupo privilegiado em suas características socioeconômicas pode ser objeto de ações afirmativas, se a sociedade, na qual existe, o discrimina, privando-o de algum tipo de direito de que desfrutam outros grupos. O segundo ponto é o fato de que as ações afirmativas não criam privilégios, ao menos não de forma permanente. Visam apenas ao desmonte de uma estrutura de privilégios que, independentemente de sua formalização em normas jurídicas, existe na prática, mesmo sem ser reconhecida, conspirando contra os direitos dos grupos discriminados. Em última instância, as ações afirmativas têm por objetivo fazer com que os grupos que são vulneráveis à discriminação em uma sociedade deixem de sê-lo, condição necessária para a consecução da igualdade. Há uma disputa no campo filosófico-constitucional sobre as justificativas mais plausíveis para a implementação das ações afirmativas, debate que se dá em torno do princípio constitucional da igualdade8 . De um lado, há os argumentos que defendem sua existência para corrigir ou compensar os efeitos perversos das discriminações ocorridas no passado, posto que o ônus social que as novas gerações carregam devido às discriminações sofridas pelos seus antepassados perpetua-se no presente, determinando a posição que essas gerações ocupam nos vários espaços sociais. De acordo com essa perspectiva, portanto, as ações afirmativas possuem um caráter «restaurador» (ou criador) da eqüidade social. De outro lado, há os que justificam sua existência, alegando seu caráter distributivo. Segundo eles, se as sociedades fossem efetivamente justas, os direitos, as oportunidades e as riquezas – materiais ou simbólicas – seriam distribuídos proporcionalmente por seus membros, com diferenças devidas apenas aos esforços pessoais e não à origem social e fatores correlatos. Como não existem, pelo menos que se tenha conhecimento, sociedades perfeitamente justas, ações deveriam ser desenvolvidas a fim de redistribuir os bens sociais, favorecendo nesse processo os grupos discriminados. 24 7 Gomes (2001:40-41). 8 Sobre esta disputa, vide Gomes (2001). CADERNO GRPE • [2] Não está descartada a possibilidade dessas duas correntes jurídico-filosóficas, a da justiça compensatória e a da justiça distributiva, dialogarem e se complementarem, pois os grupos atualmente discriminados, geralmente também o são historicamente. Sendo assim, haveria uma interação contínua entre o passado e presente, com a reprodução das ideologias e atos discriminatórios que interferem na condição social e moral dos grupos excluídos e dos grupos dominantes do presente. Tal diálogo seria extremamente sensato, pois não se pode ver nas ações afirmativas apenas a compensação dos erros cometidos pelas sociedades no passado – talvez impossível de ser realizada na íntegra, devido às inúmeras e enormes iniqüidades testemunhadas pela história da humanidade. É preciso também lidar com o fato de que novas formas de discriminação podem emergir, contra grupos que não eram outrora discriminados – e, nesse caso, não seria admissível esperar que as desvantagens se acumulassem no tempo para serem compensadas. Para além dos debates e das várias vertentes teóricas, é possível encontrar alguns eixos comuns nas proposições e nas reivindicações de ações afirmativas, sumarizadas a seguir. Alguns destes eixos são criticados mesmo por seus defensores, e, não necessariamente, uma proposta específica engloba todos: ?objetivo principal das ações afirmativas é a concretização do princípio da indivisibilidade e da igualdade dos Direitos Humanos; ?o reconhecimento da existência e permanência de atos e ideologias discriminatórios por parte da sociedade civil e do Estado é uma condição para a implementação das ações afirmativas; ?as ações afirmativas visam à transformação e à superação de mecanismos sociais, culturais e psicológicos que reafirmam a supremacia ou a subordinação de determinados grupos, mantendo estáveis as hierarquias em uma sociedade qualquer; ?as ações afirmativas objetivam eliminar as práticas e ideologias discriminatórias e suprimir seus efeitos duradouros, os quais interferem no desempenho e nas oportunidades dos grupos vulneráveis a discriminações; ?as ações afirmativas devem também abrir os espaços historicamente prestigiados, os altos postos da administração pública, as universidades, as profissões liberais, dentre outros, para que possam ser ocupados por membros dos segmentos discriminados da sociedade que estejam aptos para tanto (o que pode exigir a criação das aptidões necessárias), de modo a refletir, nesses espaços, a diversidade presente na sociedade; ?outro objetivo é criar o que nos Estados Unidos se denomina role models, pessoas de grupos vulneráveis que conseguem, por intermédio das ações afirmativas, quebrar as barreiras invisíveis que impedem o acesso aos postos mais elevados e valorados da estrutura social, tornando-se personalidades emblemáticas – isso propiciaria a Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 25 GRPE • OIT desconstrução de estereótipos, acenando para os demais membros dos segmentos discriminados, especialmente os mais jovens, a abertura de canais de mobilidade social e de outras trajetórias de vida que não aquelas subalternas que lhes parecem reservadas; ?as ações afirmativas visam à construção de uma sociedade equânime, onde identidades, etnias e orientações culturais diversas são respeitadas, valorizadas e representadas em todos os espaços sociais, sobretudo nos de maior prestígio. *** Superar as discriminações e os fatores que as motivam é, portanto, o principal foco das ações afirmativas. Faz-se necessária, portanto, uma breve discussão do que se entende por discriminação. De uma forma geral, discriminação é algo que impede o pleno desfrute dos Direitos Humanos pelos grupos discriminados. Na esfera do trabalho, por exemplo, a discriminação se manifesta quando determinados grupos têm, independentemente dos motivos, menor acesso a determinados nichos ocupacionais ou ao mercado de trabalho como um todo; estão presentes majoritariamente em ocupações «características»; recebem um tratamento diferenciado em relação a grupos em posição equivalente, como, por exemplo, uma remuneração horária menor, jornada de trabalho maior ou menores possibilidades de progresso profissional. Nos termos da Convenção nº 111 da OIT, a discriminação é toda e qualquer distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade, origem social ou qualquer critério que venha a anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou de tratamento no emprego ou profissão. Esse entendimento genérico sobre a discriminação pode ser encontrado na maior parte dos tratados e convenções internacionais que versam sobre o assunto. Mas é importante acrescer a idéia (implícita na concepção genérica) de que a discriminação tem dois lados, isto é, ao mesmo tempo em que exclui, pretere e desabona os membros do grupo discriminado, beneficia e facilita a vida dos discriminadores, os quais enfrentam concorrência restrita aos demais partícipes do grupo discriminador. Note-se que o reconhecimento dessa dupla faceta, conjugado ao da existência de discriminações, põe em xeque quaisquer argumentações baseadas em alegações de mérito, principalmente se são lançadas como justificativas para a garantia dos privilégios dos grupos discriminadores. Todavia, os que estudam as discriminações normalmente lançam mão de um arsenal conceitual mais complexo, que se coaduna com o entendimento genérico, mas identifica várias formas distintas e freqüentemente concorrentes de discriminação. Como no caso das ações afirmativas, as taxonomias que distinguem as várias faces da discriminação são muitas, embora guardem um substrato em comum. Assim, por exemplo, uma especialista no assunto como Silvia 26 CADERNO GRPE • [2] Yannoulas reconhece três tipos ideais de discriminação 9 : a direta ou manifesta, a indireta ou encoberta e a auto-discriminação. A discriminação direta ocorreria em sociedades nas quais existem regras rígidas que impedem as pessoas que pertencem a certos grupos de trabalhar ou as impõem restrições. Assim, haveria discriminação direta em uma sociedade na qual o trabalho feminino fosse proibido, como recentemente o foi durante o regime fundamentalista no Afeganistão, ou na qual os negros fossem impedidos de exercer determinadas ocupações. Entretanto, tal disposição representa uma afronta tão intensa ao princípio jurídico internacional da igualdade que praticamente inviabiliza sua manifestação nas sociedades que fazem parte das Nações Unidas. Já o segundo tipo de discriminação ocorreria comumente na maior parte das sociedades, mesmo naquelas formalmente comprometidas com os Direitos Humanos. A discriminação indireta ou encoberta consiste em práticas sutis, por vezes admitidas informalmente, que influenciam o comportamento quotidiano dos grupos sociais, discriminados e discriminadores. Tais práticas criam desigualdades entre pessoas, a partir das bases de distinção que sejam localmente importantes: raça, etnia, gênero, religião, nacionalidade, etc. Muitos classificam esse tipo como discriminação institucional. O terceiro tipo, a auto-discriminação, são os preconceitos inculcados nos indivíduos pertencentes aos grupos discriminados, por intermédio dos processos de socialização e conjuntamente com outros conjuntos de valores. A auto-discriminação se manifestaria por meio de mecanismos internos de repressão, orientando as ações dos próprios indivíduos dos grupos vulneráveis. Esses mecanismos fazem com que esses indivíduos se atenham aos desejos e às trajetórias de vida que a sociedade circundante preconceituosa colocou como sendo aqueles «legítimos» de serem perseguidos. Por serem lentas as transformações culturais, as discriminações indiretas e a autodiscriminação são constantes na maior parte das sociedades contemporâneas. A discriminação institucional, indireta ou encoberta também é objeto de estudo da psicóloga e coordenadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (CEERT), Maria Aparecida Bento, que cita a seguinte definição: «...aquela que ocorre independentemente do fato de a pessoa ter ou não preconceito aberto ou uma intenção de discriminar. O conceito forma-se a partir da idéia de que o racismo subjacente aos comportamentos individuais, coletivos ou institucionais faz parte da lógica das sociedades racistas, nas quais comportamentos aparentemente livres de preconceitos podem gerar conseqüências negativas para os membros de grupos sociais discriminados»10 . 9 Yannoulas (2001). 10 Bento (2000:21). Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 27 GRPE • OIT A ausência de necessidade da intenção de discriminar é uma das principais características normalmente associadas à idéia de discriminação indireta, bem como a constatação de estatísticas sobre o desempenho ou situação global dos grupos concorrentes como justificativa da discriminação. É o que defende Maria Aparecida Bento ao afirmar que, para o estudo das desigualdades e da discriminação no espaço de trabalho, «importa pouco a intenção do agente. O que interessa são os efeitos de sua ação. Esses efeitos só se verificam estudando, por exemplo, as taxas de negros e mulheres nos diferentes postos de trabalho»11 . Tais considerações normalmente fazem parte da caracterização das formas indiretas nas taxonomias da discriminação propostas por outros estudiosos do assunto12 . *** De todos os grupos vulneráveis a discriminações que podem ser encontrados nas sociedades, dois são extremamente freqüentes e têm as discriminações contra eles bem documentadas, evidenciadas e estudadas: as mulheres e os negros. A discriminação contra esses dois grupos geralmente apresenta uma longa história e um dos principais mecanismos de sua consecução na contemporaneidade são as diferenças educacionais. Apesar da organização política desses grupos em movimentos sociais que reivindicam a igualdade efetiva, mulheres e negros ainda encontram inúmeras barreiras sociais ao longo de suas vidas que os impedem de desfrutar os benefícios e oportunidades comumente disponíveis para os homens brancos. Embora teoricamente possa ser interessante distinguir fatores de discriminação, como a raça e o gênero, pois as discriminações contra os negros têm base distinta das que se dirigem às mulheres, é indispensável considerar que as pertenças a um ou ao outro grupo não são mutuamente exclusivas, o que termina, por exemplo, por gerar uma dupla discriminação contra as mulheres negras. E essa dupla discriminação pode não ser simplesmente a soma da discriminação por ser mulher e por ser negra, pois a pertença simultânea a mais de um grupo vulnerável pode, por sinergia, ampliar a carga das discriminações. O Movimento de Mulheres Negras brasileiro tem como componente importante de discurso a plausível alegação de que as mulheres de classe média, entre as quais há proporcionalmente mais brancas, devem sua emancipação do trabalho doméstico e a conquista da esfera pública, em grande parte, às empregadas domésticas, entre as quais é relativamente maior o número de negras. Ao assumirem o trabalho doméstico, as empregadas teriam permitido a saída das mulheres de classe média para o trabalho com a manutenção dos papéis masculinos tradicionais. 28 11 Bento (2000:22). 12 Vide, por exemplo, o já citado Gomes (2001) CADERNO GRPE • [2] Assim, as mudanças que beneficiaram as mulheres brancas teriam prejudicado outra categoria de mulheres, as negras, por ter ocorrido sem o acompanhamento de transformações radicais nos papéis de gênero. Esse exemplo de interação entre fatores de discriminação traz uma lição importante para os que pretendem pensar ações afirmativas para superálos. No que toca, por exemplo, às desigualdades de gênero no mercado de trabalho, as políticas públicas que visam a equacionar as oportunidades de acesso de homens e mulheres aos postos elevados de trabalho não podem se centrar apenas na inclusão e na garantia da representatividade das mulheres. As políticas públicas também devem se ater à modificação dos papéis sociais masculinos13 . Essa modificação deve ocorrer dentro e fora das organizações do mundo do trabalho ou haverá o risco de que as desigualdades sejam simplesmente deslocadas para outros grupos ou outros espaços. Assim, as ações afirmativas, por visarem à supressão das desigualdades ocasionadas pelas discriminações, devem ter como sujeitos-objetos tanto os discriminados como os discriminadores. O mesmo raciocínio pode ser estendido às demais categorias de pessoas discriminadas. O caso dos negros, por sua vez, é excelente para a ilustração de como as discriminações que se verificam no mundo do trabalho devem ser entendidas em sua relação com as discriminações que ocorrem fora dele, as quais se propagam e se acumulam ao longo da vida dos indivíduos. Grande parte dos obstáculos enfrentados pela população negra no trabalho se deve às diferenças educacionais produzidas pela restrição do acesso à educação. Há vários estudos sobre as diferenças salariais entre negros e brancos, realizados com arsenais econométricos sofisticados que concluem categoricamente que o destino da maior parte dos negros é selado no sistema educacional e, portanto, antes da vida adulta e da entrada no mercado de trabalho – ainda que sobre eles exista uma discriminação pura que não pode ser explicada pela origem social ou pela educação 14 . Conforme ilustram indicadores de educação disseminados pelo IPEA15 , os negros, comparados aos brancos, apresentam virtualmente desvantagens em qualquer aspecto da educação. Diversos estudos têm apontado a educação como um dos fatores determinantes da menor mobilidade social dos negros16 . Além disso, os postos de trabalho mais valorizados geralmente exigem credenciais, qualificações e habilidades especiais adquiridas no processo educacional. Portanto,se não houver negros qualificados em número suficiente, não é o bastante apenas abrir a eles os postos de trabalho mais valorados. 13 Sobre esse problema da necessidade de transformação dos valores para o êxito das políticas de AAf, vide, dentre outros, Roland (2001) e Ackerman (2001). 14 Existem poucos estudos sobre as diferenças salariais de negros e brancos no mercado de trabalho brasileiro. Dentre eles, dois recentes são particularmente interessantes pelas técnicas empregadas e pela abordagem metodológica, o de Soares (2000) e o de Arias, Yamada & Tejerina (2005). 15 Shicaso (2002). 16 Vide, por exemplo, os estudos de Hasenbalg & Valle Silva (1988) e o de Valle Silva (2001); para uma revisão dos resultados dos principais estudos sobre mobilidade social e raça realizados no Brasil, a partir da década de 1940, vide Osorio (2004). Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 29 GRPE • OIT Mas a dificuldade de acesso dos negros a determinados trabalhos não acontece só como conseqüência dos obstáculos impostos à sua trajetória no sistema de ensino, que conferem a eles um perfil educacional prejudicado. Também ocorre por causa da discriminação embutida nos mecanismos de seleção para postos de trabalho, como entrevistas, sempre eivados da subjetividade dos empregadores. Nesses momentos, todos os aspectos das idéias discriminadoras, em especial as imagens depreciativas, podem emergir para desqualificar os candidatos que pertençam a um ou mais grupos discriminados. Geralmente, é durante a socialização primária e na vida escolar, fases do ciclo de vida que normalmente antecedem a entrada no mercado de trabalho, que tais imagens são inculcadas nos indivíduos. Vários estudos se dedicaram aos efeitos prejudiciais da disseminação dessas representações depreciativas nas escolas17 . A associação dos negros a atributos negativos (sujo, ignorante, preguiçoso, submisso, impulsivo, etc.) e a associação dos brancos a atributos positivos (limpo, inteligente, diligente, reflexivo, etc.), refletem a presença de preconceitos que interferem decisivamente nas relações interpessoais, definindo os lugares que podem ser «legitimamente» ocupados por brancos e negros, para além de suas qualificações. Mais uma vez, essas considerações podem ser virtualmente estendidas a qualquer outro grupo discriminado. 17 30 Vide, dentre outros, Figueira (1990); Rosenberg (1991, 2000); Cavalleiro (2000); Munanga (2001). CADERNO GRPE • [2] III. Ações Afirmativas no Serviço Público Civil Brasileiro Uma nação só precisa, além de vontade política, de dois motivos para adotar um conjunto de políticas de ações afirmativas. O primeiro é a constatação empírica da existência de discriminação por intermédio de indicadores das desigualdades socioeconômicas e políticas entre grupos. Em outras palavras, só faz sentido ter ações afirmativas onde existem discriminações que provocam efeitos negativos sobre um ou mais aspectos da vida das pessoas discriminadas. O segundo motivo é o compromisso nacional com os valores associados aos Direitos Humanos. Superar as desigualdades devidas às discriminações deve ser um objetivo da sociedade em questão. O Brasil reúne as duas condições: há, no País, inúmeros diagnósticos das desigualdades produzidas por discriminações (e das próprias discriminações) e princípios constitucionais explícitos que orientam o Estado na promoção da igualdade e no combate às discriminações. Os Direitos Humanos estão incorporados na Constituição, que determina como dever da República «promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação»18 . Existe, atualmente, uma razoável literatura que defende a adoção de ações afirmativas no âmbito das organizações do mundo do trabalho. Parte dela se volta para o problema da adoção dessas ações no âmbito do 18 Constituição de 1988, artigo 3º, inciso IV. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 31 GRPE • OIT Estado, no serviço público civil, um tipo muito particular de organização 19 . Essa literatura considera as experiências de vários países e defende que o Gerenciamento da Diversidade (ou Administração da Diversidade) pode aumentar a qualidade e a capacidade da intervenção do Estado nos mais diversos setores. São vários os argumentos avançados para defender tal visão, que podem ser agrupados em duas grandes categorias. A primeira é a dos argumentos que se baseiam nas externalidades negativas, do ponto de vista da economia, das discriminações. A outra categoria é a dos argumentos que consideram o problema da representação dos diversos grupos sociais na máquina do Estado. As duas categorias de argumentos não são mutuamente exclusivas, mas o contrário, são complementares. Em que pesem os argumentos relativos à eficiência, baseados na teoria econômica de que ao discriminar o empregador paga por isso, pois pode estar preferindo trabalhadores menos produtivos, considera-se aqui que o argumento mais importante em prol de ações afirmativas voltadas aos servidores é o de que a diversidade dos grupos sociais deve estar representada da melhor forma possível na composição da administração do Estado. O Estado não é uma empresa, sua gestão é ditada pela política e é importante que todos os setores da sociedade, mesmo aqueles que podem não ter conseguido representação pelos canais tradicionais da democracia participativa, se sintam representados e vejam suas demandas consideradas na administração e na elaboração de políticas. Ademais, a existência de ações afirmativas para os servidores pode sensibilizá-los para os problemas das desigualdades produzidas por discriminações, o que contribuiria para a maior efetividade de ações afirmativas para o público em geral. E, se um governo particular pretende empregar a máquina do Estado para constranger as organizações privadas do mundo do trabalho para que adotem ações afirmativas, é importante dar o exemplo, fazendo para os seus trabalhadores o que deseja que as firmas façam para aqueles que estão vinculados a elas. Nesse sentido, é interessante notar que a denúncia das discrepâncias no corpo de servidores em relação à composição racial da população brasileira não são tão recentes. Vários veículos da imprensa negra denunciaram essa situação ao longo do século XX. A Frente Negra Brasileira exigiu que o Governo Vargas interviesse na contratação de negros para a Guarda Civil paulistana, já no início da década de 193020 . Um estudo21 , publicado na 19 Sobre o Gerenciamento da Diversidade, com ênfase em sua aplicação no serviço público civil, vide os textos apresentados no encontro Managing Diversity in the Civil Service, promovido pelas Nações Unidas (UNDESA, 2001), bem como Dobbs (1996), os artigos do número consagrado ao tema da revista Public Personnel Management, do International Public Management Association For Human Resources (1998), Doverspike et al. (2000), Ivancevitch & Gilbert (2000), Gullet (2000); traduzido para o português, o livro Ação afirmativa no emprego de minorias étnicas e portadoras de deficiências (Hodges-Aeberhard & Raskin, 2000), embora não restrito ao serviço público, traz relatos de experiências de outros países, em alguns casos abrangendo os servidores públicos; especificamente sobre as desigualdades de gênero, vide Lewis (1999), Phillips et al. (s.d.), Mani (2001) e Baker et al. (2002). A maior parte dos textos referidos nesta nota se baseia nas experiências dos Estados Unidos e do Canadá. Isso não se deve a nenhum viés na seleção, mas sim ao fato de que os dois países são por certo os de maior experiência em ações afirmativas para o serviço público. A África do Sul lançou, em 1997, as diretrizes de um programa exemplar de ações afirmativas voltado ao gerenciamento da diversidade no serviço público que merece a atenção de qualquer interessado no assunto (República da África do Sul, 1997). 32 20 Sobre este episódio, vide Andrews (1998). 21 Costa Pinto (1952). CADERNO GRPE • [2] década de 1950, notara também a ausência de negros no serviço público, a partir de dados do censo populacional de 1940. No fim da década de 1960, o deputado federal Mário Gurgel fez interpelações formais acerca da proporção de negros nos cargos de chefia em alguns nichos da administração que eram notoriamente conhecidos por barrar, de várias formas, o ingresso das pessoas negras. Responderam-lhe que não havia dados para aferir tais proporções 22 . Aliás, essa ausência de dados provenientes de fontes administrativas, e não de levantamentos como censos e surveys, a respeito da presença de negros entre os servidores foi um dos fatores que inviabilizou o Programa Nacional de Ações Afirmativas. Nas últimas décadas, aumentaram muito as propostas e os debates sobre a implementação de ações afirmativas no Brasil, especialmente as voltadas para a população negra. Um levantamento23 revela que, de 1950 a 2002, tramitaram, na Câmara dos Deputados, 117 proposições relacionadas ao racismo e às desigualdades raciais, 105 delas após a década de 1980. Esse aumento se deve ao fato de o número de parlamentares negros militantes ter aumentado, também,24 a partir da redemocratização do País ao longo da década de 1980. Muitas propostas contemplaram algum tipo de ação afirmativa para o serviço público. Abdias do Nascimento, quando deputado federal, incluiu por exemplo a reserva de 40% das vagas para negros (20% para cada sexo) nos concursos públicos no Projeto de Lei de 1983 25 . No ano seguinte, ele incluiu, em outro projeto de lei, um dispositivo que estendia a reserva de 40% das vagas nos concursos de seleção para ingresso na carreira diplomática26 . Todavia, tais projetos não se transformaram em leis e caducaram. Atualmente, há pelo menos dois projetos, dos quais um em tramitação e outro pronto para votação, que prevêem ações afirmativas para o serviço público, que serão abordados na sessão final deste capítulo. Há que se ressalvar que o Brasil já tem ações afirmativas para um grupo particular no serviço público , o dos deficientes. O Regime Jurídico Único (RJU) do serviço público civil27 estabelece reservas de vagas para deficientes nos concursos de ingresso. 22 O caso é relatado por Nascimento & Nascimento (2004:136). 23 Escosteguy (2004). 24 Sobre a representação política dos negros, vide Johnson III (2000) e Hanchard (2001). 25 Essas primeiras iniciativas de Abdias do Nascimento, grande liderança negra brasileira, em suas passagens pelo Congresso, primeiro como deputado e depois como senador, aparentemente são a origem histórica dos níveis de 20% e de 40% que tão freqüentemente aparecem nas tentativas de estabelecimento de cotas para negros em diversos espaços sociais. Abdias do Nascimento se balizou pela proporção de 40% de negros (pretos ou pardos) na população nacional revelada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 1976, primeiro levantamento nacional a coletar a cor após o Censo de 1960, que no início da década de 1980 era a fonte de informações mais recente sobre o assunto. Essa informação me foi confirmada pelo próprio Abdias e por Elisa Larkin Nascimento em breve conversa no dia 14 de abril de 2005. 26 Sobre os Projetos de Lei apresentados por Abdias do Nascimento, vide Nascimento & Nascimento (2004). 27 Lei 8.112 de 11/12/1990. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 33 GRPE • OIT Existe ao menos uma avaliação 28 a respeito do impacto da adoção de cotas na empregabilidade das pessoas com deficiência. Tal avaliação tem em tela o setor privado, mas é interessante relatá-la. Ela chega a duas conclusões importantes, que trazem lições para experiências futuras que tenham como foco esse ou outros grupos. A primeira é que existe um elevado grau de descumprimento da lei. Poucas empresas observam com rigor o percentual de deficientes que deveriam ter em seus quadros funcionais. São raros os casos de empresas com mais de 1000 funcionários que exibem os 5% de funcionários deficientes exigidos por lei 29 . Ou seja, a simples existência das disposições legais não garante o cumprimento da lei e a fiscalização é necessária. A segunda conclusão é conjugada com a primeira: mesmo com a não-observância rigorosa da legislação, a sua existência teve sim impactos positivos e mensuráveis sobre a empregabilidade dos deficientes. Em outras palavras, a ação afirmativa tem os efeitos desejados ainda que não funcione perfeitamente. A avaliação supra-mencionada, todavia, tem por objeto o cumprimento da legislação que estabelece as cotas empregatícias para deficientes pelas empresas, não isolando o serviço público civil dos empregadores privados. Entretanto, todos os concursos públicos posteriores à promulgação do RJU reservaram vagas para deficientes. Os candidatos a servidor passaram a disputar nos concursos vagas de ampla concorrência e vagas de concorrência restrita aos deficientes. As provas são idênticas e o mínimo requerido para a classificação também, porém os deficientes competem entre si. Não havendo deficientes aprovados em número suficiente para preencher as vagas de concorrência restrita, elas são distribuídas pelos candidatos aprovados em concorrência ampla. Das duas políticas de ação afirmativa voltadas ao serviço público civil em vigência no Brasil, a reserva de vagas para deficientes em concursos públicos é a que atinge o maior número de pessoas. A outra é a distribuição a candidatos afro-descendentes de bolsas preparatórias para o concurso de ingresso na carreira diplomática. Fora essas duas medidas que lidam com o problema do recrutamento de pessoal, ressaltando-se que a última de forma absolutamente tímida, não há nada. Embora tenham sido tomadas algumas iniciativas que poderiam ter se constituído ação afirmativa para o corpo de servidores, a maior parte delas só teve existência no plano normativo ou foram implementadas por períodos curtos, jamais tendo se efetivado de forma duradoura. Mas a existência das normas pode dar a impressão de que existem ações afirmativas, mesmo que não passem de declarações de intenções, principalmente para aqueles que tentam analisar a realidade de longe a partir de documentos. Assim, por exemplo, pode se ler em uma publicação 28 A avaliação, feita com base na Relação Anual de Informações Sociais, RAIS, teve seus principais resultados resumidos por Néri & Costilla (2004). 29 34 Lei 8.213, de julho de 1991. Observe-se que a estipulação de cotas para o serviço público é anterior à determinação para o setor privado. CADERNO GRPE • [2] recente sobre desenvolvimento econômico e inclusão social na América Latina, logo no texto introdutório e com grande destaque: «No Brasil, um decreto presidencial de maio de 2002 criou um Programa Nacional de Ação Afirmativa. O país também adotou o sistema de cotas para a contratação de pessoal por órgãos públicos e reservou vagas nas principais universidades públicas para afrodescendentes.»3 0 Das três afirmações acima, duas são meias verdades e outra é verdadeira, mas pode levar a conclusões errôneas. Ao que parece, a autora foi induzida ao erro pelos documentos a que teve acesso e, muito provavelmente, também pelos relatórios e pela propaganda oficial que divulgam tais «conquistas» ou «realizações» como fatos concretos. A primeira meia-verdade acerca de ações afirmativas no Brasil diz respeito à adoção de cotas pelas melhores universidades públicas do país. A sentença dá a impressão de que todas as boas instituições públicas de ensino superior adotaram cotas, o que está ainda longe de ser uma verdade. Apenas poucas o fizeram 31 e o debate público sobre o assunto tem revelado a extensão da aversão de parte substantiva da intelectualidade acadêmica brasileira por essas medidas. Mas que se deixem as universidades de lado, pois não interessam, no presente trabalho, medidas para a diversidade do corpo discente, que é transitório. Interessariam apenas medidas relativas ao ingresso para o corpo docente e de outros servidores das universidades, medidas que, no momento, não existem. A segunda meia-verdade é a de que existe um sistema de cotas para contratação de pessoal por órgãos públicos. Isso só é verdadeiro para a contratação de deficientes. Não existem, no Brasil, cotas para a contratação de negros ou de mulheres para o serviço público civil. Todavia, algumas iniciativas tomadas por órgãos públicos no período de 2001 a 2002 podem ter levado à impressão errônea de que haveria cotas. Tais iniciativas, relatadas por Jaccoud & Beghin (2002), foram a estipulação de cotas para o preenchimento de cargos de confiança de Direção e Assessoramento Superiores – os DAS, que serão abordados novamente em outros pontos do presente trabalho. Essas reservas de vagas foram estabelecidas pelo Ministério da Justiça em 2001, pelo Ministério da Cultura em 2002 e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário em 2001 32 . Em 2003, como será visto adiante, um levantamento feito junto aos 30 Buviniæ (2005:3). 31 Ressalve-se que o número de Universidades com ações afirmativas para o ingresso de estudantes negros tem aumentado, a despeito da grande resistência de parte da comunidade acadêmica. 32 O Ministério do Desenvolvimento Agrário foi o pioneiro na adoção de um programa próprio de ações afirmativas. Esse programa foi desenvolvido ao longo de 2001 e 2002. Inicialmente contemplava apenas mulheres, mas depois incluiu os negros e foi o mais incisivo no sentido de tentar obrigar aos órgãos do próprio ministério e aos fornecedores de bens e serviços a comprovação efetiva da adesão ao programa. Para acompanhar a evolução desse programa, as referências são as Portarias nº 33, de 08 de março de 2001 (infelizmente, é muito difícil ter acesso ao texto integral, mas cópias podem ser conseguidas junto ao Ministério sob solicitação) nº 202, de 04 de setembro de 2001, nº 222, de 28 de setembro de 2001, nº 224, de 28 de setembro de 2001 e nº 25, de 21 de fevereiro de 2002. A respeito do Programa de Ações Afirmativas do Ministério da Justiça, que contemplava negros, mulheres e deficientes, vide a Portaria nº 1.156 desse Ministério, baixada em 20 de dezembro de 2001. O Programa de Ações Afirmativas do Ministério da Cultura, que contemplava negros, mulheres e deficientes, foi Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 35 GRPE • OIT Departamentos de Recursos Humanos desses órgãos constatou que as portarias que estabeleceram cotas que jamais chegaram a ser cumpridas ou o foram apenas no governo anterior, tendo caído no esquecimento no que toca às disposições voltadas aos servidores. No caso do Ministério da Justiça, comenta-se que, em 2002, o cumprimento da determinação teria sido feito, todavia lançando mão de uma estratégia capciosa. A cota de 20% das vagas teria sido preenchida com a designação de negros para a ocupação de DAS de baixo nível hierárquico. Mesmo assim, as iniciativas relatadas acima são voltadas aos servidores já existentes ou para o ingresso temporário de servidores. O ocupante de cargo de confiança que não faz parte do corpo permanente do serviço público civil só é servidor enquanto desempenha a função de confiança, o que muitas vezes não chega a durar um governo inteiro. Assim, não podem ser consideradas cotas para a contratação de servidores. O Ministério das Relações Exteriores, por sua vez, implementou, em 2002, o seu programa de ação afirmativa 33 realmente voltado à promoção do ingresso, na carreira diplomática, de afro-descendentes como membros do quadro permanente de servidores. Mas o programa desse ministério também não se dá pela estipulação de cotas para o ingresso por concurso. O programa consiste em dar bolsas para que afro-descendentes com potencial possam se dedicar integralmente aos estudos durante algum tempo, aumentando suas chances de passar no rigoroso processo de seleção. Portanto, embora seja um programa de estímulo ao ingresso no serviço público, também não pode ser visto como um sistema de cotas para a contratação de servidores negros. O Ministério do Desenvolvimento Agrário chegou a estipular, em concursos, reservas de 20% das vagas para afro-descendentes. Todavia, não se tem notícia de um único concurso que tenha contado com esse tipo de cota e provavelmente tal medida, sem estar respaldada em uma norma maior, teria gerado uma enxurrada de ações judiciais a questionando. Outro tipo de medida, adotada nos idos de 2001 e 2002, também pode levar à impressão errônea de que existe algum tipo de sistema de cotas para a contratação de funcionários negros. Os Ministérios da Justiça, da Cultura e do Desenvolvimento Agrário, e dois Tribunais, o Superior do Trabalho e o Supremo, baixaram normas que estabeleciam reservas de vagas para negros nos contratos com prestadores de serviços34 . Todos adotaram 20% das vagas como nível da reserva. implementado pela Portaria nº 484 desse Ministério, baixada em 22 de agosto de 2002 (posterior ao programa). Excetuando-se a Portaria 33 do MDA, todas as demais se encontram reproduzidas no anexo do livro de Jaccoud & Beghin (2002). Os textos integrais desse livro e seu anexo estão acessíveis em formato eletrônico, respectivamente a partir dos endereços: http://www.ipea.gov.br/TemasEspeciais/desigualdades/ Parte1.pdf http://www.ipea.gov.br/TemasEspeciais/desigualdades/Parte2.pdf. 33 Vide o Protocolo de Cooperação, firmado entre os Ministérios da Ciência e Tecnologia, da Cultura, da Justiça e das Relações Exteriores, em 21de março de 2002, também reproduzido no anexo do livro de Jaccoud & Beghin (2002) – referido na nota anterior. 34 36 No que toca aos Ministérios, vide nota 32. CADERNO GRPE • [2] Antes mesmo de entrar no mérito desse último tipo de medida, deve-se declarar que, em 2003, nenhuma das determinações estava sendo observada pelos ministérios ou pelos tribunais que as estabeleceram. Essa foi a constatação de um levantamento que será discutido adiante mais detalhadamente. Embora a memória se tenha ido, tudo indica que, em 2002, algumas instituições supra-citadas realmente chegaram a celebrar contratos com prestadores de serviço observando tais medidas. Mas, mesmo assim, há que se registrar que não havia à época nenhum monitoramento dos prestadores contratados. Quanto às medidas em si, poderiam ter algum efeito, mas não atingiriam o quadro efetivo de servidores. No caso dos fornecedores de bens, isso é um tanto quanto óbvio, pois os funcionários desses empregadores não se tornam servidores em sentido algum. Porém, muitos contratos com prestadores de serviços são para a contratação de pessoal que vai atuar no serviço público e, portanto, como servidores. Parte significativa desse pessoal terceirizado é composta por trabalhadores não especializados contratados para o desempenho de funções simples. São copeiras, garçons, faxineiras, contínuos e congêneres. Ora, como exibem todos os inúmeros compêndios estatísticos sobre o assunto, essas ocupações são desempenhadas em maiores proporções por negros; por conseguinte, metas de 20% não precisariam nem ao menos de um esforço consciente para ser atingidas por esse pessoal. Aliás, provavelmente tais metas já estavam ultrapassadas no momento de sua criação. Mas tais disposições não seriam necessariamente inócuas. Elas atingiriam também uma parcela de terceirizados de alto nível, como os funcionários das firmas de engenharia e de informática. Poderiam alcançar, por exemplo, os «consultores», pessoas contratadas por projetos em parceria com organismos internacionais. Entre elas havia uma parcela bemremunerada e desempenhando funções de alto nível. De qualquer forma, essas disposições teriam que ser acompanhadas por descrições dos mecanismos de monitoramento das empresas prestadoras de serviço, o que não ocorreu. E, mesmo atingindo o pessoal terceirizado que trabalha como servidor, é preciso registrar que as medidas não se destinavam ao corpo permanente de servidores. Por fim, a verdade que poderia levar a conclusões equivocadas é a de que o Brasil tem um Programa Nacional de Ações Afirmativas (PNAA). Efetivamente, o PNAA foi instituído em 2002, mas não se deve confundi-lo com a Política Nacional Promoção da Igualdade Racial 35 , promulgada em 2003. O PNAA, em suas disposições mais concretas, configura um programa voltado aos servidores civis da administração direta e indireta do Poder Executivo Federal. Entretanto, o PNAA é apenas um documento, uma norma que jamais foi regulamentada, tampouco seguida. Mas vale a pena analisar o PNAA detalhadamente, pois ele ainda está em vigência e, em tese, necessita apenas de regulamentação para ser implementado. 35 Decreto Presidencial nº 4.886, de 20/11/2003. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 37 GRPE • OIT 3.1 O Programa Nacional de Ações Afirmativas - PNAA O Programa Nacional de Ações Afirmativas36 estrutura-se em torno de dois eixos. Um é essencialmente uma política de cotas para mulheres, negros e deficientes. Sua esfera de atuação seria a Administração Pública Federal (APF), composta pela administração direta e indireta do Poder Executivo, embora algumas das disposições implicassem a extrapolação desses limites e a inclusão dos fornecedores privados de bens e serviços. O outro eixo implicou a criação de um comitê «consultivo-propositivo», responsável pela sugestão de outros tipos de políticas de ação afirmativa, bem como de medidas administrativas, visando ao combate à discriminação e à valorização dos grupos supracitados e dos Direitos Humanos em geral. É bem óbvio o fato de que, após a mudança de governo em 2003, a criação da Secretaria Especial de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)37 e do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR)38 esvazia completamente as funções previstas para o Comitê de Acompanhamento do PNAA. A partir de sua criação, a SEPPIR passa a ser responsável pelo PNAA39 e por todas as políticas de ação afirmativa, exceto as voltadas às mulheres, que contam com uma outra Secretaria Especial e aquelas para deficientes, que já contam com legislação específica. Embora o PNAA não englobe mais as ações afirmativas voltadas para o público em geral, no que toca ao estabelecimento de ações afirmativas para os servidores civis do Executivo Federal ele continua válido e prenhe de potencial. Ressaltese, ainda, que as ações desse primeiro eixo são, essencialmente, as mesmas adotadas pelos Ministérios da Justiça, da Cultura e do Desenvolvimento Agrário. Nesse, o PNAA pode ser visto como uma tentativa de implementar em toda a Administração Pública Federal o que esses órgãos tentaram realizar dentro da competência deles. O PNAA foi definido apenas nas linhas e objetivos gerais: não há um delineamento preciso de como seria sua implementação. Os detalhes seriam fornecidos pelo Comitê de Avaliação e Acompanhamento do PNAA na forma de uma proposta de ações e metas, que dariam corpo ao Programa. Para que saísse do papel, portanto, era necessária essa proposta, que deveria ter sido entregue em 12 de julho de 200240 . Todavia, tal proposta jamais chegou a ser feita, devido à ausência de diagnósticos sobre o caráter e o grau das desigualdades sobre as quais o PNAA deveria atuar (no âmbito do serviço público civil); às dificuldades em lidar com os assuntos envolvidos e ao fato de 2002 ter sido um ano de eleições presidenciais. Em conseqüência, o 36 Decreto Presidencial nº 4.228, de 13/05/2002. 37 A SEPPIR foi criada pela Lei nº 10.678, de 23/05/2003, conversão da Medida Provisória nº 111, de 21/03/2003. 38 Instituído pela Lei de criação da SEPPIR (vide nota anterior) e regulamentado pelos Decretos Presidenciais nº 4.885, de 20/11/2003, e nº 4.919, de 17/12/2003. 38 39 Artigo 2º da Lei nº 10.678, de 23/05/2003. 40 Parágrafo Único do Artigo 3º do Decreto Presidencial nº 4228, de 13/05/2002. CADERNO GRPE • [2] PNAA, embora exista, jamais foi implementado pela falta de regulamentação. O caráter vago do PNAA é exemplificado pela política de cotas sugerida. Ela se encontra no artigo,41 que dispõe sobre as ações a serem realizadas pelos órgãos da APF. A palavra «cota» não chega nem mesmo a ser usada. Fala-se apenas em «metas percentuais», que deveriam ser fornecidas pela proposta de ações do Comitê de Avaliação e Acompanhamento. O alcance da meta também não foi definido, pois não havia informações precisas sobre o contingente de servidores que seriam beneficiados pelo programa. O caso da composição racial era ainda mais grave, pois dependia da informação da cor, a qual não fazia parte do cadastro funcional de servidores. A idéia, portanto, era definir, de alguma forma, as porcentagens de negros, deficientes e mulheres nos cargos da administração pública, em um período de tempo também a ser definido. Diferentemente da cota, que, uma vez estabelecido seu tamanho, tem que ser implementada o mais rapidamente que os meios disponíveis permitirem, a meta deve ser alcançada ao final de um período, durante o qual se realizam ações para tanto. Embora não haja menção aos critérios a serem usados para o cálculo das metas percentuais, o âmbito de aplicação das cotas é bem definido: os cargos de confiança e, mais especificamente, os cargos em comissão de Direção e Assessoramento Superiores (DAS); os funcionários terceirizados; o pessoal contratado por projetos em conjunto com organismos internacionais. Os DAS são os cargos cujos ocupantes são escolhidos por indicação de outros ocupantes de cargos superiores e/ou por considerações de ordem política. Podem ser ocupados tanto por servidores públicos permanentes como por cidadãos de fora do quadro e são hierarquizados em vários níveis segundo o grau de poder, com remunerações progressivamente mais altas. Uma possível razão para o interesse pelos DAS, uma vez que existem vários outros tipos de cargos e também funções gratificadas com essas mesmas características, pode ser o fato de que a maior parte desses outros é restrita aos servidores públicos permanentes. Outra é que a estrutura dos principais órgãos da administração pública – os Ministérios – é hierarquizada pelos DAS. Os altos representam poder discricionário efetivo na execução das políticas e dos orçamentos públicos, embora não se possa menosprezar o poder relativo de outros grupos de cargos. Um dos objetivos implícitos desse sistema de metas era, portanto, aumentar a participação das pessoas com deficiência física, das mulheres e dos negros nas instâncias em que realmente ocorrem decisões cotidianas que acabam por definir alguns aspectos essenciais da implementação das políticas. Para que isso ocorresse seria preciso estabelecer futuramente que a meta fosse válida para todos os níveis hierárquicos de cargo. O objetivo não seria alcançado se, por exemplo, a porcentagem de mulheres, negros e de deficientes fosse estabelecida, mas os ocupantes de DAS desses grupos estivessem concentrados nos níveis inferiores da hierarquia. 41 Artigo 2º do Decreto Presidencial nº 4228, de 13/05/2002. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 39 GRPE • OIT É interessante notar que, em momento algum, nas ações prescritas pelo PNAA, percebem-se disposições específicas para os servidores permanentes. São mencionados apenas os DAS42 , que podem ser ocupados por qualquer cidadão, servidor ou não. Depois, há menção aos contratados por convênios/projetos de cooperação com organismos internacionais e ao favorecimento de fornecedores que adotassem algum tipo de ação afirmativa para seus funcionários, mas as pessoas que poderiam ser beneficiadas nesses casos não fazem parte do quadro de servidores públicos civis. As demais ações previstas de início pelo PNAA, a exemplo das metas percentuais, também não poderiam ser implementadas sem regulamentação. No caso das transferências negociadas de recursos para outros órgãos federativos43 (estados e municípios), como viabilizar a inclusão de cláusulas de adesão ao programa, se a única ação mais ou menos definida fazia menção explícita aos DAS, que só existem na APF? 3.2 O estado atual das ações afirmativas no serviço público civil Portanto, o PNAA não poderia ser implementado por uma razão muito simples; a ausência de regulamentação. Mesmo assim, em outubro e novembro de 2003, nossa equipe de pesquisa resolveu abrir uma nova frente para averiguar duas questões. A primeira se, a despeito da impossibilidade de implementação, os responsáveis pelos Departamentos de Recursos Humanos dos órgãos da administração direta, mais especificamente os ministérios, conheciam a existência do PNAA e do decreto que o instituíra. A segunda se o órgão possuía algum tipo de ação afirmativa voltada ao quadro de servidores. A técnica empregada foi a realização de entrevistas rápidas semi-estruturadas por um roteiro simples de oito questões. Nos casos em que não foi possível entrevistar diretamente o titular de Recursos Humanos, a entrevista foi feita com o substituto legal ou com uma autoridade superior, como o Secretário Executivo. Nos ministérios que haviam adotado medidas próprias no período de 2001 a 2002, questionou-se também o conhecimento dessas medidas e a observância delas. Antes de passar aos resultados deste breve levantamento, vale mencionar que, embora o Tribunais Superior do Trabalho e Supremo Tribunal Federal não estivessem sujeitos aos ditames do PNAA, buscou-se saber se estavam levando a cabo as determinações de se dar preferência aos fornecedores de serviços que mantivessem algum tipo de ação afirmativa. Nesse caso, tentou-se identificar a maior autoridade responsável por esse tipo de contrato. As respostas foram reveladoras. Tais funcionários não só informaram não ter conhecimento de tais disposições como também que não sabiam de licitação alguma que houvesse observado tais critérios. 40 42 Artigo 2º, Inciso I do Decreto Presidencial nº 4228, de 13/05/2002. 43 Artigo 2º, Inciso II do Decreto Presidencial nº 4228, de 13/05/2002. CADERNO GRPE • [2] Os resultados do levantamento junto aos ministérios são expressivos no sentido de mostrar a distância entre o discurso oficial e as práticas cotidianas do serviço público. Na maior parte dos 23 ministérios pesquisados45 , não havia tipo algum de ação afirmativa voltada para os servidores (excetuando-se, nos concursos, a reserva obrigatória de vagas para deficientes). A despeito do compromisso, diversas vezes reiterado, do atual governo com a promoção da igualdade racial, de gênero e com a inclusão dos deficientes, não existe tipo algum de ação afirmativa coordenada voltada aos servidores civis. «Casa de ferreiro, espeto de pau», como diz a sabedoria popular. Apenas dois ministérios declararam estar fazendo, por conta própria, ações afirmativas, curiosamente o oferecimento de vagas de estágio para deficientes concomitantemente com a adequação dos ambientes de trabalho para essas pessoas. Mais do que nada, com certeza, essas iniciativas têm a ver com pessoal, mas não estão relacionadas à superação de eventuais desigualdades entre os servidores, tampouco à garantia do ingresso de servidores negros e de mulheres. Assim sendo, não são ações afirmativas voltadas ao serviço público civil, pois seus beneficiários não são servidores. Muitos ministérios simplesmente não sabiam da existência do PNAA. As justificativas para tal situação, assim como as reações frente à entrevista, variaram. Quase metade dos entrevistados declarou sinceramente não ter informação alguma sobre o programa. O restante declarou conhecê-lo, mas durante a entrevista ficou óbvio o fato de que em apenas dois ministérios o responsável por Recursos Humanos realmente conhecia o PNAA. Em alguns dos ministérios em que o desconhecimento ficou patente, a despeito da alegação contrária, os entrevistados disseram que o órgão não tinha quadros próprios de servidores. O quadro era todo composto de funcionários cedidos, gestores do Ministério do Planejamento e pessoas contratadas por projetos com organismos internacionais. Mas como o PNAA só previa ações para os cargos em comissões e para os funcionários terceirizados, incluindo os contratados por organismos internacionais, a justificativa da ausência de quadros próprios fica fora de contexto. A terceira categoria mais freqüente de respostas foi a dos responsáveis por Recursos Humanos que declararam conhecer o PNAA. Eles alegaram que o decreto estaria sendo estudado para que se decidisse sobre a melhor 45 1) Ministério da Educação; 2) Ministério da Saúde; 3) Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; 4) Ministério da Assistência e Promoção Social; 5) Ministério do Meio Ambiente; 6) Ministério das Comunicações; 7) Ministério do Trabalho e Emprego; 8) Ministério da Previdência Social; 9) Ministério da Fazenda; 10) Ministério da Integração Nacional; 11) Ministério das Minas e Energia; 12) Ministério dos Transportes; 13) Ministério do Turismo; 14) Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; 15) Ministério das Cidades; 16) Ministério da Ciência e Tecnologia; 17) Ministério da Defesa; 18) Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio; 19) Ministério do Esporte; 20) Ministério da Justiça; 21) Ministério das Relações Exteriores; 22) Ministério do Desenvolvimento Agrário; 23) Ministério da Cultura. A escolha desses órgãos se deveu ao fato de que os ministérios têm coordenações próprias de recursos humanos. Assumiu-se o pressuposto de que os órgãos da administração indireta ligados a cada ministério muito provavelmente seguiriam em suas próprias coordenações de recursos humanos a recomendação de suas equivalentes nos ministérios. Eventuais ausências se devem ao fato de que não foi possível contatar o responsável ou uma autoridade superior. As Secretarias da Presidência da República, Ministérios Extraordinários, a Controladoria Geral da União e a Casa Civil não entraram na análise por estarem sujeitos à coordenação de recursos humanos da Presidência. Os Ministérios do Exército, da Aeronáutica e da Marinha têm a coordenação geral de recursos humanos (pessoal civil) centralizada no Ministério da Defesa. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 41 GRPE • OIT forma de implementá-lo. Todavia, nenhum deles soube dizer em que ponto os estudos estavam e se havia prazo para conclusões ou uma data para iniciar o programa. Em dois ministérios, o responsável declarou aguardar instruções da Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento para começar a tomar providências. Dos dois coordenadores de Recursos Humanos que conheciam o PNAA, um criticou o Decreto que o instituiu, alegando que não era executável. A percepção do servidor é correta, pois o PNAA não foi complementado por regulamentações posteriores que o texto original exigia (como a definição dos valores das metas). O outro coordenador informou que o PNAA se encontrava «arquivado» na Secretaria Executiva do Ministério, sem perspectiva de ser adotado no órgão. Finalmente, o segundo grupo mais freqüente de alegações para o não seguimento dos ditames do PNAA se baseava no argumento de que os DAS são cargos preenchidos por indicação política e que, por conseguinte, não seria possível ou não faria sentido preenchê-los segundo critérios raciais, de gênero e de acessibilidade para pessoas com deficiência. Interessante é que alguns dos entrevistados, após fazer esse tipo de declaração, passaram a criticar a forma pela qual o atual Governo estaria distribuindo DAS entre seus apaniguados, sem observar se tais pessoas teriam competência para o exercício da função. Se os DAS fossem realmente distribuídos assim, mais uma razão para introduzir critérios afirmativos em sua alocação. O gráfico a seguir sintetiza tais declarações dos entrevistados sobre o PNAA. GRÁFICO 1 Impressões sobre o PNAA (número de pessoas) Inexequibilidade do PNAA 1 Arquivamento do PNAA 1 Alegaram falta de quadros 2 Aguardando informações da SRH do Ministério do Planejamento 2 3 Estudando o PNAA Evocaram a natureza política do DAS 5 9 Não tinham informação alguma sobre o PNAA 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Talvez ainda mais interessante do que os resultados acima descritos tenha sido a reação das pessoas entrevistadas. Algumas reagiram como se estivessem sendo cobradas pela não implementação do PNAA – algo de que 42 CADERNO GRPE • [2] não poderiam, sob hipótese alguma, ser culpadas – e assumiram uma atitude defensiva, aventando desculpas para o desconhecimento ou não cumprimento do Programa. Quando se esclarecia que o pesquisador não policiava ou fiscalizava, mas estava apenas interessado nos fatos, e que os dados seriam divulgados de forma agregada, sem a identificação dos ministérios, os entrevistados se colocavam mais à vontade e, na maior parte dos casos, demonstraram interesse pelo PNAA. Esse interesse pode serclassificado em três grandes categorias básicas. A primeira seria a dos entrevistados que simplesmente se mostraram indiferentes. Outra categoria, a mais freqüente, foi a dos que criticaram severamente a falta de divulgação do decreto. Esses, de forma geral, demonstraram um interesse sincero e uma aparente disposição de levar a cabo uma política como o PNAA. A terceira categoria era formada por aqueles que demonstraram um interesse «negativo». Eles criticaram a adoção de cotas para o serviço público, seja para ocupação de cargos ou para o ingresso, pois elas seriam, nas palavras de um dos entrevistados, que bem sintetizam a orientação geral do grupo, uma «discriminação às avessas que gera conflitos internos». Nessa terceira categoria, se evocou o argumento de que não haveria racismo ou sexismo no serviço público e, no caso dos negros, que as desvantagens deles estariam relacionadas ao fato de serem pobres e não negros. Dentro da categoria dos interessados, convém destacar a existência de um grupo particular que se demonstrou aguerrido na defesa de estratégias de ação afirmativa para o corpo de servidores. Todavia, a defesa se centrava em apenas um grupo, o das pesoas com deficiência. Quando questionados se as mulheres e os negros não seriam também merecedores de medidas específicas, a resposta foi muito parecida. Mulheres e negros não precisariam dessas políticas, pois estariam sendo incluídos progressivamente de forma «natural», bastando paciência e não intervenção para a consecução da eqüidade. Mas os deficientes físicos não estariam sendo incluídos «naturalmente», daí a necessidade de políticas para esse grupo. Ressalve-se que isso ocorreu nos ministérios que possuíam programas especiais de estágio para pessoas com deficiência. GRÁFICO 2 Interesse pelo PNAA Interesse centrado em deficientes 2 Crítica às quotas 2 (número de pessoas) 8 Indiferença 11 Interesse 0 Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 2 4 6 8 10 12 43 GRPE • OIT Como se pode observar, esses foram os resultados gerais do levantamento. Para os ministérios já citados que, por iniciativa própria, baixaram normas que estabeleciam programas internos de ação afirmativa no período de 2001 a 2002, a investigação foi um pouco além para averiguar se essas normas estavam sendo observadas. Mas, como já dito, não estavam, acabaram juntamente com o governo que as criou e, por essa razão, opta-se por encerrar aqui o relato desse breve levantamento. 3.3 Condições para o estabelecimento de ações afirmativas para os servidores Após o estabelecimento da obrigatoriedade de concurso para ingresso nas carreiras do serviço público civil, não se pode dizer que haja algum tipo de discriminação direta para a admissão de novos servidores. As pessoas efetivamente concorrem em condições de igualdade quando fazem uma prova de seleção – entendendo-se como «igualdade» o fato de fazerem a mesma prova. A exceção fica por conta dos deficientes, que protegidos por legislação só concorrem com outros deficientes, embora tenham que atingir, nas provas de conhecimentos e de títulos, a pontuação mínima estipulada para todos os candidatos. Todavia, isso nem sempre foi assim, pois o concurso não foi obrigatório durante um longo tempo. É extremamente significativo o fato de que a primeira legislação brasileira anti-discriminação, a Lei Afonso Arinos, de 1951, determinava especificamente constituir contravenção «obstar o acesso a alguém a qualquer cargo do funcionalismo público ou ao serviço em qualquer ramo das forças armadas, por preconceito de raça ou cor»46 . A pena para o agente público que incorresse em tal contravenção seria a perda do cargo – desde que fosse apurada em «inquérito regular». A Lei Caó, de 1985, que atualizou a Lei Afonso Arinos, dispunha o mesmo que a anterior, mas acrescentou como contravenção a interposição de barreiras ao ingresso no serviço público civil ou militar devido ao sexo ou ao estado civil dos candidatos47 . A pena para o funcionário responsável pela discriminação também era a perda do cargo. O racismo foi transformado em crime48 pela Constituição de 1988 e a Lei Paim49 , de 1989, substituiu as leis anti-discriminação que a precederam, definindo quais são os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor. Tal lei permite, em tese, a aplicação do dispositivo constitucional. «Em tese», porque é sabido que a tipificação do crime de racismo tem sido algo extremamente difícil, pois o racismo é freqüentemente descaracterizado pelos agentes da lei e registrado como injúria50 . 46 Artigo 6º da Lei nº 1.390, de 03/07/1951. 47 Artigo 8º da Lei nº 7.437, de 20/12/1985. 48 Artigo 5º, Inciso XLII da Constituição de 1988: «a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei». 49 50 Lei 7.716, de 05/01/1989. Sobre a dificuldade de caracterização dos crimes de racismo, vide Guimarães (2005). Existem vários projetos de lei tramitando no Congresso Nacional para que a injúria de fundo racial seja considerada crime de racismo. 44 CADERNO GRPE • [2] A Constituição de 1988 tornou impossível a discriminação direta para ingresso no serviço público civil51 . Mesmo assim, a Lei Paim prevê o crime, com pena de reclusão de dois a quatro anos, de «impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da administração direta e indireta, bem como das concessionárias de serviço público»52 . Tal disposição funciona como proteção para evitar que um servidor seja impedido, por exemplo, de ocupar um cargo em comissão ou de exercer uma função gratificada por causa de sua raça ou cor. A mesma Lei também define, no espírito das antecessoras dela, como crime «impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das forças armadas»53 , o qual tem a mesma pena. Ressalve-se que o servidor público condenado por qualquer um dos crimes de racismo tipificados nos demais artigos da Lei, não só pelos dois mencionados, além da pena de reclusão prevista, perde também o cargo ou a função pública que exerça. Uma série de mudanças na administração pública foi imposta pela Constituição de 1988. Essas mudanças foram consignadas no Regime Jurídico Único, RJU, Lei que rege as relações de trabalho no âmbito do serviço público civil. É o RJU que estabelece a reserva de até 20% das vagas de concursos públicos para deficientes54 (físicos ou mentais), desde que o exercício do cargo seja compatível com a deficiência do candidato. O RJU estabelece, portanto, uma ação afirmativa para um grupo particular da população, ressalvando-se que ela se limita ao ingresso, pois não há previsões especiais em relação à progressão funcional ou à ocupação de cargos em comissão pelos deficientes. O RJU não contém proibições explícitas para discriminação por raça, gênero, tampouco deficiências, embora faça menção explícita à discriminação « por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política»55 . O RJU também preconiza a isonomia salarial para funções congêneres e regulamenta uma série de direitos das mulheres servidoras. Esses direitos, no entanto, não extrapolam o que está previsto para elas em qualquer tipo de trabalho. Obviamente, as leis supracitadas que proíbem o racismo e a discriminação e as convenções da Organização Internacional do Trabalho que foram ratificadas pelo Brasil, em especial a nº 100 e a nº 111, valem para o serviço publico civil. Assim, está vedada a conduta discriminatória por parte dos servidores. Dependendo de como eventuais preconceitos forem externados por um servidor, é possível considerar que este está incorrendo 51 Artigo 37º, Inciso II da Constituição de 1988, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998: «a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração». 52 Artigo 3º da Lei 7.716, de 05/01/1989. 53 Artigo 13º da Lei 7.716, de 05/01/1989. 54 Artigo 5º, Parágrafo 2º da Lei 8.112, de 11/12/1990. 55 Artigo 239º da Lei 8.112, de 11/12/1990. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 45 GRPE • OIT em caso de «incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição»56 ou que está transgredindo a proibição de «promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição»57 , ambas condutas que podem levar à demissão do servidor. Resumindo, o RJU em conjunto com outras normas que se aplicam ao serviço público civil, veda a discriminação, mas não determina a promoção da equidade sob forma alguma, com exceção parcial no caso das pessoas com deficiência física,. Existem pelo menos dois Projetos de Lei no Congresso Nacional que prevêem ação afirmativa para os servidores. Um deles, que tramita conjuntamente na Câmara e no Senado, é o Estatuto da Igualdade Racial, proposto pelo então deputado federal e, hoje, senador Paulo Paim. O Estatuto da Igualdade Racial é uma espécie de consolidação das leis de promoção da igualdade racial e de proibição da discriminação, motivo pelo qual outros Projetos de Lei com medidas semelhantes foram apensados a ele. O Estatuto prevê uma reserva de 20% das vagas de concursos públicos federais, estaduais e municipais para os afrodescendentes58 . O outro Projeto de Lei existente é muito mais incisivo no que toca à administração pública, objeto da maior parte das disposições dele. De autoria do parlamentar Luiz Alfredo Salomão e apresentado em 1999, o projeto prevê uma meta de 40% de negros, metade mulheres e a outra metade homens, no serviço público 59 . A administração pública das três esferas federativas – União, Estados e municípios – teria um prazo de 20 anos para atingir essa porcentagem de servidores negros. O projeto também prevê a estratégia para a consecução da meta: reserva de vagas de 40% nos concursos públicos; estabelecimento por cada órgão público (incluindo empresas públicas, autarquias, etc.) de metas anuais de crescimento da proporção de negros entre os servidores; treinamento e capacitação específicos para que os servidores negros estejam também representados nos níveis mais altos da hierarquia e monitoramento com divulgação qüinqüenal de estatísticas pelos órgãos de recursos humanos para aferir o progresso das iniciativas. Para um nicho particular do serviço público, a Diplomacia, a reserva de vagas preconizada é de 50% nas seleções do Instituto Rio Branco. Finalmente, o servidor público que não observasse tais disposições estaria cometendo o crime de racismo, sujeito às penas da lei que o tipifica: reclusão e perda do cargo. Esse Projeto de Lei já passou por todos os trâmites e apenas falta ir à votação para ser aprovado ou rejeitado pelos parlamentares e pelo Presidente da República, seguindo os ritos convencionais das leis ordinárias. Em que pesem as boas intenções desses dois Projetos de Lei, que partem de uma constatação da realidade vivida – há poucos negros no alto 46 56 Artigo 132º, Inciso V da Lei 8.112, de 11/12/1990. 57 Artigo 117º, Inciso V, referido pelo Artigo 132º, Inciso XIII, da Lei 8.112, de 11/12/1990. 58 Artigo 20º do Projeto de Lei nº 3.198 de 2000. Publicado no Diário da Câmara dos Deputados em 16/06/2000. 59 Projeto de Lei nº 1.866, de 1999. Publicado no Diário da Câmara dos Deputados em 13/11/1999. CADERNO GRPE • [2] escalão do serviço público – a diversidade da composição racial do país60 seria um grande obstáculo à execução de ambos. Não é possível estabelecer cotas como números mágicos. As proporções a serem observadas têm que se coadunar com as especificidades das composições raciais locais, ainda mais se pretende-se aplicá-las nas administrações estaduais e municipais. As cotas previstas em ambos os projetos muito provavelmente seriam atingidas nos estados setentrionais, mas não seriam executáveis nos meridionais, que teriam que «importar» servidores negros de outras regiões do país. Um problema de desenho que ambos os projetos compartilham – não só entre si, mas com todas as outras iniciativas de ação afirmativa para o serviço público , como o já discutido PNAA – é o fato de ignorar as diferenças regionais de composição racial. Além disso, não partiram de um diagnóstico da situação efetiva da composição racial dos servidores públicos e do tipo e extensão das desigualdades existentes entre servidores brancos e negros; entre mulheres e homens e, acrescenta-se, entre não-deficientes e deficientes. Um primeiro passo para suprir tal deficiência e delinear um primeiro panorama sobre a extensão das desigualdades no serviço público é o estudo apresentado na próxima seção. 60 Sobre a composição racial por unidades da federação, vide Shicaso (2002) ou, para informações mais atualizadas, o sítio do IBGE: www.ibge.gov.br. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 47 GRPE • OIT 48 CADERNO GRPE • [2] IV. Desigualdades Raciais e de Gênero no Serviço Público Civil Brasileiro Viu-se, portanto, que um dos grandes problemas para a adoção de ações afirmativas para os servidores públicos é a ausência de diagnósticos sobre o grau e o caráter das desigualdades entre os servidores. Neste capítulo, serão apresentados os resultados de um estudo sobre desigualdades raciais e de gênero no serviço público . Por razões de ordem técnica, o estudo se restringe ao serviço público civil federal, mais especificamente ao Poder Executivo, administração direta e indireta. A base de dados empregada para o estudo foi construída a partir das informações do Sistema Integrado de Administração de Pessoal (SIAPE) de responsabilidade da Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) e mantido pelo SERPRO. Detalhes sobre o processo de construção da base, qualidade dos dados e a campanha de cadastramento racial podem ser encontrados no Apêndice I. Optou-se por tratar o serviço público civil como um todo, ignorando distinções de órgãos e carreiras e escolhendo um conjunto restrito de variáveis de interesse: cor, sexo, escolaridade, idade, tempo de serviço, gratificação por cargo ou função e salário. O presente estudo deve ser visto como uma investigação exploratória, como um instrumento para levantar questões relevantes a serem investigadas no futuro. Deliberou-se que, dado tal caráter exploratório, não seria o momento de fornecer dados que permitissem comparações do tipo o Ministério X discrimina mais que o Y. Esse tipo de comparação seria contraproducente, pois com certeza são necessários estudos Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 49 GRPE • OIT mais aprofundados que o ora apresentado e, por certo, todos os órgãos da administração têm muito a contribuir e a fazer para a promoção da igualdade racial e de gênero entre os servidores. O ideal é que, no futuro, as coordenações de recursos humanos, inspiradas pela abordagem aqui apresentada, façam como previsto no projeto do deputado Luiz Alfredo Salomão, mencionado no capítulo anterior: realizem suas próprias pesquisas e divulguem os diagnósticos. Individualizar carreiras seria problemático. Muitas carreiras foram criadas ou revistas e reestruturadas ao longo da década de 1990. Algumas estão em processo de revisão e outras francamente defasadas em relação ao mercado e às demais carreiras do serviço público civil. Só um relato da situação das carreiras já implicaria um estudo muito mais abrangente e de maior fôlego do que o realizado. Eventuais distinções raciais e de gênero a serem apontadas aqui podem, de fato, se dever à inserção das mulheres ou dos negros em carreiras particulares. Mas, se há segmentação ocupacional no serviço público civil, o que é muito provável, isso não invalida as conclusões principais a serem tiradas desta investigação. Se, por exemplo, uma das razões dos diferenciais de remuneração que serão demonstradas é o fato de negros e mulheres estarem inseridos em carreiras que remuneram menos, fica o questionamento: por que tais carreiras são menos valorizadas e por que esses grupos estariam mais representados nelas? Ademais, como já adiantado, o presente estudo não deve ser visto como a palavra final sobre o assunto, mas, espera-se, como um ponto de partida para muitas outras investigações. Quanto à estrutura, a investigação se encontra dividida em duas grandes partes. Uma é dedicada ao problema da representação dos negros e das mulheres entre os servidores. Atestou-se, no capítulo anterior, que não há – como para os deficientes – dispositivos legais que garantam qualquer tipo de proporcionalidade para negros e mulheres nos processos de recrutamento de servidores, isto é, nos concursos. Dada tal situação, o objetivo da primeira parte da investigação é saber se os negros e as mulheres brasileiras se encontram adequadamente representados no serviço público civil. A segunda parte da investigação busca, por meios indiretos, averiguar se servidores da raça negra e do sexo feminino têm as mesmas oportunidades de progressão no serviço público civil, utilizando como referência o grupo dos homens brancos. Para tanto, investigou-se a ocupação de cargos em comissão e o exercício de funções gratificadas e, para os servidores em cargos ou exercendo funções, o nível de hierarquia e remuneração dos cargos. Foram investigadas também as diferenças de remuneração entre os servidores. 4.1. A representação da diversidade no serviço público civil Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2002, dos 171,6 milhões de brasileiros, 99,5 milhões (57,9%) estavam na faixa etária dos 20 aos 69 anos, assim como os 580 mil servidores públicos em atividade no início de 2003. Nessa parcela da população, 47,6 milhões 50 CADERNO GRPE • [2] eram homens e 51,7 milhões eram mulheres. Na População Economicamente Ativa (PEA), que agrega as pessoas que estavam trabalhando ou tomando providências para conseguir um trabalho, na mesma faixa etária, havia 42,1 milhões de homens e 31,8 milhões de mulheres. No serviço público civil, todavia, a razão entre os sexos era distinta. Os homens se encontravam numa proporção muito maior. O gráfico a seguir ilustra essa situação. GRÁFICO 3 População de 20 a 69 anos, PEA e pessoas no serviço público civil, segundo sexo Brasil, 2002/2003 (em%) Brasil (20 a 69 anos) Serviço Público Civil Mulheres 43% Mulheres 45% Mulheres 52% Homens 48% PEA (20 a 69 anos) Homens 55% Homens 57% Fontes: IBGE, 2002, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios em microdados; MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Enquanto para cada mulher de 20 a 69 anos há 0,9 homem, para cada servidora pública há 1,2 servidor. Embora tal situação configure um déficit na representação das mulheres no serviço público civil em relação à proporção em que se apresentam na população, há que se considerar que a proporção de mulheres no serviço público civil é ligeiramente superior à parcela feminina da PEA, em que há 1,3 homem para cada mulher. A situação delineada pelas proporções exibidas no gráfico 1 leva automaticamente à seguinte questão: qual é o referencial correto para se aferir a representação das mulheres no serviço público civil? A população da mesma faixa etária dos servidores ou a PEA? O controle da faixa etária parece auto-justificável, mas o que dizer da situação de atividade econômica? A diferença da proporção de mulheres na população em geral e na PEA se deve ao fato de que a taxa de participação das mulheres é menor do que a dos homens: para a faixa etária considerada, a delas é de 55,4% e a deles de 83%. Essa enorme diferença se deve ao fato de que os papéis de gênero atribuídos a homens e mulheres são distintos, principalmente no que toca ao tipo de trabalho. Nas sociedades ocidentais nos últimos dois ou três séculos, as mulheres ficaram tradicionalmente limitadas ao trabalho doméstico e aos homens cabia a total responsabilidade de prover o sustento do grupo familiar por intermédio do trabalho fora de casa. Tal situação, Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 51 GRPE • OIT porém, vem se alterando ao longo do tempo, principalmente a partir da segunda metade do século XX. As causas dessas mudanças não interessam no presente estudo, pois existe uma extensa literatura sobre o assunto que não cabe aqui revisar. Entretanto, é preciso definir se a referência para averiguar a representação das mulheres no serviço público civil deve ser toda a população com a mesma faixa etária daquela em que estão os servidores públicos ou somente a população que trabalha ou procura trabalho – pois os servidores são pessoas que trabalham e que em algum momento, antes do seu ingresso, procuraram trabalho. Se o trabalho doméstico também é considerado um tipo de trabalho, cuja importância é muito maior que a tradicionalmente atribuída a ele, poderia ser apropriado considerar toda a população da mesma faixa etária, pois a não-atividade econômica da maioria dessas mulheres se deve ao fato de que elas estão exercendo papéis de mães e donas de casa – seriam também trabalhadoras e, portanto, servidoras públicas em potencial. Por outro lado, se é considerado que essas pessoas não estão procurando trabalho, tampouco trabalhando, fora da esfera doméstica – casos em que seriam parte da PEA – e que o servidor público é uma pessoa que está trabalhando em uma atividade não-doméstica e em algum momento tomou providências para trabalhar como servidor, pareceria mais acertado considerar a PEA como referência. Como a resposta a essas questões é muito difícil, optou-se por apresentar sempre os dois padrões de referência. Realizando o mesmo procedimento para a composição racial, agregando pretos ou pardos para a formação do grupo de negros, indígenas e amarelos sob a chancela «outros», pode-se gerar representações gráficas da composição racial da população, da PEA e do serviço público civil. No caso dos negros, o problema de se escolher a população de referência para aferir a representatividade não aflora, pois as taxas de participação de negros e brancos são praticamente idênticas e, por conseguinte, também as proporções em que se apresentam na população e na PEA. Todavia, é possível perceber que a configuração da representação dos grupos raciais definidos no serviço público civil é distinta da configuração das populações de referência. Na faixa etária considerada, há 1,2 pessoa branca para cada indivíduo negro, praticamente a mesma razão observada na PEA. Mas no serviço público civil, há 1,8 branco para cada negro. O gráfico 4 ilustra as proporções em que os grupos raciais se apresentam nas três populações consideradas. 52 CADERNO GRPE • [2] GRÁFICO 4 População de 20 a 69 anos, PEA e pessoas no serviço público civil, segundo raça Brasil, 2002/2003 (em%) Brasil (20 a 69 anos) Serviço Público Civil Negros 44% Brancos 55% Outros 1% PEA (20 a 69 anos) Negros 45% Negros 35% Brancos 63% Outros 2% Brancos 54% Outros 1% Fontes: IBGE, 2002, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios em microdados; MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Sexo e raça não são atributos estanques, interagem concorrendo com outros fatores para a determinação de uma série de aspectos da vida dos indivíduos. Cumpre então investigar a representação no serviço público civil dos grupos formados pelas combinações possíveis dessas características. O gráfico 5 exibe as proporções em que os grupos formados pelo entrecruzamento dessas duas dimensões se apresentam nas três populações consideradas. GRÁFICO 5 População de 20 a 69 anos, PEA e pessoas no serviço público civil, segundo sexo e raça Brasil, 2002/2003 (em%) Brasil (20 a 69 anos) Homens Brancos 26% Homens Negros 22% Serviço Público Civil Homens Brancos 35% Homens Negros 19% PEA (20 a 69 anos) Homens Brancos 30% Homens Negros 26% Outros 1% Outros 1% Outros 2% Mulheres Negras 22% Mulheres Brancas 29% Mulheres Negras 15% Mulheres Brancas 29% Mulheres Negras 19% Mulheres Brancas 24% Fontes: IBGE, 2002, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios em microdados; MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 53 GRPE • OIT Se é tomada como referência a proporção de cada grupo na população brasileira de 20 a 69 anos, o grupo com maior grau de subrepresentação no serviço público civil seria o das mulheres negras. Entretanto, se a referência é a população economicamente ativa de 20 a 69 anos, os homens negros teriam maior grau de sub-representação no serviço público civil. Por sub-representação deve-se entender a situação em que a proporção de pessoas de um grupo na população de interesse, no caso o serviço público civil, é inferior à proporção observada nas populações de referência, a população brasileira de 20 a 69 anos ou a PEA da mesma faixa de idade. Já a situação contrária, aquela em que a proporção de um grupo na população de interesse é superior à observada nas populações de referência, é designada sobre-representação. Logicamente, se as proporções em que um grupo se apresenta na população de interesse e na população de referência são iguais ou muito próximas, a representação é considerada adequada. Os homens brancos estão sobre-representados no serviço público civil qualquer que seja a referência. Com as mulheres brancas, uma dinâmica interessante é observável: se a referência é a população em geral, estão ligeiramente sub-representadas (tão pouco, que no gráfico as proporções arredondadas para o número inteiro mais próximo são idênticas – 29%); se a referência é a população economicamente ativa, estão sobre-representadas. Para conferir um referencial analítico que permita avaliar a intensidade da sub-representação ou da sobre-representação, calculou-se um indicador simples, referido como «S», cujo valor varia entre –1 e +1. A descrição do indicador pode ser encontrada no Apêndice III. O indicador «S» é positivo quando um grupo está sobre-representado e negativo quando está sub-representado. GRÁFICO 6 Indicador «S» de sub ou sobre-representação no serviço público civil dos grupos definidos pelo entrecruzamento de sexo e raça, tendo como referência a população brasileira de 20 a 69 anos e a população economicamente ativa de 20 a 69 anos Brasil, 2002/2003 Referência: PEA (20 a 69 anos) Referência: Brasil (20 a 69 anos) 1,00 0,75 1,00 0,75 0,50 0,25 0,50 0,25 0,21 0,00 -0,25 -0,50 -0,08 -0,01 -0,23 -0,75 -1,00 0,12 0,10 0,00 -0,25 -0,50 -0,11 -0,19 -0,75 -1,00 Homens Brancos Homens Negros Mulheres Brancas Mulheres Negras Homens Brancos Homens Negros Mulheres Brancas Mulheres Negras Fontes: IBGE, 2002, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios em microdados; MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. 54 CADERNO GRPE • [2] A análise dos resultados de «S» para os dois grupos de referência revela como a interação entre os atributos sexo e raça é extremamente relevante. Viu-se que a permeabilidade do serviço público civil para as mulheres era maior do que a da PEA, mas ainda assim elas estavam subrepresentadas se era considerada a proporção delas na população global de 20 a 69 anos. Porém, quando as mulheres são subdivididas em negras e brancas, o quadro continua válido para as primeiras, mas não para as últimas. De fato, se a referência é a população global, o grau de sub-representação das mulheres brancas é tão ínfimo que se poderia concluir pela adequação da representação do grupo; se a referência é a PEA, estão sobre-representadas. E quando a referência é a participação dos homens na PEA, que é é maior do que a das mulheres, o grupo com maior déficit de representação passa a ser o dos homens negros, em vez do grupo das mulheres negras. De qualquer forma, parece bem caracterizado, até este ponto, que a raça é um fator mais importante que o sexo na determinação da sub-representação dos grupos no serviço público civil, independentemente da população tomada como referência. É o que se depreende do gráfico 6. Todavia, ao se olhar para o serviço público civil como um todo, o diagnóstico pode ser precipitado. Considerando-se que os concursos para o ingresso no serviço público civil são relativamente recentes, pois sua obrigatoriedade foi estabelecida pela Constituição de 1988, talvez o déficit de representação dos homens negros e das mulheres negras possa na verdade estar se reduzindo para as coortes de ingresso mais recente, situação em que haveria um balanceamento das proporções para os servidores com menos tempo de serviço. Assim, a sub-representação constatada poderia ser produzida por composição, pelo fato de os servidores que ingressaram há mais tempo não terem sido selecionados segundo critérios de «mérito» (concurso), o que teria favorecido as pessoas brancas no passado, especialmente os homens. Portanto, é imprescindível levar em consideração o tempo de serviço como uma terceira variável, a fim de averiguar se a tendência no serviço público civil é de redução, estabilidade ou de ampliação da representação de homens negros e mulheres negras no serviço público. Torna-se necessário, então, apresentar a distribuição dos servidores segundo o tempo de serviço. As freqüências relativas e as freqüências relativas acumuladas de servidores ativos por ano de ingresso no serviço público civil podem ser conferidas no gráfico 7. A primeira abordagem mostra a porcentagem dos servidores na ativa que ingressaram em um determinado ano e a segunda revela a porcentagem acumulada daqueles que entraram até um ano qualquer. Por exemplo, tem-se que 6% dos servidores ativos em 2003 ingressaram no serviço público civil em 1984 e que 45% deles entraram até 1984. Um ponto a ser considerado na análise da distribuição dos servidores por ano de ingresso no serviço público civil é a irregularidade temporal da contratação de servidores. Sendo raros aqueles com mais de 30 anos de serviço (ingresso anterior a 1973), nota-se que a maior parte dos servidores Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 55 GRPE • OIT atualmente ativos (62%) entrou no serviço público civil até 1990, ano de promulgação do Regime Jurídico Único. Arbitrando-se um nível de ingresso anual de 3% para identificar os períodos em que as contratações foram mais intensas, é possível perceber dois períodos específicos: de 1979 a 1987, quando foram contratados 44% dos servidores ativos em 2003; e de 1993 a 1996, quando foram contratados 17% dos ativos em 2003. Isso não quer dizer que esses foram os períodos com maior contratação da história, apenas que foram épocas em que se contratou grandes parcelas dos servidores em atividade. GRÁFICO 7 Freqüência relativa singular e acumulada por ano de ingresso no serviço público civil Brasil, 2003 (em%) 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Dado o reduzido percentual de servidores com 30 ou mais anos de serviço, serão considerados, nos passos analíticos subseqüentes, apenas aqueles com até 29 anos de serviço, divididos em três grandes grupos61 : de 0 a 9 anos, servidores que ingressaram de 1994 a 2003; 10 a 19 anos, ingresso de 1984 a 1993; e 20 a 29 anos, ingresso de 1974 a 1983. 61 Os grupos de tempo de serviço têm que ser amplos por causa da irregularidade do ingresso. É consensual considerar que o serviço público civil se beneficiaria de uma política de pequenos concursos realizados mais freqüente e periodicamente. Selecionar poucos entre muitos candidatos implica selecionar os melhores, enquanto a seleção de muitos aumenta a probabilidade de ingresso de candidatos menos preparados. Além do problema da qualidade dos selecionados, a irregularidade prejudica a estruturação das carreiras. O Plano Diretor da Reforma do Estado menciona esse problema da irregularidade dos concursos em sua seção 4.3, dedicado aos recursos humanos: «Os concursos públicos, por outro lado, são realizados sem nenhuma regularidade e avaliação periódica da necessidade de quadros, fato que leva à admissão de um contingente excessivo de candidatos a um só tempo, seguida de longos períodos sem uma nova seleção, o que inviabiliza a criação de verdadeiras carreiras» . 56 CADERNO GRPE • [2] O gráfico 8 exibe a proporção de homens e mulheres em cada um desses grupos definidos pelo tempo de serviço. A despeito da ligeira redução de dois pontos percentuais na proporção de mulheres para o grupo de ingresso mais recente, há um aumento de três pontos na transição do grupo mais antigo para o intermediário. Essa situação permite concluir pela estabilidade da razão entre os sexos no serviço público civil de 1974 a 2003, ou seja, dadas as evidências, não há tendência definida de redução ou de aumento da representação da população feminina. GRÁFICO 8 Pessoas no serviço público civil, segundo sexo e tempo de serviço Brasil, 2002/2003 (em%) 20 a 29 anos - 1974/1983 Mulheres 45% 10 a 19 anos - 1984/1993 0 a 9 anos - 1994/2003 Mulheres 46% Mulheres 48% Homens 52% Homens 55% Homens 54% Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. O mesmo não pode ser dito sobre a população negra. Conforme está representado no gráfico 9, a proporção de negros apresenta uma ligeira redução quando se passa do grupo dos servidores com 20 a 29 anos de serviço ao grupo daqueles que ingressaram entre 1984 e 1993. Essa redução é de 4,8%. Mas, ao se passar do grupo de 10 a 19 anos de trabalho para o de ingresso mais recente, a redução é de 24,7%. GRÁFICO 9 Pessoas no serviço público civil, segundo raça e tempo de serviço Brasil, 2002/2003 (em%) 20 a 29 anos - 1974/1983 10 a 19 anos - 1984/1993 Negros 28% Negros 37% Negros 39% Brancos 61% 0 a 9 anos - 1994/2003 Brancos 63% Brancos 72% Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 57 GRPE • OIT Essa configuração de relativa estabilidade na proporção de mulheres e de redução da proporção de negros, ao se considerar progressivamente grupos de servidores de ingresso mais recente, sugere que a dinâmica temporal da representação dos grupos formados pelo entrecruzamento de sexo e raça deve ser distinta. De fato, é o que ocorre, como representado no gráfico10. GRÁFICO 10 Pessoas no serviço público civil, segundo sexo, raça e tempo de serviço Brasil, 2002/2003 20 a 29 anos - 1974/1983 Homens Brancos 34% Mulheres Negras 18% Homens Negros 21% Mulheres Brancas 27% 10 a 19 anos - 1984/1993 Homens Brancos 32% Mulheres Negras 17% Homens Negros 20% Mulheres Brancas 31% (em%) 0 a 9 anos - 1994/2003 Homens Brancos 40% Mulheres Negras 12% Homens Negros 15% Mulheres Brancas 33% Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Nota-se que a estabilidade da representação feminina é falaciosa. Na verdade, a representação das mulheres brancas apresenta uma nítida tendência de crescimento, enquanto a proporção das mulheres negras decresce. O mesmo ocorre quando se consideram os homens: a proporção de brancos aumenta enquanto a de negros diminui. Entretanto, seria precipitado concluir, nesse ponto, por um aumento da refratariedade do serviço público civil ao ingresso de pessoas negras. Ao se introduzir a educação na análise – o que será feito a seguir – o quadro mudará sensivelmente, fornecendo uma boa explicação para essas tendências. Todavia, antes de introduzir esse fator, convém sumarizar os resultados da investigação até aqui, tendo em mente que somente raça, sexo e tempo de serviço foram considerados: ?homens negros e mulheres negras se encontram sub-representados no serviço público civil, seja a referência a proporção deles na população de 20 a 69 anos ou na PEA; ?se a referência for a PEA, o grupo dos homens negros tem o maior déficit de representação; se a população de 20 a 69 anos é referência, o grupo mais sub-representado é o das mulheres negras; ?mulheres brancas estão adequadamente representadas se a referência é a população de 20 a 69 anos e sobre-representadas se a referência é a PEA; ?É ao grupo dos homens brancos que o serviço público civil apresenta maior permeabilidade, seja qual for a referência; 58 CADERNO GRPE • [2] ?A representação das mulheres brancas e dos homens brancos tem aumentado ao se considerar os servidores de ingresso mais recente, às expensas da redução da representação dos homens negros e das mulheres negras. 4.1.2 Introduzindo o fator educação na análise de representação O Regime Jurídico Único (RJU) é bem claro no que toca à escolaridade: os postulantes a um cargo público devem tê-la compatível com a requerida pelo cargo em tela62 . É fundamental, portanto, caracterizar os perfis de escolaridade dos grupos de servidores, pois os processos seletivos (concursos) para ingresso no serviço público civil invariavelmente têm a escolaridade como elemento de distinção dos candidatos, pois há carreiras de nível médio e de nível superior. Assim, os dados a serem apresentados nesta seção contribuirão para lançar mais luzes sobre o problema da aparente subrepresentação das pessoas negras, o qual emergiu da investigação até aqui conduzida. Embora atualmente o nível médio de escolaridade seja, via de regra, o mínimo exigido para ingresso no serviço público civil, no passado foram contratados servidores públicos analfabetos, alfabetizados de baixíssima escolaridade e pessoas com apenas o ensino fundamental. Alguns desses servidores com pouca escolaridade permanecem na ativa, mas ainda assim o serviço público civil tem um quadro funcional altamente escolarizado. Isso pode ser visto no gráfico 11, que exibe a distribuição das pessoas por categoria de escolaridade na população brasileira de 20 a 69 anos, no serviço público civil e na PEA. GRÁFICO 11 Pessoas segundo categoria de escolaridade na população brasileira de 20 a 69 anos, no serviço público civil e na População Economicamente Ativa Brasil, 2002/2003 (em%) 100 90 Brasil (20 a 69 anos) 80 Serviço Público Civil 70 PEA (20 a 69 anos) 60 51 50 43 41 40 30 30 20 26 24 15 14 12 10 7 10 0 1 2 9 8 7 1 0 Analfabeto Alfabetizado sem curso regular Fundamental incompleto Fundamental Médio Superior Fontes: IBGE, 2002, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios em microdados; MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. 62 Artigo 5º, Inciso IV da Lei 8.112, de 11/12/1990. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 59 GRPE • OIT A proporção de pessoas de nível superior no serviço público civil (51%) é tão elevada a ponto de os quase 300 mil servidores representarem aproximadamente 5% da PEA de 20 a 69 anos com esse grau de escolaridade (cerca de de 6 milhões de pessoas em 2002). Somados, os servidores com nível superior e médio representam 82% do funcionalismo, enquanto as pessoas com esses níveis de escolaridade são apenas 30% da população de 20 a 69 anos e 34% da PEA. Por ser relativamente reduzida a proporção de servidores cujo nível de escolaridade é inferior ao fundamental (9%), optouse por trabalhar apenas com três níveis de escolaridade: superior, médio e fundamental ou menor. Essa última categoria agrega os servidores de escolaridade inferior ao nível fundamental – para simplificar a exposição, será designada apenas fundamental. Antes de prosseguir com a análise da escolaridade dos servidores, faz-se necessária uma pequena digressão para estudar a relação dela com dois outros fatores: idade e tempo de serviço. O tempo de serviço, que para os servidores ativos em abril de 2003 era em média 16 anos, em média, varia pouco segundo a raça e menos ainda segundo o sexo. Isso é perceptível nos resultados já apresentados, que revelaram uma maior permeabilidade do serviço público civil ao ingresso de homens brancos e mulheres brancas. No serviço público civil, homens brancos têm, em média, 16 anos de serviço; mulheres brancas, 15 anos; homens negros e mulheres negras, 17 anos. Tais médias obscurecem distribuições distintas: enquanto 45% dos homens brancos e das mulheres brancas têm tempo de serviço inferior a 16 anos, apenas 38% dos homens negros e 36% das mulheres negras estão nessa faixa de tempo. Como seria de se esperar, o tempo de serviço está intrinsecamente relacionado com a idade, pois será sempre uma fração dela: por definição, é a diferença entre a idade atual do servidor e a idade de ingresso 63 no serviço público civil. Regredindo simplesmente o tempo de serviço em dependência da idade, tem-se que a variação da última explica 26% da variância do primeiro. Parece pouco, mas isso se deve ao fato de que, por razões lógicas, os servidores que têm mais tempo ingressaram mais jovens. Para permanecer 50 anos no serviço público civil, é preciso ter ingressado com 20 anos ou menos, pois aos 70 anos o servidor é aposentado compulsoriamente. E, por outro lado, a maior exigência de nível superior nos concursos mais recentes e a valorização, em muitos desses concursos, tanto de títulos de pós-graduação e especializações, como da experiência profissional prévia, fazem com que as pessoas tendam a ingressar no serviço público civil um pouco mais velhas do que no passado. A tabela 1 ilustra a idade média de ingresso e a atual dos servidores segundo faixas de tempo de serviço para cada um dos grupos formados por sexo e raça. 63 60 A data de referência para o cálculo dessa idade é 31 de dezembro do ano de ingresso CADERNO GRPE • [2] TABELA 1 Idades médias de ingresso e atual dos servidores segundo sexo, raça e tempo de serviço Brasil, 2003 (em anos completos) Idade de Ingresso no Serviço Público Civil Homens Tempo de Serviço Idade Atual (31/12/2003) Mulheres Homens Mulheres Brancos Negros Brancas Negras Brancos Negros Brancas Negras 0 a 9 anos 36 36 36 36 41 42 41 42 10 a 19 anos 31 31 30 30 46 46 45 46 20 a 29 anos 28 27 27 27 51 50 50 50 30 ou + anos 25 25 25 26 59 58 59 58 Média global 31 30 31 30 47 48 46 47 Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Homens e mulheres de ambas as raças apresentam praticamente as mesmas médias de idade, de ingresso e atual, global ou por faixas de tempo de serviço. O conhecimento prévio de que a composição racial varia com o tempo de serviço aumentando a proporção de mulheres brancas e de homens brancos sugere, portanto, que os quatro grupos tenham perfis etários pouco diferenciados. Se as pessoas têm ingressado mais velhas no serviço público civil, mas aproximadamente na mesma idade, e a permeabilidade aos homens negros e às mulheres negras tem-se reduzido, a composição dessas tendências produzirá perfis etários semelhantes. É exatamente o que se pode depreender do gráfico 12, que apresenta a freqüência relativa acumulada dos servidores dos quatro grupos segundo faixas etárias qüinqüenais. GRÁFICO 12 Freqüência relativa acumulada segundo o sexo e a raça por grupos etários qüinqüenais Brasil, 2003 (em%) 100 Homens Brancos 90 Mulheres Brancas 80 Homens Negros 70 Mulheres Negras 60 50 40 30 20 10 0 20 a 24 25 a 29 30 a 34 35 a 39 40 a 44 45 a 49 50 a 54 55 a 59 60 a 64 65 a 69 Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 61 GRPE • OIT O perfil etário dos homens brancos e dos homens negros é praticamente indistinguível, sendo as mulheres brancas as únicas que têm um perfil levemente distinto e mais jovem, o que se coaduna com sua menor idade média. As mulheres negras são ligeiramente mais jovens que os homens, mas pouco menos que as mulheres brancas. A idade média de ingresso dos servidores de nível médio de escolaridade é inferior à dos servidores de nível superior, respectivamente 29 e 31 anos. Tal situação produz um efeito interessante: na medida em que se tomam os servidores mais jovens, o nível de escolaridade global aumenta, principalmente devido à redução drástica da proporção de servidores com escolaridade fundamental ou menor. Mas no grupo mais jovem (20 a 29 anos), a proporção de pessoas de nível superior é ligeiramente menor do que no grupo acima (30 a 39 anos) e a proporção de nível médio é bem elevada. Essa dinâmica global é representada no gráfico 13 e vale para homens e mulheres, negros e brancos, razão pela qual não se apresentará esse gráfico com a adição das variáveis sexo e raça. O padrão provavelmente se deve ao duplo fato de que os concursos mais recentes têm exigido ao menos o nível médio e de que as pessoas com nível superior ingressam no serviço público civil com mais idade que as de nível médio. GRÁFICO 13 Distribuição dos servidores por níveis de escolaridade segundo grupos etários Brasil, 2003 (em%) 40 a 49 anos 50 ou mais anos Superior 50% Superior 50% Fund. 16% Fund. 27% Médio 34% Médio 23% 30 a 39 anos Superior 56% 20 a 29 anos Fund. 9% Superior 54% Médio 35% Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. 62 Fund. 2% Médio 44% CADERNO GRPE • [2] Mas ao observar a escolaridade segundo faixas de tempo de serviço, uma tendência inequívoca se delineia: quanto menor é o tempo de serviço, maior é a escolaridade. Essa tendência pode ser vista claramente no gráfico 14. É interessante ainda notar que a proporção de servidores de nível médio gira estavelmente em torno de 30%, exceto para os servidores com 30 ou mais anos de serviço. Assim, o aumento do nível global de escolaridade se dá pela redução dos servidores com escolaridade fundamental ou inferior, com o acréscimo correspondente na porcentagem de servidores com nível superior. GRÁFICO 14 Distribuição dos servidores por níveis de escolaridade segundo faixas de tempo de serviço Brasil, 2003 (em%) 30 ou mais anos 20 a 29 anos Superior 47% Superior 43% Fund. 23% Fund. 33% Médio 24% Médio 30% 10 a 19 anos 0 a 9 anos Superior 50% Fund. 19% Superior 61% Fund. 9% Médio 30% Médio 31% Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Todas as informações apresentadas até este ponto levam a crer que, no serviço público civil, os homens brancos tem um perfil de escolaridade muito próximo ao das mulheres brancas, todavia distinto do perfil dos homens negros e mulheres negras, estes também provavelmente semelhantes entre si. Efetivamente, é o que acontece, com uma ressalva: a proporção de mulheres, brancas ou negras, com nível fundamental é sempre inferior à dos homens do grupo racial correspondente. E, por composição, a porcentagem de mulheres com nível médio e superior é sempre mais elevada que a dos homens. Mas há que se ressalvar que a proporção de mulheres brancas e homens brancos com nível superior é muito próxima. Na proporção daqueles com nível médio, há uma grande diferença entre os perfis de Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 63 GRPE • OIT escolaridade desses dois grupos. Isso pode ser visto como um produto do aumento da permeabilidade do serviço público civil às mulheres brancas e do maior grau de escolaridade dos servidores que ingressaram em períodos mais recentes. São dois fatores inter-relacionados, pois essa maior permeabilidade às mulheres brancas é, em algum grau, resultante de uma maior preferência por servidores de nível superior. GRÁFICO 15 Distribuição dos servidores por níveis de escolaridade segundo grupos de sexo e raça Brasil, 2003 Mulheres Homens Fund. 14% Superior 52% Superior 51% Fund. 22% Médio 34% Médio 27% Negros Brancos Fund. 29% Superior 33% Fund. 13% Superior 61% Médio 26% Médio 38% Mulheres Negras Fund. 22% Superior 35% Homens Negros Superior 32% Médio 43% Fund. 34% Médio 34% Mulheres Brancas Homens Brancos Fund. 10% Superior 61% Fund. 15% Superior 61% Médio 29% Médio 24% Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Já comparando-se as mulheres negras com os homens negros, constata-se facilmente a maior escolaridade delas, traduzida em uma porcentagem maior daquelas com nível médio e superior. O gráfico 15 64 CADERNO GRPE • [2] autoriza essas conclusões, apresentando a distribuição por nível de escolaridade de todos esses grupos: homens, mulheres, negros, brancos, mulheres negras, mulheres brancas, homens negros e homens brancos. GRÁFICO 16 Distribuição dos servidores por níveis de escolaridade segundo faixas de tempo de serviço e grupos de sexo e raça Brasil, 2003 (em%) Homens Brancos Mulheres Brancas 100 75 100 55% 67% Superior 50 75 58% 67% Superior 50 19% 25% Médio 25 25% Médio 25 Fundamental 0 30 ou + anos 20 a 29 anos 10 a 19 anos 0 a 9 anos 0 30 ou + anos Homens Negros 28% Fundamental 20 a 29 anos 10 a 19 anos 0 a 9 anos Mulheres Negras 100 100 20% 30% Superior 44% 75 Superior 45% 75 29% Médio 50 50 41% Médio 37% 25 43% 25 Fundamental 0 30 ou + anos 20 a 29 anos 10 a 19 anos Fundamental 0 a 9 anos 0 30 ou + anos 20 a 29 anos 10 a 19 anos 0 a 9 anos Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Ao analisar o tempo de serviço, é possível perceber que o aumento da escolaridade segundo esse fator é algo que ocorre com intensidade distinta para os negros e os brancos, sendo bem mais acentuado para os primeiros. No caso dos homens negros, a proporção daqueles com nível superior entre os servidores de menor tempo de serviço é mais que o dobro da verificada entre os com mais tempo. Mesmo assim, os pontos de partida dos grupos são tão diferentes que a defasagem de escolaridade dos negros em relação aos brancos se mantém, ainda que mitigada. Homens negros e mulheres negras se parecem, embora a proporção de mulheres negras com escolaridade fundamental seja inferior. Essa mesma distinção pode ser observada entre homens brancos e mulheres brancas. O gráfico 16 ilustra esses pontos. As diferenças expostas até este ponto caracterizam a existência de desvantagens educacionais dos servidores negros. Sejam homens ou mulheres, o percentual de negros com nível superior, embora venha aumentando em ritmo mais acelerado, é menor que o de brancos. Isso acontece porque o serviço público civil não é um mundo à parte. É um nicho particular do mercado de trabalho e sua situação interna parece apenas Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 65 GRPE • OIT refletir as desvantagens educacionais da população negra em geral. As diferenças observadas entre negros e brancos e entre homens e mulheres no serviço público civil podem não se dever simplesmente à existência de preferências ocultas nos processos de recrutamento ou a um racismo institucional se manifestando nos resultados dos concursos, mas à reprodução da situação da sociedade como um todo, que gera relativamente menos pessoas negras com nível médio e superior que pessoas brancas, fato comprovado pelos indicadores de educação da população brasileira desagregados por raça64 . GRÁFICO 17 Distribuição dos grupos de sexo e raça por níveis de escolaridade na população brasileira de 20 a 69 anos, no serviço público civil e na população economicamente ativa Brasil, 2002/2003 Nível Fundamental Brasil (20 a 69 anos) Homens Brancos 24% Homens Negros 26% Serviço Público Civil Homens Brancos 29% Outros 0% Homens Negros 36% Mulheres Brancas 25% Mulheres Negras 18% Homens Brancos 29% Homens Negros 32% Outros 0% Outros 2% Mulheres Negras 25% PEA (20 a 69 anos) Mulheres Brancas 15% Mulheres Negras 20% Mulheres Brancas 19% Nível Médio Brasil (20 a 69 anos) Homens Brancos 29% Homens Negros 15% Outros 1% Mulheres Negras 19% Serviço Público Civil Homens Brancos 27% Homens Negros 22% Outros 1% Mulheres Brancas 36% Mulheres Negras 22% PEA (20 a 69 anos) Homens Brancos 32% Homens Negros 17% Outros 1% Mulheres Brancas 28% Mulheres Negras 18% Mulheres Brancas 32% Nível Superior Brasil (20 a 69 anos) Homens Brancos 37% Homens Negros 7% Outros 2% Mulheres Negras 9% Mulheres Brancas 45% Serviço Público Civil Homens Brancos 40% Outros 2% Mulheres Negras 11% Homens Negros 12% Mulheres Brancas 35% PEA (20 a 69 anos) Homens Brancos 39% Outros 2% Mulheres Negras 9% Homens Negros 7% Mulheres Brancas 43% Fontes: IBGE, 2002, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios em microdados; MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. 64 66 Vide, por exemplo, Shicaso (2002), ou o Atlas Racial do PNUD, disponível em www.pnud.org.br. CADERNO GRPE • [2] O gráfico 17 apresenta as proporções de homens brancos, homens negros, mulheres brancas e mulheres negras em cada uma das sub-populações definidas pelo nível de escolaridade na população brasileira de 20 a 69 anos, no serviço público civil e na PEA. GRÁFICO 18 Indicador «S» de sub ou sobre-representação no serviço público civil dos grupos de sexo e raça por níveis de escolaridade, tendo como referência a população brasileira de 20 a 69 anos e a população economicamente ativa de 20 a 69 anos Brasil, 2002/2003 Referência: Brasil (20 a 69 anos) 1,00 0,75 0,50 0,24 0,25 0,28 0,21 0,14 0,10 0,09 0,08 0,00 -0,04 -0,25 -0,19 -0,19 -0,20 -0,32 -0,50 -0,75 -1,00 Homens Brancos Mulheres Brancas Homens Negros Mulheres Negras Homens Brancos Mulheres Brancas Fundamental Homens Negros Mulheres Negras Homens Brancos Médio Mulheres Brancas Homens Negros Mulheres Negras Superior Referência: PEA (20 a 69 anos) 1,00 0,75 0,50 0,25 0,25 0,14 0,09 0,00 0,13 0,08 0,05 0,00 -0,05 -0,14 -0,25 -0,12 -0,10 Homens Brancos Mulheres Brancas -0,16 -0,50 -0,75 -1,00 Homens Brancos Mulheres Brancas Homens Negros Fundamental Mulheres Negras Homens Negros Médio Mulheres Negras Homens Brancos Mulheres Brancas Homens Negros Mulheres Negras Superior Fontes: IBGE, 2002, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios em microdados; MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 67 GRPE • OIT As conclusões globais que podem ser tiradas a partir do gráfico 17 se tornam mais claras se o indicador «S» é calculado para cada um dos grupos definidos por gênero e raça no serviço público civil tendo como referência os grupos correspondentes na população de 20 a 69 anos e na PEA. O resultado é apresentado no gráfico 18. Primeiramente, toma-se como referência a proporção em que os grupos se apresentam na população brasileira de 20 a 69 anos dividida conforme os três níveis definidos de escolaridade. Convém lembrar que nesse caso as diferenças entre homens e mulheres refletem, em algum grau, as distintas taxas de participação no mercado de trabalho. Então, considerando o nível fundamental, tem-se que os homens estão sobrerepresentados e as mulheres sub-representadas no serviço público civil. Brancos estão menos representados que negros. Assim, por composição, homens brancos e negros estão sobre-representados, os últimos mais que os primeiros; e mulheres brancas e negras estão sub-representadas, as primeiras, mais do que as últimas. Em outras palavras, tendo como referência a população de 20 a 69 anos com nível fundamental de escolaridade, entre os servidores, também de escolaridade fundamental, existem mais homens e negros e, por composição, a defasagem de mulheres negras é menos intensa que a de mulheres brancas. Considerando o nível médio, ainda tendo como referência a população de 20 a 69 anos, percebe-se que a distinção mais importante nesse grau de escolaridade é por raça e não por sexo, como no fundamental. Os negros estão sobre-representados e os brancos sub-representados. As mulheres estão menos representadas que os homens. Portanto, o grupo mais sobre-representado dentre os servidores de nível médio seria o dos homens negros, seguidos pelas mulheres negras; homens brancos e mulheres brancas estão sub-representados, estas mais do que aqueles. Resumindo, se a referência é a população brasileira de 20 a 69 anos, poderia se dizer que o serviço público civil parece ter uma «preferência» principal por homens e secundária por negros para servidores de nível fundamental; e uma «preferência» principal por negros e secundária por homens para servidores de nível médio. Todavia, ao se considerar os servidores de nível superior, tem-se três grupos sobre-representados, às expensas de apenas um sub-representado, as mulheres brancas. Ainda assim, poderia se ver no serviço público civil uma «preferência» mista por homens e por negros para os servidores de nível superior. Em outras palavras, em relação à população de 20 a 69 anos com escolaridade superior, percebe-se um excesso de servidores negros de nível superior e um excesso de servidores homens. O excesso de servidoras negras de nível superior é quase da mesma intensidade que o de homens brancos e o grupo com maior intensidade de sobre-representação é, sem margem de dúvida, o dos homens negros. Por ser a População Economicamente Ativa (PEA) de 20 a 69 anos dotada de um perfil mais escolarizado do que a população total de 20 a 69 68 CADERNO GRPE • [2] anos e por descontar-se, ao tomá-la como referência, as diferentes taxas de participação de homens e de mulheres, os valores de «S» passam a demonstrar, em geral, menor intensidade de sub ou sobre-representação. Porém, as conclusões permanecem praticamente as mesmas já apontadas. As únicas ressalvas ficam por conta de que, com a PEA a servir de referência, os homens brancos de nível fundamental deixam de ser sobre-representados para ficar com uma representação quase balanceada; e no nível médio a «preferência» por homens desaparece, passando a ser simplesmente uma «preferência» por negros. Entre os servidores de nível superior, o quadro praticamente não ser altera quando a referência deixa de se a população de 20 a 69 anos para ser a PEA. Esses resultados são, a princípio, paradoxais, pois indicam que o serviço público civil tem proporções maiores de homens negros e de mulheres negras com níveis médio e superior, e maior de homens negros com nível fundamental, do que as proporções observadas na população de 20 a 69 anos ou na PEA de cada nível de escolaridade, quando se sabe que as proporções desses dois grupos, globalmente, são no serviço público civil inferiores às da população de 20 a 69 anos e às da PEA (gráficos 5 e 6). Entretanto, o imbróglio se desfaz ao se considerar as grandes diferenças educacionais entre brancos e negros existentes em todas as populações consideradas e também a distinção do perfil de escolaridade mais elevado dos servidores públicos. É preciso levar em conta que se está comparando a proporção dos grupos de raça e sexo dentro de cada nível de escolaridade, como representado no gráfico 17. Assim, o menor contingente de servidores de nível superior é formado pelas mulheres negras, mas o peso delas nesse conjunto de servidores é relativamente maior do que entre os trabalhadores da PEA e do que entre a população de 20 a 69 anos, o mesmo valendo para os homens negros. Portanto, levando-se em consideração a escolaridade, seriam as mulheres brancas, em especial as de nível superior, o grupo com maior grau de sub-representação no serviço público civil. Porém, viu-se anteriormente que a proporção das mulheres brancas no serviço público civil tem aumentado e que a representação dos negros tem diminuído ao se considerar os servidores de ingresso mais recente. A comparação com a população de 20 a 69 anos e com a PEA não poderia levar em consideração, por motivos óbvios, o tempo de serviço. Entretanto, é possível, a partir do gráfico 19, comparar a distribuição dos servidores das distintas faixas de tempo de serviço por grupos formados pelo entrecruzamento de sexo, raça e nível de escolaridade. Nota-se que os grupos de servidores de 20 a 29 e de 10 a 19 anos de serviço têm perfis de escolaridade e pesos relativos muito semelhantes, exceto os grupos de mulheres brancas. Vê-se, no gráfico 19, que nessa passagem há uma pequena redução da participação dos servidores de nível fundamental de todos os grupos, compensada pelo aumento da proporção de mulheres brancas com nível superior. Passando-se do grupo dos servidores de 10 a 19 anos de serviço para o de ingresso mais recente, é possível perceber alterações maiores na Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 69 GRPE • OIT distribuição dos servidores de acordo com o sexo, a raça e a escolaridade. A tendência de redução do peso relativo das pessoas de nível fundamental se confirma para todos os grupos, com porcentagens muito próximas, embora distintas o suficiente para garantir a maior participação dos homens entre os servidores com essa escolaridade. Por outro lado, aumenta a participação de todos os grupos de servidores de nível superior, exceto o das mulheres negras, que permanece constante. A intensidade do crescimento da proporção de homens brancos com nível superior é quase o dobro da intensidade do crescimento das proporções de homens negros e mulheres brancas, estas últimas muito próximas. GRÁFICO 19 Distribuição dos servidores por grupos de sexo, raça e escolaridade segundo o tempo de serviço Brasil, 2003 20 a 29 anos 34% 21% 27% 10 a 19 anos 18% 32% 20% 31% (em%) 0 a 9 anos 17% 40% 15% 33% 12% 3 2 6 4 8 8 20 7 6 Homens Brancos 5 3 8 9 10 9 8 15 7 19 6 Homens Mulheres Mulheres Negros Brancas Negras 3 7 5 7 4 19 6 Homens Brancos Fundamental 2 26 7 6 6 7 Homens Mulheres Mulheres Negros Brancas Negras Médio 22 5 6 Homens Homens Mulheres Mulheres Brancos Negros Brancas Negras Superior Fontes: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. 4.1.3 Conclusões da análise de representação A análise de representação dos grupos populacionais formados pelas dimensões raça e gênero revelaram alguns aspectos que podem parecer surpreendentes a princípio Mas após a surpresa inicial, não só parecem óbvios como alentadores. Começando pelos dois grupos contra os quais se esperava encontrar as maiores cargas de discriminação, homens negros e mulheres negras. Realmente, tais grupos se encontram sub-representados no serviço público civil, seja a referência sua proporção na população de 20 a 69 anos ou na PEA. Mas isso vale apenas se é considerada simplesmente a proporção de pessoas negras sem levar em conta os níveis de escolaridade. Porém, o quadro muda completamente se são comparadas as proporções condicionadas aos níveis de escolaridade – e eles não podem ser desprezados, pois a legislação que regula as relações trabalhistas no serviço público civil, o RJU, é incisiva quanto à necessidade de escolaridade 70 CADERNO GRPE • [2] compatível com o cargo. Os homens negros estão sobre-representados entre os servidores de nível fundamental, médio ou superior, seja a referência a proporção deles na população de 20 a 69 anos ou na PEA de mesmo nível de escolaridade. As mulheres negras estão sub-representadas entre os servidores de nível fundamental, seja a referência a proporção delas na população de 20 a 69 anos ou na PEA de mesmo nível de escolaridade. Mas estão sobre-representadas entre os servidores de escolaridade média e superior. E a sub-representação das mulheres negras entre os servidores de nível fundamental parece se afigurar antes uma questão de gênero do que de raça. Sem considerar a escolaridade, as mulheres brancas estão adequadamente representadas se a referência é a população de 20 a 69 anos e sobre-representadas se a referência é a PEA. Mas, se a escolaridade for considerada, as mulheres brancas passam a ser o grupo mais sub-representado em todos os níveis de escolaridade, seja qual for a população de referência. A única exceção acontece no caso dos servidores de nível médio comparados à PEA, quando o grupo mais sub-representado passa a ser o dos homens brancos. Curiosamente, ao se considerar a escolaridade, o grupo com representação mais próxima da adequada em quase todas as situações definidas pelas duas populações de referência e pelos três níveis de escolaridade é o dos homens brancos. A exceção é a já mencionada subrepresentação entre os servidores de nível médio tomando-se a PEA como referência. A representação das mulheres brancas e dos homens brancos tem aumentado ao se considerar os servidores de ingresso mais recente, às expensas da redução da representação dos homens negros e das mulheres negras. Essa tendência pode vir a contrapor a sobre-representação dos negros, tornando a composição do serviço público civil por raça, por sexo e condicionada aos níveis de escolaridade mais próxima à observada na PEA. Essa composição é provocada pelo ingresso de homens brancos e mulheres brancas de nível médio e superior concomitante à saída de servidores de nível fundamental de ambos os sexos e de todos os grupos raciais. Esses são os fatos estilizados que emergem da análise da representação dos grupos populacionais considerados no serviço público civil. Entretanto, deve-se ter em mente que, assim como o quadro mudou radicalmente com a introdução da educação, a adição de outros fatores na análise, como carreiras e outros aspectos do enquadramento funcional, aqui desconsiderados, pode levar a novas descobertas sobre a representação dos negros e das mulheres no serviço público civil. 4.2. As oportunidades de progredir na carreira A forma mais correta de se estudar a eventual existência de diferenças nas probabilidades e no ritmo de progressão funcional de negros e mulheres no serviço público civil seria abordar o nível em que se encontravam as Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 71 GRPE • OIT pessoas em suas carreiras, contrastando com o tempo de serviço. Todavia são muitas, como já dito, as carreiras no serviço público civil e ainda haveria um complicador adicional que são as revisões por que passaram algumas delas. Futuros estudos poderão trilhar o caminho aberto pelo presente e ir mais a fundo nessa questão. Aqui optou-se, para contornar as dificuldades técnicas, por uma abordagem indireta baseada em dois diferentes aspectos da carreira dos servidores. O primeiro é a ocupação de cargos comissionados ou o exercício de funções gratificadas. Como fora notado no Plano Diretor65 da Reforma do Estado – em parte devido ao «achatamento» das carreiras – o fato da diferença entre as remunerações dos que ingressam e dos que estão há muitos anos na carreira ser atualmente muito reduzida – passou a haver uma espécie de disputa dos servidores por cargos em comissão e funções gratificadas. Dessa forma, conseguir um cargo ou uma função é, em certo sentido, equivalente a uma promoção. A investidura em cargos de direção e coordenação ou o desempenho de funções gratificadas representa um acréscimo na remuneração do servidor, tanto maior quanto mais elevados na hierarquia administrativa forem tais cargos ou funções. No caso dos servidores que não estão enquadrados em uma carreira específica que tenha sido criada ou reestruturada, mas na defasada «carreira genérica» – o Plano de Cargos e Carreiras (PCC) – conseguir um cargo ou função pode representar um acréscimo extremamente substantivo no salário. Além disso, a ocupação de cargos indica também o poder de que desfrutam, na administração e na estrutura do governo, os servidores neles investidos. O segundo aspecto que será investigado é o da remuneração dos servidores. Embora o «efeito» PCC, fato de que grande parte dos servidores ainda se encontra na carreira geral, conjugado ao achatamento das carreiras, inviabilize a captação da influência efetiva do tempo de serviço sobre as remunerações, ver-se-a o grau de sensibilidade à gênero e raça destas, controlados outros fatores que as fazem variar: nível de escolaridade e, principalmente, a ocupação de cargos comissionados ou o exercício de funções gratificadas. Também será controlado o tempo de serviço, a despeito do problema de seu efeito ser reduzido por não se individualizar carreiras. 4.2.1 Ocupação de cargos comissionados e exercício de funções gratificadas Todo servidor público, segundo o RJU, tem um cargo, pois esse é o nome que se dá ao posto de trabalho no serviço público civil. No entanto, quando se fala em cargo nesta seção, trata-se especificamente de cargos em comissão, que podem ser ocupados por indicação. As pessoas investidas nesses cargos não precisam necessariamente ser servidores públicos, nem atender a determinadas exigências, como a escolaridade compatível. Um ministro de estado, por exemplo, não precisa ter nível superior para ser investido no cargo. Enquanto está no cargo em comissão, 65 72 Seção 4.3. CADERNO GRPE • [2] a pessoa é servidora pública, mas, se não faz parte do quadro permanente, deixa de sê-la ao perder o cargo. Todavia, sabe-se que a maior parte dos ocupantes de cargos em comissão é composta por servidores públicos do quadro permanente e isso é tão mais verdadeiro quanto menor é o nível hierárquico do cargo. Há também as funções gratificadas. Elas são exercidas, em maioria, por servidores públicos permanentes e, mesmo que não representem um posicionamento mais elevado nas hierarquias administrativas,como os cargos, implicam acréscimos em graus variados nas remunerações. Para simplificar a exposição, deste ponto em diante, o termo cargo ou a expressão ocupação de cargo significa também o desempenho de funções. São muitos os cargos e as funções existentes no serviço público civil. Eles estão divididos em grupos regulados por normas específicas, alguns particulares de determinadas carreiras ou instituições. Como seria impossível tratar todos separadamente, foi empreendida, para fins analíticos, uma classificação dos cargos e funções, levando em consideração o nível de remuneração proporcionado e o nível hierárquico em que estão situados. Essa classificação é descrita no apêndice IV. Lançando mão dessa classificação, foi estudada a associação entre a pertença a grupos de sexo e raça e a investidura em cargos ou funções comissionadas no serviço público civil. Essa parte da investigação foi dividida em duas etapas. Na primeira, o interesse é saber se sexo e raça influenciam simplesmente em ter ou não ter cargo. Na segunda, o interesse é saber, dentre os investidos em cargos ou funções, se o sexo e a raça influenciam no nível hierárquico do cargo ou função em questão. Dos servidores ativos em abril de 2003, 10% ocupavam cargos. O gráfico a seguir exibe a porcentagem de servidores ocupando cargos para cada um dos grupos estudados. GRÁFICO 20 Servidores ocupando cargos, total e por grupos de sexo e raça Brasil, 2003 (em%) 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 11 10 8 Todos Mulheres Homens Negros 12 8 8 Mulheres Negras Homens Negros 12 11 10 0 Brancos Mulheres Brancas Homens Brancos Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 73 GRPE • OIT Percebe-se que não há diferenças entre homens e mulheres, que apresentam percentuais praticamente idênticos de ocupação de cargos. Dentro de cada grupo racial, as porcentagens de homens e mulheres ocupando cargos também são praticamente idênticas. Porém, a porcentagem de negros (de ambos os sexos) ocupando cargos é consideravelmente menor que a dos brancos. Há dois fatores adicionais que podem influenciar a ocupação de cargos: a experiência no serviço público civil, aproximada pelo tempo de serviço; e a escolaridade. Embora já se tenha constatado que os dois fatores se encontram relacionados, o impacto de cada um sobre a probabilidade de ocupação de cargo será analisado. Começando pelo tempo de serviço, constata-se que os servidores de ingresso mais recente têm probabilidade ligeiramente maior de ocuparem cargos: 13% dos servidores de 0 a 9 anos de serviço têm cargos; 10% daqueles de 10 a 19 anos de serviço têm cargos; e 9% dos servidores de 20 a 29 anos de tempo de serviço têm cargos. Essas proporções praticamente não se alteram quando os servidores são divididos em homens e mulheres, como pode ser visto no gráfico 21. GRÁFICO 21 Servidores ocupando cargos segundo o sexo e o tempo de serviço Brasil, 2003 (em%) 100 90 80 70 60 50 40 30 20 13 12 10 10 10 9 10 0 Homens Mulheres 0 a 9 anos Homens Mulheres 10 a 19 anos Homens Mulheres 20 a 29 anos Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. O mesmo não pode ser dito quando os servidores são divididos em negros e brancos. Nesse caso, é possível observar uma dinâmica interessante: no grupo de menor tempo de serviço, as porcentagens de negros e brancos ocupando cargos são praticamente idênticas, enquanto nos de maior tempo de serviço existe uma diferença bem delineada com prejuízo para os negros, como se vê no gráfico 22. 74 CADERNO GRPE • [2] GRÁFICO 22 Servidores ocupando cargos segundo a raça e o tempo de serviço Brasil, 2003 (em%) 100 90 80 70 60 50 40 30 13 20 12 11 Negros Brancos 11 7 10 7 0 Brancos 0 a 9 anos Negros Brancos 10 a 19 anos Negros 20 a 29 anos Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Passando para os quatro grupos definidos pelo entrecruzamento de sexo e raça, nota-se que há a conjugação das tendências observadas nos três gráficos anteriores. Primeiramente, servidores com menos tempo de serviço têm, em relação aos mais antigos, probabilidade pouco maior de estar investidos em cargos. Em segundo lugar, controlando-se a faixa de tempo de serviço e a raça, as diferenças entre homens e mulheres são desprezíveis. Finalmente, é digno de ressalva o fato de que, embora entre os servidores de mais tempo de serviço os negros tenham uma probabilidade menor de ocuparem cargos, na faixa de 0 a 9 anos de tempo de serviço o percentual de servidores dos quatro grupos investidos em cargos é virtualmente o mesmo. Essas três assertivas são confirmadas pelo gráfico 23. GRÁFICO 23 Servidores ocupando cargos segundo o sexo, a raça e o tempo de serviço Brasil, 2003 (em%) 100 90 80 70 60 50 40 30 20 13 12 12 12 11 12 Mulheres Brancas Homens Negros Mulheres Negras Homens Brancos Mulheres Brancas 10 7 8 Homens Negros Mulheres Negras 10 12 Homens Brancos Mulheres Brancas 7 7 Homens Negros Mulheres Negras 0 Homens Brancos 0 a 9 anos 10 a 19 anos 20 a 29 anos Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 75 GRPE • OIT Como já se sabe que quanto menor o tempo de serviço maior é a escolaridade dos servidores e também que muitos cargos e funções gratificadas exigem nível superior, pode-se prever, a partir dos resultados apresentados nos últimos gráficos, que os servidores com nível superior terão maior probabilidade de ocupar cargos. De fato, apenas 3% dos servidores de escolaridade fundamental ou menor ocupam cargos. Esse percentual sobe para 10% entre os servidores de nível médio e para 13% entre aqueles com nível superior. Embora as diferenças entre os que pertencem às diferentes classes de escolaridade sejam mais intensas do que as verificadas entre os que pertencem a intervalos distintos de tempo de serviço, praticamente não existem diferenças nas probabilidades de homens e mulheres ocuparem cargos, o que pode ser conferido no gráfico 24. GRÁFICO 24 Servidores ocupando cargos segundo o sexo e a escolaridade Brasil, 2003 (em%) 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 3 3 Homens Mulheres 10 10 Homens Mulheres 13 13 Homens Mulheres 0 Fundamental Médio Superior Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. As diferenças entre brancos e negros de acordo com a escolaridade também seguem o padrão delineado pela análise segundo o tempo de serviço. Ou seja, os percentuais de ocupantes de cargos são praticamente iguais entre negros e brancos com escolaridade superior, mas maiores entre os brancos de escolaridade média e fundamental. O gráfico 25 ilustra a situação. 76 CADERNO GRPE • [2] GRÁFICO 25 Servidores ocupando cargos segundo a raça e a escolaridade Brasil, 2003 (em%) 100,0 90,0 80,0 70,0 60,0 50,0 40,0 30,0 20,0 11 4 10,0 13 8 13 2 0,0 Brancos Negros Brancos Negros Fundamental Brancos Negros Médio Superior Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Considerando os quatro grupos de interesse, é possível perceber, mais uma vez, que não há diferenças significativas entre homens e mulheres do mesmo grupo racial e de escolaridade, mas que as porcentagens de negros (de amobos os sexos) com escolaridade fundamental ou média ocupando cargos são menores que as dos brancos, ainda que praticamente idênticas para todos os grupos de os servidores com nível superior (gráfico 26). GRÁFICO 26 Servidores ocupando cargos segundo o sexo, a raça e a escolaridade Brasil, 2003 (em%) 100,0 90,0 80,0 70,0 60,0 50,0 40,0 30,0 20,0 10,0 4 4 3 2 Homens Brancos Mulheres Brancas Homens Negros Mulheres Negras 11 11 9 8 Homens Brancos Mulheres Brancas Homens Negros Mulheres Negras 13 13 14 13 Homens Brancos Mulheres Brancas Homens Negros Mulheres Negras 0,0 Fundamental Médio Superior Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 77 GRPE • OIT As diferenças entre os percentuais globais de ocupação de cargos de negros e brancos (pois não há diferenças entre homens e mulheres nesse quesito) se devem principalmente ao perfil menos escolarizado dos servidores negros e a um pouco de discriminação contra os negros de escolaridade fundamental e média, visto não haver diferenças entre os grupos raciais ao se considerar os servidores de nível superior. Todavia, não se deve perder de vista o fato de que, por haver menos servidores negros de escolaridade superior, mesmo sobre-representados em relação às populações de referência, a maior parte dos cargos é ocupada por brancos. Devido à menor representação das mulheres, os homens também são maioria dentre os ocupantes de cargos. A distribuição dos cargos pelos grupos formados por sexo e/ou raça está representada no gráfico 27. Para possibilitar a comparação com os percentuais globais dos servidores de cada grupo apresentado anteriormente no gráfico 5, excepcionalmente o grupo «outros», que agrega servidores que se declararam indígenas ou amarelos, também foi representado no gráfico 27. E para facilitar tal comparação, a parte do gráfico 5 relativa à composição racial do serviço público civil foi reproduzida à direita. GRÁFICO 27 Distribuição dos ocupantes de cargos e servidores do serviço público civil segundo sexo e raça Brasil, 2003 (em%) Ocupantes de cargos - SPC Homens Brancos 38% Outros 2% Mulheres Negras 12% Homens Negros 15% Mulheres Brancas 33% Serviço Público Civil Homens Brancos 35% Homens Negros 19% Outros 2% Mulheres Negras 15% Mulheres Brancas 29% Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Para finalizar a análise sobre a probabilidade de uma pessoa – de um determinado grupo de cor ou raça e sexo – ocupar cargo, é interessante calcular o indicador «S», tendo como referência o conjunto dos servidores. Entretanto, conhecendo a importância da escolaridade para a ocupação de cargos, esse fator será incorporado como terceira dimensão, além de sexo e raça. O resultado pode ser visto no gráfico 28. Pode-se, então, concluir que os negros estão sub-representados entre os ocupantes de cargos com nível fundamental de escolaridade; as mulheres negras mais que os homens negros; 78 CADERNO GRPE • [2] e, neste nível, embora haja sobre-representação dos brancos, as mulheres brancas apresentam um grau menor que o dos homens brancos. Dentre os servidores com nível médio, as disparidades entre os sexos são menores, mas existem no sentido da maior representação dos homens, com persistência da sobre-representação dos brancos e da sub-representação dos negros. Já os valores de «S» para os servidores de nível superior permitem concluir pelo balanceamento da representação de homens e mulheres, negros ou brancos, dentre os ocupantes de cargos. GRÁFICO 28 Indicador «S» de sub ou sobre-representação entre os ocupantes de cargos dos grupos definidos pelo entrecruzamento de sexo, raça e escolaridade, tendo como referência o conjunto dos servidores públicos Brasil, 2003 1,00 0,75 0,50 0,24 0,25 0,14 0,08 0,07 0,00 0,01 0,00 0,00 -0,07 -0,25 -0,17 -0,02 -0,12 -0,30 -0,50 -0,75 -1,00 Homens Brancos Mulheres Brancas Homens Negros Fundamental Mulheres Negras Homens Brancos Mulheres Brancas Homens Negros Médio Mulheres Negras Homens Brancos Mulheres Brancas Homens Negros Mulheres Negras Superior Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Antes de passar para a análise da influência do sexo e da raça dos servidores sobre a hierarquia do cargo ocupado no serviço público civil, convém sumarizar em tópicos as principais conclusões acerca da ocupação de cargos pura e simples, desconsiderando o nível hierárquico: ?não existem diferenças sensíveis nas probabilidades de homens e mulheres de um mesmo grupo racial ocupar cargos; ?a probabilidade de negros – homens ou mulheres – ocuparem cargos é menor que a de brancos; ?todavia, ao se considerar o nível de escolaridade, os dois tópicos acima valem para os níveis de escolaridade fundamental e médio. No nível fundamental, é relativamente maior a disparidade das proporções de brancos e negros ocupando cargos, com prejuízo dos últimos; Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 79 GRPE • OIT ?entre os servidores de nível superior não há diferenças significativas de probabilidades de homens brancos, mulheres brancas, homens negros e mulheres negras ocuparem cargos; ?com a escolaridade, a probabilidade de ocupação de cargos aumenta para todos os grupos; ?a probabilidade de ocupação de cargos é maior entre os servidores de menos tempo de serviço, o que pode ser atribuído ao perfil mais escolarizado daqueles de ingresso mais recente. 4.2.2 Hierarquia dos cargos A partir deste ponto, passa-se para a análise do subgrupo que ocupa cargos. Ou seja, excluindo aqueles que não ocupam cargos, será estudada a influência do pertencimento aos diferentes grupos de sexo e raça sobre a distribuição dos servidores pelos níveis hierárquicos de cargos, com ênfase especial na probabilidade de ocupação de cargos elevados. Os cargos podem ser vistos como posições hierarquizadas da estrutura administrativa, para a qual a metáfora de uma pirâmide é adequada. Uma pirâmide de base bem larga e topo bem estreito, representada no gráfico 29 sob duas formas: uma considerando a enorme massa de servidores sem cargo e outra apenas aqueles com cargo. GRÁFICO 29 Distribuição dos servidores segundo o nível do cargo ocupado Brasil, 2003 (em%) Cargos Superiores - 0% Cargos MédioSuperiores - 0% Cargos Médios 1% Cargos MédioInferiores - 3% Cargos Inferiores - 6% Sem Cargo - 90% Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. 80 Cargos Superiores - 0% Cargos MédioSuperiores - 4% Cargos Médios 8% Cargos MédioInferiores - 25% Cargos Inferiores - 62% CADERNO GRPE • [2] A despeito de serem próximas as probabilidades de homens e mulheres ocuparem cargos, na medida em que se considera os níveis mais elevados de cargos, aumenta a proporção de homens. Curiosamente, embora fosse esperado algo parecido ao se verificar a proporção de negros em cada nível, a tendência de redução da proporção deles existe, mas não parece, a princípio, ser tão intensa ou definida quanto a verificada para as mulheres. O gráfico 30 permite essas leituras. GRÁFICO 30 Distribuição dos cargos segundo sexo e raça Brasil, 2003 (em%) 49 51 Cargos Inferiores 31 41 40 59 60 Cargos MédioInferiores Cargos Médios Homens 69 Cargos MédioSuperiores 21 79 Cargos Superiores 29 25 27 22 22 69 73 71 77 78 Cargos Inferiores Cargos MédioInferiores Cargos Médios Cargos MédioSuperiores Cargos Superiores Mulheres Brancos Negros Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Lembrando que a porcentagem de mulheres no serviço público civil é de 45% (gráfico 3), percebe-se que apenas nos cargos inferiores a proporção delas é maior, sendo inferior em todos os outros níveis. Já a proporção de negros em todos os níveis de cargos é inferior àquela em que eles se apresentam no serviço público civil: 35% (gráfico 4). Mais uma vez, os resultados sugerem que, ao se entrecruzar sexo e raça, devem surgir panoramas distintos para os quatro grandes grupos resultantes. Então, a partir do gráfico 31, nota-se o franco crescimento da proporção de homens brancos entre os ocupantes dos cargos mais elevados. A proporção de homens negros é aproximadamente a mesma em todos os níveis, aparentando uma tendência leve, quase desprezível, de crescimento nos cargos superiores. Já a proporção de mulheres brancas e negras decresce com o aumento do nível do cargo. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 81 GRPE • OIT GRÁFICO 31 Distribuição por nível do cargo, segundo sexo e raça Brasil, 2003 (em%) 11 14 6 12 4 16 25 30 28 14 15 43 44 Cargos Médio-Inferiores Cargos Médios 35 17 16 15 35 Cargos Inferiores Homens Brancos Homens Negros 62 52 Cargos Médio-Superiores Mulheres Brancas Cargos Superiores Mulheres Negras Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Para que se tenha uma noção mais precisa do quão desbalanceadas estão as proporções em que se apresentam os grupos em cada nível de cargos, pode-se calcular o indicador «S». O gráfico 32 o apresenta calculado para cada grupo em cada nível, tendo como referência a proporção de cada grupo entre os ocupantes de cargo (gráfico 27) e a proporção de cada grupo no serviço público civil (gráficos 5 e 27). Se a referência é a proporção em que os grupos se apresentam entre os ocupantes de cargos, percebe-se que, embora homens e mulheres ocupem cargos na mesma proporção, a distribuição dos ocupantes pelos cargos de diferentes níveis favorece francamente os homens, pois tanto os brancos quanto os negros estão sobre-representados nos cargos de nível mais elevado. Mas a intensidade da sobre-representação dos homens brancos é superior à dos homens negros. Já as mulheres brancas e negras estão sub-representadas em todos os níveis de cargos, exceto no mais baixo – único em que os homens brancos estão sub-representados. Ressalve-se que a sub-representação das mulheres negras, nos cargos médio-superiores e superiores, é maior que a das mulheres brancas. 82 CADERNO GRPE • [2] GRÁFICO 32 Indicador «S» de sub ou sobre-representação nos cinco níveis de cargos dos grupos de sexo e raça, tendo como referência a proporção deles entre os ocupantes de cargos e no serviço público civil Brasil, 2003 Referência: Ocupantes de Cargos 1,00 0,75 0,44 0,50 0,26 0,25 0,10 0,11 0,08 0,01 0,05 0,01 0,06 0,05 0,00 -0,25 -0,04 -0,08 -0,06 -0,12 -0,09 -0,03 -0,18 -0,50 -0,38 -0,42 -0,51 -0,75 -1,00 Homens Brancos Cargos Inferiores Homens Negros Cargos Médio-Inferiores Mulheres Brancas Cargos Médios Mulheres Negras Cargos Médio-Superiores Cargos Superiores Referência: Serviço Público Civil 1,00 0,75 0,50 0,50 0,33 0,18 0,19 0,25 0,13 0,03 -0,01 0,00 -0,09 -0,06 -0,13 -0,18 -0,13 -0,25 -0,03 -0,07 -0,09 -0,21 -0,15 -0,35 -0,50 -0,48 -0,59 -0,75 -1,00 Homens Brancos Cargos Inferiores Homens Negros Cargos Médio-Inferiores Cargos Médios Mulheres Brancas Cargos Médio-Superiores Mulheres Negras Cargos Superiores Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Se a proporção em que os grupos se apresentam no serviço público civil é tomada como referência, a figura muda, pois «S» passa a receber também a carga da sub-representação dos homens negros e das mulheres negras entre os ocupantes de cargo, constatada na seção anterior. A sobrerepresentação dos homens brancos nos níveis mais elevados de cargos fica mais intensa. Os homens negros passam, então, a ser sub-representados em todos os grupos de cargos, todavia a intensidade diminui na medida em que se consideram aqueles de nível mais elevado. Para as mulheres brancas, permanece, com mudanças de intensidade, o quadro de sobre-representação Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 83 GRPE • OIT nos cargos inferiores e sub-representação nos demais níveis. Já as mulheres negras, por efeito da sub-representação dos negros (de ambos os sexos) entre os ocupantes de cargos, passam a estar sub-representadas com mais intensidade em todos os grupos de cargos. Como se viu anteriormente, no gráfico 28, não se podia concluir pela sub ou sobre-representação de quaisquer um dos grupos formados pelo entrecruzamento de sexo e raça entre os ocupantes de cargos caso se considerasse apenas os servidores de nível superior. Portanto, parte das diferenças apresentadas no gráfico 32 pode se dever ao fato de estarem misturados os servidores de todos os níveis de escolaridade. Como apenas os servidores de nível superior podem ser encontrados em todos os grupos de cargos e por serem maioria no serviço público civil, será analisada a distribuição deles pelos níveis de cargos. Começando pelas porcentagens de homens e mulheres, negros e brancos, com nível superior em cada grupo de cargos, é possível perceber, a partir do gráfico 33, que não há grandes diferenças nas proporções de homens e mulheres em relação ao total dos ocupantes de cargos (gráfico 30). Já as proporções de negros se reduzem nos cargos inferiores e nos médio-inferiores, permanecendo praticamente idênticas às verificadas entre todos os ocupantes de cargo (gráfico 30) nos níveis mais elevados. GRÁFICO 33 Servidores com nível superior por nível de cargo, segundo sexo e raça Brasil, 2003 51 49 Cargos Inferiores 32 40 40 60 60 Cargos MédioInferiores Cargos Médios Homens 68 Cargos MédioSuperiores (em%) 22 22 21 26 22 22 79 76 77 73 77 78 Cargos Superiores Cargos Inferiores Cargos MédioInferiores Cargos MédioSuperiores Cargos Superiores Mulheres Cargos Médios Brancos Negros Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Em relação à porcentagem de homens brancos, homens negros, mulheres brancas e mulheres negras entre todos os ocupantes de cargos, pode-se prever, a partir do gráfico 33, que as proporções em que se apresentam os servidores de nível superior e ocupantes de cargos devem ser semelhantes, todavia com menores proporções de mulheres e homens negros nos cargos inferiores e médio-inferiores, com o correspondente acréscimo nas proporções de homens brancos e mulheres brancas. Efetivamente, é o que ocorre, como se depreende a partir da comparação do gráfico31 ao gráfico 34. 84 CADERNO GRPE • [2] GRÁFICO 34 Servidores com nível superior segundo nível do cargo, sexo e raça Brasil, 2003 (em%) 9 11 6 11 5 17 25 31 28 18 39 16 12 15 46 44 Cargos Médio-Inferiores Cargos Médios 11 37 Cargos Inferiores Homens Brancos Homens Negros 62 52 Cargos Médio-Superiores Mulheres Brancas Cargos Superiores Mulheres Negras Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Finalmente, calcula-se o indicador «S» para comparar as proporções em que se apresentam os quatro grupos de servidores de nível superior em cada grupo de cargos com as proporções em que se apresentam entre os ocupantes de cargo com nível superior, e entre os servidores de nível superior. As duas últimas distribuições mencionadas ainda são representadas no gráfico 35. Em relação aos ocupantes de cargo com nível superior, constatou-se (gráfico 28) a inexistência de sub ou sobrerepresentação de quaisquer um dos grupos formados por sexo e raça. Portanto, as proporções em que tais grupos se apresentam entre os ocupantes de cargo com nível superior são praticamente iguais às verificadas entre os servidores de nível superior, apresentadas anteriormente no gráfico 17 e repetidas no gráfico 35 para facilitar a comparação. GRÁFICO 35 Servidores com nível superior nos cargos e no serviço público civil segundo sexo e raça Brasil, 2003 (em%) Ocupantes de cargos - SPC Homens Brancos 41% Homens Negros 12% Outros 2% Mulheres Negras 10% Serviço Público Civil Homens Brancos 40% Outros 2% Mulheres Brancas 35% Mulheres Negras 11% Homens Negros 12% Mulheres Brancas 35% Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 85 GRPE • OIT Dada a semelhança observada no gráfico 35, não teria sentido calcular «S» para ambos os grupos de referência, como realizado no gráfico 32. São apresentados, portanto, apenas os resultados relativos aos ocupantes de cargo com nível superior no gráfico 36 para a comparação com o gráfico 32. Afora a sobre-representação das mulheres negras de nível superior entre os ocupantes – também de nível superior – de cargos médios, que foge ao padrão, parece ficar bem caracterizado o fato de que quanto maior é o nível hierárquico do grupo de cargos considerado, menor é a proporção de mulheres, brancas ou negras. Isso ocorre tendo como contrapartida óbvia a sobre-representação dos homens em graus progressivos nos níveis mais elevados. As relações de gênero travadas dentro do serviço público civil parecem mais preponderantes que as raciais na determinação da ocupação de cargos elevados, dado o fato de que os homens negros de nível superior – ainda que em intensidade menor que a dos homens brancos – também estão sobre-representados em todos os grupos de cargos acima dos inferiores. GRÁFICO 36 Indicador «S» de sub ou sobre-representação nos cinco níveis de cargos dos grupos de sexo e raça, tendo como referência proporção deles entre os ocupantes de cargos – somente servidores de nível superior Brasil, 2003 1,00 0,75 0,50 0,39 0,21 0,25 0,13 0,10 0,06 0,16 0,21 0,10 0,05 0,00 0,05 0,00 -0,25 -0,06 -0,10 -0,09 -0,15 -0,07 -0,22 -0,50 -0,27 -0,42 -0,46 -0,75 -1,00 Homens Brancos Cargos Inferiores Homens Negros Cargos Médio-Inferiores Cargos Médios Mulheres Brancas Cargos Médio-Superiores Mulheres Negras Cargos Superiores Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. 4.2.3 Conclusões da primeira parte da análise de progressão Assim como na análise da representação, esta parte do estudo revelou algumas características um tanto quanto surpreendentes sobre a influência do sexo e da raça dos servidores sobre a ocupação de cargos e sobre o nível hierárquico deles. A primeira é que não existem diferenças sensíveis nas probabilidades de homens e mulheres de um mesmo grupo racial ocupar cargos. Porém, ao se considerar os grupos de cargos, as mulheres, negras ou brancas, estão sobre-representadas no grupo dos cargos inferiores, o de maior 86 CADERNO GRPE • [2] número de cargos, o que faz com que estejam sub-representadas em todos os grupos de cargos mais elevados. A probabilidade de que negros – homens ou mulheres – ocupem cargos é menor que a dos brancos. Entretanto, embora efetivamente a proporção de negros de ambos os sexos entre os ocupantes de cargos seja menor que a dos brancos, tomando como referência o grupo dos ocupantes de cargos (ou ao se considerar apenas os servidores de escolaridade superior), constata-se que os homens negros se encontram sobre-representados nos grupos de cargos mais elevados. As mulheres negras estão, todas ou só as de nível superior, ao contrário e como as mulheres brancas, via de regra, sobrerepresentadas entre os ocupantes de cargos inferiores e sub-representadas nos demais grupos de cargos. Considerando a escolaridade, entre servidores de nível fundamental é relativamente maior a disparidade das proporções de brancos e negros ocupando cargos, com o prejuízo dos últimos. Também há diferenças entre os servidores de nível médio. Porém, entre os servidores de nível superior não há diferenças significativas nas probabilidades de homens brancos, mulheres brancas, homens negros e mulheres negras ocuparem cargos. Mas, ao se considerar as probabilidades de ocupação dos cargos mais elevados, constata-se o mesmo padrão verificado para o conjunto dos ocupantes de cargos, isso é, a sobre-representação dos homens, brancos e negros, nos cargos elevados, sendo a dos brancos de intensidade maior que a dos homens negros. Deve-se ressalvar que a probabilidade de ocupação de cargos aumenta para todos os grupos com a escolaridade. Mas isso se dá com a manutenção da diferença entre homens e mulheres de ambos os grupos raciais na ocupação dos cargos mais elevados. A probabilidade de ocupação de cargos também é maior entre os servidores de menos tempo de serviço, todavia essa característica pode ser atribuída ao perfil mais escolarizado daqueles de ingresso mais recente. 4.2.3 A remuneração dos servidores A remuneração dos servidores é um tema tão complexo que mereceria um estudo particular. São muitas as variáveis que podem influir na remuneração total final: o valor bruto que aparece no contracheque, como a inserção em determinadas carreiras; a ocupação de cargos ou o desempenho de funções; promoções recebidas que determinam a posição atual de um servidor em sua carreira e o tempo de serviço. Somente esses aspectos já tornariam difícil o estudo, pois todos comportam um imenso número de possibilidades – são muitas carreiras, todas com distinções internas, muitos cargos possíveis, etc. Além disso, soma-se a esse obstáculo outro ainda maior, configurado pelo que se convencionou denominar vantagens pessoais – VPs. Elas produzem distinções incontroláveis na remuneração dos servidores. Possuem VPs, por exemplo, servidores que incorporaram aos salários parte ou toda a remuneração de cargos ocupados ou ainda servidores que entraram na Justiça para garantir algum aumento Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 87 GRPE • OIT ou correção a que consideravam fazer jus e ganharam. Esses servidores ganhariam mais que colegas da mesma carreira, com o mesmo tempo de serviço e número de promoções. São muitas as situações que podem gerar vantagens pessoais. Somente um estudo que comparasse a série histórica das remunerações, acompanhando-as mês a mês, conseguiria identificar a origem e a razão de todas as VPs. Mas estudar em detalhe a composição da remuneração dos servidores não é o objetivo desta seção. O objetivo é simplesmente averiguar se, controlados alguns aspectos que influem nas remunerações, as médias salariais do serviço público civil apresentam sensibilidade ao sexo e a raça dos servidores. Para realizar tal tarefa, primeiro será apresentada uma descrição da distribuição dos salários. Depois serão propostos dois modelos de variação das remunerações. Todos Homens Mulheres Brancos Mediana Homens Brancos Homens Negros Mulheres Brancas R$ 1.447 R$ 1.184 R$ 1.931 R$ 1.492 R$ 1.659 R$ 1.258 R$ 2.295 Negros R$ 1.738 R$ 1.565 R$ 1.218 R$ 2.129 R$ 1.609 R$ 1.767 R$ 1.363 R$ 2.074 R$ 1.522 R$ 1.440 R$ 1.935 GRÁFICO 37 Mediana e média das remunerações mensais no serviço público civil Brasil, 2003 (em valores nominais) Mulheres Negras Média Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Começando com as medidas descritivas, no gráfico 37 são apresentadas a mediana e a média da distribuição das remunerações, global e para os vários grupos de interesse. Não há surpresas aqui: os homens ganham, em média, mais que as mulheres; os brancos mais que os negros; e os homens brancos mais que as mulheres brancas, que, por sua vez, ganham mais que os homens negros, que ganham mais que as mulheres negras. A distância da remuneração média dos negros à dos brancos é maior que a distância da remuneração das mulheres à dos homens. As medianas seguem exatamente o padrão descrito para as médias, mas para todos os grupos oscilam de 73% a 82% da média correspondente. Os desvios padrão das distribuições variam de 67% a 74% da média. 88 CADERNO GRPE • [2] No gráfico 38, são apresentados os valores do salário nos percentis das distribuições dos quatro grupos formados pelo entrecruzamento de sexo e raça. Nota-se que abaixo da mediana (percentil 50), os valores dos grupos se encontram razoavelmente próximos, sendo os dos brancos superiores aos dos negros. É por volta e a partir da mediana que os homens brancos e as mulheres brancas começam a demonstrar uma maior distância em relação ao valor do percentil correspondente dos negros, com os homens brancos também se distanciando das mulheres brancas. Somente por volta do percentil 78 os homens negros começam a apresentar salários maiores que os das mulheres negras de percentil correspondente. Nos últimos percentis, os valores dos homens negros convergem para os das mulheres brancas. GRÁFICO 38 Curva dos percentis para as distribuições de salários dos grupos formados por sexo e raça Brasil, 2003 R$ 8.000 Homens Brancos R$ 7.000 Homens Negros R$ 6.000 Mulheres Brancas R$ 5.000 Mulheres Negras R$ 4.000 R$ 3.000 R$ 2.000 R$ 1.000 R$ 1 8 15 22 29 36 43 50 57 64 71 78 85 92 99 Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. A despeito das diferenças nas distribuições de salários, ainda é cedo para concluir pela discriminação salarial por sexo ou por raça. O conhecimento prévio sobre as disparidades entre os perfis de escolaridade dos negros e dos brancos e sobre a pouca permeabilidade do topo da estrutura hierárquica de cargos às mulheres já permitiria prever as diferenças, supondose que a remuneração cresça com a escolaridade e com a ocupação de cargos. Efetivamente, o gráfico 39 mostra que a média dos salários aumenta com o nível de escolaridade, com a ocupação de cargo e com o nível do cargo ocupado, exatamente como esperado. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 89 GRPE • OIT GRÁFICO 39 Salários médios segundo a escolaridade e o nível do cargo ocupado Brasil, 2003 (em valores nominais) Superior Cargos Superiores R$ 2.569 Cargos MédioSuperiores R$ 1.377 Médio Fundamental R$ 6.632 R$ 4.424 Cargos Médios R$ 1.130 Fundamental incompleto R$ 1.029 Cargos MédioInferiores Alfabetizado sem curso regular R$ 998 Cargos Inferiores Analfabeto R$ 941 Sem cargo R$ 3.347 R$ 3.124 R$ 2.034 R$ 1.867 Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. GRÁFICO 40 Salários médios segundo o tempo de serviço Brasil, 2003 R$ 4.000 R$ 3.500 R$ 3.000 R$ 2.500 R$ 2.000 R$ 1.500 0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Escolaridade e ocupação de cargos são, portanto, variáveis a serem levadas em consideração no momento da elaboração dos modelos de salários. Porém, antes de passar à especificação de tais modelos, é importante conhecer o comportamento dos salários segundo outra variável, de antemão considerada importante: o tempo de serviço. A média salarial por tempo de serviço está representada no gráfico 40. 90 CADERNO GRPE • [2] É possível perceber que a média salarial por tempo de serviço, representada pela linha fina pontilhada, varia bastante. Representando a seqüência como uma média móvel de seis anos – a linha grossa no gráfico 40 – a tendência de variação dos salários segundo o tempo de serviço fica mais delineada. Assim, percebe-se que os servidores com menos tempo de serviço tendem a ter médias salariais superiores àqueles que se encontram na faixa intermediária de tempo e que os servidores com bastante tempo também têm médias mais elevadas. Tal comportamento pode ser atribuído à mudança das regras relativas a promoções por antiguidade e incorporação de gratificações aos salários, que beneficiaram servidores no passado, alguns deles ainda na ativa (aqueles com muito tempo de serviço); e também a maior ocupação de cargos e maior escolaridade dos servidores de ingresso mais recente. Outra possível explicação seria o perfil histórico das seleções e dos concursos, isto é, para que carreiras os servidores ingressaram mais em períodos específicos de tempo. Assim, por exemplo, recentemente poderia ter havido mais concursos para carreiras que pagam mais, o que faria com que os servidores com menos tempo ganhassem, em média, mais que servidores com mais tempo de serviço, mas em carreiras menos remuneradas. Algumas carreiras podem ser menos remuneradas de fato e outras podem estar no PCC e não ter sido revistas. Sabendo como as médias de remuneração se comportam, foram especificados dois modelos de análise para avaliar o comportamento das remunerações segundo os fatores que vêm sendo estudados. Os dois são praticamente iguais. A diferença é que, no primeiro modelo, há uma variável dicotômica para sexo e outra para raça; no segundo, há três variáveis dicotômicas, uma para cada combinação, ou interação, de sexo e raça, excluída a categoria base homens brancos. A especificação dos modelos e os seus resultados estão no apêndice V. Antes de prosseguir, convém reafirmar que o objetivo da presente análise não é fornecer o modelo definitivo de explicação da variação das remunerações no serviço público civil, mas tão somente verificar se, isolando as diferenças devidas ao nível de escolaridade, à ocupação de cargos e ao tempo de serviço, as desigualdades de remuneração média persistem entre homens e mulheres, negros e brancos. Ou, melhor, averiguar se existe uma sensibilidade das remunerações diferenciada pela raça e pelo sexo dos servidores. Também, dadas as características particulares das relações de trabalho no serviço público civil, como a ocupação de cargos por indicação, não é possível interpretar as desigualdades salariais como sendo devidas às diferenças de produtividade. Como os dois modelos são praticamente idênticos, assim também as estatísticas deles. Os dois explicam 31,4% da variação das remunerações. Dadas as já aludidas complexidades salariais do serviço público civil e o fato de uma série de outros determinantes do salário (em especial a inserção em carreiras distintas) não estar sendo controlada, pode-se considerar que os modelos são satisfatórios para os fins aqui pretendidos. O salário base, dado Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 91 GRPE • OIT pelo intercepto, seria de R$1.150,50. No modelo, é o valor previsto para um servidor homem, branco, com escolaridade fundamental ou inferior, sem cargo com nenhum ano de serviço. O tempo de serviço, a julgar os parâmetros estimados para o polinômio que o representa, não parece ser um fator responsável por grandes variações nos salários. Os valores estimados confirmam que as pessoas com pouco ou com muito tempo de serviço tendem a ganhar mais que as pessoas com tempo de serviço mediano, como representado no gráfico 40. No gráfico 41, está representada a variação relativa na remuneração média, tudo o mais mantido constante, segundo o tempo de serviço, conforme a previsão do modelo 1. GRÁFICO 41 Variação relativa da remuneração média segundo o tempo de serviço (em %) 16% 12% VARIAÇÃO- 8% 4% 0% -4% -8% -12% -16% 0 5 10 15 20 - ANOS Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. 92 25 30 35 40 CADERNO GRPE • [2] Os salários apresentam uma sensibilidade razoável à ocupação de cargos, que cresce com o nível do cargo. Em relação aos que não ocupam cargos, com todos os demais fatores controlados mantidos constantes, as pessoas que ocupam: ?cargos inferiores: ganham, em média, 5,6% a mais; ?cargos médio-inferiores: ganham, em média, 45,3% a mais; ?cargos médios: ganham, em média, 53,9% a mais; ?cargos médio-superiores: ganham, em média, 93,1% a mais; ?cargos superiores ganham: em média, 167,3% a mais. A escolaridade também é um fator segundo o qual os salários podem variar bastante. Em relação àqueles que têm escolaridade fundamental, tudo o mais mantido constante, os servidores que têm: ?escolaridade média: ganham, em média, 23,5% a mais; ?escolaridade superior: ganham, em média, 111,7% a mais. Finalmente, no que toca às variáveis de interesse, tudo o mais mantido constante: ?as mulheres ganham, em média, 11,9% a menos que os homens; ?as pessoas negras ganham, em média, 8,4% a menos que as pessoas brancas. A remuneração apresenta, portanto, sensibilidade ao sexo e à raça dos servidores, porém há que se registrar que a escolaridade e a ocupação de cargos podem influenciar bem mais o valor médio da remuneração. O segundo modelo possui variáveis para comparar aos homens brancos os homens negros, as mulheres brancas e as mulheres negras, grupos que a análise pregressa mostrou serem bem distintos em vários aspectos. Uma comparação entre os valores dos parâmetros comuns do modelo 2 e do modelo 1 permite constatar que são praticamente os mesmos (vide apêndice V). Isso permite ir direto à análise dos parâmetros específicos do modelo 2. Segundo eles, tudo o mais mantido constante, em relação aos homens brancos: ?homens negros ganham, em média, 9,3% a menos; ?mulheres brancas ganham, em média, 12,6% a menos; ?mulheres negras ganham, em média, 19% a menos; Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 93 GRPE • OIT 94 CADERNO GRPE • [2] V. Conclusões Antes de passar para as conclusões deste estudo, convém novamente lembrar que o objetivo deste foi o de apenas delinear um primeiro panorama das desigualdades raciais e de gênero no âmbito do serviço público civil. Isso foi feito e os resultados apontam a existência de tais desigualdades, algo que deve ser objeto de preocupação das autoridades governamentais, tanto por uma questão legal e moral quanto de «exemplo». O governo é signatário de vários tratados internacionais de não-discriminação. A Constituição e a lei que rege o trabalho no serviço público, o Regime Jurídico Único (RJU), também vedam a discriminação. Mas os resultados ora coligidos sugerem que a discriminação, apesar das normas contrárias, acontece. Logo, o governo deve adotar medidas para contrapô-la. Além disso, há que se considerar a dimensão do exemplo. O governo que pretende adotar ações afirmativas deve ser o primeiro a implementá-las. Recorrendo à sabedoria popular, nesse caso não é aceitável que em «casa de ferreiro, o espeto seja de pau». É bem verdade que as desigualdades entre os servidores parecem não ser tão intensas quanto aquelas verificadas entre os grupos de raça e de gênero no mercado de trabalho em geral. Mas, ao que tudo indica até o momento, a administração pública não tem se esmerado em praticar para seus próprios trabalhadores o que prega para os trabalhadores do setor privado. Ao se analisar os dados oriundos do SIAPE - sistema de controle de pessoal do próprio governo – viu-se que a população brasileira não tem sua diversidade demográfica representada no serviço público civil. As mulheres Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 95 GRPE • OIT brancas são o grupo que mais se aproxima de uma representação equilibrada, os homens brancos estão francamente sobre-representados e as pessoas negras, de ambos os sexos, sub-representadas. Mas, ao se introduzir a escolaridade na análise, percebe-se que essa sub-representação das pessoas negras não pode ser atribuída a algum tipo de viés na seleção para o serviço público civil. De fato, a composição racial do serviço público civil reflete um problema estrutural causado pela discriminação institucional anterior ao momento da entrada no serviço público civil, cristalizado nas desvantagens educacionais da população negra. Curiosamente, ao se considerar a escolaridade, percebe-se que as pessoas negras de nível médio e superior participam do serviço público civil em maior proporção do que participam da PEA, algo que ocorre principalmente devido ao perfil de maior escolaridade do serviço público civil. Poderia se dizer que para essas pessoas é relativamente mais fácil trabalhar no serviço público civil que em outras atividades e, em especial, para os homens negros de nível superior. Não seria absurdo atribuir essa diferença à impessoalidade do concurso público, que a despeito de todas as imperfeições de que possa ser acusado, é com certeza um mecanismo de seleção muito menos sujeito à influência negativa das visões estereotipadas sobre a suposta falta habilidade de negros e mulheres para o desempenho de certas ocupações, em especial as de alto nível de poder e responsabilidade. Outro resultado surpreendente, ao se levar em conta a escolaridade, é a caracterização das mulheres brancas de nível superior como o grupo com maior déficit de representação no serviço público civil. Todavia como, ao se analisar a composição do serviço público civil por tempo de serviço, nota-se que é justamente o grupo das mulheres brancas que mais tem ampliado sua representação. Portanto, esse déficit talvez já esteja sendo compensado. A sobre-representação dos negros, considerando o nível de escolaridade, também deve estar reduzindo, tendo em vista não só o aumento do peso relativo das mulheres brancas entre os servidores de ingresso mais recente, mas também o dos homens brancos, ainda que esse grupo tenha sua representação ampliada em menor intensidade. Portanto, no que toca à representação da diversidade demográfica, tudo indica que o serviço público civil está caminhando espontaneamente para o equilíbrio. Entretanto, essa representação equilibrada esbarra em dois limites sociais que ultrapassam a esfera do serviço público civil: a menor taxa de participação das mulheres e as desvantagens educacionais da população negra. Não são barreiras internas ao equilíbrio da representação, mas externas, sendo que os processos seletivos para o serviço público civil parecem mesmo contrapor um pouco essas limitações. Assim, frente a tal situação, não se afiguraria justificável a adoção de medidas afirmativas generalizadas para o ingresso no serviço público civil, ao menos enquanto não houver informações mais detalhadas sobre a representação da diversidade demográfica da população em carreiras específicas. Ou seja, a adoção de cotas fixas para todas as carreiras de todos os concursos públicos não é 96 CADERNO GRPE • [2] recomendável de forma alguma. Mas talvez para determinadas carreiras essas cotas possam ser estabelecidas até que uma meta suficiente de equilíbrio da representação dos grupos demográficos seja atingida. A sobre-representação das pessoas negras de nível superior e médio no serviço público civil, porém, não implica igualdade de tratamento aos servidores de ambos os grupos raciais. Tampouco há igualdade de tratamento entre os sexos. Ingressar no serviço público civil é uma coisa; outra é, uma vez dentro, seguir uma carreira, ganhar promoções que se traduzirão em aumentos de salários ou ocupar cargos. Nesses aspectos, os servidores pertencentes aos distintos grupos de raça e sexo se diferenciam, pois tanto existe associação entre o sexo e a raça das pessoas e a ocupação de cargos ou o recebimento de funções gratificadas, como a remuneração dos servidores apresenta razoável sensibilidade ao sexo e à raça das pessoas. Ao se considerar simplesmente a probabilidade de ocupar um cargo, ignorando o nível hierárquico deste, constatou-se a existência de diferenças entre negros e brancos, mas não entre mulheres e homens do mesmo grupo racial. Mas, quando o interesse se deslocou para o nível do cargo, percebeuse a barreira que se coloca ante a ocupação por elas dos cargos mais elevados. Essa barreira é mais intensa para as mulheres negras que para as brancas. E, por outro lado, poderia se dizer que há um trampolim para alçar homens brancos e negros aos cargos mais elevados, que funciona com maior intensidade para os primeiros. Tal situação se manteve apenas parcialmente quando foram investigadas somente as características do subconjunto de servidores de nível superior que podem ocupar cargos em quaisquer um dos níveis definidos. Nesse grupo, especialmente entre os servidores com menor tempo de serviço, não existem diferenças na probabilidade de simplesmente ocupar cargos: é a mesma para homens e mulheres, brancos e negros. Todavia, persiste a barreira de gênero para ascender na hierarquia, bem como a diferença racial no favorecimento dos homens. As evidências da existência de algum grau de discriminação institucional no serviço público civil não se limitaram às diferentes probabilidades de ocupação de cargos hierarquicamente mais elevados. Ao se analisar a remuneração dos servidores isolando as variações devidas ao tempo de serviço, à escolaridade e à ocupação de cargos, verificou-se mais uma vez o prejuízo das mulheres brancas e das pessoas negras. Muitos resultados apresentados neste estudo levam a questionamentos sobre outros aspectos das desigualdades raciais e de gênero aqui não abordados, como as inserções em carreiras distintas e as características das trajetórias dos servidores em suas carreiras (vezes que ocupou cargos, recebeu promoções, etc). Como dito repetidas vezes, esperase que tais questionamentos venham a ser contemplados por investigações futuras. Por ora, as informações aqui apresentadas sugerem que eventuais medidas afirmativas a serem tomadas no âmbito do serviço público civil visem a compensar as desigualdades raciais e de gênero existentes no corpo Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 97 GRPE • OIT de servidores, pois elas se afiguram intensas. Em outras palavras, o serviço público civil se beneficiaria de um programa de Gerenciamento da Diversidade, voltado à equiparação de diferenças entre carreiras e a vieses afirmativos na distribuição de promoções, de funções, nas designações para os cargos e também ao aumento quantitativo de mulheres e negros nos cargos de maior poder discricionário. No momento, tal programa não existe. Mas, medidas tomadas no passado, embora sejam atualmente letra morta, mostraram o caminho e também que o programa seria possível. O fato de tribunais de alto nível e ministérios já terem realizado licitações que incluíam disposições para favorecer firmas que tivessem algum tipo de ação afirmativa voltada para seus funcionários é um indício alentador dessa possibilidade. Também é um sinal de que, mais do que mudanças no ordenamento jurídico, precisase de vontade política para atuar sobre o problema das desigualdades raciais e de gênero entre os servidores. Entretanto, o governo não pode se limitar a coagir, com seu poder de compra, os fornecedores de bens e serviços a adotem ações afirmativas, tampouco a estabelecerem cotas para a ocupação de cargos, as principais disposições de suas primeiras iniciativas. Esses tipos de medida afetam apenas incidentalmente os servidores. São complementares, portanto, e não devem constituir o eixo principal de uma política de recursos humanos que vise a mudar o estado de coisas aqui delineado. Ao assumir que não é dentro do serviço público que devem ser resolvidos problemas estruturais da sociedade, como a desvantagem educacional dos negros e a menor taxa de participação das mulheres, viu-se que não existe nenhum grupo populacional que sofra de déficit severo em sua representação no serviço público. O único grupo ligeiramente subrepresentado, o das mulheres brancas com nível superior, tem aumentado seu ingresso relativo em tempos recentes, o que autoriza a concluir que sua representação se adequará no curto, talvez no médio prazo. O nó górdio das desigualdades raciais e de gênero, portanto, está nas diferenças entre as carreiras. Os estudos adicionais que serão necessários para o desenho de uma política de pessoal potencialmente eficaz terão que se preocupar, necessariamente, com as desigualdades entre as carreiras e entre os servidores dos diferentes grupos populacionais. São duas, por consegüinte, as perguntas cruciais que ficam para as investigações futuras, perguntas cujas respostas necessariamente suscitam muitas outras. A primeira seria quanto das desigualdades aqui constatadas e apresentadas devem-se ao fato de mulheres e negros estarem mais representados em determinadas carreiras? Em outras palavras, no agregado do serviço público existe uma representação quase adequada de todos os grupos populacionais, mas isso ocorre também nas diferentes carreiras? Responder a esta pergunta envolveria responder outras como: há relativamente mais negros no PCC do que entre os técnicos do IPEA ou do Banco Central? Quais são as carreiras mais valorizadas e por quê? Existindo a segmentação do trabalho no serviço público, ela apresenta peculiaridades 98 CADERNO GRPE • [2] que a distinguem daquela constatada no mercado de trabalho em geral? A segunda pergunta seria: uma vez isoladas as diferenças entre carreiras, dentro delas existem diferenças nas oportunidades de mulheres e negros? Ou seja, comparando servidores que entraram no mesmo concurso para uma carreira particular e que possuem características semelhantes, não deve haver diferenças na quantidade de promoções recebidas por cada grupo, no número de vezes que pessoas do grupo ocuparam cargos e na hierarquia dos cargos ocupados, etc. Se elas existirem, devem-se buscar os mecanismos de gestão que permitirão eliminá-las. Ainda há muito trabalho a ser feito para que se entenda em profundidade as desigualdades raciais e de gênero no serviço público. Esperase, sinceramente, que o estudo ora apresentado venha a ser debatido, discutido, confirmado ou desmentido por outros. Que contribua para aprofundar o debate sobre esse tema tão importante, que não pode, de forma alguma, cair no esquecimento. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 99 GRPE • OIT 100 CADERNO GRPE • [2] VI. Referências Bibliográficas ACKERMAN, M. A Convenção n.º 111 da OIT e a Promoção da Igualdade na Negociação Coletiva. 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Com a instituição do Programa Nacional de Ações Afirmativas (vide Capítulo III), o IPEA e a Secretaria Especial de Direitos Humanos (então um órgão do Ministério da Justiça), respectivamente Secretaria-Executiva e Presidência do Comitê de Avaliação e Acompanhamento do programa, iniciaram uma discussão com o Ministério do Planejamento para decidir sobre a melhor forma de proceder com o cadastramento racial dos servidores. Esse cadastramento forneceria as informações necessárias para dar seqüência ao Programa Nacional de Ações Afirmativas. A partir daí, durante o segundo semestre de 2002, foi elaborada uma grande campanha interna em prol do cadastramento racial dos servidores. O ápice foi uma teleconferência nacional com os responsáveis pelos departamentos de recursos humanos de vários órgãos, a qual contou com uma abertura gravada pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Ele enfatizou a importância do Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 105 GRPE • OIT registro da cor. Os servidores receberam informações sobre a campanha e foram estimulados a declarar sua cor, enfatizando-se o acesso ao SIAPE, via internet, para a atualização do cadastro. Por servidores deve-se entender o conjunto dos servidores federais da União em órgãos da administração direta (ministérios) e indireta (autarquias e fundações) O SIAPE é, essencialmente, um sistema desenhado para manter um cadastro funcional dos servidores públicos da administração direta e indireta e para gerenciar a folha de pagamentos. Contudo, serve também a outros fins implicados pelas relações de trabalho. Seus dados são alimentados por muitas pessoas em vários órgãos, de todas as unidades da federação. Como contém tanto informações sobre os servidores ativos como inativos, possui mais de um milhão de pessoas registradas. Considerando-se que cada servidor possui um extenso conjunto de características e dados individuais e que todo mês são lançados os salários (que podem ser compostos por mais de vinte itens de remuneração ou desconto), pode se ter uma idéia da magnitude do sistema. Tudo isso tornou extremamente lento e trabalhoso o processo de recuperação dos dados para a construção de uma base específica para a pesquisa. Optou-se, então, por trabalhar apenas com os dados de um mês: abril de 2003; com as informações de remuneração sendo relativas a março. Os resultados do cadastramento e a montagem da base Ainda que a campanha pelo cadastramento racial dos servidores não tenha fracassado, não se pode dizer que foi um sucesso absoluto. Embora em muitos órgãos o nível da resposta à campanha de cadastramento tenha sido elevado (como se pode ver na tabela no final deste apêndice) no agregado do serviço público apenas 40% dos servidores ativos em abril de 2003 declarou sua cor. Somando-se isso ao fato de que há muitas imperfeições em vários registros, como por exemplo, pessoas na ativa que têm idade superior a da aposentadoria compulsória e pessoas para as quais uma informação particular não existe, acaba-se com 31% dos registros de servidores ativos ao se selecionar aqueles que têm completas as informações. Assim, não seria possível lidar com essa parcela dos casos como se o universo fosse e isso levou a considerar esse subconjunto de registros como uma amostra dos servidores ativos. Todavia, testes empreendidos revelaram que o subconjunto de registros completos não podia ser considerado uma amostra aleatória simples do universo dos servidores ativos. Essas pessoas eram um pouco mais novas e de nível de escolaridade também ligeiramente maior do que o conjunto dos servidores ativos. Assim, optou-se por tratar os registros completos como uma amostra estratificada por sexo, idade, tempo de serviço, investidura em cargo ou função e escolaridade, atribuindo fatores de ponderação – pesos – às pessoas. Testes subseqüentes sugeriram a adequação dessa estratégia e, portanto, todos os resultados a serem apresentados levam em consideração 106 CADERNO GRPE • [2] a amostra expandida pelos pesos definidos. Alguns desses procedimentos de teste da base são detalhados a seguir. Ao analisar o nível de resposta ao cadastramento racial, como já dito, constatou-se que não fora tão alto como inicialmente esperado. A tabela 2, a seguir, mostra que, dos 584 mil ativos do Executivo Civil Federal, apenas 237 mil responderam, o que perfaz um nível de resposta de aproximadamente 40%. TABELA 2 - Preenchimento do quesito cor/raça no SIAPE – somente servidores ativos Cor/raça Total Homem Mulher Responderam 237 171 131 038 106 133 Ignorado 347 233 190 805 156 428 584 404 321 843 262 561 Total Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Desconsiderando o problema dos registros com informação de cor que eram incompletos em outros aspectos, o que levou a uma redução adicional do tamanho da amostra para 31%, fica a pergunta: 40% é um bom nível de retorno? A resposta a essa pergunta obviamente depende de quão representativos são estes 40%. Uma primeira hipótese seria a de que esse percentual corresponderia a uma amostra aleatória do universo total. Ou seja, segundo essa hipótese, quem não respondeu não o fez porque estava de férias, porque o computador não funcionou no dia, por ter o pneu do carro furado ou qualquer outra razão que pode levar as pessoas a não preencher uma informação administrativa. Para a confirmação de tal hipótese, seria preciso que a probabilidade de não responder ao quesito fosse a mesma para negros e para brancos, para servidores com alta ou baixa instrução, para ocupantes de cargos e servidores sem cargo e assim por diante. Se assim fosse, uma amostra de 40% em um universo de 584 mil leva a uma variância na média amostral de 0,00025% da média populacional. Para estimar, por exemplo, a idade média da população de servidores a partir da amostra com a mesma variância e com um erro de 0.1% sobre a estimativa, bastaria que a amostra tivesse aproximadamente 28,4 mil pessoas. Em outras palavras, 237 mil servidores constituiriam uma amostra excelente, quase dez vezes maior que a necessária, se tal amostra fosse efetivamente aleatória. Para saber se essas 237 mil pessoas podiam ser consideradas uma amostra aleatória representativa dos 584 mil servidores do Executivo Civil Federal para fins do estudo das desigualdades raciais e de gênero, o método mais simples consistia em averiguar se a variação de aspectos observáveis para toda a população se correlaciona com o nível de não resposta. Seguindo essa estratégia, foram realizados testes estatísticos para as seguintes variáveis: Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 107 GRPE • OIT idade, sexo e nível de instrução. Observe-se que o nível de resposta variou bastante por órgão, como pode ser constatado na tabela apresentada ao fim desta seção. Porém, como optou-se por tratar o serviço público civil de forma agregada, sem a distinção de órgãos, o preenchimento por órgão não foi considerado entre os fatores que poderiam introduzir vieses amostrais. O gráfico a seguir mostra a distribuição de idade daqueles que responderam e que não responderam ao quesito cor. Fica bem caracterizado o fato de que os respondentes são um pouco mais jovens que os não respondentes. GRÁFICO 42 - Preenchimento do quesito cor/raça no SIAPE – somente servidores ativos 0.060 População Amostra 0.050 Diferença Porcentagem (%) 0.040 0.030 0.020 0.010 0.000 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56 58 60 62 64 66 68 70 72 74 76 78 80 -0.010 Idade Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Essa diferença nos perfis de idade, visível no gráfico, é um forte indício de que os respondentes não constituem amostra aleatória simples do universo. Entretanto, apenas um teste estatístico formal pode dizer se, do ponto de vista da idade, isso é verdade. O teste clássico consiste em calcular a estatística z, dada pela equação a seguir: Onde x1 e x2 representam as médias de idade da amostra e a população, ? 12 e ? 22 representam as variâncias das idades, n1 e n 2 108 CADERNO GRPE • [2] representam o número de observações e a estatística z se encontra distribuída normalmente. Quanto menor o valor de z, maior é a probabilidade de que o subconjunto de respondentes seja realmente uma amostra aleatória do universo. A tabela 3 exibe os valores necessários para a realização do teste baseado na idade dos respondentes. TABELA 3 - Estatísticas relativas à idade Média Número de Observações Variância (%) População 46.1 584362 74.43 Amostra 45.0 237169 71.93 Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. A partir dos números da tabela 3, foi calculada a estatística z, que no caso tem o valor 54,6. É um valor bem elevado, ou seja, não há chance alguma dos 237 mil respondentes constituírem uma amostra aleatória do universo de 584 mil para fins de estimação da idade média da população. É importante frisar que, categoricamente falando, não se pode jamais afirmar que os respondentes são uma amostra, apenas podemos dizer se não são. No caso da idade, o resultado de z torna obrigatório rechaçar a idéia de que os respondentes sejam uma amostra. Ao considerarmos o sexo, a situação é contrária à da idade, isto é, não se pode negar a possibilidade de que os respondentes constituam uma amostra. A proporção de homens entre os respondentes é de 55,2% e no universo é de 55,1%. A variância é de 0,00042 em ambos os grupos de servidores e, por conseguinte, a estatística z vale 0,07. Com este valor, enfatizase, não se pode afirmar que para sexo os respondentes constituam amostra, mas também não se pode afirmar que não sejam. A decisão final está sempre a cargo daquele que toma decisões com o auxílio da estatística. Finalmente, foi feita a mesma coisa para o nível de instrução. A tabela 4 mostra o mesmo teste para a proporção pessoas em cada categoria educacional, já com z calculada. A partir das baixas estatísticas z de cada nível educacional, seria possível afirmar que não se poderia concluir categoricamente que o conjunto de respondentes não constitui uma amostra do universo, no que diz respeito à escolaridade dos servidores. Todavia, a tabela mostra que entre os respondentes a proporção de servidores com nível superior é ligeiramente maior que no universo. Por conta dessa discrepância, z assume um valor um pouco maior, o que contribui para deixar um pouco de dúvida no ar sobre a possibilidade de negarmos o caráter amostral dos respondentes. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 109 GRPE • OIT TABELA 4 - Estatísticas relativas às categorias de escolaridade População Categoria Educacional Proporção p(1-p)/n 972 0.00 0.0002 Alfabetizado 10,769 0.02 Fundamental Incompleto Fundamental Completo 41,951 55,325 0.07 0.09 Analfabeto Casos Amostra Casos Proporção p(1-p)/n z 240 0.00 0.0004 0.03 0.0002 3,979 0.02 0.0004 0.07 0.0002 0.0002 13,925 19,459 0.06 0.08 0.0004 0.0004 0.54 0.52 Médio 175,454 0.30 0.0002 69,516 0.29 0.0004 0.29 Superior 299,910 0.51 0.0002 130,051 0.55 0.0004 1.45 Total 584,381 1.00 237,170 1.00 Fonte: MPOG/SRH, SIAPE, abril de 2003. Portanto, como já adiantado, os testes revelam que a amostra não pode ser considerada aleatória simples, pois há um tipo de comportamento de não resposta sistemático. Os servidores que não respondem são, em média, mais velhos e menos educados que aqueles que respondem, embora tenham quase que exatamente a mesma composição por sexo. Entretanto, os resultados informam que seja qual for o viés causado por essas probabilidades diferenciadas de resposta, ele deve ser bem pequeno. É interessante ainda ressaltar que a ênfase na internet como meio do cadastramento pode ter influído no perfil dos servidores que responderam à campanha, pois é lícito supor que pessoas mais jovens e mais educadas tenham mais facilidade de acesso a computadores, daí serem ligeiramente mais freqüentes entre os respondentes. Dadas as características da base de dados obtida, existiriam três formas distintas de proceder a inferências sobre o universo dos servidores a partir da amostra de respondentes: ?Sabendo-se que, a despeito de os respondentes não constituírem amostra aleatória, as diferenças nas probabilidades de se encontrar certos grupos na amostra são muito pequenas, poderia se tratar a amostra como aleatória com a consciência de que eventuais resultados poderiam ser ligeiramente enviesados. ?Poderia se tirar dos respondentes uma outra amostra, menor, na qual as proporções do universo estivessem respeitadas, perdendo assim informação, mas ganhando representatividade. ?Poderia se ponderar os dados usando as relações entre o universo e a amostra e calcular todas as estatísticas usando os pesos obtidos, mantendo informação e garantindo mais representatividade. Por acreditar-se do que a terceira solução seria a melhor, uma vez que não perdemos precisão e ganhamos representatividade, optou-se por adotá-la análise. Antes, porém, de calcular os pesos, foi selecionado um subconjunto dos respondentes que possuía o registro completo, isto é, que possuíam todas as informações que seriam empregadas no estudo. Devido a 110 CADERNO GRPE • [2] essa filtragem final, a base de estudos ficou com 177.841 casos. APÊNDICE II – Indicador «S» de sub ou sobre-representação (Capítulo IV) O indicador «S» usado para aferir a existência e a intensidade da sub ou da sobre-representação de determinados grupos é uma espécie de Q de Yule adaptado. Ele mede a discrepância entre as proporções em que um grupo se apresenta em uma população de referência e na população de interesse, no caso os servidores do serviço público civil. Em essência, é uma normalização da razão entre a chance de se encontrar alguém do grupo em foco na população em estudo e a chance de se encontrar alguém deste mesmo grupo na população de referência. Chance é a razão entre a probabilidade de ocorrência de um evento e a probabilidade de que esse mesmo evento não ocorra. A fórmula de cálculo desse indicador é a seguinte: S? ln p spc ? ln(1 ? p spc ) ? ln p ref ? ln(1 ? p ref ) ? 1 ln p spc ? ln(1 ? p spc ) ? ln p ref ? ln(1 ? p ref ) ? 1 Onde pspc é a probabilidade de encontrar alguém do grupo em questão no serviço público civil e pref a probabilidade de encontrar um membro do grupo na população de referência. No caso do estudo apresentado no Capítulo 4, a população de referência podia ser a população brasileira de 20 a 69 anos ou a população economicamente ativa da mesma faixa etária. Na análise da distribuição dos servidores pelos níveis da hierarquia dos cargos, usou-se também a população de ocupantes de cargos como referência. O indicador «S» pode ser positivo, neutro ou negativo. O valor «0» indicaria a neutralidade, a ausência de sub ou sobre-representação. Valores negativos indicam sub-representação e valores positivos, sobre-representação. «S» se aproximaria dos valores extremos (+1 ou –1) na situação hipotética em que a probabilidade de um grupo no serviço público civil fosse próxima a zero e no grupo de referência próxima a 1 ou o contrário. APÊNDICE III – Classificação de Cargos e Funções (Capítulo IV) A classificação de cargos em comissão e funções gratificadas, empregada no Capítulo IV, contempla os seguintes grupos (em ordem alfabética): ?Cargo de Direção das Instituições Federais de Ensino Superior - CD ?Cargos de Natureza Especial – NES Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 111 GRPE • OIT ?Função Comissionada Técnica – FCT ?Função Gratificada – FGR ?Função Gratificada das Instituições Federais de Ensino Superior –FG ?Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS Existem alguns outros grupos de cargos e funções que não constam da relação acima, mas são «raros»: 96% dos cargos e funções dos servidores ativos em abril de 2003 se enquadravam em um desses grupos. Todos têm distinções internas de nível. Assim, um DAS 6 é bem similar a um CD 1, tanto em nível hierárquico dos que os ocupam na estrutura de poder de suas instituições, como na remuneração integral ou na parcela recebida. A classificação final levou em consideração o nível hierárquico e a remuneração (adicional ou integral) ficando com seis categorias: # Categoria Remuneração Cargos e funções incluídos 1 Sem cargo --- --- 2 Cargos Inferiores R$ 26 a R$ 476 FCT 13 a 15; FGR 1 a 3; FG 2 a 9 3 Cargos Médio-Inferiores R$ 500 a R$ 1.390 DAS 1 e 2; FCT 7 a 12; FG 1 4 Cargos Médios R$ 1.560 a R$ 2.800 DAS 3; CD 4; FCT 3 a 6 5 Cargos Médio-Superiores R$ 3.300 a R$ 4.850 DAS 4; CD 2 e 3; FCT 1 e 2 6 Cargos Superiores R$ 5.600 a R$ 8.000 NES; DAS 5 e 6; CD 1 Esses eram os valores vigentes em abril de 2003. As principais normas jurídicas reguladoras desses cargos e funções eram as seguintes: ?Lei nº 9.640, maio de 1998 ?Lei nº 10.470, junho de 2002 ?Decreto nº 4.567, janeiro de 2003 112 CADERNO GRPE • [2] APÊNDICE IV – Equação de salários (Capítulo IV) Foram especificados dois modelos para o estudo da variação dos salários: ln(s) = ? + ßS + ßR + ßEm + ßEs + ßCi + ßCmi + ßCm + ßCms + ßCs + ßT2 + ßT + e [1] ln(s) = ? + ßHn + ßMb + ßMn + ßEm + ßEs + ßCi + ßCmi + ßCm + ßCms + ßCs + ßT2 + ßT + e [2] Os termos comuns aos dois modelos são: ln(s) = Logaritmo do salário a = Intercepto bT 2 + bT = Tempo de serviço bCi a bCs = Variáveis dicotômicas para o nível hierárquico do cargo ocupado segundo a classificação adotada para o estudo. A categoria de base é sem cargo; i = inferior, m = médio e s = superior bE m e bE s = Variáveis dicotômicas para o nível de escolaridade, médio e superior. A categoria base é «fundamental» e = resíduo No primeiro modelo [1]: bS = Variável dicotômica para sexo; categoria base: homens bR = Variável dicotômica para raça; categoria base: brancos No segundo modelo [2]: bHn = Variável dicotômica para homens negros; bM b = Variável dicotômica para mulheres brancas; bM n = Variável dicotômica para mulheres negras; Categoria base das três variáveis acima: homens brancos Tabela 5 - Estatísticas dos modelos 1 e 2 Casos Graus de Liberdade 2 R Soma dos Quadrados Explicada Residual F Modelo 1 177841 11 0,314 74467,13 162898,6 7390,26 Modelo 2 177841 12 0,314 74481,41 162884,4 6776,26 Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 113 GRPE • OIT Tabela 6 - Estimativas dos parâmetros do modelo 1 Modelo 1 ? Erro padrão t Intercepto - ? 7,0480 0,0054 1318,4629 Escolaridade média - ? Em 0,2113 0,0038 55,4361 Escolaridade superior - ? Es 206,3450 0,7501 0,0036 Cargo inferior - ? Ci 0,0545 0,0052 10,5513 Cargo médio inferior - ? Cmi 0,3735 0,0 080 46,4872 Cargo médio - ? Cm 0,4314 0,0136 31,6290 Cargo médio superior- ? Cms 0,6580 0,0200 32,8949 Cargo superior- ? C s 0,9832 0,0674 14,5894 Tempo de serviço - ? T 0,0004 0,0000 28,1180 Tempo de Serviço - ? T -0,0135 0,0005 26,0389 - Sexo - ? S -0,1270 0,0026 49,3036 - Raça - ? R -0,0881 0,0028 31,8497 - 2 2 Tabela 7 - Estimativas dos parâmetros do modelo 2 Modelo 2 Erro padrão t Intercepto - ? 7,0520 0,0054 1295,8674 Escolaridade média - ? Em 0,2106 0,0038 55,2244 Escolaridade superior - ? Es 0,7495 0,0036 206,0282 Cargo inferior - ? Ci 0,0547 0,0052 10,5896 Cargo médio inferior - ? Cmi 0,3734 0,0080 46,4762 Cargo médio- ? Cm 0,4312 0,0136 31,6121 Cargo médio superior- ? Cms 0,6579 0,0200 32,8930 Cargo superior- ? Cs 0,9827 0,0674 14,5813 Tempo de serviço - ? T 2 114 ? 2 0,0004 0,0000 28,1150 Tempo de serviço - ? T -0,0136 0,0005 -26,0585 Homens negros - ? Hn -0,0976 0,0037 -26,6094 Mulheres brancas - ? M b -0,1344 0,0032 -42,2285 Mulheres negras - ? M n -0,2109 0,0039 -53,8380 CADERNO GRPE • [2] Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil 115 GRPE • OIT Este caderno foi composto em maio de 2006 com as fontes Goudy Old Style para o texto e Franklin Gothic Demi Cond para os destaques. 116